Open-access Política e classes sociais

RESENHAS

Política e classes sociais

Luciano Martorano

BOITO JR., Armando. 2007. Estado, política e classes sociais : ensaios teóricos e históricos. São Paulo : Unesp.

Uma das mais recorrentes críticas a que foi e é submetido o marxismo althusseriano é a de que ele apresenta uma natureza basicamente "teoricista", o que o levaria a desprezar ou a negligenciar tanto a análise das práticas sociais concretas quanto a pesquisa histórica. A obra de Armando Boito Jr., Estado, política e classes sociais, ao vincular-se explicitamente a essa corrente teórica, é uma boa contraprova a tal crítica. Apoiando-se nacontribuição de autores como Louis Althusser, Nicos Poulantzas e Étienne Balibar, esse cientista político brasileiro opera com êxito um trabalho de "realização" de teses e conceitos teóricos na análise histórica, contribuindo assim para uma maior elucidação e precisão de seu conteúdo e de suas inúmeras possibilidades operativas. O livro de Boito Jr. - que reúne 12 artigos publicados entre 1993 e 2006, alguns deles tendo passado por modificações, não apenas formais, mas também substantivas em relação à sua versão original - é um importante recurso à disposição não só dos cientistas sociais que desejam conhecer e aprofundar seus estudos sobre o althusserianismo, como para todo pesquisador interessado em entender a política em sua relação com as classes sociais e segundo a perspectiva da transformação social.

Os artigos dividem-se em duas partes: a primeira concentra-se na análise do Estado - o absolutista e o capitalista, bem como o da transição ao socialismo, através do caso da Comuna de Paris -, além de abordar temas como os da mudança histórica, da crise revolucionária e da cena política em sua relação com os diferentes interesses de classe. A segunda parte volta-se para a investigação sobre a formação das classes trabalhadoras ao longo da história, especialmente da classe operária no capitalismo, e as formas de sua luta, seja a sindical, seja a revolucionária.

O modo de exposição dos argumentos defendidos pelo autor, bem como a sua redação , revelam um conhecimento desenvolvido sobre o conteúdo mais profundo de inúmeras polêmicas que fizeram e fazem parte do legado teórico mais recente do marxismo, particularmente dos debates da última década do século passado e do início do século XXI. E ao tomar posição em favor das teses e conceitos apresentados pelo marxismo estruturalista, Boito Jr. elege como alvo central de sua crítica a interpretação "economicista" do marxismo, que foi predominante no seu interior ao longo do século XX e a partir dos estudos de autores soviéticos, mas que ainda hoje goza de bastante influência. O "economicismo" teria sido responsável pelo negligenciamento da análise sobre a eficácia própria atribuídas à política e à ideologia como instâncias distintas da totalidade social. Segundo essa interpretação "economicista", a política e a ideologia seriam meros epifenômenos da economia, desempenhando sempre um papel secundário tanto na manutenção das condições sociais estabelecidas, quanto na sua mudança. Além de desenvolver a crítica teórica ao "economicismo", Boito Jr. procura indicar a sua incidência sobre a prática política, apontando claramente os seus efeitos ao afirmar que "o marxismo economicista tende ao reformismo" (BOITO JR., 2007a, p. 40) ou, como indicava o título original do artigo O esgotamento do ciclo revolucionário do século XX, o "economicismo oculta a revolução" (BOITO JR., 2007b, p. 211).

Ao rejeitar as teses "economicistas", o autor busca destacar principalmente o papel da política na constituição das classes sociais e no desencadeamento de processos de mudança histórica - entendida como a passagem de um modo de produção a outro -, além do papel da ideologia na conceituação da classe média, a partir do estudo sobre a meritocracia. Isso não significa dizer que haja um abandono da economia, pois Boito Jr. busca reter os efeitos provocados pelo desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção, mostrando, por exemplo, como as primeiras contribuíram para a formação da burguesia (BOITO JR., 2007c, p. 117) e assegurando que as segundas são a "a referência última das classes sociais" (BOITO JR., 2007d, p. 196). No entanto, no artigo O lugar da política na teoria marxista da história, após comentar as teses de Balibar (1970) - presentes no ensaio Sobre os conceitos fundamentais do materialismo histórico -, Boito Jr. afirma que, dos dois desajustes indicados pelo filósofo francês como sendo os elementos constitutivos principais de sua morfologia da transição de um modo de produção a outro - ou seja, o desajuste entre a estrutura jurídico-política e a estrutura econômica; e o desajuste, no interior da base econômica, entre as relações de propriedade e as relações de apropriação material -, somente o primeiro caracterizaria o início da transição sob a forma da revolução política (BOITO JR., 2007a, p. 55). Mas isso, a nosso ver, acabaria dificultando, no caso do socialismo, a análise sobre a socialização dos meios de produção, que seria impulsionada pelo Estado socialista, como defende o próprio autor (idem, p. 58).

Em relação ao Estado, seja no artigo dedicado ao absolutista - em que Boito Jr. polemiza com a tese de Poulantzas (1972), que o apresenta como sendo um Estado de tipo capitalista e não de tipo feudal -, seja no artigo sobre a Comuna de Paris, o autor, apoiado-se na problemática da correspondência entre determinadas relações de produção e uma estrutura jurídico-política particular (responsável pela especificação de diferentes tipos de Estado ao longo da história - o despótico-oriental, o escravista, o feudal e o burguês), sustenta que a sua natureza de classe não pode ser deduzida apenas a partir do estudo da composição social dos seus funcionários (BOITO JR., 2007e, p. 69). Além disso, Boito Jr. argumenta que tampouco a investigação isolada sobre a política estatal implementada seria suficiente para a sua definição tipológica; e que, se tanto o primeiro como o segundo elemento são importantes para a Ciência Política, eles precisam ser postos em relação com determinada estrutura jurídico-política, que é a chave explicativa fundamental para a elucidação das possibilidades e dos limites tanto da intervenção estatal, como dos interesses representados na cena política.

As classes sociais, segundo Boito Jr., não seriam constituídas apenas pelo movimento da economia, mas também pela política e pela ideologia. No caso específico da classe operária, a política está presente desde o seu início, pois a sua constituição enquanto "coletivo organizado" pressupõe não só a existência de um "programa político próprio" (BOITO JR., 2007d, p. 190), mas também a luta por sua realização (BOITO JR., 2007f, p. 95). Como tais condições não se apresentam de forma permanente no capitalismo, a constituição do proletariado como classe solicita uma conjuntura de crise revolucionária para que se efetue plenamente. Nos termos do autor, se a burguesia, como classe dominante, é uma "classe ativa" no modo de produção capitalista, o proletariado, como dominada, é uma "classe potencial" (BOITO JR., 2007d, p. 195), que só pode tornar-se "ativa" no curso de uma revolução social, expressando a transformação do antagonismo antes latente em antagonismo manifesto.

Isso nos revela como o autor está inserido no interior do marxismo estruturalista que acentua a distinção teórica entre a reprodução do modo de produção - que se dá dentro dos limites estabelecidos pela sua estrutura, a qual não é colocada em questão pelos seus próprios efeitos - e a transição de um a outro. Essa distinção confere um estatuto decisivo para a discussão sobre os conceitos de "crise revolucionária" e de "revolução", já que ambos são vistos como pré-requisitos indispensáveis para que a transição inicie-se, como mostra não apenas o artigo dedicado à crise de 1789 na França, como outros da coletânea, e que foi sublinhada com particular relevo no ensaio de Décio Saes (1998), intitulado O impacto da teoria althusseriana da história na vida intelectual brasileira.

A obra de Boito Jr. oferece ainda uma nova oportunidade para a discussão sobre o tema da contradição, mais especificamente sobre a sua natureza. Buscando interditar o caminho de sua banalização, Balibar, no ensaio já citado, sustenta a tese segundo a qual a contradição seria derivada e não originária, ou seja, ela não estaria presente na própria estrutura de um modo de produção dado, mas constituir-se-ia a partir de seus efeitos - possuidores de uma dimensão cumulativa -, que poderiam, em dado momento, vir a colocá-la em causa. Boito Jr., após afirmar que para Balibar haveria "contradições internas e originárias da estrutura, mas [que] essas permanecem dentro dos limites estruturais do modo de produção" (BOITO JR., 2007a , p.52), atribui, ao longo de seus artigos, uma natureza sempre originária a diferentes contradições (cf. BOITO JR., 2007g, p. 85; p. 113; p. 123; p. 135; p. 170; p. 218-220; p. 238; p. 259). Naturalmente, não se trata aqui de negar a possibilidade da postulação de teses diferentes no interior do mesmo campo teórico, formado com base em uma mesma problemática - fato, ademais, que era comum entre os próprios fundadores do althusserianismo. A questão seria - e fazemos isso como um convite ao debate - tentar detectar as conseqüências que o uso da noção de contradição originária pode produzir na análise do autor em foco, particularmente se não há uma possível atenuação da diferença, acima indicada, entre a situação de reprodução e de transição.

Nesse sentido, arriscamos aqui adiantar, sinteticamente, uma de suas conseqüências: aquela relativa à questão da luta de classes. Esta, enquanto manifestação da contradição entre classes sociais com interesses opostos e antagônicos, estaria presente, conforme a análise de Boito Jr., tanto na reprodução, quanto na transição? Por um lado, o autor afirma que a idéia de uma "contradição antagônica insuperável entre burguesia e proletariado", "sempre em operação", seria um pressuposto "economicista" (BOITO JR. 2007d, p. 193). Tal posição contraria a tese, defendida no artigo Pré-capitalismo, capitalismo e resistência dos trabalhadores - elementos para uma teoria da ação sindical, da correspondência entre a estrutura de um modo de produção e as formas das práticas de resistência a eles (BOITO JR., 2007h, p. 156). Ela ajuda, por exemplo, a entender por que "o sindicalismo não é, ainda, a luta de classes" (idem, p. 184), já que, no capitalismo, ela seria a luta do proletariado pela superação do modo de produção, e não por reformas socioeconômicas no seu interior.

Por outro lado, referindo-se aos modos de produção pré-capitalistas, o autor garante que a contradição entre produtores e proprietários teria incidido "sobre as formas e os rumos" das sociedades pré-capitalistas (idem, p. 170); e que, com a ofensiva neoliberal no capitalismo do final do século XX, a "luta de classes regrediu para níveis os mais baixos" (BOITO JR., 2007d, p. 193). Isto é, Boito Jr. admite a luta de classes tanto na reprodução, quanto na transição, ainda que, no segundo exemplo, sob graus diferenciados. A dificuldade é saber qual luta de classes, no sentido forte do termo (assumido pelo próprio autor), poderia haver entre a "classe ativa", dominante, e a "classe potencial", dominada, durante a reprodução de um modo de produção, já que o adjetivo "potencial" sugere sobretudo uma possibilidade, embrionária, de resposta sob a forma de ação coletiva organizada, mas não a resposta propriamente dita. Assim, teríamos desenhado o quadro de um campo de luta em que só estaria presente um único agente coletivo "ativo", o qual enfrentaria trabalhadores atomizados e impossibilitados de empreender uma ação conjunta. Em outros termos, teríamos luta de classes a partir da ação de apenas uma classe: uma luta de classe unipolar, e não luta entre classes, seja bipolar, seja multipolar.

Para efeito de registro bibliográfico, podemos mencionar aqui duas outras teses sustentadas por dois autores diferentes, mas também com base no marxismo estruturalista e sobre o mesmo objeto: enquanto Décio Saes (2003) postula a existência de grupos e de conflitos funcionais na reprodução do modo de produção, reservando a emergência das classes e da luta entre elas para a transição de um modo de produção a outro - tirando, desse modo, as conseqüências da análise mencionada acima sobre a distinção entre os dois conceitos, Magaline (1977), por sua vez, defende a tese da presença de uma "luta de classes na produção" como característica do próprio processo de reprodução do capital. Apesar de tal diferença, ambos os autores possuem um ponto em comum: a luta de classes só poderia existir na presença de grupos sociais possuidores de interesses contraditórios agindo em torno de sua realização; ou seja, a luta de classes pressuporia a presença de mais de uma classe "ativa".

Além desse conjunto de temas, o leitor encontra no livro de Armando Boito Jr. dois interessantes artigos que extrapolam o debate que envolve as diferentes correntes marxistas: um dedicado à crítica ao conceito de poder de Michel Foucault, e outro analisando a noção de "cidadania".

Recebida em 4 de março de 2008.

Aprovada em 20 de março de 2008.

Luciano Cavini Martorano (lucmartorano@yahoo.com.br) é Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj).

Referências bibliográficas

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2009
  • Data do Fascículo
    Nov 2008
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