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Acreditação ou acreditações? Um estudo comparativo entre a acreditação na França, no Reino Unido e na Catalunha

Resumos

O artigo analisa a dinâmica da acreditação em três realidades distintas - França, Reino Unido e Catalunha (Espanha) - e apresenta as diferenças significativas nos processos de acreditação implementados. O estudo consistiu na revisão documental e bibliográfica dos sistemas de saúde e dos modelos de acreditação nesses três países, analisando a organização do sistema de saúde, o financiamento, os modos de regulação do sistema de saúde e o processo de acreditação. Na análise da acreditação, buscou-se identificar aspectos relativos à institucionalidade e normatização da ação, as diretrizes, estratégias e resultados alcançados. O estudo revelou que a acreditação adquire distintos significados em função das relações e das propostas de política nos países. A acreditação não pode ser compreendida apenas como uma ferramenta de qualidade que se oferece à adesão voluntária de hospitais. Ela só pode ser compreendida no contexto das propostas políticas que delimitam sua aplicação em sistemas de saúde concretos, bem como em função das características do arranjo dos serviços de saúde nesses sistemas.

Acreditação; sistemas de saúde; política de saúde; gestão de qualidade


This article analyzes the dynamics and changes in the accreditation process in three different places - France, UK and Cataluña (Spain) - based on documents about their health systems organizations, funding sources and regulations. The objective was to find out about the relevant aspects of the strategies of these countries' institutions that adapted accreditation to national circumstances in the healthcare policy arena. Although there are similarities in the basic approaches and standards used, there are different models of accreditation. Setting standards raises the question of who should define them and how they should be monitored; accreditation's methodology cannot be seen only as a voluntary process for assessing quality in healthcare or perceived as tool for certification and regulation. Interests in accreditation can be driven by a number of different forces, which depend upon the model adopted. Therefore, it can only be understood in the policy arena of each country.

Accreditation; health systems; health policy; quality management


ARTIGO DE REVISÃO

Acreditação ou acreditações? Um estudo comparativo entre a acreditação na França, no Reino Unido e na Catalunha

Maria Thereza FortesI; Ruben Araujo de MattosII; Tatiana Wargas de Faria BaptistaIII

IMestrado em Saúde Pública e Doutoranda em Saúde Pública/Escola Nacional de Saúde Pública - ENSP, Fundação Oswaldo Cruz - FIOCRUZ , Rio de Janeiro, RJ

IIDoutorado em Saúde Pública; Professor Adjunto da Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ

IIIDoutorado em Saúde Pública; Pesquisadora da FIOCRUZ, Rio de Janeiro, RJ

Correspondência para Correspondência para: Maria Thereza Fortes Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública, Departamento de Administração e Planejamento em Saúde Rua Leopoldo Bulhões, 1480/ 7º andar, sala 715 Manguinhos Rio de Janeiro - RJ - CEP: 21041-210 fortes.mt@gmail.com

RESUMO

O artigo analisa a dinâmica da acreditação em três realidades distintas - França, Reino Unido e Catalunha (Espanha) - e apresenta as diferenças significativas nos processos de acreditação implementados. O estudo consistiu na revisão documental e bibliográfica dos sistemas de saúde e dos modelos de acreditação nesses três países, analisando a organização do sistema de saúde, o financiamento, os modos de regulação do sistema de saúde e o processo de acreditação. Na análise da acreditação, buscou-se identificar aspectos relativos à institucionalidade e normatização da ação, as diretrizes, estratégias e resultados alcançados. O estudo revelou que a acreditação adquire distintos significados em função das relações e das propostas de política nos países. A acreditação não pode ser compreendida apenas como uma ferramenta de qualidade que se oferece à adesão voluntária de hospitais. Ela só pode ser compreendida no contexto das propostas políticas que delimitam sua aplicação em sistemas de saúde concretos, bem como em função das características do arranjo dos serviços de saúde nesses sistemas.

Unitermos: Acreditação; sistemas de saúde; política de saúde; gestão de qualidade.

Introdução

Este artigo discute as relações de acreditação dentro dos sistemas de saúde, considerando que estes guardam relações com as propostas, diretrizes e contexto das políticas formuladas por cada governo nacional, ou seja, considerando que são as relações internas da acreditação com os sistemas de saúde que lhe dão sentido. Para tal, considera-se a acreditação como uma proposta política de qualificação de serviços de saúde que, ao ser moldada para atender às necessidades e limitações de cada país, modifica suas características e deixa de ser um modelo único.

Pensando desde a lógica das propostas de política, as premissas para o funcionamento da acreditação não são as mesmas. Nessa perspectiva, o interesse são as consequências da adoção da acreditação em uma certa organização do sistema que tem seu arranjo de financiamento, seus meios de pagamento e instrumentos de coordenação da rede de serviços caracterizando o seu processo de acreditação.

A acreditação foi criada como uma ferramenta de avaliação dos riscos ocorridos em ambientes hospitalares com o intuito de proteger o profissional que atuava nessas unidades. A ferramenta é comumente apresentada como um dispositivo, cujo modus operandi propicia produção de qualidade nos hospitais e serviços de saúde.

Malik e Schiesari1 destacam a definição utilizada pelo Grupo Técnico de Acreditação que explicita a acreditação como "um sistema de avaliação, voluntária e reservada, para o reconhecimento da existência de padrões previamente definidos na estrutura, processo e resultado, com vistas a estimular o desenvolvimento de uma cultura de melhoria contínua da qualidade da assistência médico-hospitalar e da proteção da saúde da população" 1.

Na literatura sobre o assunto encontra-se a ideia de que a acreditação é uma metodologia de fácil compreensão e viabilidade, pois utiliza linguajar médico. Prega o que já se sabe ter que ser feito, orientando, entretanto, para uma organização ótima, que padroniza os procedimentos para possibilitar a criação de indicadores viáveis de comparação e preconiza o registro escrito das políticas e procedimentos da instituição que se candidatou ao processo.

A sistematização da qualidade da assistência médica e hospitalar iniciou-se em 1913, com trabalhos publicados por Ernest A. Codman, cirurgião norte-americano. A ideia se fortaleceu, o debate sobre a padronização dos hospitais cresceu e, em 1917, o Colégio Americano de Cirurgiões (CAC) iniciou o Programa de Padronização Hospitalar, cujo objetivo foi avaliar a conformidade dos procedimentos realizados pelos cirurgiões com relação a um conjunto de padrões mínimos. Vale destacar que a primeira avaliação feita teve um resultado considerado preocupante. Na época, foram avaliados 692 hospitais. Desses, apenas 892 apresentaram conformidade com os padrões mínimos estabelecidos, e o CAC, com receio de alarmar a população, decidiu não tornar público esse registro, queimando os documentos referentes à avaliação.

Atualmente, como consequência do desenvolvimento desse Programa, tem-se a Joint Commission Accreditation of Healthcare Organizations (JCAHO), com a missão de promover a melhoria contínua da qualidade dos serviços de saúde, pautada pela busca da excelência, em lugar do padrão mínimo para o funcionamento dos serviços. O fato consolidou a avaliação da qualidade dos serviços de saúde através da adoção da acreditação nos EUA. Além disso, ela impulsionou a criação da Joint Commission International (JCI), com a missão de assistir às organizações de saúde internacionais, agências de saúde pública, ministros da saúde e outros, no desenvolvimento da qualidade e segurança nos cuidados dos pacientes ao redor do mundo2.

Nesse processo, os EUA foram seguidos de perto pelo Canadá e pela Austrália. A acreditação só chegou à Europa na década de 1980. Ressalte-se que a acreditação era denominada acreditação hospitalar, pois se referia originalmente apenas ao hospital. Embora a acreditação tenha-se expandido para outras áreas de saúde, o interesse, neste trabalho, está em refletir sobre em que medida a acreditação de hospitais poderia contribuir para a melhoria da qualidade dos sistemas de saúde.

É interessante notar que no esforço de disseminar a acreditação, a ênfase dos estudos é dada ao material explicativo e aos procedimentos internos para o estabelecimento de processos de acreditação, e não aos motivos para adotá-la. A reflexão sobre a decisão dos governos de adotá-la e as consequências do processo, do ponto de vista dos sistemas, não aparece.

O objetivo deste artigo é analisar a dinâmica da acreditação em três realidades distintas - França, Reino Unido e Catalunha (Espanha) - e indagar se há diferenças significativas nos processos de acreditação implementados. Assim, pretende-se refletir sobre as homogeneidades ou diversidades da acreditação e entender este movimento de aproximação entre a acreditação e os sistemas de saúde.

O artigo está estruturado em quatro partes. A primeira aborda o tema da acreditação através da lógica de uma proposta de política. Em seguida, apresenta-se a metodologia empregada na revisão da acreditação nos três países eleitos. Posteriormente, apresentam-se os resultados das diferentes formas de adoção da metodologia da acreditação, nos contextos dos sistemas de saúde. Finaliza-se com uma discussão abrangente dos diferentes formatos de acreditação adotados nesses países.

A acreditação sob o enfoque da política

O Relatório da World Health Organization (WHO)3 define um sistema de saúde como o conjunto das atividades cujo objetivo principal seja a promoção, a recuperação ou a manutenção da saúde. A definição não implica que haja integração entre essas diversas atividades, mas o manual aponta que o grau de integração influencia a qualidade e o desempenho dos sistemas de saúde. O texto expõe três objetivos fundamentais dos sistemas de saúde: melhorar a saúde da população a que atendem; responder às expectativas das pessoas; e propiciar proteção financeira contra os custos da falta de saúde.

Essa definição de sistemas da WHO é particularmente útil, pois configura os diversos campos nos quais se constituíram os processos de acreditação, nos diversos países. Cada sistema nacional de saúde, com seus arranjos de financiamento, meios de pagamento e instrumentos de coordenação da rede de serviços, moldará seu processo de acreditação.

Da literatura sobre a acreditação, destacam-se dois autores, com duas abordagens distintas do tema. De um lado, Ellie Scrivens4, que ratifica a acreditação essencialmente como um produto de mercado em meio às adequações que a metodologia sofreu para se manter atraente. De outro, WHO5, que compreende a dimensão de mercado da acreditação, mas discute a acreditação como metodologia que incrementa a qualidade dos sistemas de saúde.

Scrivens4 explora essas adequações do ponto de vista de vários atores, como, por exemplo, o governo, as instituições de saúde e as instituições que fornecem a acreditação. Para configurar as alternativas da acreditação, utiliza os termos vantagem e desvantagem como categorias de análise e identifica esses atores como clientes. Todos os termos utilizados se caracterizam por serem analíticos, com forte ênfase na dinâmica de mercado.

Outra característica que vale ressaltar sobre essa ferramenta é o seu caráter voluntário, preconizado pela literatura. Essa propriedade faz sentido sob a ótica do mercado explorada por Scrivens4, pois os atores que participam desse tipo de contexto adotam essa metodologia, acreditando que a certificação lhes conferirá algum valor.

Esse caráter voluntário, segundo Malik e Schiesari1, garante o interesse público à medida que oferece transparência e deixa clara a preocupação pela qualidade daqueles que estão oferecendo seus serviços. Ou seja, garantias para os usuários, profissionais e compradores de serviços.

Já WHO5 defende a acreditação, dando-lhe outra importância. Seu intuito é revigorar a possibilidade de uso dessa ferramenta nos ambientes voltados para a saúde, em direção à sua adoção pelos governos. Nessa linha, apresenta um guia6 para os governos dos Estados-membros da região europeia da WHO que estejam considerando ou implementando programas de acreditação, em especial para hospitais, e também direciona esse documento para agências financiadoras, como um modelo orientador para o financiamento em prol do desenvolvimento dos cuidados em saúde. Shaw discute, com essa abordagem, a acreditação como um mecanismo para introdução da qualidade6-9 pelos sistemas nacionais de saúde.

Em seus estudos compara mecanismos distintos de avaliação da qualidade em serviços de saúde, defendendo a acreditação como a opção de metodologia mais adequada aos ambientes de saúde, apresentando as vantagens e desvantagens da acreditação frente às outras metodologias mais utilizadas, sem, no entanto, discutir o impacto da metodologia na qualidade desses sistemas de saúde.

Para esses autores o foco da discussão está na acreditação como ferramenta, que potencializa e torna mais eficiente os serviços de saúde, podendo gerar, inclusive, maior qualidade. Tomando como ponto de partida esta discussão, o que se pretende enfatizar neste artigo é a acreditação como uma possível estratégia política dos sistemas de saúde, uma ferramenta utilizada pelos governos para induzir mudanças na atenção em saúde em prol da qualidade.

As características dos sistemas de saúde guardam relações com as diretrizes e propostas de políticas formuladas pelos seus governos. Segundo Walt10, o estabelecimento de uma política depende do processo pelo qual ela passa e do poder dos atores envolvidos.

Assim, considera-se que uma proposta de adoção da acreditação por um governo, frente a um sistema nacional, adquire um sentido que não é o mesmo de sua dimensão técnica instrumental ou de sua dimensão de mercado frente aos hospitais, só podendo ser compreendida nas relações dentro dos sistemas de saúde. Portanto, a decisão de adotar a acreditação por um governo deve ser vista como uma proposta de política. Chama-se a atenção para o fato de que as propostas de política têm uma intenção, um cálculo de como chegar a determinado objetivo, com a adoção dessa ou daquela ação.

Métodos

O estudo consistiu na revisão documental e bibliográfica dos sistemas de saúde e dos modelos de acreditação em três países: a França, o Reino Unido e a Catalunha (Espanha). Essas experiências foram escolhidas porque já indicavam constituir-se em processos de acreditação bastante distintos, contribuindo para uma visão mais abrangente deste modelo. Para melhor compreensão das características de cada experiência, foi construído um quadro comparativo dos sistemas de saúde destacando-se como variáveis de análise os seguintes aspectos: organização do sistema de saúde, financiamento, modos de regulação do sistema de saúde, e processo de acreditação. Na análise do processo de acreditação, buscou-se identificar desde aspectos relativos a institucionalidade e normatização da ação, até diretrizes, estratégias e resultados alcançados.

Resultados

A França

O sistema de seguridade social francês se iniciou no pós-Segunda Guerra e se associava à ideia da democracia social. Ele foi criado com base em uma rede de fundos de seguros de saúde, rede esta organizada por representantes eleitos, a maioria dos quais empregados e o restante, empregadores.

Os fundadores do sistema de seguridade social foram influenciados pelo Relatório Beveridge, oriundo do Reino Unido, e tinham como objetivo a criação de um sistema que garantisse direitos iguais para todos. No entanto, eles não contavam com a oposição de alguns grupos socioprofissionais, que já se beneficiavam da cobertura existente e que conseguiram manter seus sistemas particulares de seguro à saúde. Atualmente, o sistema francês localiza-se entre o sistema Bismarckiano e o Beveridgiano11,12 (Quadro 1).


A acreditação francesa foi uma iniciativa do poder público, que colocou seus princípios a partir da lei nº 96-346, de 24 de abril de 199613, sobre a reforma dos hospitais públicos e privados, e definiu a necessidade de criar um organismo responsável, que veio a ser a Agence Nationale d'Accréditation et d'Évaluation en Santé - ANAES, em 8 de abril de 199712.

Dentre as funções da ANAES está a responsabilidade de desenvolver um processo de acreditação para os hospitais públicos e privados (em abril de 2002, 150 hospitais foram acreditados)12.

A acreditação objetivou os procedimentos, as práticas profissionais e os resultados, em conjunto, e comportou mecanismos de processos dos diversos contextos já existentes na Europa e nos EUA, com a finalidade de sobrepor as diferenças oriundas dos diferentes contextos com relação à sua implementação. Sua aplicação se destinou a todos os setores hospitalares do país e a todos os serviços ou atividades desses estabelecimentos.

A acreditação francesa é obrigatória e as unidades de saúde não têm autonomia para decidir participar desse processo. Conforme o estabelecido pela lei de 1996, os hospitais deveriam iniciar o processo de acreditação até a data limite de 24 de abril de 2004. Caso a adesão ao processo não ocorresse de forma "voluntária", o processo era induzido pela Agence Régionale de l'Hospitalisation - ARH, tutora financeira e administrativa regional dos hospitais estando essa atitude prevista na lei mencionada.

Por outro lado, o modus operandi do processo de acreditação inicia-se de forma idêntica a dos processos iniciados em outros países. Porém, existem diferenças marcantes como o fato de existir a ARH, que induziu o processo nas unidades que não o fizeram no tempo determinado pela lei de 1996, e que deve ser informada regularmente dos estágios de todos os processos em vigor na região pela qual é responsável. Outra diferença é o fato desta acreditação ser mais minuciosa, cada setor de uma instituição de saúde deve ser acreditado, praticamente individualmente, para que a instituição, como um todo, venha a ser considerada acreditada.

A acreditação francesa acontece em um contexto de reorganização econômica dos mecanismos de financiamento da saúde. Os resultados são públicos e divulgados, invariavelmente, à ANAES e à ARH, mas, em contraste com os outros processos de acreditação, o resultado não concede uma certificação; o que se estimula é iniciar a acreditação como uma estratégia voltada para o estabelecimento de uma cultura de qualidade, com possibilidades de transformar o sistema francês de saúde.

Neste cenário, pode-se afirmar que a acreditação, na França, se constitui como um mecanismo de controle dos estabelecimentos de saúde e devem-se considerar, pelo menos, dois paradoxos: a acreditação não é voluntária e não fornece um resultado, uma certificação. Características da natureza, por exemplo, da acreditação americana.

O Reino Unido

O sistema de saúde britânico (NHS) começou a funcionar no dia 5 de julho de 1948 como uma única organização formada por 14 conselhos de hospitais regionais. Seu padrão de provisão de saúde e financiamento havia sido estabelecido no Ato de 1946, sob a influência do Relatório Beveridge, e introduziu o princípio da responsabilidade coletiva, pelo Estado, para com o sistema de saúde. Ou seja, a saúde deveria estar disponível para toda a população sem lhes impor custo. A provisão de cuidados em saúde para a população teve por base suas necessidades e não suas possibilidades de pagamento14.

O consenso para sua construção foi elaborado em sintonia com outras iniciativas do welfare state, em áreas como a seguridade social e a educação, que vinham sendo desenvolvidas na mesma época. Porém, vários representantes de diferentes especialidades médicas e os médicos de família ou clínicos gerais (general practioners - GP's) só apoiaram essa construção mediante concessões feitas. Por exemplo, os GP's foram autorizados a funcionar como fornecedores privados, dependendo da questão, para o próprio NHS, e os especialistas, mesmo empregados pelo sistema, detinham algum grau de controle para com as suas condições contratuais. Apesar das mudanças provocadas pelas reformas, essas relações de trabalho se mantêm até hoje.

Um detalhamento histórico de todas as reformas sofridas pelo NHS não tem lugar neste artigo. Contudo, o sistema sofreu uma reviravolta no ano de 1989, com reformas radicais que lhe deram um referencial de mercado, com a meta de evitar as crises de financiamento do sistema de saúde. Para se adaptar a essas mudanças, os provedores de saúde passaram a funcionar como organizações independentes que deveriam competir por melhores contratos. No entanto, Robinson, Dixon e Mossialos15 deixam claro que o método existente com base em impostos era eficiente no propósito de conter o aumento dos gastos com saúde. Esse reconhecimento fez com que o ministério relutasse em interferir com os mecanismos de financiamento da saúde e mudasse a atenção para a maneira como os serviços estavam sendo organizados, gerenciados e distribuídos.

Atualmente, a formação do sistema de saúde conta com oito autoridades regionais de saúde convertidas em escritórios regionais executivos e autoridades de saúde distritais, responsáveis pelos fundos de financiamento de práticas gerais e do NHS. As autoridades distritais são responsáveis por levantar as necessidades de saúde da população respectiva à sua área, e por distribuir seu fundo de acordo com essas necessidades. O arranjo é estabelecido através de contratos entre as partes. Ou seja, os hospitais são administrados como pequenas empresas, porém restringidas pelas regras do serviço público15.

Segouin11 destaca que a preocupação com a qualidade do sistema de saúde foi introduzida pelo NHS, sendo as questões de regulamento mais estritas nos hospitais privados. O autor refere o sistema contratual adotado como um sistema que induz situações próximas às de uma rivalidade, que neste contexto transformariam a qualidade em um critério de marketing. Contudo, esse mesmo autor ameniza essa situação enunciando como a maior preocupação da população inglesa a demora em listas de espera em lugar de uma preocupação com a conformidade aos padrões, enunciados pelas metodologias como meio de estabelecer graus de qualidade.

A averiguação da situação de qualidade dos hospitais públicos do Reino Unido acontece através da publicação regular das estatísticas, voltadas à qualidade, que são comparadas com as médias nacionais e locais. A prática não impede nem dificulta os financiamentos advindos dos distritos, principais financiadores dos hospitais públicos, que continuam provendo os cuidados necessários para a manutenção de uma zona de cobertura responsável por uma determinada parcela da população. Essa situação, segundo Segouin11, também ameniza o caráter de competição que poderia existir caso a qualidade fosse efetivamente um critério de marketing. As questões de qualidade, dessa forma, se veem restritas a alguma atividade marginal do hospital.

Neste contexto, a acreditação é oferecida por várias organizações independentes. As experiências que se destacam são as do The King's Fund Audit (KFA) e do Hospital Accreditation Program (HAP) (Quadro 1).

A primeira instituição é uma fundação independente cuja missão é melhorar a qualidade do gerenciamento no NHS e que desenvolveu um processo mais próximo de uma acreditação nacional. Para desenvolver seu processo, o KFA fez uma experiência inicial com os padrões da JCAHO e, depois, estabeleceu um esquema para um número pequeno de hospitais, com revisão feita por pares e padrões adaptados do modelo australiano. A segunda experiência se desdobrou no que hoje é conhecido como o esquema de auditoria do KFA.

Conceitualmente, esse processo tem semelhanças com o processo de acreditação original. O hospital que pretende iniciar a metodologia deve ser voluntário para o processo e recebe o manual. Assim como na metodologia original, busca-se a produção de indicadores de resultados, e a visita de avaliação é feita por um médico, uma enfermeira e um administrador.

Contudo, o resultado da visita é entregue diretamente à instituição que pagou a taxa de participação no programa de acreditação, e é feita uma sessão aberta a todos os membros staffs para que a comissão avaliadora exponha seus resultados gerais. Esse processo não emite nenhum tipo de certificado, apenas um relatório sobre as condições encontradas na instituição que se voluntariou para o processo e recomendações para melhorias. Porém, o KFA pretende adotar, em breve, o esquema de certificação ao final do processo.

A segunda instituição desenvolveu um esquema de acreditação próprio do Reino Unido e próximo ao conceito americano de acreditação que concede status de acreditado4, emitindo um certificado na conclusão dos trabalhos de avaliação.

Os clientes da HAP são hospitais comunitários de baixa complexidade voltados para as comunidades rurais com pouco acesso a hospitais de maior complexidade. No entanto, o desenrolar para a visita final é, em alguns aspectos, idêntico ao do KFA. Como na maioria dos processos de acreditação, as organizações têm que se preparar para o processo e a visita é pré-planejada, sendo acompanhada por apenas dois avaliadores em vez de três, e seus certificados têm duração de dois anos em lugar dos três anos de validade da certificação americana. O HAP emite um certificado com o status da acreditação após a aprovação de uma diretoria.

No Reino Unido, a falta de um sistema de acreditação resultou em um complexo arranjo com vários sistemas de acreditação, estimulados pelas autoridades regionais como incentivo ao monitoramento dos processos. Cada um desses sistemas reflete as interpretações de diferentes categorias de profissionais da saúde. Na realidade, a lógica de controle hierárquico dos hospitais públicos e o consistente sistema contratual dão conta de manter a qualidade das unidades de saúde do NHS.

A Catalunha

A Catalunha é a comunidade autônoma mais importante economicamente da Espanha e foi o Governo da Catalunha que iniciou as primeiras experiências com a acreditação. A Espanha é uma monarquia parlamentar formada por um Estado central e 17 regiões com governos e parlamentos respectivos16. A Constituição Espanhola estabelece as esferas de responsabilidade que são exclusivas do poder central, as que cabem às regiões e as que devem ser divididas entre ambos os poderes. As questões referentes à regulação da saúde estão com ambas as instâncias de poder. Sendo assim, todas as iniciativas de planejamento e legislação para essa área requerem consenso.

Atualmente, a maior fonte de financiamento dos gastos com saúde são os impostos, modelo adotado, em 2001, com a intenção de garantir um financiamento autossustentável. As comunidades autônomas também têm como fonte de financiamento da saúde os impostos, mas continuam, igualmente, com as alocações do governo central.

O cuidado especializado é o elemento central do sistema de saúde espanhol e o seu modelo de provisão varia entre as comunidades autônomas. A maior parte dos hospitais é pública e a maioria de seus staffs é assalariada, com status de funcionários públicos. O Serviço Catalão de Saúde (SCS) está ligado ao Ministério da Saúde e está no centro do governo provincial. Ele é responsável pelo orçamento e planejamento da saúde na comunidade e desfruta de relativa autonomia nas negociações com os hospitais públicos. Autonomia idêntica a do Departamento Geral de Recursos Sanitários do qual depende o Serviço de Acreditação. No entanto, a acreditação não pertence ao mesmo departamento que financia a saúde.

O processo de acreditação da Catalunha foi criado em 1981 e foi o primeiro da Europa. Nesta região, a acreditação é voluntária, embora os hospitais que desejem ter contratos com o SCS devam ser acreditados. Portanto, independentemente da natureza, pública ou privada, os hospitais mais importantes iniciaram um processo de acreditação próximo ao processo que conhecemos hoje. No entanto, o processo de acreditação dessa região passou por duas etapas marcantes16.

No início do processo, os hospitais só contavam com os padrões mínimos, necessários para sua autorização de abertura e funcionamento. A intenção de iniciar e desenvolver a acreditação tinha o objetivo de melhorar a qualidade dos hospitais que não desenvolviam ações voltadas às possibilidades de melhorias de seus processos e ambiente. Essa primeira fase foi marcante, pois acarretou o fechamento ou a reconversão de 20% das unidades hospitalares existentes, apesar de os padrões propostos terem sido considerados de exigência mediana. Posteriormente, a situação foi reconsiderada frente à perspectiva de reestruturação do sistema de saúde como um todo.

A segunda fase da acreditação na Catalunha foi iniciada em 1983. Nessa fase, a região passava por uma crise financeira e a acreditação foi limitada aos padrões possíveis de serem alcançados, levando em consideração a realidade imposta por essa situação. Segundo Segouin11, nessa época, a acreditação foi utilizada como um mecanismo de confronto à crise financeira.

Em 1989, foi criada a Fundação Avedis Donabedian (FAD) com a meta de promover a qualidade dos sistemas de cuidados em saúde. A fundação contratou a JCI para iniciar de acreditação com base no manual americano. Em 1991, a acreditação é recolocada em favor de uma política global de planejamento e organização dos recursos para a saúde, com o objetivo de melhorar os cuidados hospitalares.

Atualmente, o programa do governo limita-se aos hospitais de cuidados agudos e não psiquiátricos e conta com um número reduzido de organizadores desse processo, sendo eles três médicos: um inspetor, outro voltado para a saúde pública e o último para a administração da saúde.

O início da acreditação difere em seu modus operandi dos processos francês e inglês, já apresentados. A visita de avaliação, no caso da Catalunha, acontece logo depois do recebimento do manual de acreditação. Tem o intuito de ajudar no diagnóstico da instituição após o qual esta tem um período para se adequar aos padrões propostos. Nesse caso, o serviço de acreditação tem a tarefa de ajudar o hospital a atingir esses padrões e o hospital deve, ao fim do processo, fornecer as provas de suas conquistas.

O manual só existe em catalão, o que pode ser considerado um complicador ou um indicador de que a preocupação do governo catalão está apenas com os seus hospitais. O processo não atingiu a Espanha como um todo (Quadro 1). Ou seja, nessas condições, o processo não transforma o sistema espanhol e, talvez, essa pretensão nem exista.

Discussão

Os resultados expostos no Quadro 1 nos permitem colocar algumas observações. Não existe um processo único de acreditação. Seu modus operandi se modificou nos países estudados e os incentivos para a adesão ao processo de acreditação foram diversos. Os resultados provenientes dos processos de acreditação também foram diferentes entre os países.

Na França, a acreditação, cuja natureza se põe como voluntária, é obrigatória. Os hospitais que não aderiram voluntariamente ao processo tiveram os mesmos iniciados, de qualquer maneira, pela ARH das áreas em que estão inseridos. O hospital que não aderiu "voluntariamente" ao processo de acreditação correu o risco de ser penalizado e perder sua licença de funcionamento.

Outra característica da acreditação francesa que vale a pena ressaltar é seu resultado. Este não emite uma certificação e nem gera sanções contra os hospitais. Para esse país, o importante é iniciar o processo de acreditação. Percebe-se que o cálculo implícito na proposta política de acreditação francesa considera que o processo de acreditação desencadeia outro: o de melhoria da qualidade. Ele aposta na criação de uma cultura de qualidade e, dessa forma, nos permite distinguir o processo de acreditação das outras ferramentas de qualidade.

No Reino Unido, o desenho dos serviços de saúde é posto pelo esquema contratual desenvolvido pelo NHS e o formato da acreditação britânica mantém sua característica de adesão voluntária ao processo e não propicia estímulos específicos à adesão ao mesmo. Destaca-se que as experiências de acreditação nesta região são pouco expressivas, na medida em que vários organismos podem servir de interlocutores para esse processo.

A acreditação britânica, ao contrário da acreditação francesa, pouco se distingue das outras ferramentas de qualidade. No Reino Unido, a acreditação convive com outras metodologias de certificação, como o sistema ISO, uma alternativa de certificação que também pode ser utilizada com sucesso nos ambientes de saúde, embora tenha-se originado na área industrial7.

Não houve uma proposta de política para a acreditação, o que resultou em um arranjo disperso e pouco influente no sistema de saúde da região. Os contratos estabelecem as características necessárias para os hospitais e as outras ferramentas de qualidade desempenham bem seu papel, mesmo quando originadas em outras áreas. Deduz-se que, no contexto britânico, não é clara a contribuição da acreditação na promoção da qualidade no sistema nacional de saúde.

No caso da Catalunha, o processo de acreditação teve fases marcantes quanto aos aspectos restritivos em função dos seus resultados. No início, o processo catalão gerou sanções pesadas ao sistema de saúde regional, culminando com o fechamento de certas unidades de saúde. Posteriormente, a acreditação foi utilizada como ferramenta de controle orçamentário, como um meio de enfrentar a séria crise financeira na qual o país se encontrava.

Nessa região, o caráter "voluntário", inerente à natureza da acreditação, se mantém. Porém, é condição necessária para as instituições de saúde que têm o intuito de estabelecer contratos com o ministério responsável pela área da saúde. Sendo assim, julga-se que existe um processo de disseminação, por meio de uma indução por dispositivos de financiamento, para considerá-la obrigatória em uma futura proposta política de acreditação.

Em contrapartida, o processo de acreditação está tão restrito à Catalunha que o manual existente na Espanha se encontra em catalão e não em espanhol. Contudo, o processo de desenvolvimento da acreditação na Espanha ainda se encontra em transformação, o que significa a possibilidade de construção de uma proposta política de acreditação ainda em andamento.

Os sistemas de saúde analisados apresentam distintos modos de articular o financiamento com a provisão dos serviços de saúde (públicos ou privados). A acreditação adquire distintos significados em função dessas distintas relações, e em função das propostas de política que nos diversos países ou regiões regulam e/ou coordenam os sistemas nacionais de saúde. Ao adotar a acreditação como obrigatória, ou ao estabelecê-la como condição para o acesso a determinados tipos de financiamento, ou ainda ao estabelecer (ou não) sanções ou privilégios para um provedor em função dos resultados de seu processo de acreditação, as políticas terminam por transformar o significado da acreditação, assim como seu potencial de contribuição para promover a qualidade no sistema como um todo.

Conclusão

Conclui-se que certas características, inerentes à natureza da acreditação, dependem de como os sistemas de saúde internalizam essa metodologia em seus contextos. Portanto, a acreditação não pode ser compreendida apenas como uma ferramenta de qualidade que se oferece à adesão voluntária de hospitais. Ela só pode ser compreendida no contexto das propostas políticas que delimitam sua aplicação em sistemas de saúde concretos, bem como em função das características do arranjo dos serviços de saúde nesses sistemas.

Isso indica a necessidade de estudarmos com mais profundidade as propostas de política que adotam a acreditação em sistemas de saúde concretos. É esperado que os processos de acreditação sejam diferentes, mas como olhar esse objeto de forma a expressar as opções políticas e sociais de cada Estado? É preciso compreender as condições e formas de atuação dos Estados que a internalizam para que saibamos qual acreditação estamos referindo.

Artigo recebido: 21/12/2010

Aceito para publicação: 28/01/2011

Conflito de interesses: Não há.

Trabalho realizado na ENESP/FIOCRUZ, Rio de Janeiro, RJ

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  • Correspondência para:

    Maria Thereza Fortes
    Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública, Departamento de Administração e Planejamento em Saúde
    Rua Leopoldo Bulhões, 1480/ 7º andar, sala 715 Manguinhos
    Rio de Janeiro - RJ - CEP: 21041-210
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011

    Histórico

    • Recebido
      21 Dez 2010
    • Aceito
      28 Jan 2011
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