Resumos
Fundado em maio de 1940, no município de Viamão, Rio Grande do Sul, o Hospital Colônia Itapuã foi criado para abrigar os portadores do mal de Hansen. Construído para funcionar como uma microcidade, o hospital foi palco de inúmeras histórias de vida e trabalho. Os fragmentos destas trajetórias coletivas e individuais estão sendo resgatados desde 1999, quando foi implementado o Centro de Documentação e Pesquisa (Cedope/HCI). É através das atividades deste centro que propomos apresentar uma aproximação com a história do hospital e daqueles que viveram e ainda vivem nesta instituição.
lepra; hanseníase; hospitais-colônias; isolamento; saúde pública; memória; história
Inaugurated in May 1940, in Viamão Municipality in Rio Grande do Sul, Hospital Colônia Itapuã was meant to shelter Hansen's disease patients. Built in order to work as a small town, the hospital was the stage of several life and work histories. The fragments of these collective and individual experiences have been recovered since 1999, when Centro de Documentação e Pesquisa (Cedope/HCI) was first implemented. It is through the center activities that we propose a comparative study of the history of the hospital and the history of those who lived and those who still live in it.
leprosy; Hansen's disease; leprosaria; confinement; public health; memory; history
SOURCES
Revealing a history of exclusion: the experience at Hospital-Colônia Itapuã Data and Research Center
Desvendando uma história de exclusão: a experiência do Centro de Documentação e Pesquisa do Hospital-Colônia Itapuã
Arselle de Andrade da FontouraI; Artur H. F. BarcelosII; Viviane Trindade BorgesIII
IProfessora da Universidade da Região de Joinville (Univille), Rua Timbó, 127/405, 89204-050 Joinville SC Brasil, arselle@terra.com.br
IIProfessor da Universidade de Caxias do Sul(UCS), Rua Coronel Massot, 520/224C, 91910-530 Porto Alegre RS Brasil, ahbarcelos@hotmail.com
IIIEstagiária pesquisadora do CEDOPE/HCI, Av. José Bento Corrêa 355/37, 91450-030 Porto Alegre RS Brasil
ABSTRACT
Inaugurated in May 1940, in Viamão Municipality in Rio Grande do Sul, Hospital Colônia Itapuã was meant to shelter Hansen's disease patients. Built in order to work as a small town, the hospital was the stage of several life and work histories. The fragments of these collective and individual experiences have been recovered since 1999, when Centro de Documentação e Pesquisa (Cedope/HCI) was first implemented. It is through the center activities that we propose a comparative study of the history of the hospital and the history of those who lived and those who still live in it.
Keywords: leprosy, Hansen's disease, leprosaria, confinement, public health, memory, history.
RESUMO
Fundado em maio de 1940, no município de Viamão, Rio Grande do Sul, o Hospital Colônia Itapuã foi criado para abrigar os portadores do mal de Hansen. Construído para funcionar como uma microcidade, o hospital foi palco de inúmeras histórias de vida e trabalho. Os fragmentos destas trajetórias coletivas e individuais estão sendo resgatados desde 1999, quando foi implementado o Centro de Documentação e Pesquisa (Cedope/HCI). É através das atividades deste centro que propomos apresentar uma aproximação com a história do hospital e daqueles que viveram e ainda vivem nesta instituição.
Palavras-chave: lepra, hanseníase, hospitais-colônias, isolamento, saúde pública, memória, história.
Introdução
''Eu acho que isso, os trabalhos que vocês estão fazendo, a história, é uma coisa gratificante.'' Perceber as expectativas e a gratificação dos moradores/usuários do Hospital Colônia Itapuã, expressas na fala do sr. Pedro Hansel, ao saber que a história do hospital e suas histórias pessoais estão ganhando visibilidade a partir do trabalho de preservação e (re)construção da memória do hospital, um dos principais objetivos da memória institucional. Aqui, esta memória também é entendida como um mecanismo estratégico de luta de diferentes interesses, ou seja, serve como uma 'ferramenta' na busca pela inversão de um modelo de saúde de exclusão, alicerçado numa perspectiva asilar/segregacionista, para um modelo de saúde sob a ótica da cidadania, que prima pela inclusão dos moradores/usuários do hospital na sociedade.
Este artigo procura demonstrar a busca destes objetivos através das atividades desenvolvidas desde 1999, pelo Centro de Documentação e Pesquisa (Cedope) do Hospital Colônia Itapuã. Este hospital localiza-se no município de Viamão, e dista algo em torno de sessenta quilômetros do centro da capital do estado, Porto Alegre. Está vinculado à Secretaria de Estado da Saúde (SES-RS), sendo, juntamente com o Hospital Sanatório Partenon e o Hospital Psiquiátrico São Pedro, ambos localizados na capital, um dos três grandes hospitais públicos pertencentes ao estado, na região da grande Porto Alegre.
A ampliação do campo da pesquisa histórica, a partir da valorização de fontes dos mais diferentes matizes, na área da saúde, da medicina, da psiquiatria, do sanitarismo, das doenças, das artes de cura, entre outros temas, tem, ao longo das últimas décadas, contribuído para a criação e a organização de centros de documentação cujos objetivos são preservar e disseminar a memória da saúde. É neste contexto que percebemos a possibilidade de uma ampliação das pesquisas sobre a história da hanseníase.1 1 A hanseníase é conhecida pelo senso comum como 'lepra'. No entanto, a lei federal nº 9.010, de 29 de março de 1995, determina: ''Art. 1º O termo ''lepra'' e seus derivados não poderão ser utilizados na linguagem empregada nos documentos oficiais da Administração centralizada da União e dos estados-membros.'' Esta legislação insere-se nas políticas públicas destinadas a combater a discriminação social sofrida pelos portadores do mal de Hansen e o termo hanseníase tem sido utilizado nas campanhas nacionais pela eliminação desta enfermidade. No entanto, para o público leigo, ainda há uma certa dificuldade em identificar o termo hanseníase com a lepra. Isto deve-se ao fato de que uma parte importante da história da hanseníase no Brasil ainda está por ser reconstruída. Trata-se da história relativa ao longo período em que os hospitais de isolamento se instalaram, desenvolveram, fecharam ou passaram por profunda transformação.
Apontamentos para uma história do Hospital Colônia Itapuã
A origem de alguns destes hospitais no Brasil data do início do século XX, quando os portadores da hanseníase das classes populares e despossuídos de assistência médica, pública ou privada, buscavam instalar-se nos arrabaldes das vilas e cidades, sobretudo nas áreas rurais dos estados brasileiros. Em geral, sustentavam-se de doações e esmolas das populações vizinhas, onde entre intenções caridosas estava presente também o milenar rechaço aos portadores desta enfermidade (Antunes, 1991, cap. 2). Diante desta realidade, surgiram algumas associações e sociedades beneficentes que trataram de arrecadar recursos para a construção de instalações permanentes para os hansenianos. A partir da década de 1930, a parceria entre essas instituições e os órgãos públicos federais, estaduais e municipais, agilizou a construção de hospitais-colônias em vários estados do Brasil.
Na chamada Era Vargas, sobretudo após a instituição do Estado Novo, cresceu a participação do poder federal no combate à doença. A primeira medida a refletir este contexto foi o decreto nº 1.473, de 8 de março de 1937, que declarava de utilidade pública a Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra. Este decreto facilitava os acordos e parcerias entre as instituições não-oficiais e o então Departamento Nacional de Saúde. Assim, as associações que buscavam estabelecer hospitais-colônias através de campanhas de arrecadação de recursos passaram a contar com verbas estaduais e federais para a realização dos projetos. Em 1944, o decreto nº 15.484, de 8 de maio, aprovava o Regimento do Serviço Nacional de Lepra do Departamento Nacional de Saúde. Ficavam então definidas as atribuições deste serviço que iria intervir em todos os assuntos relativos ao combate à hanseníase, incluindo-se aí os hospitais-colônias.
A trajetória do Hospital Colônia Itapuã insere-se neste processo que deu origem a várias outras instituições similares em outros estados do país. Como em outros casos, a iniciativa partiu de uma sociedade beneficente criada em Santa Cruz do Sul, município gaúcho localizado a 155km de Porto Alegre, fundado em 1877 em decorrência da colonização alemã. Em 1924, a imigração alemã no estado completaria seu centenário. Para marcar esta data, a comunidade germânica da cidade pretendia ''perpetuar este acontecimento que lembrasse às gerações futuras do espírito de fraternidade e de sacrifício dos antepassados. Pensou-se num hospital, um asilo para leprosos, uma obra em benefício de todos, sem distinção de credo, de raça e nacionalidade.''2 2 Crônica do Asilo Colônia de Itapuã em Porto Alegre. Original datilografado, p. 1, Arquivo do Cedope/HCI. Surgia, assim, a Sociedade Pró-Leprosário Rio-Grandense.
A maior dificuldade era a escolha do local para a construção do leprosário. Na falta de entendimento por parte dos habitantes da região de Santa Cruz havia algumas alternativas. Uma ilha do rio Guaíba, descartada pelo fato de não ser adequada à presença de um hospital de hansenianos em frente à capital; um terreno baldio entre Santa Cruz e Venâncio Aires, também descartado pela desaprovação das comunidades destes dois municípios, que pensavam que isto caracterizaria a região como foco da doença. A sociedade comprou então, em segredo, um terreno localizado em Belém Velho, bairro situado na periferia de Porto Alegre e que, na época, constituía-se em um arrabalde rural. Mais tarde, em 1940, se instalaria neste local o Amparo Santa Cruz, instituição que teria a sua história ligada à do futuro Hospital Colônia Itapuã. A idéia era transferir os doentes para este local sem o conhecimento dos moradores da região, então ocupada por algumas chácaras e poucos moradores.
As dificuldades enfrentadas pela Sociedade Pró-Leprosário refletiam o tratamento de doenças contagiosas pelo Estado, o qual ainda era incipiente nas primeiras décadas do século XX. Em 1909, fora instalado um conjunto de pavilhões no arraial de São José, na periferia rural de Porto Alegre, que passou a ser denominado Hospital de Isolamento São José. Surgiu entre as políticas públicas da República Velha, em cujas práticas sanitaristas incluía-se a política de isolamento das pessoas atingidas por doenças endêmicas. Era concebido como um 'lazareto':
Para isolar os doentes, os órgãos sanitários da época utilizavam 'lazaretos', que no final do século XIX podiam significar 'hospital de lazarentos (leprosos)' e 'edifício onde fazem quarentena às pessoas vindas de terras onde há doença epidêmica e contagiosa'. Os lazaretos estavam ligados ao Desinfectório de Higiene do Estado, que pertencia ao Departamento de Higiene da Secretaria de Estado dos Negócios do Interior e Exterior (Picon, 2000, p. 134).
Em 1926, como ainda não havia um hospital específico para hansenianos, a Diretoria de Higiene adaptou dois pavilhões do Hospital de Isolamento São José para receberem doentes indigentes de Porto Alegre. Dez anos depois, em 1936, foi inaugurado o Hospital de Emergência para Leprosos, localizado no terreno do Hospital São José, tratando-se na realidade de uma extensão deste. Tal medida visava amenizar o fato de o estado ainda não contar com um hospital específico para hansenianos.
Em Porto Alegre, sensível às dificuldades da Sociedade Pró- Leprosário, formou-se um grupo liderado por d. Luiza Aranha, mãe do então embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Oswaldo Aranha. O estado, através das atividades e contatos políticos, foi envolvido no projeto e adquiriu, em 1936, uma fazenda em Itapuã, distrito do município de Viamão. Localizada às margens da lagoa Negra, próximo à lagoa dos Patos, esta área possuía poucos habitantes e o acesso era dificultado pela precariedade da estrada. A escolha do local explicita a perspectiva das autoridades da época, onde o afastamento de áreas urbanas, tanto de Porto Alegre quanto de Viamão, atenderia o objetivo de isolar os portadores do mal de Hansen. Técnicos do estado apresentaram a planta das futuras instalações, e o governo estadual assumiu o compromisso público com a manutenção do asilo.
Com a compra do terreno em Itapuã, as obras iniciaram-se em 1937. A participação ativa do estado no combate à hanseníase, atuando como promotor dos investimentos mais vultosos, enquadrou-se dentro das transformações mais amplas decorrentes do golpe revolucionário de 1930. Com efeito, a substituição das oligarquias ligadas à República Velha provocou alterações profundas na política nacional. Durante o período do governo provisório de Getúlio Vargas, o governo federal passou a intervir sistematicamente em questões sociais. Esta nova postura do poder público permitiu que o estado passasse a ser agente ativo em setores onde antes tinha presença mínima. Era o caso da assistência aos portadores de hanseníase, em geral exercida por associações civis beneficentes.3 3 O ano de 1937 marca a interrupção do processo eleitoral que iria permitir a sucessão de Vargas. Através de um 'golpe branco', Vargas permanece no poder e é instituído o Estado Novo. Esta etapa da chamada Era Vargas constitui-se no período de maior intervenção do Governo Federal em todos os campos da política nacional. Para os governos estaduais são nomeados interventores, que implementam no âmbito local as políticas e práticas do Estado Novo.
Sem uma estrutura anterior que permitisse a colocação de quadros de pessoal especializado para atuar em novas instituições públicas, como os hospitais de isolamento para hansenianos, o governo estadual recorreu ao auxílio de entidades religiosas. As irmãs franciscanas da caridade e penitência foram oficialmente convidadas a participar das atividades no futuro hospital. Um contrato foi firmado entre as partes, atribuindo as funções e a remuneração. A ordem franciscana também contribuiu com a nomeação de um capelão. Em 11 de maio de 1940 foi oficialmente inaugurado o Leprosário Itapuã. Imediatamente os portadores do mal de Hansen passaram a ser localizados pelo Serviço de Profilaxia da Lepra (SPL), do então Departamento Estadual de Saúde (DES), ao qual cabia identificar e providenciar a internação dos casos em que houvesse risco de contágio. Iniciou-se, então, uma série de internamentos compulsórios, aplicando-se as recomendações profiláticas em voga.
Para comportar e isolar os portadores da doença, as estruturas das colônias deveriam contar com todas as facilidades que tornassem desnecessária a movimentação externa dos internados. Diante disso, o hospital foi inaugurado com uma área urbana formada por diversas instalações. Concorde com colônias anteriormente instaladas em outros estados, o Leprosário Itapuã também seguia o esquema da divisão espacial em 'área limpa' ou 'sadia', e área 'suja' ou 'doente'. Na chamada área 'sadia' estavam o prédio da administração, a usina hidráulica, a padaria, as residências para médicos e funcionários e outros serviços. Também ali foram instaladas as residências para as irmãs franciscanas e para o capelão da colônia. Na área 'doente' estavam situados 18 pavilhões modelo Carville,4 4 Este modelo de pavilhões seguia o padrão adotado na Colônia de Carville, em Louisiana( EUA). cada um com nove quartos para três camas, copa e sanitários. Dezesseis casas geminadas foram construídas para abrigar casais e famílias. À época da inauguração já estava em construção uma igreja católica que havia sido financiada com verbas de particulares, arrecadadas por uma campanha das irmãs franciscanas.5 5 Crônica do Asilo Itapuã em Porto Alegre. Original datilografado, (p. 2), Arquivo do Cedope/HIC. Afastado da área residencial estava o cemitério. A enfermaria era ampla, com quartos para abrigar os pacientes que apresentassem quadros de agravamento da enfermidade ou outras complicações. Nela havia um pequeno bloco cirúrgico, além de consultórios e gabinetes dentários. Completavam as instalações a cozinha e o refeitório, além de uma praça com chafariz. Mais tarde ainda seriam agregadas novas edificações: um grande pavilhão de diversões, uma cadeia, sapataria, carpintaria, ferraria e, em 1948, uma capela luterana. Logo nos primeiros anos, iniciou-se um serviço de olaria para a fabricação de tijolos que seriam utilizados em futuras ampliações.
Todas essas instalações davam à colônia um caráter de microcidade. Os serviços foram assumidos em cooperação entre as irmãs franciscanas, funcionários públicos e pacientes. Entre as irmãs, por exemplo, já na primeira turma havia duas enfermeiras,6 6 A participação de religiosas como enfermeiras em instituições de saúde era comum até a primeira metade do século XX. A regulamentação da profissão de enfermagem ainda caminhava a passos lentos neste período e a formação específica ainda não era uma realidade. Muitas eram as pessoas que atuavam como enfermeiras, sobretudo em períodos de epidemias (Pereira Neto, 1997) duas costureiras e uma farmacêutica. Uma delas assumiu também a chefia da cozinha dos pacientes. Não raro, os doentes trabalhavam exercendo a profissão praticada antes do internamento, como costureiras, sapateiros, agricultores:
Muitos ainda estão em condição de ocupar-se com um outro trabalho. E não passou muito tempo que apareceu (sic) resultado: nos jardins entre os pavilhões e nos canteiros em frente das casas aparecem flores multicores, arbustos e árvores frutíferas (que) foram plantados, hortas deram verduras, as praças e ruas enfeitadas com árvores de sombra. Uma turma de senhoras tomou conta da costura e da lavanderia, outras ajudaram nas enfermarias, refeitório e copas.7 7 Crônica do Asilo Colônia Itapuã em Porto Alegre. Original datilografado, Arquivo do Cedope/HIC.
Em agosto de 1941 ocorreram as primeiras altas por cura. Doze pacientes receberam o diagnóstico negativo para a lepra e suas saídas foram motivo de comemorações na colônia, contando inclusive com a presença do então interventor estadual Cordeiro de Farias. Aos que ficavam, restava a esperança de uma estada curta no hospital. Para muitos, a espera seria longa e a segregação os levaria à readaptação a um outro modo de vida. A dinâmica do isolamento conduziu a vida dos pacientes no âmbito interno da colônia a uma profunda regulamentação. O controle dessa regulamentação interna estava a cargo da Prefeitura dos Internados, subordinada à direção do hospital. Em geral, o cargo de 'prefeito' era exercido por um paciente, designado pelo diretor geral. Os pacientes deveriam pedir autorização para realizar partidas de futebol, festas, receber visitas, entre outras solicitações ligadas ao cotidiano. O paciente, sendo obrigado a pedir permissão para realizar atos que as pessoas poderiam executar de forma espontânea, como receber visitas e jogar futebol, colocava-se em um papel submisso, que coibia a sua liberdade de ação (Goffman, 1999). Segundo o decreto 7.558, de 11 novembro de 1938, as visitas deveriam obedecer às disposições do regimento interno do hospital. Estas medidas prevaleceram durante muitos anos, e foram sempre razão de atritos entre a direção e a comunidade de internados, principalmente no que se refere às visitas:
Como é do conhecimento de V.S., nem um diretor que passou por este hospital, nestes últimos dez anos, conseguiram (sic) solucionar os problemas das visitas. Conseguiram (sic) piorar ainda mais a situação, entre internados e visitantes. Muitos de nossos visitantes deixaram de vir nos visitar, pois uma hora podiam entrar livremente e ficar até alguns dias, outra hora, chegavam no portão de entrada, lá estava a ordem: é expressamente proibida a entrada de visitantes.8 8 Processos Internos da Prefeitura _ 1973. Acervo do Cedope/HCI.
Também as transgressões à ordem interna eram punidas pela ação da Prefeitura dos Internados. Um paciente assumia a função de 'delegado', escolhendo outros pacientes para seu auxílio. Geralmente, sua tarefa limitava-se a punir pequenas desavenças, furtos ou embriaguez. A produção, venda ou consumo de bebidas alcoólicas estava terminantemente proibida nas dependências do hospital, como se depreende da grande quantidade de ordens expedidas neste sentido ao longo dos anos e dos processos movidos pela prefeitura contra alguns pacientes.9 9 Processos Internos da Prefeitura _ Acervo do Cedope/HCI. A própria reincidência de normas proibitivas demonstra o quanto estas medidas foram ineficazes. Os pacientes sempre conseguiram desenvolver formas de produzir bebidas ou contrabandeá-las para dentro da colônia, estreitando seus vínculos com a população que vivia nos arredores. O principal problema para os responsáveis pelo cumprimento das normas sempre foram as fugas. Desde o princípio alguns pacientes demonstraram não suportar o isolamento compulsório e buscaram maneiras de evadir-se da colônia. A própria localização do hospital, apesar da longa distância de Porto Alegre, facilitava esta prática. O hospital encontra-se em uma área cercada pela lagoa Negra e por morros cobertos de densa vegetação. Não tardou muito para que estes matos ficassem repletos de trilhas e picadas que levavam até a estrada de acesso. Dali, com auxílio externo de amigos, ou com serviços contratados nas redondezas, poderia um paciente facilmente conseguir transporte até a capital e então dirigir-se à sua cidade de origem. Os homens do delegado podiam, no máximo, 'recapturar' o transgressor nas imediações do hospital. Uma vez evadido da colônia, este seria localizado pelo Serviço de Profilaxia da Lepra e reconduzido ao internamento. De volta, em geral o paciente ficava detido por uma ou duas semanas na cadeia local.
As fugas foram constantes durante todo o período em que prevaleceu o internamento compulsório. A distância e a saudade de amigos e parentes eram as causas mais freqüentes das evasões. Mas, em determinados casos, os pacientes viam-se obrigados a sair para resolver questões particulares, sem que com isto tivessem a intenção de não retornar à colônia. Diante da negativa de permissão para sair, viam-se obrigados a fugir. Por vezes formavam-se grupos que planejavam cuidadosamente a fuga. Em outros casos, mais comuns, os pacientes aproveitavam licenças concedidas em datas festivas, como a Páscoa, o Natal e o Ano-Novo, para não retornar. Mas a fuga, mesmo quando não havia a localização por parte do SPL, não era uma garantia de retorno normal ao convívio na sociedade. O estigma acompanhava o paciente. Muitos provinham de pequenas cidades do interior, onde era conhecida sua situação de internados. Assim, o rechaço operava como um agente a mais do sofrimento. A hanseníase, doença estigmatizada desde a Antiguidade, causa profundas alterações no cotidiano dos indivíduos afetados, na medida em que a enfermidade faz-se acompanhar pelo sofrimento, o abandono, as deformidades e a exclusão social (Calvetti, 2000). Não foram poucos os casos de retornos espontâneos, provocados pela dificuldade de adaptação. Fato que se verificou de forma mais acentuada quando do fim do internamento compulsório. Além das fugas, o serviço de vigilância interna teve que lidar também com casos de homicídios e com a presença eventual de indivíduos condenados pela justiça que, por serem portadores da doença, foram transferidos para a colônia, para lá cumprirem parte de suas penas.
O desconhecimento das formas de contágio conduziu a algumas medidas pouco eficazes para o fim a que se propunham. Era o caso das moedas de latão e alumínio que foram confeccionadas para circular somente dentro da instituição. Esta medida foi adotada em outros hospitais-colônias brasileiros. Os recursos aos quais os pacientes tinham direitos eram convertidos em moedas locais. No caso do Hospital Colônia Itapuã, circulavam moedas de 500, 1.000, 2.000 e 5.000 cruzeiros. Sua cunhagem era simples, com marcações em alto-relevo em apenas uma face, onde constava o valor e as siglas HCI, para Hospital Colônia Itapuã, e DES, para Departamento Estadual de Saúde. Sua circulação estava determinada pelo Regulamento Interno dos doentes: ''Art. 2º A moeda corrente não deverá circular nas transações efetuadas na Colônia. Estas serão feitas com fichas e vales de valor equivalente.''10 10 Regulamento interno dos doentes: da disciplina. (s. d.). Arquivo do Cedope/HCI.
A utilização de uma moeda própria possuía um duplo objetivo, dificultar as fugas, visto que o doente não teria dinheiro para o transporte, e evitar o contágio através da circulação de dinheiro. Apesar de haver sido grande o volume das moedas que circularam no hospital, é ínfimo o número de exemplares que restam atualmente.
No contexto do isolamento, a comunidade de pacientes passou a se integrar, buscando, dentro dos limites impostos pela exclusão, transpor para o interior do hospital os aspectos de 'normalidade' da vida cotidiana. Tornaram-se comuns os bailes, gincanas, festas religiosas, competições esportivas, encenações teatrais e diversas outras formas de lazer. Já na Semana da Pátria de 1943 havia duas equipes, o Juventude e o União, disputando uma partida no recém-inaugurado campo de esportes.11 11 Crônica do Asilo Colônia Itapuã em Porto Alegre. Original datilografado, p. 2, Arquivo do Cedope/HIC. Agremiações como estas foram comuns durante aproximadamente cinqüenta anos. Para a realização de bailes e apresentações teatrais, foi construído ainda nos anos 1940 o Pavilhão de Diversões. Este local passou a ser a referência de lazer da colônia. Seu grande teatro, com centenas de cadeiras, servia para a assistência de peças e filmes. Estes últimos eram locados em Porto Alegre e exibidos por projetores adquiridos pelo hospital. Mesmo nos momentos de lazer percebia-se a presença moral das irmãs franciscanas. Homens e mulheres solteiros deveriam sentar-se separadamente, ocupando lados distintos de assentos. Apenas aos noivos ou casados era permitido sentar-se lado a lado. As festas religiosas ou laicas eram realizadas em seus salões, onde também ocorriam jogos de damas, bilhar, dominó, cartas etc. Esta característica em particular definiu a alcunha de Cassino, pela qual o local é conhecido até os dias de hoje.
Apesar da aparente normalidade da vida cotidiana no interior da colônia, a presença das irmãs franciscanas, com ditames morais, combinada com o Regulamento Interno dos Doentes, fazia com que o controle social fosse rígido, intervindo inclusive nos relacionamentos. Homens e mulheres solteiras eram separados em diferentes pavilhões, os casados além do pavilhão a estes destinados poderiam residir em casas geminadas, sempre que houvesse disponibilidade. O controle, no que se refere às relações entre homens e mulheres, era previsto no Regulamento Interno dos Doentes:
As pessoas de sexo diferente só poderão passear juntas nos seguintes casos:
1) Quando casados.
2) Quando noivos oficiais, com permissão superior, às terças e quintas-feiras à tarde e domingos todo o dia, até as 18 horas, dentro do recinto urbano. Fora do recinto urbano estes passeios só se farão, com licença especial.12 12 Regulamento interno dos doentes: da disciplina. (s. d.). Arquivo do Cedope/HCI.
Tais restrições, no entanto, não impediram que namoros se convertessem em noivados e estes em casamentos. Porém, estes também envolviam medidas previstas por lei: ''Art. 94 e) o casamento entre doentes de lepra internados só será realizado com assentimento da administração dos estabelecimentos, que atenderá, salvo casos especiais, à sua oportunidade em relação ao estado da evolução da doença e à capacidade da secção destinada à habitação dos casados''.13 13 Decreto 7.558, de 11 de novembro de 1938. Regulamenta o tratamento dos doentes dentro dos leprosários. Rio de Janeiro, Governo Federal, 1938.
Os casamentos multiplicaram-se e, conseqüentemente, os casais passaram a desejar filhos. Aparentemente, nenhuma medida legal buscou impedir a concepção de crianças. Contudo, seguindo modelos já implantados em outras instituições similares no país, a direção incluiu no Regulamento Interno qual seria a atitude diante do nascimento de filhos dos casais internados:
f) os filhos de doente de lepra, logo após o nascimento, embora um só dos progenitores seja doente, serão separados e mantidos até a adolescência, quer em vigilância em domicílio, quer em preventórios especiais que, quando localizados na área do estabelecimento, ficarão anexos à zona de habitação das pessoas sãs, não podendo em caso algum ser nutridos no seio de uma ama nem amamentados pela própria mãe, se esta estiver doente de lepra.14 14 Decreto 7.558, de 11 de novembro de 1938.
Assim, os filhos destes pacientes eram encaminhados ao Amparo Santa Cruz, construído em julho de 1940, no bairro Belém Velho, em Porto Alegre, no local onde a Sociedade Beneficente havia adquirido um terreno antes da fundação da colônia. Essa medida visava evitar o contágio da doença, que, acreditava-se, ocorreria a partir do convívio entre pais infectados e filhos nascidos sadios. Não foram poucas as conseqüências sobre a estruturação familiar destes pacientes. A administração do Amparo estava a cargo das irmãs franciscanas. Dessa maneira, a influência das irmãs franciscanas estendia-se para além da colônia. Participando ativamente da regulamentação da vida social e moral dos pacientes, possuíam também influência direta sobre a formação das crianças nascidas no hospital. Não havia um regulamento estrito sobre o regime de visitas que as crianças fariam aos seus pais. Estas dependiam mais da boa vontade das irmãs do que do exercício de um direito legítimo de pais e filhos. E, mesmo quando ocorriam as visitas, estas davam-se sem contato físico, respeitando os limites impostos entre as áreas 'sadia' e 'doente'. Os desdobramentos desta situação de afastamento forçado foram muitos. A formação escolar foi incompleta em muitos casos. A idade limite para a permanência no Amparo não foi seguida com rigor, da mesma forma que o destino das crianças após o final dos estudos dependia das possibilidades de familiares não internados assumirem a sua guarda. Com o relaxamento das medidas de isolamento ocorrido ao longo dos anos 1960 e 1970, alguns adolescentes puderam retornar ao convívio com os pais, passando a residir com estes no hospital. O afastamento, a perda de vínculo e a falta de perspectivas futuras marcaram sobremaneira as relações familiares, deixando seqüelas emocionais tanto nos pais quanto nos filhos.
Para aquelas crianças que foram aceitas como pacientes internados desde o princípio do funcionamento do hospital, a situação não era menos desfavorável. Muitas delas foram levadas para o isolamento sem a companhia de pais ou irmãos. E mesmo algumas, cujos pais se encontravam também internados, foram afastadas destes por meio de medidas internas. As meninas foram reunidas no chamado Grupo Santa Inês e eram orientadas por uma irmã franciscana. Em junho de 1943, finalizaram-se as obras de três novos pavilhões. Um deles foi destinado para funcionar como internato para meninas. Ali, residiam juntamente com a irmã franciscana. Suas atividades limitavam-se ao aprendizado de tarefas como bordado, crochê, costura, além das atividades domésticas como lavar e passar roupas e limpar os quartos. Não havia ensino regular. A instrução era básica, restringindo-se à alfabetização, à matemática rudimentar e, logicamente, à catequese.
Os meninos viviam uma realidade similar. Integravam o Grupo São Luís e também lhes foi destinado um pavilhão de internamento. Inicialmente, sua instrução esteve a cargo de um interno que havia exercido a profissão de professor. Mais tarde, assumiu esta função um irmão franciscano. Assim como as meninas, distribuíam seu tempo entre o ensino básico e as tarefas manuais. Praticavam esportes e chegaram a possuir uma chácara própria para desenvolver técnicas agrícolas. Após a inauguração do hospital, em uma data que não foi ainda possível precisar, foi construído um prédio para funcionar especificamente como escola para os meninos, porém isto não modificou a forma de instrução ministrada. A falta de preocupação com a formação escolar integral destas crianças demonstra que o estado não contava com a possibilidade de altas. Não havendo a possibilidade concreta de um retorno à sociedade, tampouco seria necessária uma vida escolar regular. Não foram poucos aqueles que sofreram as conseqüências da falta de estudos quando, já adultos, deixaram o hospital.
Com o avanço no tratamento da doença e a diminuição da incidência desta no Rio Grande do Sul, no final da década de 1950, não se fazia mais necessário o internamento compulsório, o qual foi abolido por lei em 1954. As altas tornaram-se freqüentes. Nesta nova conjuntura, os pacientes com alta poderiam retornar aos seus locais de origem. Como resultado, a população de pacientes do hospital sofreu uma queda de mais de 50%, passando de setecentos para 340 em 1960.
Muitos pacientes saíram do hospital buscando retomar suas vidas. O preconceito em relação à doença, porém, estava presente na família, entre amigos e, sobretudo, no que diz respeito à busca por atividades profissionais. A mudança de nome foi uma das saídas encontradas por alguns pacientes para burlar o preconceito. Outros optaram por fixar residência em cidades onde não eram conhecidos. Para permanecer em tratamento fora da instituição, o paciente deveria realizar visitas periódicas aos postos de saúde, onde receberiam medicamentos. Nestes locais poderia ocorrer o encontro entre dois ex-internos, o que provocava o silêncio de ambos, impedindo assim seu reconhecimento por parte dos demais. Várias foram as formas procuradas na tentativa de apagar a mácula de ex-paciente do leprosário. Sem a possibilidade de sobrevivência econômica ou pelo simples repúdio gerado pelo estigma, muitos acabaram retornando para a colônia, e junto com aqueles que nunca saíram, a transformaram em sua moradia.
A diminuição do número de pacientes gerou uma área ociosa dentro do hospital, fazendo com que o estado buscasse uma nova utilidade para o espaço. Em 1972, em resposta a um diferente discurso psiquiátrico que visava reabilitar o doente mental através do trabalho, e também em virtude da superlotação do Hospital Psiquiátrico São Pedro, inaugurou-se o Centro Agrícola de Reabilitação (CAR). Este projeto constituiu uma proposta de tratamento psiquiátrico que levava em conta a reabilitação do paciente, inserindo-o em uma forma diferenciada de internamento. Para a sua realização, foram escolhidos entre os internos do Hospital São Pedro pacientes que se enquadrassem em determinados pré-requisitos, tais como pertencerem ao sexo masculino, com idade entre 18 e 45 anos, preferencialmente de origem rural. Esta última condição contemplava a proposta de reabilitação através da laborterapia aplicada em atividades agrícolas. Aos poucos, dezenas de pacientes portadores de sofrimento psíquico internos do Hospital São Pedro foram transferidos para o HCI, reforçando o caráter asilar arraigado da colônia.
A constituição do CAR provocou uma reorganização interna na comunidade hanseniana. O espaço físico foi reordenado. Pavilhões desativados passaram a abrigar os novos pacientes e uma cerca foi instalada, separando pacientes hansenianos e pacientes psiquiátricos. Os antigos moradores inicialmente negaram-se a aceitar a idéia de dividir seu espaço. O CAR funcionava como um hospital separado da instituição que o abrigava. A cerca servia para delimitar seu espaço, e para impedir que os pacientes circulassem livremente. A cerca não foi suficiente para evitar a integração entre os pacientes. Os contatos tornaram-se freqüentes, fosse através de uma bagana de cigarro recolhida do chão, fosse através de buracos na cerca os quais possibilitavam que os excluídos interagissem. Mas foi necessária mais de uma década para que a cerca fosse removida. O trabalho desenvolvido pelos pacientes do CAR acabou contribuindo para o abastecimento geral do hospital. A horta cultivada por eles fornecia verduras e legumes para a cozinha, complementando a carne derivada da criação de bovinos e suínos.
Com o passar dos anos, o CAR demonstrou suas limitações. Apesar de certos resultados positivos, com altas por reabilitação, estes não foram suficientes para dar ânimo à continuidade do projeto. Aos poucos, as práticas essencialmente laborativas foram sendo abandonadas. Com o fim das transferências do Hospital São Pedro, os pacientes que permaneceram foram gradativamente afastando-se do trabalho. Passados trinta anos do início do projeto, muitos são idosos, incapacitados para atividades que demandem esforço físico. Dessa forma, portadores de sofrimento psíquico, juntamente com os antigos moradores deste espaço de isolamento, os hansenianos, tornaram-se usuários/moradores da instituição. No final da década de 1990, o CAR passou definitivamente a integrar o organograma do Hospital Colônia Itapuã, perdendo os poucos vínculos institucionais que ainda mantinha com o Hospital Psiquiátrico São Pedro. Foi então criada a Unidade de Internamento Psiquiátrico (UIP), que funciona atualmente como uma unidade do hospital.
Hoje em dia vivem no Hospital Colônia Itapuã aproximadamente duzentos moradores/usuários, um número relativamente pequeno comparado com as centenas de pessoas que, no decorrer de sua trajetória, moraram e/ou transitaram pelo local. Estes moradores são considerados prioridade, e a assistência que recebem não se restringe à moradia e ao tratamento: envolve uma política de atenção integral à saúde que permita o resgate da cidadania e o retorno ao convívio social. Esta perspectiva que busca integrar as pessoas atingidas pela hanseníase ou pelo sofrimento psíquico passa pela recuperação de seu lugar na história, agora vistos como agentes, para além das classificações diagnósticas as quais estiveram sujeitos por tanto tempo. É, portanto, neste contexto que se destaca a iniciativa da direção desta entidade de constituir o Centro de Documentação e Pesquisa do Hospital Colônia Itapuã (Cedope/HCI).
A criação do Centro de Documentação e Pesquisa
A criação do Cedope/HCI, instituído oficialmente em 22 de novembro de 1999, efetivou-se a partir da implantação do Centro Estadual de Informação e Documentação em Saúde do Rio Grande do Sul (Ceids/RS), implementado pela Escola de Saúde Pública (ESP/RS).15 15 O projeto Centro Estadual de Informação e Documentação em Saúde do Rio Grande do Sul (Ceids/RS) teve início em 1999 na Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul. Seu detalhamento pode ser visto em Silva (2000). Surgiu entre as ações inseridas numa política da Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul _ (SES/RS), de recuperar, preservar e (re)construir a memória da saúde pública do estado, e, especialmente, a dos hospitais e instituições de ensino e pesquisas que gerencia (Silva, 2000, pp. 99-116). Sendo assim, as atribuições do Cedope/HCI foram definidas como:
...recolher, guardar, conservar preservar, pesquisar e disseminar as informações e a documentação produzida pelo hospital, bem como os documentos privados de interesse público, sob sua guarda, garantindo acesso público às informações neles contidos, com o objetivo de apoiar o HCI e as instâncias dos poderes públicos estaduais nas suas decisões político-administrativas e incentivar pesquisas relacionadas à saúde pública e ao desenvolvimento regional.16 16 Portaria 20/99 _ HCI, 22 de novembro de 1999.
O Cedope/HCI, além de propiciar a realização de diversas pesquisas sobre o hospital, contribuindo para um melhor entendimento da instituição através da problematização de diferentes temáticas _ os discursos e as práticas médicas, os tipos de tratamento, as representações da hanseníase e da doença mental, as mudanças administrativas, as experiências cotidianas, entre outras _ possibilitará, também, desvendar diferentes aspectos da história da saúde pública e a sua influência em várias políticas adotadas pelo estado do Rio Grande do Sul. Tais políticas subsidiarão as discussões referentes aos novos rumos do HCI, contribuindo, assim, para uma nova organização da gestão pública.17 17 Devido à elevada faixa etária dos moradores/usuários do HCI, estima-se que esta instituição exercerá a função de tratamento e moradia por aproximadamente mais vinte anos. Frente a este contexto, estão sendo realizados estudos para definir utilizações do espaço físico do HCI.
Cabe observar, entretanto, que, para implantar efetivamente o Cedope/HCI foram realizadas diversas ações de sensibilização sobre a importância da preservação e (re)construção da memória da instituição, entre elas, a salvaguarda e o gerenciamento da documentação e a pesquisa histórica.18 18 Cedope/HCI. Relatório de Gestão, Itapuã/Viamão, 31 de março de 2001. Todas essas ações foram permeadas por uma prática cotidiana, por meio de uma maior proximidade dos profissionais do Cedope/HCI com os moradores/usuários e funcionários da instituição. Contatos diários que, aos poucos, foram construindo laços de confiança e cumplicidade, facilitando, assim, não só a localização dos documentos que se encontravam espalhados pelo hospital, mas principalmente, a doação dos documentos que estavam mantidos sob a guarda particular de muitas pessoas.
O acervo do Cedope/HCI
O acervo do Cedope/HCI é constituído principalmente pela documentação textual produzida na instituição, tanto aquela relacionada com os trâmites administrativos, como aquela produzida pelos capelães e irmãs franciscanas e pelos próprios internos; documentação iconográfica constituída de fotografias, croquis e plantas arquitetônicas; documentação bibliográfica formada por obras reunidas pela biblioteca das irmãs franciscanas e outras publicações recebidas pela instituição ao longo das últimas seis décadas; e os depoimentos recolhidos durante a execução do projeto de história oral desenvolvido pelo Cedope/HCI a partir do ano 2000.
A documentação textual
Ao longo de sua história, a instituição gerou uma grande quantidade de documentos oficiais que faziam parte da tramitação de diretrizes, normas internas, atividades profissionais etc. Esta massa documental está sendo organizada segundo sua origem e função dos documentos nela constantes. Os critérios para a guarda em caráter permanente são definidos a partir da análise do valor histórico e informacional realizada por uma Comissão de Avaliação e Descarte, constituída por funcionários da instituição. Além disso, os documentos produzidos pelos religiosos que atuaram no hospital foram resgatados e constituem crônicas, livros de tombo da capelania, diários etc. O acervo permanente possui aproximadamente dois mil documentos já catalogados, de acordo com o quadro de arranjo, em fundos e coleções e mais uma quantidade expressiva que está sendo processada para ser inserida no acervo. Este trabalho é realizado em parceria com o Arquivo Público do Rio Grande do Sul (APRGS), cuja equipe presta consultoria e assessoria.
O acervo bibliográfico
O acervo do Cedope/HCI possui também livros e periódicos pertencentes à antiga biblioteca do hospital, que esteve a cargo das irmãs franciscanas até o inicio da década de 1990, e constituem uma valiosa coleção de referência específica sobre o tratamento e a história da hanseníase. Destacam-se também algumas publicações do Serviço Nacional da Lepra (SNL); da Coleção Terapêutica Clínica da Argentina; e dos Arquivos do extinto Departamento Estadual de Saúde (DES).
O acervo iconográfico
A parceria e a cumplicidade dos moradores, como já mencionado, foi extremamente enriquecedora para a construção da memória da instituição e para a consolidação do Cedope/HCI. Possivelmente, o exemplo mais significativo desta relação, e na expectativa de dar visibilidade às suas histórias, foi a experiência de identificação de fotografias realizadas pelos pacientes, através do projeto a Hora do Conto,19 19 Cedope/HCI. Relatório de Gestão, Itapuã/Viamão, 31 de março de 2001. desenvolvido pelo Cedope/HCI e pelo Setor de Recreação do hospital. Nestes encontros, os moradores/usuários identificavam as fotografias pertencentes ao acervo, e narravam suas experiências cotidianas no HCI, que muito contribuíram para delinear uma história da instituição.
O acervo iconográfico do Cedope/HCI possui cerca de setecentas fotografias catalogadas e acondicionadas. Ele está sendo organizado por fundo e por coleções pessoais (conjunto de fotografias doadas por moradores/usuários e funcionários). Entre os conjuntos mais relevantes destacam-se aqueles relativos às atividades do cotidiano, como casamentos, bailes, procissões, esportes, bem como imagens de estruturas arquitetônicas, como o pavilhão de diversões, os templos, os pavilhões de moradia etc. As imagens cobrem, com algumas lacunas, desde os anos 1940 até os dias de hoje. Tem-se buscado um acondicionamento que leve em consideração cartões de papel com PH neutro e climatizadores de ambiente. Fichas individuais estão sendo produzidas para cada uma das imagens, objetivando a implantação de um banco de dados informatizado através da digitalização das fotografias. Também está sendo feito o registro fotográfico de todas as atividades desenvolvidas pelo HCI.
O acervo de depoimentos orais
Há, todavia, uma memória que não se encontra nos documentos escritos e nos registros fotográficos. São muitas as experiências que revelam diferentes histórias de vida, múltiplos olhares e representações do hospital presentes na lembrança daqueles que por lá passaram, ou ainda residem no lugar. Frente a esta perspectiva, efetivou-se a criação de um acervo de história oral, a partir da realização de entrevistas com os moradores/usuários, antigos médicos e funcionários, e as irmãs da Congregação Franciscana que trabalharam no HCI. Atualmente, o acervo do Cedope/HCI possui trinta entrevistas. As entrevistas encontram-se registradas em fitas magnéticas que são rebobinadas a cada seis meses como forma de prevenção quanto à ação de fungos. Foram todas transcritas, e 19 delas já tiveram seu uso para pesquisas autorizado pelos entrevistados.
Em síntese deve-se registrar que, embora o Cedope/HCI possua apenas três anos de existência, já se consolidou como um espaço importante para a preservação da memória da saúde pública do Rio Grande do Sul, especialmente do HCI. A diversidade e a riqueza de sua documentação permitem traduzir diferentes histórias de vida que se cruzam e convivem neste universo multiforme e polifônico. Um universo onde aparentemente as histórias são as mesmas, de esquecimento e exclusão, mas, se observado atentamente, demonstra quanto as diferentes experiências o tornam um espaço repleto de pluralidades. Elas se encontram em cada recôndito, na organização da instituição, na definição dos espaços, nas relações de sociabilidade, que podem ser reveladas através dos documentos existentes no Cedope/HCI.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Mar 2004 -
Data do Fascículo
2003