Resumos
O artigo discute uma tipologia das áreas de fronteira na Amazônia brasileira e a relevância do conceito de fronteira para o estudo da emergência de anomia social nessas áreas. Propõe correlação positiva entre mudança social acelerada e fatos sociais anômicos, diluição de famílias, criminalidade, violência etc. Apresenta escores dos níveis de desenvolvimento socioeconômico per capita (DSE/kmu) das populações de todos os municípios da Amazônia Legal para 1970 e 1980, e conclui que os escores de 327 dos 329 municípios estudados cresceram, o que indica a melhora das condições de vida da população regional, contradizendo a hipótese, comum na literatura, de disrupção social na Amazônia brasileira. Assim, a anomia deve ser esperada com a mudança acelerada. Fatos anômicos não desmentem as melhoras socioeconômicas.
Amazônia; anomia; fronteiras; desenvolvimento socioeconômico; subdesenvolvimento
The text presents a typology of the different frontier areas within the Brazilian Amazon today and discusses the relevance of the concept of frontier in studying the emergence of social anomie in those areas. It suggests there is a positive correlation between the processes of accelerated social change characteristic of such areas and signs of social anomie, such as the loosening of family and personal ties, increased crime and violence, deterioration of the public order, etc. Per capita levels of socioeconomic development (DSE/kmu) were measured among people residing in all municipalities within the administrative region known as Amazônia Legal, for 1970 and 1980. Growth in the scores of 327 of the 329 municipalities under study indicates a strong trend towards improvement of living conditions for the region’s residents. This contradicts the hypothesis found in most of the analytical literature, which contends that the Brazilian Amazon has been stage to social disruption or stagnation. The text argues that anomie is to be expected in situations of accelerated social change, where people, values, and identities are unstable. Therefore, evidence of anomie, which confirms the occurrence of changes, cannot be used to negate the socioeconomic improvements observed in the Brazilian Amazon.
Brazilian Amazon; anomie; frontier areas; socioeconomic development; underdevelopment
Os níveis de desenvolvimento socioeconômico da população da Amazônia brasileira 1970 e 1980*
Levels of socioeconomic development in the Brazilian Amazon 1970 and 1980
Archibald O. Haller
Prof. do Dept. of Rural Sociology, University of Wisconsin, Madison.
529 Edward Street, Madison, Wisconsin 537111 EUA
Ramon S. Torrecilha
Diretor de programas, Social Science Research Council, Estados Unidos.
Maria Cristina del Peloso Haller
Ex-profa. do Depto. de Fitopatologia da Universidade Federal de Viçosa (UFV).
Manoel M. Tourinho
Professor da Faculdade de Ciências Agrárias do Pará.
HALLER, A. O.; TORRECILHA, R. S.; HALLER, M. C. D. P. e TOURINHO, M. M.: Os níveis de desenvolvimento socioeconômico da população da Amazônia brasileira 1970 e 1980. História, Ciências, Saúde Manguinhos, vol. VI (suplemento), 941-973, setembro 2000.
O artigo discute uma tipologia das áreas de fronteira na Amazônia brasileira e a relevância do conceito de fronteira para o estudo da emergência de anomia social nessas áreas. Propõe correlação positiva entre mudança social acelerada e fatos sociais anômicos, diluição de famílias, criminalidade, violência etc. Apresenta escores dos níveis de desenvolvimento socioeconômico per capita (DSE/kmu) das populações de todos os municípios da Amazônia Legal para 1970 e 1980, e conclui que os escores de 327 dos 329 municípios estudados cresceram, o que indica a melhora das condições de vida da população regional, contradizendo a hipótese, comum na literatura, de disrupção social na Amazônia brasileira. Assim, a anomia deve ser esperada com a mudança acelerada. Fatos anômicos não desmentem as melhoras socioeconômicas.
PALAVRAS-CHAVE: Amazônia, anomia, fronteiras, desenvolvimento socioeconômico, subdesenvolvimento
HALLER, A. O.; TORRECILHA, R. S.; HALLER, M. C. D. P. e TOURINHO, M. M.: Levels of socioeconomic development in the Brazilian Amazon 1970 and 1980.
História, Ciências, Saúde Manguinhos, vol. VI (supplement), 941-973, September 2000.
The text presents a typology of the different frontier areas within the Brazilian Amazon today and discusses the relevance of the concept of frontier in studying the emergence of social anomie in those areas. It suggests there is a positive correlation between the processes of accelerated social change characteristic of such areas and signs of social anomie, such as the loosening of family and personal ties, increased crime and violence, deterioration of the public order, etc. Per capita levels of socioeconomic development (DSE/kmu) were measured among people residing in all municipalities within the administrative region known as Amazônia Legal, for 1970 and 1980. Growth in the scores of 327 of the 329 municipalities under study indicates a strong trend towards improvement of living conditions for the regions residents. This contradicts the hypothesis found in most of the analytical literature, which contends that the Brazilian Amazon has been stage to social disruption or stagnation. The text argues that anomie is to be expected in situations of accelerated social change, where people, values, and identities are unstable. Therefore, evidence of anomie, which confirms the occurrence of changes, cannot be used to negate the socioeconomic improvements observed in the Brazilian Amazon.
Keywords: Brazilian Amazon, anomie, frontier areas, socioeconomic development, underdevelopment.
1 Todos os dados originais, codificados em português, foram fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em alguns poucos casos, as fronteiras municipais para 1970 e 1980 são diferentes umas das outras. No Brasil, os novos municípios nascem por fissão binária. Os dados para os municípios existentes em 1980 formados a partir de municípios existentes em 1970 foram reagregados pela nossa equipe de pesquisa, com a finalidade de manter a comparabilidade. As fronteiras municipais de 1970 e 1980 foram reconciliadas com a ajuda de documentos publicados pelo próprio IBGE (1990, 1984, 1980, 1968), que contêm a definição legal de cada município.
2 Os textos clássicos sobre testes de validade e confiabilidade são Campbell e Fiske (1959); e Nunnally (1967, pp. 75-102, 172-234). A validade refere-se à medida em que um instrumento consegue medir as variações de um fenômeno. A confiabilidade refere-se à consistência do instrumento de medição.
3 Na época, a Eletrobras tinha dados sobre toda a produção e todo o consumo de eletricidade em cada município brasileiro havia mais de quatro mil , com exceção da eletricidade produzida por geradores particulares.
4 Até agora, apenas o antigo estado de Goiás se subdividiu, dando origem ao estado de Tocantins.
5 Note-se também que as cinco macrorregiões que encontramos em nossa medição foram baseadas em dados de 1970, enquanto a Constituição foi promulgada 18 anos mais tarde. As fronteiras entre as macrorregiões mudam muito lentamente, se é que mudam.
6 O peso fatorial médio do Conjunto B é 0,839, muito parecido com o do Conjunto A, 0,858.
7 Ver o Apêndice, Tabela 2, para os coeficientes de correlação, médias, desvios padrão e coeficientes de distorção do Conjunto D, e o Apêndice, Tabela 3, para mais detalhes sobre a análise de componente principal do mesmo conjunto.
8 Observe-se que uma análise um pouco mais completa usaria escores de coeficiente de fatores como W1, W2, . . . , Wn. Quando calculados, eles caem num intervalo entre 0,09174 a 1,2353. No caso presente, os pesos fatoriais e os coeficientes dos escores de fatores se correlacionam perfeitamente, e por isso não faz diferença usar um ou o outro. Ver Kim e Mueller (1978a, 1978b).
9 Conjunto A da Tabela 1. Ver Haller (1983, 1982).
10 A Amazônia Legal é um macroagrupamento de estados e pedaços de estados e, por isso, tem limites que invadem (ou seja, não cobrem integralmente) 55 microrregiões homogêneas, que são agrupamentos exclusivamente de municípios dentro de estados (N. do T.).
11 Os escores apurados no teste são apresentados na íntegra no Quadro 1 do Apêndice.
12 Omitimos a capital de Tocantins (Palmas) porque o estado ainda não tinha se desmembrado de Goiás.
13 Uma análise adicional foi feita para determinar a relação entre o desenvolvimento socioeconômico e a população total. Alguns podem supor que as duas variáveis são a mesma coisa, ou que a correlação entre as duas seja quase perfeita: r 1,00. De fato, têm uma relação positiva, tal como mostram os níveis de DSE/kmu discutidos. Mas, na realidade, a correlação não é particularmente alta. Isso pode ser visto a partir dos dados sobre as microrregiões. Para 1970, DSE/kmr x população total tem r = 0,43 (ou r2 = 0,18). Para 1980, o valor comparável tem r = 0,42 (ou r2 = 0,18).
Os autores agradecem a Marisa M. T. L. Barbosa, Raymond Guries, Tarcizio R. Quirino, José Bolívar V. da Rocha, José Augusto Drummond, Tseng Min Chieh, Danielle Fernandes, Jorge A. Neves e Diane Venden pela sua colaboração. Agradecem também à FIBGE pela cessão dos dados. Registram ainda o apoio da University of Wisconsin (Madison), do Social Science Research Council dos Estados Unidos e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).Introdução
Este artigo apresenta um exercício de medição do desenvolvi- mento socioeconômico (DSE) das populações dos municípios da Amazônia Legal brasileira em 1970 e 1980, os únicos dois anos para os quais existem dados apropriados. Aplicamos essa medição à hipótese geralmente aceita, mas nunca antes testada, de que os investimentos de grande escala reduzem o DSE da população na região de fronteira uma "periferia extrativa extrema" que vulgarmente também é chamada de "Amazônia" (Bunker, 1988). Com o objetivo de contribuir para essa discussão, o artigo propõe e emprega uma nova definição do conceito de fronteira, conceito que está voltando à literatura sociológica, mas que talvez ainda não tenha recebido tratamento adequado. Algumas conseqüências lógicas da definição parecem ter implicações para estudos de situações de fronteira, em qualquer lugar que sejam realizados.
Com 5,2 milhões de km2, a Amazônia Legal cobre cerca de 60% do território brasileiro, e 30% do território da América do Sul (Figura 1). Estimamos que a população total da região, em 1991, estivesse entre 15 e 16 milhões de pessoas.
Considerações teóricas
Por dois motivos interligados, a questão dos níveis de desenvol-vimento da Amazônia é importante para o pensamento sociológico e para a análise do desenvolvimento. Um diz respeito ao conceito de fronteira e às suas implicações, o outro se liga aos supostos efei-tos de investimentos externos.
As fronteiras são vistas como lugares em que a exploração externa provoca o subdesenvolvimento das populações residentes (Bunker, 1988). A Amazônia é o principal exemplo contemporâneo disso. Sua economia de exportação é quase inteiramente extrativa: seus principais produtos ou são coletados na floresta borracha, castanha, madeira , ou são agrícolas, ou são minerais. No que diz respeito aos primeiros anos da história da região, Bunker (1984) sustenta que, antes da chegada dos europeus, as populações da Amazônia eram grandes e bem adaptadas ao meio ambiente. Achados arqueo-lógicos recentes parecem confirmar essa tese (Roosevelt, 1992, pp. 22-8). Os contatos subseqüentes com os europeus e seus descendentes foram devastadores para os povos indígenas e suas culturas, em função tanto da escravização quanto das doenças que provocaram (Boxer, 1962). Bunker vai além e sustenta que o processo de "subde-senvolvimento" da região e de sua população prosseguiu até pelo menos 1980. De acordo com essa abordagem, os investimentos em projetos de "desenvolvimento" na Amazônia são prejudiciais ao desenvolvimento socioeconômico da população regional, uma vez que as modernas burocracias das nações mais ricas, ao funcionarem em países do Terceiro Mundo, "são tão caras que sua imposição em formações sociais de energia difusa acelera o subdesenvolvimento" (Bunker, 1988, pp. 145, 47). Isso ocorreria porque "o modo de extração (da área) perde energia e assim se torna social e economicamente mais simples, menos diversificada e sujeita a mudanças na demanda de mercado determinadas pela tecnologia". Até 1960, mais ou menos, os investimentos de grande escala na Amazônia geravam pouco mais do que ciclos de bonança e falência, como vem sendo docu-mentado há muito tempo (Furtado, 1959). Em décadas mais recentes, ocorreram grandes investimentos de trabalho e capital em várias partes da região: na agricultura, especialmente em Mato Grosso e Rondônia; em mineração, energia e transporte, especialmente no Pará e no Maranhão; e em indústrias montadoras, em Manaus. Se houvesse dados apropriados disponíveis desde o ano de 1960 até hoje, seria possível testar, para uma geração inteira, a hipótese de que os investimentos de grande escala reduzem os níveis de DSE da população. Além disso, não dispomos de obras que contenham verificações que abonem essa hipótese, nem para esse período nem para qualquer outro na história recente da Amazônia. Além do mais, levantar essa hipótese não significa que concordemos com ela, nem com a teoria na qual ela se baseia. Ainda mais quando se trata da aplicação de ambas hipótese e teoria às fronteiras amazônicas, de 1970 em diante. Na verdade, há boas razões para acreditar que, no geral, a hipótese seja inválida e que a teoria seja inaplicável.
Existem, no entanto, para 1970 e 1980, anos que delimitam uma década crucial para se testar a hipótese: nesse período foi iniciada a rodovia Transamazônica, o enorme complexo minerador de Grande Carajás estava crescendo, grandes usinas hidrelétricas eram constru-ídas, e muitas fazendas surgiam em vários estados amazônicos. Almeida (1992) abre seu livro sobre a região com a seguinte frase: "A ocupação em grande escala da Amazônia começou durante a década de 1970." Obviamente, a taxa de investimento na Amazônia naquela década foi muito maior do que a de qualquer período anterior. Os dados disponíveis permitem a medida do DES/k para 327 dos municípios da Amazônia Legal, tal como estavam definidos em 1970. Na verdade, esses municípios são 329, mas dois deles foram retirados do estudo, em função de anomalias constatas nos dados que a eles se referiam.
Nossa segunda preocupação teórica, intimamente ligada a essa questão, diz respeito ao conceito de fronteira. A Amazônia contem-porânea é talvez o melhor exemplo empírico, em todo mundo, do que se pode chamar de fronteira. Com maior ou menor intensidade, o tema fronteira vem atraindo o interesse dos acadêmicos há um século. O famoso artigo de Frederick Jackson Turner (apud Fabian, 1992, p. 223) intitulado The significance of the frontier in American history foi apresentado em Chicago, no dia 12 de julho de 1893. Tanto Bunker (1988) quanto Hall (1986, pp. 390-402) abriram o debate sobre a relevância teórica das fronteiras no campo da sociologia. Além disso, diversos textos recentes tratam das frontei-ras da América do Sul. No entanto, até onde sabemos, o conceito ainda não recebeu o tratamento teórico que merece. A nosso ver, o termo fronteira implica a existência de um tipo genérico de configuração social que seria aplicável a qualquer lugar no mundo e em qualquer momento da história, com alguns tipos específicos de subfronteiras que se aplicam a vários casos particulares. Almeida (1992), Schmink e Wood (1992), Foweraker (1981), Mahar (1979) e Margolis (1973), entre outros, escreveram sobre fronteiras brasileiras, algumas vezes até especificando subtipos ou processos, tais como fronteiras rurais e urbanas (Almeida), fronteiras móveis (Margolis), e mudança de fronteira (Schmink e Wood). No entanto, até o momento não conhecemos uma definição convincente do conceito genérico de fronteira e de seus subtipos como fenômenos sociológicos. Propomos, a seguir, nossa definição provisória de fronteira, especificando quatro subtipos para as fronteiras amazônicas, e apresentamos duas conseqüências sociológicas dessa definição.
Em termos gerais, uma fronteira pode ser vista como uma área geográfica esparsamente habitada, dotada de instituições relativa-mente fracas e fragmentárias, de estruturas sociais e populações imperfeitamente integradas com a sociedade mais ampla da qual a área faz parte. Repentinamente, organizações governamenais e/ou econômicas externas de grande escala começam a investir grandes quantidades de capital nessa área, o que atrai números crescentes de pessoas interessadas em altos salários, ou em fontes de riqueza recentemente descobertas ou apenas entrevistas, ainda sem dono.
A mesma região pode ser uma fronteira mais de uma vez: quase todas as partes da Amazônia que tenham sido pesadamente exploradas por organizações externas já passaram por uma ou mais das fases que fazem parte da condição de fronteira. A mesma área pode não apenas ser fronteira em dois momentos distintos, mas pode viver a situação de fronteira em relação a mais de uma sociedade central, tal como o atual Sudoeste do Estados Unidos primeiro uma fronteira da sociedade espanhola, depois uma fronteira dos Estados Unidos (Hall, 1986).
Tipos de subfronteiras amazônicas
Existem quatro tipos de subfronteiras na Amazônia. A primeira é a fronteira móvel clássica, que implica a conversão das terras incultas para a agricultura, já que a nova onda de ocupação humana se move a partir de regiões do país já densamente habitadas e que novas cidades se formam além da fronteira, usando como bases de expansão comunidades previamente estabelecidas. Um exemplo é a expansão na direção do norte do Mato Grosso a partir da área de Cuiabá. A expansão para o sul a partir de Boa Vista (Roraima) pode ser outro exemplo. As terras agrícolas criadas dessa forma podem se tornar permanentes.
O segundo fenômeno que se qualifica como classe especial de fronteira é o da fronteira pára-quedas, que se tornou possível por causa do aparecimento recente de modalidades de transporte rápidas e capazes de cobrir longas distâncias, tais como aviões, helicópteros e lanchas a motor. As fronteiras pára-quedas são geralmente pequenas, remotas e isoladas. Muitos garimpos de ouro na Amazônia pertencem a esse tipo de subfronteira. Alguns tendem a definhar depois do esgotamento dos depósitos de ouro ou de outros minérios. Outros podem ser mais duráveis e se expandir, caso seus recursos durem o suficiente para atrair estradas, agricultura e serviços.
O terceiro tipo de subfronteira é o que chamamos de fronteira de linha. Trata-se de longas e estreitas faixas de terras desmatadas, que se parecem mais com as fronteiras móveis que com as pára-quedas, pois suas bases econômicas são a agricultura, a pesca e, por vezes, os serviços fornecidos a alguns residentes e a viajantes de passagem. Na Amazônia, as fronteiras de linha se formam ao longo de rios e estradas. Os melhores exemplos ficam, talvez, ao longo da estrada Transamazônica.
O último tipo é a fronteira de investimento concentrado, que tem, atualmente, como melhor exemplo, a região mineradora de Carajás, no Pará. A atividade agrícola também parece estar se expan-dindo nessa região. Um complexo portuário foi construído nas imediações de São Luís (MA) para escoar a produção de Carajás, juntamente com uma nova ferrovia que liga a região ao porto. Esse tipo de subfronteira absorve muito capital por unidade de área. Por algum tempo, pelo menos, emprega elevada proporção de pessoal altamente qualificado, que atrai serviços e bens de consumo caros. Envolve também construções de porte e a instalação de equipamentos de grande escala. Além disso, pode exigir sistemas complexos de transporte: estradas, ferrovias, navios etc. As operações minera-doras em subfronteiras de investimento concentrado, ao contrário das realizadas em fronteiras pára-quedas que, muito menores, permitem a recuperação da cobertura florestal depois de algum tempo, mesmo que com alterações , têm maior probabilidade de causar mudanças substanciais e permanentes na biosfera. Algumas dessas áreas de mineração podem se transformar em áreas urbanas permanentes.
Naturalmente, um subtipo de fronteira pode se tornar a base de outro. Por exemplo, estradas que partam de subfronteiras de investimento concentrado podem dar origem a novas subfronteiras de linha, ou mesmo às suas próprias subfronteiras móveis. Além do mais, a expansão acelerada pode produzir subfronteiras urbanas e mesmo rurais.
Na verdade, as principais fronteiras são combinações, por exemplo, a móvel e a de linha. Algumas das mais importantes con-centrações de forças de expansão na Amazônia brasileira seguem duas estradas, a Belém Brasília e a Cuiabá Porto Velho, que ligam as terras amazônicas à rede urbana principal do Brasil, mais ao sul. Mas há também ondas que avançam de leste para oeste no nordeste da Amazônia, e do sul para o norte e para o sudeste no sul da Amazônia. Outras ondas de fronteira móvel se espalham a partir das cidades de Belém, Manaus, São Luís e da região do projeto Grande Carajás.
Conseqüências sociológicas
Existem dois efeitos sociais das fronteiras que podem assumir significado especial: um se refere à renda, o outro relaciona-se a comportamentos anômicos.
No que toca à situação econômica das populações das fronteiras, as organizações que se instalam nelas em geral exigem pessoas dotadas de habilidades escassas no lugar, mais facilmente encon-tradas nas regiões de ocupação mais antiga. Assim, nas áreas de fronteira, as organizações oferecem pelos serviços dessas pessoas benefícios acima ou muito acima da média. Da mesma forma, cresce a demanda aos locais que possam fornecer serviços essenciais e informação que os de fora não são capazes de oferecer. As organiza-ções muitas vezes precisam de números substanciais de pessoas sem qualquer habilitação especial. Trabalhadores não especializados se dirigirão para uma fronteira se houver poucos empregos onde moram ou se receberem ofertas especialmente atraentes. Além disso, episódios especificamente locais de escassez de mão-de-obra tendem a aumentar os salários de trabalhadores locais não especializados que vivem nas proximidades de subfronteiras em expansão. O resultado é que os salários pagos nas fronteiras são mais altos do que os pagos nas regiões mais densamente ocupadas. Em termos de DSE médio especificamente, entre 1970 e 1980 sabemos que a Amazônia tinha quase o mesmo nível do Nordeste (Haller, 1982, pp. 450-64). No entanto, os rendimentos dos homens e das mulheres do Nordeste eram apenas 53% e 49%, respectivamente, dos dos homens e mulheres da Amazônia. Em 1982, os rendimentos dos nordestinos continuavam significativamente menores, embora os percentuais já fossem de 72% e 76%, respectivamente (Haller e Saraiva, 1992, pp. 295-336).
Uma segunda conseqüência da definição de fronteira diz respeito à anomia. Desde a publicação do livro de Émile Durkheim, Suicide, a study in sociology, cuja primeira edição é de 1897, a anomia tem sido um fenômeno sociológico bem conhecido. Queremos desenvolver aqui nosso próprio entendimento do conceito, pois ele tem forte relevância para a questão do desenvolvimento da fronteira amazônica.
Todos os grupos sociais desenvolvem normas de comportamento que balizam as atividades ostensivas de seus membros. Isso significa que as pessoas têm noção dos comportamentos que são sistematicamente estimulados, permitidos, proibidos ou punidos. Esse entendimento constrói-se por consenso ou por coerção, quer as pessoas o aceitem ou meramente consintam nele. Com a passagem do tempo, o corpo de normas de um grupo vem se ajustar aos recursos disponíveis ao grupo e a especificar os graus e formas pelos quais esses recursos são distribuídos. Conjuntos de normas são específicos a certos lugares e períodos. Em geral, as normas mudam devagar, de acordo com as transformações lentas que ocorrem na composição demográfica do grupo ou nos recursos disponíveis. No entanto, grupos diferentes têm normas diferentes, e os comportamentos que são premiados num grupo podem ser ignorados ou mesmo punidos em outro. Além do mais, quando a distribuição dos recursos disponíveis a um grupo muda drasticamente por causa de alguma acumulação ou empobrecimento súbitos, de mudanças rápidas na composição do grupo ou da fusão de um grupo com outro , algumas normas que antes prevaleciam são modificadas: comportamentos antes aprovados podem passar a ser ignorados ou, talvez, premiados. Normas propostas por grupos externos poderosos podem ser impostas a povos que antes tinham poucas relações externas, tal como ocorre quando os governos ou os meios de comunicação de massa passam a se interessar por populações remotas que antes tinham pouca importância nacional ou internacional. É o que queremos indicar com a expressão situações anômicas: são situações de extrema confusão normativa, de grande anomia, consideradas campo fértil para suicídios, assassinatos, roubos, distúrbios sociais e violência organizada.
Normas são apoiadas por sanções. Algumas sanções são benignas, como o elogio, a culpabilização, ou o ridículo; outras são severas, como a morte e a tortura. Os sistemas de articulação de normas legais e de aplicação de sanções severas são custosos, e a sua mon-tagem leva muito tempo. Por isso elas tendem a não existir em áreas de fronteira. Dentro dos grupos, normas antigas muitas vezes deixam de funcionar. Entre os grupos que passam a ter contato, as normas próprias de cada um podem ser diferentes. Nessas circuns-tâncias, acontece que alguns habitantes da fronteira destituídos de princípios não adotam as normas de qualquer um dos grupos participantes e simplesmente tiram ou procuram tirar vantagens de todos. Além disso, o poder de polícia muitas vezes não existe ou está sob o controle de um dos partidos que disputam o poder. Acima de tudo, os grupos em conflito encaram a fluidez da fronteira como uma promessa de riquezas que podem ser ganhas ou perdidas com facilidade. As perdas potenciais são profundamente temidas. Assim, uma grande taxa de conflito sobre obtenção e transferência de riquezas é marca característica das fronteiras. Seria um erro considerar esses conflitos como instâncias inesperadas de comportamento desviante. Os objetivos, as normas e os recursos dos grupos diferem entre si, e essas diferenças geram conflito. Ora, o conflito em áreas de fronteira é muito mais violento, por causa da fraqueza da lei e da falta de sua aplicação.
Consideramos que é fenômeno típico das fronteiras que os imigrantes contribuam com uma parcela mais do que proporcional de aventureiros, de pessoas desesperadas e de indivíduos que procuram enriquecer facilmente. Além disso, a chegada de muitos estrangeiros transtorna os relacionamentos entre aqueles que antes viviam na fronteira. A anomia das fronteiras é conseqüência do crescimento rápido da população, da criação de novas comuni-dades habitadas por pessoas que não se conhecem, da rápida mudança na composição social das comunidades existentes, da alta rotatividade de moradores e dos interesses conflitantes dos participantes. Em particular, a anomia das fronteiras é agravada pela aparente disponibilidade de novas fontes de riqueza em relação às quais ainda não estão estabelecidos direitos de propriedade normativamente estruturados e efetivamente aplicados.
Interesses e comportamentos conflitivos existem em qualquer lugar, é evidente. Nas comunidades estabelecidas, os conflitos mais sérios ficam a maior parte do tempo sob controle, seja por efeito da força legítima, seja pela ação de mecanismos consensuais de diminuição de conflitos. Assim, nesses lugares, o conflito parece anormal, embora na realidade não seja. Nas fronteiras é diferente: nelas, o conflito mesmo ostensivo, letal é normal. Esta carac-terística das fronteiras merece atenção daqueles que estudam o comportamento das sociedades das fronteiras, ou que propõem políticas para elas.
Schmink e Wood (1992) discutem as raízes dos conflitos amazônicos em termos de diferenciais de poder. Não discordamos disso, a não ser para observar que, por definição, exercícios de po-der tendem a ser mais desordeiros em situações anômicas do que naquelas em que as leis existem, são conhecidas e aplicadas por regras apoiadas em consenso ou em aceitação ampla.
Hoje em dia quase todos os lugares habitados na Amazônia com possível exceção das áreas em torno das cidades mais antigas como Belém, Manaus, Cuiabá e São Luís são fronteiras, de acordo com a definição corrente. As principais extensões de terras desma-tadas são destinadas a atividades de agricultura e pecuária, ou de mineração em grande escala. A Figura 2, elaborada a partir de dados válidos até 1984, mostra esses desmatamentos, destinando-se as áreas churiadas à expansão agrícola. Nota-se que as extensas áreas desmatadas estão localizadas perto de estradas ou ao longo delas. Uma dessas áreas corre para o norte, através do estado de Tocantins (ainda assinalado como Goiás na figura), a outra segue o sentido noroeste de Cuiabá a Porto Velho , e uma terceira vai de norte a oeste ao longo da extremidade leste da rodovia Transama-zônica. Há ainda outra área, não assinalada no mapa, que segue o lado oeste do rio Araguaia, onde de fato existe outra estrada. No entanto, a área com os conflitos mais intensos tem sido o sul do Pará.
Figura 2 - Áreas desmatadas da Amazônia Legal brasileira.
Fonte: Fearnside (1990, p. 235). Mapa reproduzido com pequenas modificações, com a permissão do editor (apud Gusmão, 1990).
Nas regiões de fronteira, o desenvolvimento socioeconômico e o conflito anômico podem ser uma conseqüência inicial desse processo de desmatamento. Portanto, é bem possível que um dado município, cujos escores de DSE tenham crescido ao longo da década de 1970, revele também crescimento dos indicadores de anomia, tais como taxas de homicídio, mortalidade infantil, entre outras. Em outras palavras, nas regiões de fronteira há relação lógica entre níveis cres-centes de desenvolvimento socioeconômico e de violência, inclusive alta mortalidade infantil, muitas vezes inadequadamente usada como indicadora do grau de desenvolvimento socioeconômico de áreas de fronteira. Ao contrário, devemos esperar uma correlação positiva entre desenvolvimento socioeconômico acelerado e incidência de comportamentos anômicos. Mais à frente na evolução de comuni-dades que nasceram como fronteiras, seria de se esperar a reversão da antiga correlação positiva entre indicadores de anomia e escores de DSE. No entanto, talvez se passem muitos anos até que isso ocorra, excetuando-se áreas no interior ou em torno de algumas poucas cidades mais antigas.
Implicações para a medição
Um exercício de medição das mudanças no DSE entre 1970 e 1980 deve permitir o teste da hipótese levantada por Bunker (1988), e talvez por alguns outros autores, de que os investimentos econô-micos de grande escala diminuem o DSE da população amazônica. Não há ainda dados disponíveis para testar nossa hipótese de que a anomia cresce junto com o desenvolvimento. Mas a argumentação anterior deixa claro que a medição do DSE não deve ser contaminada pela constatação de comportamentos anômicos típicos das fronteiras.
Medindo o desenvolvimento socioeconômico da população da Amazônia em 1970 e 1980
O nosso índice de DSE/kmu (desenvolvimento socioeconômico per capita por município) para 1970 e 1980 na Amazônia Legal brasileira é uma aplicação da lógica que consiste em selecionar variáveis componentes, efetuar análise fatorial e em seguida uma ponderação de fatores, lógica essa que antes foi aplicada num estudo da regionalização do Brasil como um todo (Haller, 1983). Ao iniciar-se a análise a partir de Haller (idem), não se sabia se havia distinção entre desenvolvimento social e desenvolvimento econômico de uma população. E mais: havia confusão sobre quais seriam as variáveis conceituais e respectivas representações empíricas apropriadas para medir os níveis de desenvolvimento de uma população. Um livro escrito por Henshall e Momsen (1974) deixou transparecer esse pro-blema e ainda indicou outro. Os autores propõem-se a identificar as macrorregiões socioeconômicas do Brasil a partir de uma análise fatorial das correlações entre uma grande quantidade de variáveis tomadas no âmbito de 26 estados e territórios da federação brasileira. A análise incorreu em certos erros importantes. O primeiro foi selecionar variáveis em número de 37 por sua disponibilidade e por medirem algo que poderia ser chamado de DSE. O segundo erro foi adotar os estados e os territórios como unidades de análise. Essa massa de informações foi organizada numa matriz de 37 variáveis por 26 unidades de análise. Realizada a análise fatorial, a matriz forneceu grande conjunto de pequenos fatores que, para nós, são inintelegíveis. Outro erro importante: as unidades de análise tinham populações que iam de vinte milhões a menos de cinqüenta mil pessoas, e territórios que variavam de 1,5 milhão de km2 até 22 mil km2. Tais unidades são demasiadamente heterogêneas para uma análise estatística. O formato de Henshall e Momsen e outras propostas de regionalização do Brasil, que tomam os 26 estados e territórios como unidades de análise, apresentam desvantagens para quem se interessa pelo DSE. Vários estados apre-sentam diferenças internas marcantes em termos de desenvolvimento. Além disso, o mesmo padrão de desenvolvimento pode atravessar as fronteiras de dois ou mais estados vizinhos.
A solução é selecionar variáveis com base ou numa teoria explícita que defina quais são as variáveis apropriadas, ou, na falta de tal definição, consultar o trabalho de pesquisadores experientes na medição de desenvolvimento econômico e de níveis de vida socioeconômica, e dividir a nação em unidades espaciais menores e mais homogêneas.
Não existe uma teoria explícita dessa natureza. Por isso, a segunda estratégia foi adotada por nós em trabalhos anteriores (Haller, 1983, 1982) e aplicada também a este artigo: há duas linhas de pesquisa relevantes a longo prazo. Uma baseia-se em variáveis usadas para medir o desenvolvimento econômico de nações, no nível per capita. A lista dessas variáveis é curta: produto nacional bruto, consumo de energia, industrialização, emprego não agrícola, atividade comercial e taxa de alfabetização. A outra linha de pesquisa baseia-se em di-ferenças de status socioeconômico entre domicílios. Suas principais variáveis são utilidades domésticas, aparelhos de comunicação, meios de transporte e taxa de alfabetização. O indicador anterior do DSE do Brasil e o presente exercício de medição do DSE da Amazônia baseiam-se em variáveis extraídas de cada uma das duas linhas de pesquisa. Essa foi a solução adotada para a seleção de variáveis.
S1 = é o escore preliminar de DSE/kmu de cada município, para cada ano, antes da sua conversão para a escala 0 a 100 que fornece o escore final de DSE/kmu;
W = é o peso fatorial de cada variável;
X = é o escore da unidade na variável;
= é o desvio padrão da variável ao longo de todas as unidades.
Resultados
Não existem dúvidas a respeito do fato aliás, bem documentado de que houve investimentos pesados na Amazônia Legal entre 1970 e 1980 (Almeida, 1992). O que está em jogo é saber o que aconteceu com o desenvolvimento socioeconômico da população da Amazônia durante essa década. Os escores do DSE/kmu para 1970 e 1980 responderão à pergunta.
As escalas variam de 0 a 100 e podem ser usadas para comparar os níveis de desenvolvimento de qualquer município amazônico em 1970 e 1980, ou de qualquer conjunto de municípios em 1970, em 1980, ou nesses dois anos. Até 1998, não estavam organizados e disponíveis no IBGE dados censitários de 1991 no nível municipal, o que até o momento nos impediu de fazer medição e análise se-melhantes para a década de 1980-90. No entanto, em março de 1992, usamos os escores de 1970 e 1980 da escala DSE/kmu de forma casual, para dar uma idéia do grau relativo de desenvolvimento de 13 municípios do leste do Pará, tendo tido a oportunidade de checar in loco a situação dos habitantes de cada um deles. Esses escores foram capazes de permitir previsões sobre tipos de diferenças intermunicipais observáveis no trabalho de campo, mesmo em 1992, 12 anos depois da segunda e última medida aqui apresentada e discutida.
Conclusão
Este artigo refuta a hipótese que parece corrente entre os acadêmicos que estudam a Amazônia, apesar de nunca ter sido testada de que os investimentos de grande escala na região diminuem os níveis de desenvolvimento socioeconômico da popu-lação. Um instrumento de medição (DSE/kmu) foi construído com a finalidade de determinar a mudança que realmente ocorreu nessa variável entre 1970 e 1980, uma década marcada por investimentos substanciais na região. Esse instrumento parece ter gerado uma medida válida do DSE, adequada a toda Amazônia, nos dois anos de medição. Quando esse instrumento foi aplicado para medir os níveis de desenvolvimento socioeconômico das populações de 327 municípios da Amazônia Legal, constatou-se que apenas dois deles (menos de 1%) sofreram quedas nos seus níveis de DSE. Houve crescimento em mais de 99% deles. Concluímos que a hipótese não pode ser sustentada para o período em questão: o desenvolvimento econômico foi acompanhado pelo desenvolvimento socioeconô-mico em praticamente todos os municípios.
Discussão
A linha de argumentação e os resultados de pesquisa aqui apresentados têm implicações mais gerais para a teoria sociológica e para o entendimento da mudança social na Amazônia. Em termos de teoria sociológica, oferecemos uma definição do conceito de fronteira, com especificação de subfronteiras. A definição parece funcionar bem no caso da Amazônia. Ignoramos se ela será tão útil para outras fronteiras, como a Antártida, para grandes porções do Canadá e da Sibéria, ou para o Alasca. Mas sua utilidade parece provável. Há duas implicações da definição que também parecem promissoras. Uma delas diz respeito aos estímulos que os investidores da fronteira usam ou para encorajar as pessoas a migrarem para a fronteira, ou para desviar as populações locais dos seus afazeres tradicionais, a fim de realizarem tarefas que interessam aos investidores. Esses estímulos aumentam os salários, como sabem muito bem os residentes da Amazônia. A outra implicação refere-se ao papel da anomia e à sua relação com a mudança socioeconômica acelerada. As áreas de fronteira atraem novos grupos que não têm as mesmas normas e cujas normas são também diferentes das adotadas pelas rarefeitas populações locais. Essa circunstância provoca conseqüências típicas de situações anômicas: taxas crescentes de homicídio, aumento da mortalidade infantil, e até mesmo mudanças nas dietas populares capazes de ameaçar a saúde pública. Além do mais, as fronteiras não têm lei: as leis de áreas mais densamente ocupadas são pouco compreendidas, não existem códigos legais locais, a aplicação da lei é falha e há corrupção.
Essa última consideração implica considerar a anomia e o desenvolvimento socioeconômico como variáveis distintas. Em áreas ocupadas há muito tempo, a anomia e os níveis de desenvolvimento socioeconômico podem ser negativamente correlacionados; quanto mais alto o desenvolvimento, menor o nível de comportamento anômico. No entanto, em áreas de fronteira, que, já vimos, por definição vivem mudanças aceleradas, quanto mais alto o nível de desenvolvimento, mais alto será o nível de anomia. Na pesquisa que levou a este artigo, essa consideração motivou excluir as variáveis que medem anomia do exercício de medição de desenvolvimento socioeconômico da população. Embora pareça consistente, a hipótese de anomia da fronteira ainda não foi testada de fato, embora evidências dispersas indiquem que ela pode ser confirmada (Schmink e Wood, 1992).
No que diz respeito à Amazônia, essas considerações chamam atenção para o papel das organizações de grande escala nos ataques às florestas úmidas da região. A longo prazo, a população brasileira vem se expandindo para o oeste e para o norte, na direção das florestas amazônicas. Num certo sentido, organizações de grande escala (governamentais e empresas privadas) controlam esse movi-mento de massa e amplificam seus efeitos na região. Grande parte da periferia amazônica a sudeste, sul e leste foi efetivamente desmatada, e longas frentes de desmatamento estão agora penetrando algumas das suas áreas centrais (Schmink e Wood, op. cit.). Com o passar do tempo, o desmatamento e a ocupação iniciados pelas organizações de grande escala e o crescimento da população resultarão num grande número de atividades que serão iniciados pelos grupos de pequena escala. Mais especificamente, os melhores solos em cada área de fronteira serão usados para atividades agrícolas permanentes. Essas áreas dificilmente voltarão a ser cobertas por florestas nativas. A propósito, o que acontecerá às áreas desmatadas dotadas de solos pobres é assunto de muita preocupação: elas continuarão nuas, serão cobertas por algum tipo de vegetação secundária, ou serão usadas para pastoreio, ou algum outro fim?
Depois de algum tempo, as populações que residem nas comu-nidades que se formarem nas atuais subfronteiras chegarão a algum tipo de modus vivendi com um consenso normativo imposto ou localmente emergente , e a taxa de comportamentos anômicos tenderá a diminuir. Isso pressupõe que a agitação social de caráter nacional não cresça e penetre na Amazônia, considerando-se que a mobilidade social declinante de brasileiros empregados cresceu bastante nos últimos anos, aumentando ainda mais a possibilidade de tensões sociais (Skole et alii, 1994). Presumindo que a atual teoria das fronteiras seja válida, conforme progrida a ocupação da Amazônia e aumente o nível de desenvolvimento socioeconômico, os salários relativos se reduzirão a níveis que correspondem mais de perto ao nível geral de desenvolvimento socioeconômico da região dentro do Brasil como um todo, dando continuidade à mudança já observada entre 1973 e 1982 (Pastore e Haller, 1993).
No que diz respeito a pesquisas futuras que em grande parte terão de ser multidisciplinares, com insumos substanciais vindos da sociologia algumas questões poderiam ser investigadas a partir dos nossos achados: medição do DSE/kmu na Amazônia na década de 1990 e além; expansão populacional da Amazônia; e relações entre a qualidade dos solos, o desenvolvimento socioeconômico e a expansão da agricultura e das comunidades correspondentes. Num nível mais teórico, é importante testar a hipótese de que a anomia varia positivamente com o desenvolvimento socioeconômico em regiões de fronteira, e negativamente em áreas ocupadas há mais tempo.
Em suma, a hipótese original de Bunker é inválida. Constatamos que, ao contrário do que ela propõe, as populações da Amazônia alcançaram nível médio de desenvolvimento socioeconômico mais alto no final da década de 1970 do que no seu início. O que se pode dizer, então, da teoria que ditou a hipótese? Na sua forma mais con-cisa, sustenta que a exploração externa extrai energia de "periferias extrativas", inclusive a Amazônia, mas não as devolve. O decréscimo de energia postulado enfraqueceria os níveis de desenvolvimento socioeconômico da população. Em suma, a exploração empobreceria a população. Nossa análise nem confirma nem nega essa teoria, mas deixa a questão em aberto: no tocante à Amazônia mais ou menos contemporânea, ou a teoria não é aplicável sob condições recentes da fronteira amazônica, ou ela é inválida. Por que a teoria não funcionou? Não temos resposta para isso, mas supomos que a teoria carece de reflexão plena sobre a natureza das fronteiras. Ao subestimar o impacto do investimento externo e do crescimento populacional, e ao ignorar ou interpretar erroneamente a situação anômica endêmica das fronteiras, a teoria não levou em conta que o investimento e o crescimento podem anular a depleção energética postulada e que a disseminação dos comportamentos anômicos pode obscurecer os aumentos reais do desenvolvimento socioeconômico.
fontes: A tabela foi adaptada de Haller e Torrecilha (1992). Os dados para o Conjunto A foram publicados em Haller (1982, pp. 45064). Os cálculos dos Conjuntos B, C e D foram feitos por Haller e Torrecilha.
notas: Todos os quatro componentes principais analisados geraram apenas um fator com um eigenvalue de E < 1.00. O painel à direita foi calculado da matriz de correlação de 1970 e 1980 (Amazônia Legal) combinada.
Legenda: /t = por pessoa empregada; /k = per capita.
1 MWw x HPk: r = 0,999.
2 A correlação de ordem zero entre a escolaridade primária de 1970 e a escolaridade secundária de 1980 é r = 0,801.
Recebido para publicação em setembro de 1999.
Aprovado para publicação em julho de 2000.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Maio 2006 -
Data do Fascículo
Set 2000
Histórico
-
Aceito
Jul 2000 -
Recebido
Set 1999