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Quilúria

Chyluria

Resumos

A ruptura ou fistulização de vasos linfáticos para o interior do sistema excretor urinário dá origem à quilúria, que tem na bancroftose a sua principal etiologia. Pode ser, raramente, também causada por neoplasia, malformação linfática, traumatismo abdominal, assim como outras doenças infecciosas como a tuberculose. Os autores propõem as diretrizes gerais para a condução do portador de "urina leitosa" em áreas endêmicas e não endêmicas de filariose bancroftiana. Ressaltam a importância dos exames de triagem e de outros mais sofisticados para uma investigação etiológica a partir da realização de anamnese e de exame físico criteriosos. Enfatizam a necessidade de que a doença deve ser conduzida através de uma abordagem mais abrangente, que compreenda, além da médica, a assistência social e a nutricional. Na grande maioria dos casos, o controle da quilúria está basicamente fundamentado na educação e na adequação do paciente a uma dieta hipolipídica/hiperprotéica e rica em líquidos.

Quilúria; Wuchereria bancrofti; Investigação clínica; Dieta; Clubes da esperança; Diagnóstico diferencial; Malformação linfática


The rupture or fistulization of lymph vessels into the urinary system, known as chyluria (milky urine), is caused mainly by bancroftian filariasis. On rare occasions chyluria may also be caused by neoplasia, lymphatic malformation, abdominal trauma, as well as other infectious diseases such as tuberculosis. The authors proposed general guidelines to manage patients suffering from milky urine in Bancroftian filariasis endemic and non-endemic areas. They emphasized the importance of a careful diagnostic process accomplished using screening procedures, evaluating a detailed history of illness and performing a careful physical examination, targeting on the most suitable diagnostic tools for each case. In addition, they emphasized the need to manage the patient from a broader perspective, which goes beyond the medical aspect, involving also social and nutritional contexts. In the great majority of cases, controlling chyluria is fundamentally based on patient education and adjustment to a low lipid, high protein diet in addition to increased fluid intake.

Chyluria; Wuchereria bancrofti; Clinical investigation; Diet; Hope clubs; Differential diagnosis; Lymphatic mal formation


ARTIGO DE REVISÃO

Quilúria

Chyluria

Gerusa Dreyer* * Correspondência ONG Amaury Coutinho Rua Conselheiro Portela, n º 665 sala-120, Graças - Cep: 52020-030, Recife-PE Fax/Fone: +55 81 3426 4348, dreyer-g@uol.com.br ; Denise Mattos; Joaquim Norões

RESUMO

A ruptura ou fistulização de vasos linfáticos para o interior do sistema excretor urinário dá origem à quilúria, que tem na bancroftose a sua principal etiologia. Pode ser, raramente, também causada por neoplasia, malformação linfática, traumatismo abdominal, assim como outras doenças infecciosas como a tuberculose. Os autores propõem as diretrizes gerais para a condução do portador de "urina leitosa" em áreas endêmicas e não endêmicas de filariose bancroftiana. Ressaltam a importância dos exames de triagem e de outros mais sofisticados para uma investigação etiológica a partir da realização de anamnese e de exame físico criteriosos. Enfatizam a necessidade de que a doença deve ser conduzida através de uma abordagem mais abrangente, que compreenda, além da médica, a assistência social e a nutricional. Na grande maioria dos casos, o controle da quilúria está basicamente fundamentado na educação e na adequação do paciente a uma dieta hipolipídica/hiperprotéica e rica em líquidos.

Unitermos: Quilúria. Wuchereria bancrofti. Investigação clínica. Dieta. Clubes da esperança. Diagnóstico diferencial. Malformação linfática.

SUMMARY

The rupture or fistulization of lymph vessels into the urinary system, known as chyluria (milky urine), is caused mainly by bancroftian filariasis. On rare occasions chyluria may also be caused by neoplasia, lymphatic malformation, abdominal trauma, as well as other infectious diseases such as tuberculosis. The authors proposed general guidelines to manage patients suffering from milky urine in Bancroftian filariasis endemic and non-endemic areas. They emphasized the importance of a careful diagnostic process accomplished using screening procedures, evaluating a detailed history of illness and performing a careful physical examination, targeting on the most suitable diagnostic tools for each case. In addition, they emphasized the need to manage the patient from a broader perspective, which goes beyond the medical aspect, involving also social and nutritional contexts. In the great majority of cases, controlling chyluria is fundamentally based on patient education and adjustment to a low lipid, high protein diet in addition to increased fluid intake.

Key words: Chyluria. Wuchereria bancrofti. Clinical investigation. Diet. Hope clubs. Differential diagnosis. Lymphatic mal formation.

DEFINIÇÃO/ETIOLOGIA

A ruptura e a conseqüente fistulização de vasos linfáticos dilatados para dentro de qualquer segmento do trato urinário leva ao extravasamento de linfa, que se junta à urina e produz clinicamente o que é denominado de quilúria. Cerca de 80% a 90% da gordura da dieta é absorvida pelos linfáticos lácteos do intestino na forma de quilomícrons1 1 Quilomícrom é uma classe de lipoproteína que transporta o colesterol e o triglicéride exógenos do intestino delgado para os tecidos (fígado, tecido adiposo, músculos esqueléticos e cardíaco). , o que confere o aspecto leitoso à linfa e, conseqüentemente, à urina que contém essas partículas. Esta lipoproteína é sintetizada na mucosa intestinal e transporta a gordura absorvida via canais lácteos, ducto torácico, até o coração direito, ganhando o sistema sangüíneo.

A quilúria é normalmente classificada como tropical (ou parasitária) e não tropical (ou não parasitária)1. Normalmente, o termo "tropical" é usado como sinônimo de quilúria determinada pela filariose bancroftiana, que é endêmica em mais de 80 países e acomete cerca de 100 milhões de pessoas2.

Não se conhece a real prevalência da quilúria, tanto nas áreas endêmicas como nas não endêmicas, mas sabe-se que ela é pouco freqüente nas regiões de clima temperado. Entre as etiologias menos comuns, encontra-se a obstrução da drenagem linfática devido às neoplasias, às doenças inflamatórias crônicas (como a tuberculose) e ainda aos traumatismos, principalmente os abdominais. Malformações linfáticas3 também podem determinar quilúria que, quando surge logo no período neonatal, tem prognóstico reservado. A gravidez também é apontada como causa de quilúria em pacientes com algum fator de risco associado. A migração ectópica de parasitos intestinais pode, embora raramente, causar quilúria. Em alguns casos, o diagnóstico etiológico da quilúria não tropical permanece um desafio, apesar da disponibilidade de um rico armamentário de diagnóstico complementar4.

Na doença bancroftiana, o sistema linfático se torna incompetente pela linfangiectasia que, diferentemente do que se acreditava no passado, é de causa não obstrutiva5 e permite o refluxo de quilomícrons para os linfáticos abaixo da cisterna do quilo. O aumento da pressão dentro desses linfáticos dilatados, que comumente se segue à ingestão de alimentos ricos em gordura, leva à sua ruptura para dentro do lúmen do sistema excretor urinário. À exceção do que ocorre com a quilúria filarial e com a que acompanha as malformações linfáticas, as de outras etiologias são, direta ou indiretamente, determinadas por obstrução inflamatória e/ou mecânica.

CONSIDERAÇÕES GERAIS – QUADRO CLÍNICO

A quilúria não tropical parece não ter predileção por sexo ou idade. Em áreas de bancroftose, por outro lado, ela é muito rara em indivíduos abaixo dos 15 anos6. Não há, até o momento, estudos apropriados para identificar se existe ou não predominância de gênero nas áreas endêmicas. Um aspecto marcante da quilúria, independentemente da etiologia, é a intermitência de sua apresentação, a intervalos muito variáveis, que sofre a influência, principalmente, da dieta e da severidade do dano linfático. Em áreas endêmicas de bancroftose, alguns pacientes podem ter apenas um único episódio de urina leitosa em toda a sua vida. O quadro clínico de astenia e perda de peso corporal é justificado pela perda urinária de proteínas, principal responsável pelo estado de debilitação física e que pode chegar a níveis tão altos quanto 40g nas 24h. O que se excreta em excesso na urina é, particularmente, fibrinogênio e, em menor proporção, imunoglobulinas. O resultado é a magreza e não o edema generalizado, como ocorre em outras situações em que a albumina é o principal componente da proteinúria, como na síndrome nefrótica. Por outro lado, somente em casos excepcionais, o prejuízo causado pela excreção urinária de imunoglobulinas, e também de linfócitos, é capaz de fazer com que esses indivíduos sofram as conseqüências de um comprometimento imunológico, decorrente desse processo de perda. Muito na dependência da ingesta hídrica, coágulos de fibrinogênio podem se formar na bexiga, levando à disúria, dificuldade para urinar, e algumas vezes à retenção aguda de urina, em particular nos pacientes do sexo masculino e nos mais idosos, nos quais coexiste a doença obstrutiva pelo crescimento da próstata. Nesta situação, faz-se necessário o cateterismo vesical. A perda da urina leitosa per se não ocasiona febre. Quando presente, esta pode decorrer da doença de base como, por exemplo, a tuberculose, ou uma outra comorbidade que não guarda relação com a quilúria. Da mesma forma, a quilúria por si só não predispõe à infecção urinária que, se presente, deve ter uma outra etiologia a ser pesquisada.

A quilúria se acompanha, sistematicamente, de hematúria micro ou macroscópica, na dependência da importância do sangramento e do volume de diurese do paciente. Este sangramento tem origem na ruptura concomitante de vasos sangüíneos (vasa vasorum-like) da parede do vaso linfático no local da fistula7. Quando a quilúria se associa à hematúria macroscópica, ela é melhor denominada por hemato quilúria.

Desconforto lombar é uma outra queixa referida por alguns pacientes por ocasião dos episódios de urina leitosa, não existindo, até o momento, uma explicação para o referido sintoma.

A URINA QUILOSA

Macroscopicamente, a urina quilosa pode ter um aspecto idêntico ao do leite, ser apenas esbranquiçada ou ser ligeiramente turva, na dependência da proporção do conteúdo de quilomícrons e de proteínas em relação ao volume da diurese. Em alguns casos, na urina coletada pode ser percebida uma camada mais superficial de gordura. Em outras situações que simulam quilúria, como na piúria e na fosfatúria, a urina pode, também, apresentar-se com uma aparência leitosa ou turva. O diagnóstico diferencial com essas manifestações é feito através da observação, por alguns minutos, da urina recém-eliminada em um recipiente transparente. Na urina quilosa, não ocorre a decantação, que permite a formação de um sobrenadante mais límpido, com um aspecto próprio de urina normal, enquanto que, tanto na piúria como na fosfatúria, se identificam, distintamente, um sobrenadante de urina normal e um depósito ou sedimento, geralmente brancacento. O coágulo proteináceo pode ser branco/transparente ou branco/opaco e pode conter hemácias na sua malha de fibrina. Ele pode ser formado, in vivo, na bexiga, quando o paciente passa períodos de tempo longos sem urinar, devido, em particular, à pequena ingesta de líquidos e, ex-vivo, quando a urina quilosa é deixada em repouso8. Se a hematúria for macroscópica e intensa, a cor branca ou o aspecto brancacento da urina pode ser mascarado. No entanto, caso não ocorra hemólise importante, poderá se visualizar o aspecto que caracteriza a urina quilosa. Independentemente da etiologia, o diagnóstico de quilúria é confirmado pela identificação de linfócitos e não de lipídios, uma vez que lipidúria pode ter outras etiologias, como a síndrome nefrótica, por exemplo9. Vale ressaltar que na dependência do grau de degeneração ex-vivo dos linfócitos, os mesmos podem ser confundidos com piócitos e, desta forma, levantar falsa suspeita de infecção do trato urinário específica (tuberculose renal) ou inespecífica.

OS EXAMES COMPLEMENTARES DE ROTINA

O sumário de urina durante o episódio de urina quilosa tem a sua importância como exame de triagem, uma vez que evidencia a hematúria, um grande número de células mononucleares e a constante presença de proteinúria. Para a confirmação da presença de células mononucleares (linfócitos), deve-se proceder a análise do sedimento urinário de uma amostra recém-coletada fazendo-se uso de corantes hematológicos10.

Tratando-se de uma manifestação clínica intermitente, se a pesquisa de linfócitos for feita em um momento de tamponamento temporário da fístula por trombos proteináceos, a pesquisa de linfócitos será negativa. Recomenda-se, assim, que a pesquisa de linfócitos seja feita no período em que o paciente apresentar a urina de aspecto quiloso. A proteinúria de 24h é um exame complementar importante, não só para dimensionar a perda protéica, mas também para a monitorização e o balizamento da dieta hipolipídica, uma vez que é mais facilmente quantificável e se correlaciona com a severidade da fístula. Da mesma forma, um protidograma é de importância para um acompanhamento da evolução do paciente. Apesar da quilúria, isoladamente, não ser acompanhada de alteração da função renal, um clearence de creatinina deve constar do protocolo de investigação. A associação desta manifestação com um clearance alterado deve servir de alerta para a necessidade de uma investigação adicional de outras doenças associadas.

A ultra-sonografia do abdome total também deve fazer parte da investigação de triagem no portador de quilúria. A realização de outros exames irá depender de aspectos epidemiológicos, dados da anamnese e achados do exame físico. Assim, exames adicionais de imagem ou de endoscopia urinária podem se fazer necessários, na dependência da suspeita etiológica da quilúria ou da hemato-quilúria11. Em áreas endêmicas de bancroftose, a ultra-sonografia do conteúdo escrotal com vistas à investigação dos linfáticos intra-escrotais12 está indicada em todos os pacientes, principalmente naqueles cujas pesquisas de microfilária e de antígeno circulante forem negativas. A ultra-sonografia se mostrou um exame importante no diagnóstico da infecção, permitindo a visualização dos vermes adultos vivos de W.bancrofti, o que ficou conhecido pelo "Sinal da Dança da Filária" ou SDF13. Vermes adultos vivos de W. bancrofti podem ser vistos em videoclipes, tanto pela ultra-sonografia quanto durante procedimentos cirúrgicos no website www.amaurycoutinho.org.br14.

É ainda desconhecida a prevalência de infecção filarial ativa entre os portadores de quilúria nas diversas áreas endêmicas. A ausência de parasitismo no momento da investigação ou a falta de informação de história prévia de diagnóstico de infecção filarial (ou compatível com), por sua vez, não descarta a provável etiologia bancroftiana da quilúria. A urina leitosa pode aparecer muitos anos após a cura parasitológica.

O TRATAMENTO

Para a maioria dos pacientes, o tratamento da quilúria é eminentemente clínico e, independentemente da etiologia, consiste de dieta hipolipídica, hiperprotéica e rica em líquidos. A dieta é fundamental, particularmente, para retirar os pacientes do período de crise, enquanto a restrição lipídica continuada (rigorosa ou mais branda) deverá ser avaliada e ajustada de acordo com a proteinúria de 24h e recorrência dos episódios de quilúria. Nos casos dos pacientes com dano linfático severo (com proteinúria de 24 horas acima de 10g), a dieta hipolipídica pode ser necessária por um longo período de tempo, quando não, por toda a vida. Nesses casos, o ideal seria que a dieta contivesse apenas, ou principalmente, triglicerídeos de cadeia média, uma vez que são absorvidos pelo sistema porta e não pela via linfática intestinal15. A hidratação generosa durante os episódios de urina leitosa é recomendada com a finalidade de diminuir a ação irritativa da linfa no urotélio, particularmente no epitélio vesical, e reduzir o risco de formação de trombos proteináceos que causam desconforto/dor miccional e, até mesmo, retenção aguda de urina16. Dependendo da perda de hemácias pode ocorrer anemia ferropriva crônica e a reposição do ferro se faz necessária. Só muito ocasionalmente poderá haver necessidade de transfusão de sangue por perda aguda importante.

Em quilúria tropical, o tratamento clínico geralmente é efetivo e, a não ser que os pacientes não sigam a orientação dietética, são raros os casos graves refratários. Dessa forma, a necessidade de uma conduta terapêutica invasiva é pouco freqüente e, sempre que aventada, deve ser avaliada criticamente, pesando-se bem os prós e os contras. Se o paciente apresentar infecção ativa pela W. bancrofti, o tratamento antifilarial com a dietilcarbamazina deverá ser instituído, mesmo se sabendo que ele não resultará em nenhum benefício para o reparo da fístula em si. Para mais detalhes sobre o diagnóstico laboratorial e o tratamento da infecção bancroftiana, ver Addiss e Dreyer 200017; Dreyer et al., 20057; Norões et al., 199718. A eficácia do tratamento clínico ou cirúrgico em quilúria não tropical é variável e depende muito da remoção da doença de base.

A QUILÚRIA TROPICAL E SUAS SUTILEZAS

A detecção de microfilária em urina quilosa durante a sedimentoscopia pode ocorrer nos pacientes com infecção filarial ativa. Nesses casos, a priori, fica fortalecida a provável etiologia filarial da quilúria. A porta de entrada dos embriões no sistema excretor urinário, no entanto, pode não se fazer diretamente através da linfa extravasada, mas sim pela contaminação sangüínea da urina. Estes parasitos habitam o sangue e a hematúria por ruptura dos vasos sangüíneos da parede vascular linfática é uma constante daí a coexistência da microhematúria com a quilúria. Assim, as microfilárias, eventualmente presentes na urina quilosa, podem ser originadas de vermes adultos localizados em regiões do corpo distantes do local da fistulização e não por parasitos adultos que porventura habitem os linfáticos nas cercanias da ruptura ou em ducto torácico. Em outras palavras, embora raramente, o paciente pode ser portador de infecção filarial e a sua quilúria ter uma outra causa (G. Dreyer, comunicação pessoal). É oportuno enfatizar que a etiologia filarial da quilúria é um diagnóstico de exclusão. Mesmo que o paciente apresente infecção filarial ativa, quer pela presença da microfilária (no sangue ou em outro fluido), quer seja por um teste de antígeno positivo no sangue/soro, quer pela presença do SDF ao ultra-som, deve-se proceder a investigação diagnóstica, com finalidade de descartar ou afirmar a presença de outros possíveis fatores etiológicos.

Uma outra peculiaridade a ser levantada diz respeito às imagens de calcificação do parênquima renal vistas em exames de imagens, particularmente, nos radiológicos. Vermes adultos mortos podem sofrer calcificação no interior dos vasos linfáticos19. Essas calcificações são muito diminutas e se distribuem de forma peculiar, seguindo o trajeto dos vasos linfáticos renais. Já as calcificações observadas na tuberculose renal são pleomórficas, incluindo padrões granulares, amorfos ou lobares20. As calcificações na tuberculose podem comprometer pequenas áreas ou uma porção relativamente grande do rim. Por vezes, elas podem ser vistas como uma opacificacão pobremente definida, apenas levemente mais densa que o tecido renal. É possível, contudo, que o parênquima seja difusamente calcificado21.

Uma vez que na tuberculose urinária possa, com freqüência, ocorrer tanto hematúria quanto piúria22, em pacientes que vivem em áreas endêmicas de bancroftose é preciso que se faça o diagnóstico diferencial com a quilúria. Em alguns casos, a urina pode não ter o aspecto leitoso clássico, possuir hemácias em seu sedimento e, erroneamente, ser referida à presença de piócitos e não de linfócitos. É a chamada falsa piúria, em que as células mononucleares não são reconhecidas e as uroculturas, sistematicamente, são negativas para germes piogênicos (G. Dreyer comunicação pessoal).

OS COMPONENTES SOCIAL E NUTRICIONAL NA CONDUÇÃO DO PACIENTE COM QUILÚRIA

A questão social é um ponto crítico a ser considerado em pacientes portadores de quilúria, principalmente nos que vivem em áreas endêmicas de bancroftose marcadas pela desigualdade social. A esta, normalmente, se misturam os aspectos culturais de alimentação rica em gordura, adquirida pelos hábitos familiares e fortalecida pela situação de pobreza. Para a maioria, é praticamente impossível seguir a dieta, uma vez que o alimento está restrito ao que conseguem comprar ou ao que lhe ofertam. Está aí, portanto, um grande desafio para a saúde pública e para os profissionais que assistem, diretamente, o paciente com baixo nível socioeconômico. Da dieta deste deve ser retirada a gordura, o item mais barato, o melhor componente da sua alimentação para lhe conferir a sensação de plenitude, saciando-lhe a fome, e também o que lhe fornece mais calorias, no jogo delicado do custo-benefício de suas refeições diárias. Nesse contexto, mudar hábitos alimentares torna complexo o processo de educação e orientação nutricionais. A ação transdisciplinar é um ponto fundamental no planejamento da educação alimentar23. Não se trata de uma estratégia para mudar apenas elementos constitutivos de uma dieta, reduzir lipídios e aumentar a ingesta de proteínas, mas também para sistematizar um círculo de troca de informações e estímulos, num espaço onde a família tenha um importante papel. Apesar da grande maioria dos indivíduos atribuir o sabor do alimento ao maior teor de gordura, é possível tornar a alimentação hipolipídica também atrativa ao paladar dos portadores de quilúria. Apenas com um pouco de criatividade, pode-se chegar a receitas simples, de baixo custo, mas nem por isso menos apetitosas. A criação desses espaços de discussão nas comunidades ou nas instituições de saúde pode ser embasada na experiência vivida pelo Clube da Esperança24, 25, 26, em que a troca de experiências fez frutificar a adesão ao tratamento, ao substituir crenças por fatos constatados. Os Clubes da Esperança podem socializar, de forma mais segura, essas trocas porque o seu espaço tem em comum a característica de ser preenchido por pessoas que vivem, praticamente, as mesmas dificuldades de aceitação da doença e da dieta.

Embora num contexto diferente daquele dos linfedemas volumosos de membros inferiores, prevalentes em áreas de filariose, a quilúria pode também apresentar sérios problemas aos pacientes, devido à imagem física dos mesmos. Em lugar de membros inferiores deformados e volumosos, uma magreza exagerada, conseqüência da grande perda de proteínas e de lipídios, coloca o paciente, aos olhos do leigo, como suspeito de ser um portador de doenças marcadas ainda por forte estigma, como a aids e a tuberculose7. No ambiente de trabalho, as pausas repetidas para o esvaziamento vesical, resultado da grande ingesta de líquidos como forma de evitar a formação de trombos proteináceos na bexiga, e os transtornos miccionais deixam o paciente à mercê da incompreensão ou da complacência do seu empregador e das críticas, veladas ou não, dos colegas de trabalho23. A doença também pode trazer sérios problemas na convivência marital, pelas fantasias criadas a partir da falta de crédito do(a) parceiro(a) à conduta sexual do(a) portador(a), quando associa-se a quilúria com as doenças sexualmente transmissíveis (G. Dreyer, comunicação pessoal). Outro aspecto é que enquanto a doença não é esclarecida, uma parcela dos pacientes vive também a angústia de se imaginar com câncer26.

Independentemente de ser a quilúria de origem filarial, os conhecimentos médico e social devem caminhar juntos. Há, obviamente, um peso relativo de ambos: dependendo da situação, poderá ser mais urgente o social que o clínico ou vice-versa. Atender aos requerimentos médico-nutricionais implica numa trajetória de escuta à realidade social do indivíduo, de firmeza e de compreensão aos estímulos, que deverão ser criados e recriados quando o cansaço em relação à dieta for manifestado na recorrência da urina leitosa. O processo de educação requer também repassar para o paciente como ele deve contornar determinadas situações, mantendo a valorização das refeições em família –com as receitas herdadas e nos eventos sociais. Em ambas as situações, há uma verdadeira fonte de sedução. Não ter o "direito" de socializar estes momentos é, sem dúvida, um grande desafio para o portador de quilúria que, como qualquer outro indivíduo, desde a lactação tem na experiência com o alimento uma fonte de prazer.

A aprendizagem vivida junto aos familiares e aos portadores de bancroftose e, em particular, àqueles com quilúria, através de um trabalho realizado em serviço de assistência especializada em hospital terciário universitário (Núcleo de Ensino e Pesquisa e Assistência em Filariose –NEPAF –Universidade Federal de Pernambuco), permitiu que os autores ratificassem que o controle da doença e o avanço na melhoria da qualidade de vida somente ocorrerão se a abordagem aos pacientes e aos seus familiares for feita de modo a integrar as visões médica, nutricional e social do problema.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem aos pacientes pelo aprendizado continuado sobre a quilúria e pelo incentivo à criatividade nos constantes desafios para se descobrir métodos alternativos e interessantes, que ultrapassem os problemas sociais, e fazer a adequação dos mesmos à prescrição médica; e ao suporte financeiro da ONG Amaury Coutinho na confecção do manuscrito.

Conflito de interesse: não há.

Artigo recebido: 17/5/07

Aceito para publicação: 29/5/07

Trabalho realizado no NEPAF - Núcleo de Ensino, Pesquisa e Assistência em Filariose

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    Correspondência ONG Amaury Coutinho Rua Conselheiro Portela, n
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    Quilomícrom é uma classe de lipoproteína que transporta o colesterol e o triglicéride exógenos do intestino delgado para os tecidos (fígado, tecido adiposo, músculos esqueléticos e cardíaco).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Out 2007

    Histórico

    • Recebido
      17 Maio 2007
    • Aceito
      29 Maio 2007
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