DOSSÊ POLÍTICA INTERNACIONAL: TEMAS EMERGENTES
Rafael Duarte Villa
Apresentação
É consensual entre os especialistas de Relações Internacionais que o fim da Guerra Fria teve como um de seus principais resultados a fragmentação da agenda internacional, ou seja, o fato de ela tender a ser menos hierarquizada. Assim, o recuo da excessiva preocupação com assuntos de segurança nacional e internacional de natureza militar cria brechas teóricas e institucionais para questões da agenda social global que, embora fossem pensadas e discutidas durante a Guerra Fria, ainda não tinham suficiente destaque na ação internacional dos estados nem na de seus policy-makers. A década de 90 do recém-concluído século XX tem sido considerada a época das conferências sociais globais pela imensa proliferação de encontros promovidos pelo Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas (Ecosoc). Esses encontros tratam de um leque amplo de temas, que vão desde os direitos humanos até o crime organizado e os ilícitos transnacionais. Um dos temas a que se atribuiu maior prioridade foram os impactos ambientais da ação humana no planeta não por acaso, o encontro que inaugurou a agenda social global foi a Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992. Esse amplo esforço diplomático reconhecia que era possível pensar-se, no aspecto mais teórico, na emergência de uma ordem ecológica internacional de características próprias, mas também reconhecia que a administração dos conflitos de interesses que derivam dessa ordem deve dar-se pela via de sua institucionalização em regimes internacionais ecológicos e por meio de soluções políticas e técnicas tópicas, dependendo da matéria ambiental em questão.
Ao mesmo tempo, os protestos contra as desigualdades e a injustiça internacionais praticadas no interior do multilateralismo de poder representado por algumas organizações (como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial do Comércio (OMC)) levou, com grande visibilidade nos meios de comunicação, ao surgimento do chamado movimento globalista. Para quem considera a teoria das Relações Internacionais em relação ao tipo de atores, esses protestos, embora sejam de ação difusa e temporária, levam a pensar o sistema internacional a partir de atores não-estatais, que redefiniriam a noção de espaço público internacional, desde Vestfália tão limitado ao Estado. Exagero ou realidade, o dado relevante a ser levado em conta era que abarcar uma causa global social aparecia como uma nova possibilidade de impulsionar a mudança em um mundo que se desenhava, por assim dizer, meio morno desde o definhar da Guerra Fria.
O que esse desenvolvimento significava também era que as duas metáforas básicas em que operava o mundo da Guerra Fria (Leste-Oeste, que frisava o embate ideológico, e Norte-Sul, que chamava a atenção para o dissenso e distância entre países pobres e ricos) haviam cedido espaço para um novo mainstream da política internacional, em que um tipo de ator mais flexível e de atuação transnacional era passível de ser incorporado nos processos de decisão global. Essas influência e possibilidade devem ser bem entendidas: não que o Estado tivesse ou tenha perdido o controle dos aspectos militares e de segurança nacional e internacional relacionados à high politics, mas, certamente, o funcionamento heteróclito das atividades e das iniciativas privadas transnacionais demonstra que os estados, tomados individual ou coletivamente, não podem responder a um certo número de necessidades e de demanda que se manifestam tanto no interior dos estados como além de suas fronteiras
Ora, a premissa de que o Estado continua a ser o principal agente do sistema internacional e que os processos da política internacional hard continuam a ter sua importância não significa que questões importantes que têm a ver com a própria soberania estatal não sejam passíveis de serem questionadas Aliás, para ficarmos com um exemplo, a redefinição da soberania estatal, tendo por pano de fundo o tema dos direitos humanos, é uma questão que já vem sendo constatada desde os anos 1970 pela atuação humanitária de urgência de algumas organizações não-governamentais internacionais como os Médicos sem Fronteiras e Medicina do Mundo. Como sustenta Vilanova, comentando a atuação dessas organizações não-governamentais (ONGs), "O resultado final é sempre o mesmo: vem-se aceitando que o dever de ajuda humanitária leva diretamente ao direito de ingerência por motivos humanitários nos assuntos internos de um Estado. Isto é provavelmente uma das maiores conquistas da ação humanitária de urgência de nosso tempo" (Vilanova, 1995, p. 97).
Em suma, a agenda social global, no seu sentido mais amplo de realização oficial e não-estatal de eventos internacionais, assim como o desenrolar de movimentos de ação internacional menos orgânicos e mais esporádicos (os antiglobalistas), abriram o espaço necessário para a ampliação do sistema internacional por via de novos atores, dentre os quais destacam-se os ambientalistas e de direitos humanos.
Mas as redefinições de agendas operadas não se limitam ao âmbito sistêmico: há uma forte tendência a considerar a política externa como uma esfera também incluída na esfera pública, isto é, também submetida à regulamentação constitucional interna e a processos de accountability. Com isso se reafirma a tendência a relativizar idéias bastante tradicionais sobre a separação entre as políticas interna e externa, que durante tanto tempo o pensamento positivista realista estabeleceu como um dado quase imutável. No Brasil, essa dinâmica tem resultado no questionamento da idéia tão fortemente arraigada durante décadas do insulamento burocrático da política externa. Acompanhando essa mudança institucional brasileira, uma importante mudança política deu-se no perfil dos formuladores de política externa: desde o governo Collor de Mello uma característica emergente na chancelaria brasileira tem sido a politização dessa instituição. O debate sobre o conteúdo das reformas estatais por exemplo: se elas deveriam ou não ser neoliberais refletiu uma divisão de parcela da sociedade civil e de instituições como os poderes Executivo e o Legislativo, originando uma cisão entre segmentos neodesenvolvementista e liberal. "Neste quadro, a politização da sociedade brasileira [...] chegou ao âmbito diplomático, fazendo que se estabelece-se uma diferenciação entre posturas próximos a um ideário desenvolvimentista e conseqüentemente nacionalistas _ e posturas mais sintonizadas com o neoliberalismo, com um sentido mais cosmopolita" (HIRST & PINHEIRO, 1995, p. 9).
Também entre essas tendências realçadas pelo pós-Guerra Fria há um forte ressurgir da "região". Poder-se-ia até sugerir que especialmente a América Latina volta a ser importante, se não pelo impacto e pelo peso econômico, talvez devido aos desdobramentos políticos que se vêm sucedendo desde os anos 1990. E não há dúvida de que o início do novo milênio o ano de 2006 em particular tem sido bastante movimentado na política latino-americana. Destaque-se, entre outros fatos, o impacto da ascensão de Hugo Chávez na região sul-americana e os temores que suscita, com o ingresso da Venezuela no Mercosul. Por outro lado, a eleição de Evo Morales na Bolívia foi seguida por uma conturbada e polêmica (re)nacionalização da indústria boliviana do gás e do petróleo. Não menos tenso foi o pleito eleitoral peruano, que se encerrou com a vitória e a volta ao poder do candidato da Alianza Popular Revolucionaria Americana (APRA), Alan García. No início de julho realizaram-se as eleições presidenciais no México sob forte expectativa da eleição do candidato do candidato de esquerda Manuel López Obrador, do Partido de la Revolución Democrática (PRD) e no mês de agosto noticiou-se uma repentina doença do líder cubano Fidel Castro, permitindo uma série de conjeturas sobre o futuro político do regime político da ilha e sobre a própria inserção de Cuba no sistema interamericano. Para onde apontam estes acontecimentos e que tendências políticas eles traduzem?
Talvez não seja possível generalizar, dadas as especificidades de cada país, mas no conjunto esses agitados momentos políticos apontam para um crescente mal-estar de sociedades latino-americanas com suas elites políticas tradicionais: esses momentos eleitorais transformaram-se em disputas polarizadas entre os setores políticos tradicionais e os setores emergentes, ambos impulsionados pelo apoio de setores socais que se alinham com a política tradicional ou, no outro extremo, que se identificam com as promessas de mudança oferecidas pelas novas personagens que entram em cena na política latino-americana.
Mesmo quando derrotados no voto, algumas dessas novas ou antigas opções não podem ser considerados derrotados politicamente. No Peru, Ollanta Humala conseguiu que um grosso setor de setores de mais baixa renda se agrupasse em torno de seu discurso nacionalista e foi a classe média e setores de mais alta renda que, assustados com esse discurso e com a possibilidade de replicação do estilo e do pensamento chavistas, decidiram apertadamente em favor do candidato da APRA. O mesmo suposto é válido para outra nova personagem da política latino-americana, o mexicano Manuel Lopez Obrador. Embora as urnas confirmem sua derrota eleitoral, sem dúvida não é pouco o espaço político ganhado pelo seu partido (PRD) e pela sua própria figura amplo demais para considerá-los derrotados. E o que é mais significativo: a afirmação do espaço político de López Obrador no México pode ter como resultado o aprofundamento da fragmentação do sistema partidário mexicano, transformando-se em um sistema multipartidário, algo pouco imaginado até há alguns anos no México do Partido Revolucionário Institucional (PRI).
Um segundo elemento doméstico da maior importância também se deduz dos desenvolvimentos mais recentes da política sul-americana. Novos setores sociais fazem sua entrada em cena, à procura de representação política. Nos casos da Bolívia, do Peru e do México é possível até falar que esses novos grupos sociais são constituídos por setores étnicos indígenas, tão longamente excluídos da representação política. Em princípio poder-se-ia pensar que as novas lideranças, como Evo Morales, Humala e Lopez Obrador, chamadas de neopopulistas por alguns analistas, têm-se aproveitado de "massas à disposição" e sido suficientemente hábeis e sensíveis para incorporar nas suas plataformas políticas e em seus discursos as demandas desses setores sociais (o que, sem dúvida, fornece-lhes maior legitimidade).
Em principio, a hipótese da instrumentalidade dos novos setores sociais poderia ser apoiada pela tendência detectada por pesquisa do Programa da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) sobre a Democracia na América Latina, de acordo com a qual os indígenas da região andina têm uma percepção bastante negativa da igualdade legal somente 27,8% acreditam que "sempre ou quase sempre conseguem fazer valer seus direitos". Essa percentagem só supera a categoria dos "pobres", entre os quais 27,8% acreditam conseguir fazer valer seus direitos. Mas, de qualquer maneira, esse índice é superior ao do México, um dos países latino-americanos de mais alta composição étnica indígena, em que apenas 7,5% dos indígenas têm uma boa percepção sobre o respeito da legalidade de seus direitos (PNUD, 2004, p. 108).
Mas seria errôneo pensar que são apenas as "massas em disponibilidade" o que encontram essas novas lideranças no seu caminho ao poder. Ao contrário dos populismos do passado, do tipo Getúlio Vargas ou Perón, as massas que os chamados neopopulistas encontram dispõem de um certo grau de organização e de autonomia de objetivos. Como resultante, se é bem verdade que alguns dos movimentos sociais identificam-se em princípio com as metas das novas lideranças, também é certo que o posterior apoio desses movimentos sociais condiciona-se ao desenvolvimento de políticas públicas de inclusão. O efeito mais profundo dessa "barganha" é que a instabilidade política torna-se uma espécie de fantasma que ronda os sistemas políticos latino-americanos desde a década de 1990.
Também é importante destacar que o desenrolar dos acontecimentos de 2006 aprofundaram uma redefinição das relações dos EUA com a América Latina. Em geral, com a exceção de Álvaro Uribe na Colômbia, as novas lideranças mostram um tom mais crítico em relação às políticas comercial e de segurança dos EUA, embora isso não as impeça de, em alguns casos, negociar acordos bilaterais com os EUA. Tome-se novamente como exemplos os casos da região andina e do México. Logo após se dar como um fato a assinatura do Tratado de Livre Comércio (TLC) entre os EUA, Colômbia, Equador e o Peru (a Bolívia deveria ser incorporada posteriormente) em 2005, já em meados de 2006 só a Colômbia assinara o TLC. No Equador, a substituição de Lúcio Gutierrez por Alfredo Palácio significou um abandono do alinhamento que primeiro mantivera com os EUA durante mais de três anos de governo. No Peru, mesmo antes da eleição de Alan García já existiam sinais governamentais de reticência em relação aos termos do tratado com os EUA. Certamente que nessas circunstâncias parece compreensível que os EUA estivessem longe de torcer por uma vitória de Lopez Obrador no México. Não porque esse candidato fosse arriscar-se a retirar o México do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) _ o México hoje em dia depende muito do mercado norte-americano para fazer opções tão arriscadas mas, em virtude da pressão dos setores campesinos mexicanos, sobretudo os produtores de milho, Lopez Obrador poderia forçar uma renegociação dos termos do intercambio agrícola, já que nos atuais momentos a maior competitividade do milho norte-americano tem levado à falência muitos produtores mexicanos.
No aspecto da segurança dois países latino-americanos são problemáticos em perspectiva: Cuba e Venezuela. Os fatos conjunturais sinalizam claramente isso. A repentina doença do líder cubano Fidel Castro gerou nos EUA um duplo sentimento de alegria e de preocupação. O primeiro aspecto é compreensível, já o segundo tem a ver com um cenário em que a desaparição de Castro leve a uma fragmentação social e política da ilha, pressionando a fuga de milhares de cubanos rumo ao litoral dos EUA. Por outro lado, também temem as autoridades norte-americanas as conseqüências imprevisíveis da desaparição de Castro na comunidade cubana da Flórida.
Também a Venezuela preocupa os EUA. Até 2002 a América Latina era uma região que gastava pouco com armas, despendendo uma média de 2,1% de seu produto interno bruto com armamento, comparado aos 3,4% dos Estados Unidos (Zibechi, 2005). Mas a situação pode estar mudando. O que mais preocupa o governo dos EUA são as aquisições de 100 000 fuzis automáticos AK-47 de tecnologia militar avançada, comprados pelo governo da Venezuela do governo russo no primeiro semestre de 2005, assim como acordo com o governo espanhol, do segundo semestre de 2005, que permitiu à Venezuela adquirir oito barcos patrulheiros e 12 aviões de transporte espanhóis. Teme-se no fundo uma minicorrida armamentista na região.
O conjunto de artigos que este número da Revista de Sociologia e Política apresenta enfrentam, de maneira direta ou indireta, esse conjunto de temáticas relacionadas à nova agenda social internacional, à consideração da política externa como política pública e às hipóteses relacionadas com o futuro político da região sul-americana. Eles foram escritos de maneira densa por um conjunto de jovens professores e pesquisadores de Relações Internacionais no Brasil.
No primeiro deles, escrito por Paulo Esteves, professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), o autor vale-se do método genealógico e de análises pós-modernistas baseadas em Michel Foucault para estudar as condições de existência do Estado territorial moderno. É uma abordagem nova no Brasil, que concentra esforços em determinar como essa forma política que emergiu na Idade Clássica (séculos XVII e XVIII) prosperou por meio da articulação de um regime de poder próprio, cujo resultado seria a emergência do que hoje conhecemos como soberania. O argumento principal do autor é que a soberania na Idade Clássica foi capaz de articular poder e saber em um mesmo quadro, produzindo um conjunto de dispositivos, estratégias e tecnologias de poder que terminaram por estabelecer modos de conhecer e de agir no mundo que tinham como referência ubíqua o Estado territorial soberano. Dessa maneira, Esteves, bem dentro daquilo que se vem convencionando chamar de análises pós-positivistas, apresenta uma proposta de explicação do fenômeno da soberania em que os elementos do saber e do papel das idéias aparecem como central nessa formação histórica.
Na seqüência, Rossana Rocha Reis, professora de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), entra diretamente na análise de agenda social global pela via do tratamento dos direitos humanos. Seu artigo foca os esforços analíticos na identificação dos fatores explicativos do crescente reconhecimento internacional dos direitos humanos desde o fim da II Guerra Mundial e como esse reconhecimento tem afetado a arena da política internacional. A autora faz um balanço do debate que insere os direitos humanos nas relações internacionais; assim, uma primeira conclusão é que os argumentos sobre o papel dos direitos humanos na política internacional está cindido entre os que os observam em uma perspectiva meramente discursiva, de retórica, para encobrir interesses particulares, e aqueles que enxergam em sua afirmação um potencial transformador da ordem internacional, uma espécie de nova estrutura de referência para aquilo que é mudança e aquilo que não o é na política internacional. Outro argumento forte da autora é que a adoção de mecanismos coercitivos com maior capacidade de enforcement para a proteção dos direitos humanos, como é o caso das chamadas intervenções humanitárias, deriva em desenvolvimentos mais complexos pelos efeitos que isso chega a ter sobre conceitos e práticas historicamente sedimentadas, como a soberania.
Ao artigo de Reis segue-se um interessantíssimo de Juliana Lyra Viggiano, jovem doutoranda do Departamento de Ciência Política da USP e professora de Relações Internacionais da Universidade Anhembi Morumbi de São Paulo. Na perspectiva dos regimes internacionais e com base nos estudos de casos das guerras de Bósnia e do Cosovo, a autora aborda as transformações sistêmicas do período posterior à Guerra Fria e como elas afetaram o regime da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Essas transformações teriam colocado temas de política soft, como aspectos econômicos, de direitos humanos e de meio ambiente, em posições de destaque na agenda internacional, ao contrário do privilégio concedido às questões estratégico-militares. Argumenta Viggiano que o viés essencialmente polarizado da agenda militarista dominante nos anos da Guerra Fria inviabilizava a elaboração de uma pauta comum de segurança a todos os estados; nesse sentido, seu argumento avança a tese de que, com a promoção dos temas de terceira geração, os de política soft, as esferas do discurso internacional, inclusive os elementos relacionados à segurança, foram afetados. A partir desse momento, seria artificial a separação entre as grandes áreas englobadas pelas relações internacionais. Também o conceito de interdependência, pensado originalmente em uma dimensão economicista, apresenta uma crescente complexidade, pois diversos temas da política externa dos estados não podem mais ser desvinculados, nem para efeitos analíticos e menos ainda no aspecto prático, de temas domésticos. Essas mudanças certamente afetam o conceito de segurança, que passa a ter uma "natureza multidimensional, ou seja, "já não pode mais ser visada em termos de acréscimo de poder" (VILLA, 1999, p. 177).
Para a autora o reconhecimento desse caráter multidimensional dos assuntos de segurança suscita um problema novo para a OTAN, dada que suas natureza e estrutura institucional até o fim da Guerra Fria estavam intimamente relacionadas ao mecanismo normativo de segurança coletiva. A questão central a ser levantada é: como adequar seu principal instrumento de ação, o uso dos recursos militares para auto-defesa, aos desafios impostos pela natureza multifacetada dos desafios de segurança identificados com o mundo posterior à Guerra Fria?
A autora reconhece que, no entanto, os decision-makers da OTAN não são alienados nem autistas a respeito desse problema. A OTAN teria reavaliado suas funções e seu papel no contexto europeu em conformidade com essa leitura heterodoxa da segurança introduzida pela natureza multidimensional da segurança e dos eventuais elementos perturbadores da paz. Assim, a autora identifica uma primeira mudança significativas, de natureza normativa, desde 1991, ano em que seus membros ratificaram os novos objetivos estratégicos da aliança. Sem que o conceito seja utilizado diretamente por Viggiano, seus argumentos parecem avançar no sentido de postular que a OTAN avançou no período posterior à Guerra Fria para a afirmação de uma verdadeira comunidade de segurança: "A OTAN redefine seu papel ao associar diretamente a noção de segurança à estabilidade regional, derivada da consolidação dos valores democráticos e liberais no continente, sobretudo com referência aos direitos humanos. A institucionalização normativa da democracia liberal remete-nos ao interessante debate do papel das idéias enquanto variáveis explicativas para a ação externa dos estados. Se, por um lado, não há muita controvérsia acerca da importância da questão ideológica como causa motivadora do agir na política, por outro lado as conseqüências esperadas das idéias enquanto causas diferem nas diversas perspectivas teóricas".
Por outro lado, a institucionalização dos valores da democracia liberal nas diretrizes normativas da OTAN, na realidade, refletiriam, ao menos parcialmente, a incorporação pelos países-membros desses mesmos valores em suas percepções do que devem ser as relações interestatais. Da mesma forma que a maleabilidade assumida pelas cláusulas do Conceito de Segurança em 1999 acerca da interferência armada da organização em favor da manutenção da estabilidade européia, conquistada pela perfeita observação desses valores, evidencia a fragilidade desse processo no âmbito do uso da máquina militar no cenário internacional Assim, com uma linguagem teórica bastante institucionalista, a autora conclui que as idéias institucionalizadas pela OTAN moldam as preferências de acordo com as circunstâncias e que a heterogeneidade com que os eventos afetam os diferentes atores envolvidos nas decisões demonstra a incompleta internalização dos valores democrático-liberais pela opinião pública e pelos formuladores de política acerca da legitimidade de agir-se exclusivamente em nome das idéias. A participação ativa da aliança nos conflitos da Bósnia (1992-1995) e do Cosovo (1999) instiga a pensar o caminho futuro para o qual se movimenta a relação entre valores, preferências e organizações internacionais.
Dando seqüência aos artigos de Reis e Viggiano, Ana Paula Tostes, professora convidada e pós-doutoranda em Relações Internacionais no Departamento de Ciência Política da USP apresenta uma interessante abordagem teórico-empírica sobre o impacto da agenda ambiental nas relações internacionais. A autora identifica na Conferência da Organização das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Unced), ocorrida de 3 a 14 de junho de 1992 no Rio de Janeiro, o marco que acelerou a assinatura de acordos internacionais sobre o meio ambiente e para o aparecimento de fóruns paralelos às conferências internacionais em somente os estados têm representação.
Na verdade, o objetivo da autora é cognitivo: identificar "o princípio e o valor de que a preservação do planeta é um interesse social e não apenas estatal e tem caráter universal". Esse princípio permearia as iniciativas normativas, expressas em acordos internacionais, com a proliferação de instituições internacionais e agrupamentos de setores da sociedade civil interessadas no meio ambiente. A constatação desse princípio permitiria identificar uma nova "força profunda" movimentando-se na política internacional; ou, nas palavras de Tostes, a emergência de uma nova concepção de política de meio ambiente que começa a forjar-se, tendo como pano de fundo o processo de globalização, mas, além disso, um novo agente social, de dimensão também global: a sociedade civil global.
Assim, uma pergunta-chave para a autora é: como o aumento de regras internacionais está associado ao aumento do interesse e da diversidade de atores interessados e da maior participação sobre um tema de caráter internacional? As conclusões da autora são bastante interessantes: é possível identificar um papel instrumental e estratégico das instituições na luta pelo poder nas relações internacionais: "Em outras palavras, não são apenas regras formais e embates frontais que contam nas relações internacionais". Sustenta a autora uma conclusão institucionalista: as instituições dos regimes internacionais importam na competição internacional e os atores não-estatais importam nos regimes internacionais. Mas, por outro lado, a autora não é ufanista nem pessimista quanto ao futuro do Estado e o papel dos atores não-estatais da sociedade civil. Não haveria provas contundentes de que o papel histórico dos estados nacionais e o modo de competição internacional por poder esteja-se ponderando, mas, sim e esta é uma interessante tese que a autora propõe , "que novos instrumentos de pressão e dominação passaram a ser cada vez mais importantes em um mundo pós-guerra em que comunicação, conhecimento, ciência e informação são cada vez mais valorizados".
Fecha esse grupo de questões emergentes Feliciano Sá de Guimarães, jovem pesquisador e professor de Relações Internacionais da Faculdade Belas Artes de São Paulo. O artigo trata de uma temática que pouco a pouco vem sendo resgatada nas análises de Relações Internacionais, a saber, as relações entre países desenvolvidos e em desenvolvimento em face de arenas de negociação multilateral. Conforme diz o autor, o artigo pretende compreender como as negociações da Rodada Uruguai (1986-1994) e as pressões dos países desenvolvidos tiveram efeito sobre a reorientação dos posicionamentos dos países em desenvolvimento no âmbito multilateral do comércio. Em outras palavras, Guimarães trata de reconhecer se o regime de comércio gerado com a Rodada teve efeito sobre as preferências e escolhas dos países em desenvolvimento. Com esse intuito o autor revisa as estratégias de ambos os grupos de países (desenvolvidos e em desenvolvimento) na condução e construção das regras do regime, mas, mais importante, o autor não desconhece as injunções que derivam de práticas de assimetrias de poder entre ambos os blocos de países. Assim, o argumento de Guimarães acaba conduzindo a uma interessante reconstrução do processo que refletia um ambiente bifurcado de coerção e pactuação assimétrica que teria como resultado os países em desenvolvimento adotarem "a liberalização comercial como única estratégia comercial possível ao final das negociações".
Dois ótimos artigos compõem a parte dedicada à América do Sul. O primeiro é de Marcelo Coutinho, que coordena com Maria Regina Soares de Lima o Observatório de Política Sul-Americana do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Centrando a análise na mudança política nos países andinos, a tese central de Coutinho é que entre os problemas principais que atingem a América do Sul contemporânea, destaca-se a constatação de que, desde a democratização política e liberalização econômica nas últimas décadas do século XX, seus governos nacionais são eleitos pelas "ruas", com os votos oriundos, sobretudo, das populações menos privilegiadas, mas querem ou simplesmente são forçados a agir em maior sintonia com os "mercados" e com todas as exigências de reformas e ajustes a um mundo cada vez mais globalizado e interdependente que isso implica. Desse modo, ativa-se um mecanismo de policy switch derivado de um estelionato eleitoral em que a expectativa dos eleitores em termos de políticas públicas é deliberadamente frustrada pelos novos governos.
De acordo com o autor, essa contradição constitui a casuística de grande parte das crises políticas na região nos últimos 20 anos, cuja força profunda relaciona-se com movimentos de mudança que não ocorrem somente na América Latina, mas que nela assume proporções bastante nítidas, com variações significativas entre os países. Mas Coutinho não generaliza a instabilidade e a mudança para toda a região sul-americana: elas seriam mais fortes nos países andinos que no Cone Sul. A explicação para isso estaria no sistema partidário de cada região: enquanto nos países do Cone Sul o sistema partidário conseguiu sobreviver ao longo dos anos, possibilitando a existência de canais institucionalizados de expressão dos conflitos e facilitando a inclusão de novos atores políticos e sociais, nos Andes os sistemas partidários tradicionais enfraqueceram-se e em seu lugar não emergiram novas estruturas partidárias, capazes de cumprir as mesmas funções dos países do Cone Sul.
Um segundo artigo na mesma linha de argumentação de Coutinho é o de Janina Onuki, professora de Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista, campus de Franca (UNESP-Franca), e de Amâncio de Oliveira, professor de Relações Internacionais do Departamento de Ciência Política da USP. O artigo analisa a relação entre regimes políticos domésticos e integração regional na América do Sul. A tese central dos autores é que uma convergência política maior com outros regimes de esquerda da região aprofundará a integração sul-americana, encerrando um paradoxo ainda não suficientemente explorado pela literatura de integração mais recente. Possivelmente o anúncio do governo Chávez, de fazer da Venezuela um governo socialista, aumente ainda mais as possibilidades analíticas desse paradoxo. Os autores também questionam a idéia de que os governos de esquerda tenham maior propensão a conferir apoio político ao regionalismo sul-americano de maneira simples, pois é igualmente verdadeira a idéia de que regimes presidencialistas de esquerda são menos propensos à supranacionalização de normas e de cessão de soberania a instâncias supranacionais. Muito possivelmente os autores associam esses governos de esquerda na região a traços nacionalistas. Mas não seria essa uma observação igualmente válida para o Brasil, em que, independentemente da natureza do regime político, a tendência sempre tem sido de reservas e ressalvas permanentes a respeito da institucionalização supranacional?
Finalmente, Michelle Ratton Sanchez, professora de Direito e Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), e um grupo de colaboradoras apresenta uma pesquisa inédita sobre a política externa brasileira como uma política pública. O artigo propõe uma indagação direta para o leitor: a concepção da política externa como uma política pública não seria uma antinomia per se? Afinal, como dizem as autoras, a "política externa sempre foi considerada como 'externa' aos Estados e distinta de toda e qualquer política doméstica". Por outro lado, questionam as autoras que essa percepção poderia aprofundar-se, no caso de levar-se em conta a forte percepção de que as consideradas políticas públicas stricto sensu são as políticas domésticas, devido às suas possibilidades de gerar "situações socialmente problematizadas".
Na verdade, de entrada o artigo já traz um desafio: provar que a política externa é uma política pública ou solucionar esses impasses, como preferem as autoras. Para encarar esse desafio elas fixam dois pressupostos: um mais suave, o de que as políticas interna, externa e internacional compõem um continuum de processo decisório, e outro de argumentação mais forte: a política externa não se diferencia das demais políticas públicas. Esses pressupostos apóiam-se um ao outro de modo a permitir a reconcepção do processo decisório da política externa sob as referências das políticas públicas.
As autoras sustentam o pressuposto, ou o reconhecimento, de que há grandes desafios diríamos riscos do isolamento da política externa como uma política distinta e com autonomia em relação às demais, quando se considera a intensificação dos fluxos de interação entre os ambientes interno e internacional. Para as autores o próprio discurso de atores relevantes do sistema internacional reconhecem de maneira explícita uma dinâmica fundamental das relações internacionais, o fato de vivermos em um "mundo interdependente": "Tais discursos políticos evidenciam as inter-relações entre as políticas interna, externa e internacional". Tomando emprestado o conceito de Keohane e Nye, as autoras reconhecem que a interdependência afeta duas dinâmicas fundamentais da política externa: no âmbito doméstico o processo decisório e, no âmbito externo, o processo de coordenação de ações coletivas.
Todo esse set de artigos, sem dúvida, são tentativas de respostas atualizadas e densas a problemas de política internacional contemporâneos tão visivelmente colocados a descoberto no inicio do novo milênio. Os leitores terão a rica oportunidade de procurar respostas a paradoxos, mas também de descobrir novos problemas levantados por esse conjunto de pesquisas que a Revista de Sociologia e Política tem a honra de apresentar neste número.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HIRST, M. & PINHEIRO, L. 1995. A política externa do Brasil em dois tempos. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. 38, n. 1, p. 5-23.
PNUD. 2004. A democracia na América Latina. Rumo a uma democracia de cidadãs e cidadãos. São Paulo : Programa da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
VILANOVA, P. 1996. El Estado y el sistema internacional. Barcelona : UEB.
VILLA, R. A. D. 1999. Da crise do realismo à segurança global multidimensional. São Pau-lo : Annablume.
ZIBECHI, R. 2005. Las armas de América del Sur. La política estadounidense ¿propicia un nuevo militarismo? Disponível em : http://www.voltairenet.org/es. Acesso em : 21.jul.2006.
Recebido em 17 de março de 2006
Aprovado em 20 de março de 2006
Rafael Duarte Villa (rafaelvi@usp.br) é Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), professor de Relações Internacionais do Departamento de Ciência Política e Diretor do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais (NUPRI) da mesma universidade.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
17 Maio 2007 -
Data do Fascículo
Nov 2006