Resumos
Destacam-se alguns aspectos da hanseníase e da política de saúde para os hansenianos do Maranhão, na década de 1930. O equacionamento da doença no estado seguiu o compasso imposto pelas políticas nacionais de saúde centralizadoras, desenvolvidas no período varguista: mais vigilância sanitária sobre os portadores da moléstia e a construção de colônia de isolamento compulsório para doentes contagiantes caracterizaram sobremaneira a década no que tange à profilaxia da então chamada lepra. Achilles Lisboa foi o médico que melhor traduziu esse período, e seus discursos são aqui destacados, pois contribuíram para moldar com agressividade as políticas públicas de exclusão direcionadas aos hansenianos maranhenses.
hanseníase; política de saúde pública; Maranhão; história da saúde pública; lepra
Some aspects of Hansen's disease and the health policy for those having it in Maranhão in the 1930s are pointed out. The resolution of the disease in that state followed the precept imposed by the centralizing national health policies developed in the Vargas period: greater sanitary vigilance of those having the disease and the construction of a compulsory isolation colony for the contagiously ill largely characterized the decade regarding the prophylaxis of what was then called leprosy. The discourses of Achilles Lisboa, the doctor who best expressed this period, are highlighted here, since they contributed to aggressively mold the public policies of exclusion directed to those having Hansen's disease in Maranhão.
Hansen's disease; public health policy; Maranhão; history of public health; leprosy
ANÁLISE
A hanseníase no Maranhão na década de 1930: rumo à Colônia do Bonfim
Hansen's disease in Maranhão in the 1930s: on the way to Colônia do Bonfim
José Augusto Leandro
Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Praça Santos Andrade, n.1. 84010-919 - Ponta Grossa - PR - Brasil. jleandroprof@yahoo.com.br
RESUMO
Destacam-se alguns aspectos da hanseníase e da política de saúde para os hansenianos do Maranhão, na década de 1930. O equacionamento da doença no estado seguiu o compasso imposto pelas políticas nacionais de saúde centralizadoras, desenvolvidas no período varguista: mais vigilância sanitária sobre os portadores da moléstia e a construção de colônia de isolamento compulsório para doentes contagiantes caracterizaram sobremaneira a década no que tange à profilaxia da então chamada lepra. Achilles Lisboa foi o médico que melhor traduziu esse período, e seus discursos são aqui destacados, pois contribuíram para moldar com agressividade as políticas públicas de exclusão direcionadas aos hansenianos maranhenses.
Palavras-chave: hanseníase; política de saúde pública; Maranhão; história da saúde pública; lepra.
ABSTRACT
Some aspects of Hansen's disease and the health policy for those having it in Maranhão in the 1930s are pointed out. The resolution of the disease in that state followed the precept imposed by the centralizing national health policies developed in the Vargas period: greater sanitary vigilance of those having the disease and the construction of a compulsory isolation colony for the contagiously ill largely characterized the decade regarding the prophylaxis of what was then called leprosy. The discourses of Achilles Lisboa, the doctor who best expressed this period, are highlighted here, since they contributed to aggressively mold the public policies of exclusion directed to those having Hansen's disease in Maranhão.
Keywords: Hansen's disease; public health policy; Maranhão; history of public health; leprosy
Notas sobre a ocorrência de hanseníase no Maranhão datam do período colonial (Meireles, 1994, p.207). Tudo indica, no entanto, que só a partir do final do século XIX, no alvorecer da República, a doença despertou maior interesse da comunidade médica maranhense, que passou a registrá-la sistematicamente em diversas partes do estado. Nina Rodrigues, por exemplo, em 1886 publicou folheto intitulado "A lepra em Anajatuba" (sua cidade natal), no qual apontava a existência de 42 'morféticos' na localidade (Souza-Araújo, 1956, p.223).
Em 1918, a frequência da doença no Maranhão foi estimada pelo doutor Marcellino Rodrigues Machado como maior nas zonas da baixada maranhense, compreendida pelos rios Itapecuru e Turiaçu. Registrou o esculápio que se destacavam com "intensidade dessa terrível moléstia" as cidades de Monção com 15 morféticos, Penalva com 13, Viana com dez, Anajatuba com quarenta, São Vicente e São Bento com cinquenta e Pinheiro com 14. Além dessas, o doutor Marcellino apontou 49 casos na capital, São Luís, 24 em São Luís Gonzaga (centro do estado) e cem em Caxias, a segunda cidade mais populosa do Maranhão e, de acordo com ele, "foco intenso" da doença. O médico estimava o total de quinhentos hansenianos no estado (Souza-Araújo, 1956, p.223).
Menos de dez anos após o estudo de Marcellino Rodrigues Machado, outro médico, Amaral Mattos, abordava o assunto de maneira bastante pessimista. Seu artigo "O problema da lepra no Maranhão (contribuição para seu estudo)", publicado em 1926, estimou nada menos do que 1.300 doentes em todo o estado, o que equivaleria, segundo seus registros, a um doente para menos de mil habitantes (Souza-Araújo, 1956, p.556).
Fato a destacar é que nesse período no Maranhão, assim como em várias partes do Brasil, inexistiam políticas públicas sistemáticas para o controle da hanseníase. Além de ser doença sem cura, a existência de poucas instituições apropriadas para doentes no início da República, assim como no período colonial e no Império, aliás, fazia com que os portadores do mal-de-lázaro pertencentes às camadas mais pobres da população se tornassem, muitas vezes, andarilhos de beira de estrada e, nas cidades, sujeitos a rejeições e preconceitos (Miranda, 2004, p.423s). Só em algumas poucas localidades brasileiras existiam hospitais de caridade específicos para os portadores da moléstia, como o Hospital dos Lázaros do Rio de Janeiro, por exemplo, de responsabilidade da Irmandade da Candelária. Como lembra Ornellas (1997, p.74), "os hospitais de lázaros, antes que hospitais, eram asilos, base do combate ao leproso no período colonial que, respaldados por medidas policiais, atendiam, a título humanitário, as necessidades mais prementes dos leprosos". Segundo a autora, até as primeiras décadas do século XX foram fundados asilos em vários estados brasileiros que serviam para abrigar portadores de lepra, mas ainda muito se distanciavam de instituições para tratamento (p.77).
Os doentes mais bem posicionados na hierarquia social não iam para os asilos, pois contavam com a discrição de seus médicos para não tornar público o diagnóstico, e sofriam no âmbito privado familiar a evolução da doença. Ilustra essa situação a correspondência entre o médico Adolpho Lutz e os maranhenses Fabrício Caldas de Oliveira e Numa Pires de Oliveira - pai e filho, respectivamente, sendo o último portador de hanseníase desde a infância. Analisando o conteúdo das cartas expedidas entre 1909 e 1929, Benchimol et al. (2003, p.363) destacam que seu teor girou, muitas vezes, em torno do "tratamento com o óleo de chalmugra, o único terapêutico com algum grau de eficácia em meio ao montão de quimioterápicos, drogas e mezinhas de origem animal e vegetal que vieram sendo e eram ainda oferecidos aos leprosos, com resultados quase sempre frustrantes".
Se a hanseníase seguia esquecida pelas políticas públicas maranhenses nas primeiras décadas do século XX, vale destacar que ações de saúde pública direcionadas a outras doenças vinham sendo implementadas desde o início da República. A criação de serviços públicos para o combate às diversas epidemias que assolavam o estado foi característica do período e, entre as moléstias reinantes, a varíola, a febre amarela e a peste bubônica destacavam-se. Forte epidemia de bubônica no final de 1903, por exemplo, foi responsável pela visita a São Luís, em 1904, de uma missão sanitária do governo federal chefiada pelo doutor Vitor Godinho, pois era altamente temida a possibilidade de a doença espalhar-se para além das fronteiras do Maranhão. Em julho do mesmo ano o governo criou o Serviço Extraordinário de Higiene e intensificou a vacinação e o combate a pulgas e ratos (Meireles, 1994, p.187). À extinção desse serviço seguiu-se a criação de outros órgãos burocráticos no interior do aparelho do estado maranhense, dedicados às questões de saúde e saneamento ao longo da primeira década do século XX.
No final da década de 1910 a saúde pública no Maranhão tornou-se mais orgânica. Para isso o papel do governo de Urbano Santos (1918-1922) foi determinante, pois pouco antes de assumir o poder no estado o jurista havia sido vice-presidente do Brasil (na gestão Wenceslau Brás, 1914-1918), o que facilitaria articulações do Maranhão com o governo federal em questões de saúde pública. No governo Urbano Santos foi criado o Serviço de Profilaxia Rural, e o estado firmou alguns convênios com a Fundação Rockefeller para combate ao impaludismo e a outras doenças tropicais (Fernandes, 2003, p.94-95, 104); em 20 de maio de 1919 foi inaugurado em São Luís o Instituto Oswaldo Cruz, com a incumbência do preparo de soros e vacinas, tendo como seu primeiro diretor o doutor Cássio Miranda, médico bacteriologista especializado em Manguinhos (Meireles, 1994, p.187). No correr da década de 1920 a ênfase dos governantes em relação à saúde pública recaiu em programas de saneamento. Tanto Godofredo Mendes (1922-1926) quanto o capitão José Maria Magalhães de Almeida (1926-1930), representantes do Executivo estadual, deram destaque, quando de suas passagens pelo poder, a implantação e melhoramentos dos serviços de distribuição de água e coleta de esgoto, sobretudo na capital.
A despeito dos vários esforços da saúde pública em constituir-se como campo burocrático mais bem acabado durante a Primeira República, e ainda que se tenha expandido "a capacidade reguladora da União sobre o campo da saúde ... de maneira considerável, especialmente na década de 1920" (Hochman, 1993, p.41), o controle mais sistemático da chamada lepra ficou restrito nesse período a algumas cidades do Sudeste. No Maranhão o controle do mal-de-lázaro, apesar de fazer parte do cardápio de preocupações de alguns médicos, ficou à mercê da filantropia e de algumas atitudes pontuais, nem sempre bem-sucedidas, das autoridades sanitárias locais. O governo estadual, por exemplo, não conseguiu concluir a construção de um hospital para os maranhenses portadores da doença. Estes encontravam abrigo somente no precário Gavião, espaço asilar existente em São Luís desde a década de 1870 (Maranhão, 1939, p.55).
Gavião, o purgatório dos lázaros
A visibilidade dos portadores de hanseníase era registrada continuamente, já na década de 1920, pela imprensa maranhense, sobretudo a da capital, em artigos variados. A Folha do Povo, um dos principais jornais editados em São Luís, por exemplo, publicou inúmeras matérias sobre o 'purgatório dos lázaros', ora apelando para a piedade da sociedade, ora tomando os doentes como responsáveis pela disseminação da doença na capital. O purgatório a que se referia o jornal tinha nome: Hospital do Gavião ou Asilo do Gavião, espaço que demarcava o limite do perímetro urbano de São Luís pelo lado sul. O asilo, cujo terreno pertencia à Santa Casa de Misericórdia, confrontava na parte posterior com o Cemitério do Gavião e ficava próximo ao matadouro municipal. Ali se concentravam centenas de doentes de hanseníase que, impedidos pelas autoridades policiais de circular pelas ruas da capital, ficavam à mercê da caridade pública.
Em 1923 a Folha do Povo (n.59, p.2) informou que a carne fornecida pelas autoridades ao Gavião estaria chegando em estado de putrefação, fato que causara grande revolta entre os habitantes do asilo. Ainda nesse ano, o mesmo periódico (n.66, p.1) denunciava às autoridades públicas, em tom alarmista, que a criação clandestina de animais na zona do Gavião "propagaria a moléstia por toda a cidade".
Por conta dos apelos da imprensa em relação aos problemas suscitados pelo Gavião, na década de 1920 uma série de tentativas de se levar a cabo um novo hospital, a Leprosaria S. Luiz, foi colocada em prática. A falta de verbas, porém, impediu que a construção se concluísse. Ao iniciar-se a década de 1930, portanto, para os hansenianos dos segmentos sociais mais pobres só havia na capital do Maranhão um asilo, o popularmente chamado Gavião. Segundo o interventor Antonio Martins de Almeida tratava-se um depósito onde os doentes apodreciam paulatinamente, e, na iminência de os casebres ruírem às primeiras chuvas ou ventos, perigo imediato para a população sã da cidade, estava na ordem do dia, pois uma invasão de doentes no perímetro urbano poderia logo ocorrer (Maranhão, 1933, p.54). Outro interventor, alguns anos depois, registrou em relatório a opinião do eminente leprologista Souza-Araújo em visita ao Gavião: "Como asilo de leprosos é uma das piores coisas que já vi no mundo! É sórdido e tétrico o ambiente. Ali reinam a miséria, a indisciplina, o vício!" (Maranhão, 1939, p.55).
A década de 1930: rumo ao isolamento compulsório
Em 1933 o interventor federal, capitão Antonio Martins de Almeida, em exposição apresentada a Getúlio Vargas, informou que "em cálculo moderado" podia-se avaliar em três mil o número de leprosos no estado, sendo 584 recenseados apenas na capital (Maranhão, 1933, p.54). Talvez as estimativas do interventor tenham sido exageradas. Souza-Araújo (1936, p. 157), em seus dados sobre as organizações de combate à hanseníase existentes no Brasil até 1936, apresentou números bem inferiores para o Maranhão nos anos de 1933 e 1936: 1.500 e 1.700 casos, respectivamente.
Na década de 1930 o debate sobre a hanseníase teve na figura de Achilles Lisboa o principal articulador de discursos 'científicos' e 'pedagógicos' para o combate da doença no Maranhão. Formado em farmácia, na Bahia, e em medicina, no Rio de Janeiro, ele atuou na saúde pública do estado de diversas formas, tendo chegado a ocupar os cargos de prefeito de sua cidade natal, Cururupu, e de governador do estado de julho de 1935 a junho de 19361 1 A passagem do doutor Achilles pelo cargo de governador do Maranhão foi atribulada. Segundo Meireles (1994), ele foi nomeado em 1936 pelo fato de ser respeitado como médico e cientista e porque seria isento das paixões políticas que dominavam a cena naquele momento. Uma vez no poder, Achilles Lisboa teria desagradado a situação e a oposição porque não distribuiu os cargos existentes no estado, de acordo com os anseios de ambos os lados políticos. Infelizmente, não foram encontrados relatórios de sua gestão. (AML, 1958, p.135). Sua inserção no campo médico do Maranhão tornou-se mais evidente em 1918, quando fundou um posto de assistência médica voltado para o atendimento dos ulcerados pertencentes aos baixos extratos da população de São Luís e que um ano mais tarde seria declarado de utilidade pública. Em 1922 o doutor Achilles foi um dos fundadores da primeira Escola de Farmácia do Maranhão, da qual foi diretor (Meireles, 1994, p.190). No final da década de 1920 o nome de Achilles Lisboa associou-se definitivamente à leprologia, com conferências e publicações oficiais sobre o tema.2 2 Achilles Lisboa realizou conferências também no Pará e no Amazonas. Em julho de 1928, por exemplo, fez em Belém a conferência "A lepra sob o ponto de vista da hereditariedade mórbida", tema comum de seus estudos (Lisboa, 1928). O médico apontava a raridade dos casos em que os bacilos de Hansen se faziam presentes nas placentas das parturientes leprosas. Assim, defendia a tese do contágio extrauterino. Para a 4ª Conferência Sul-Americana de Higiene, Microbiologia e Patologia, realizada em 1929 no Rio de Janeiro, o doutor Achilles enviou o trabalho "Lepra: noções atuais sobre sua etiopatogenia e epidemiologia", que reforçava seu posicionamento de que a lepra não era hereditária, bem como explicitava sua convicção da importância do isolamento dos doentes a partir do plano Municípios de Leprosos, de Belisario Penna. Posicionou-se ainda a favor da segregação imediata do nascimento de filhos de leprosos. Quanto ao isolamento domiciliar, ele defendia, deveria ser "rigorosamente fiscalizado" (Souza-Araújo, 1956, p.408-409). O esculápio tinha bom trânsito pelo governo federal e foi nomeado diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro para o período 1931-1933, época em que também integrou a Comissão Central Brasileira de Eugenia.3 3 A eugenia já estava presente no pensamento do doutor Aquiles no início da década de 1920, quando de uma publicação de sua autoria intitulada Considerações gerais sobre o problema biológico da seleção (Lisboa, 1921). Sua atuação de higienista, com ênfase depositada na educação sanitária, colocou-o, assim como a maioria dos médicos eugenistas do período, no interior da corrente neolamarquista.
Seu "Catecismo da defesa contra a lepra", publicado em 1936, propunha popularizar os conhecimentos sobre a doença e apontava para aquilo considerado, pelo autor, correto para o bom êxito da "profilaxia anti-leprosa". O panfleto, em sua "Explicação prévia", rogava aos professores públicos e comandantes de corpos militares que fizessem seus alunos e comandados lerem, uma vez por semana, os mandamentos do 'catecismo' (Lisboa, 1936, p.VII). Além de explanar a causa da lepra, suas formas de contágio, seus sintomas etc., o texto terminava com o 12º mandamento, o qual recomendava três preceitos básicos para as pessoas sãs evitarem o contágio: viver "uma vida sem desregramentos"; evitar "qualquer contato com leprosos infectantes (lavando perfeitamente as mãos com sabão antisséptico toda vez que neles tocar)"; e de modo algum "comerciar com os leprosos, visto o perigo de se transmitir o germe da moléstia pelo dinheiro como pelos objetos que tenham passado pelas mãos desses doentes" (p.7-8).
Além dos 12 mandamentos prescritos no catecismo, o médico ainda inseriu no panfleto duas sugestões aos poderes públicos, levando em consideração o fato de serem "patentes" os doentes de hanseníase ou em "estado de latência ou incubação":
A proibição rigorosa, imediata, pela polícia ou pela própria autoridade sanitária, de se misturarem à população os doentes de lepra declaradamente contagiante, vedando-se-lhes sobretudo a entrada nas igrejas, nas repartições públicas, nos bondes, nos cafés, nas casas comerciais, nos mercados, em toda parte, afinal, onde haja aglomeração de pessoas sãs e se exponham gêneros comestíveis ...
... para os em estado de latência ou incubação, nos quais a moléstia ainda não se exteriorizou por sinais evidentes mas pode já contagiar-se pela secreção, por exemplo, da mucosa nasal, o que se deve fazer é a instituição do exame médico obrigatório, nas escolas, nas repartições públicas, nos hotéis, nas oficinas, em todos os lugares, enfim, de aglomeração obrigatória, onde a existência de tais doentes sobe de gravidade por se lhes não poder adivinhar o perigo do contato nessa fase do seu mal (p. 15).
Em 1937, Achilles Lisboa retornou àquilo que considerava "o mais angustioso, o mais instante, o mais inadiável de todos os problemas nacionais", o mal de Hansen. A publicação de "Pela pátria, contra a lepra, o mais perigoso dos seus inimigos", trazia, na íntegra, uma conferência sua realizada naquele ano. No púlpito, Achilles Lisboa enfatizou para a platéia aspectos da contagiosidade da doença a partir de duas ilustrativas histórias ocorridas no Maranhão (note-se, porém, que em ambos os casos o 'mal' havia chegado do estado vizinho, o Pará):
Um distinto farmacêutico do Maranhão, amigo íntimo com quem muito tempo convivi, sem antecedentes leprosos na sua família ou nas suas relações, vem morar em Bragança, no Pará, onde toma para o seu filhinho último uma ama afetada de lepra latente. Revelada a moléstia desta, despede-a o farmacêutico, mas anos depois torna-se-lhe o filhinho leproso. Sem coragem para o isolar, foi por ele contaminado e assim mais duas filhas, irmãs mais velhas do primitivo doentinho. ...
Em 1908, relata o Dr. Sálvio de Mendonça, da Inspetoria da Lepra no Maranhão, não havia em Alcântara, antiga capital daquele estado, um só caso de mal lazarino. Foi a esse tempo ter ali o enfermeiro de um leproso abastado do Pará, que já se tinha contaminado, no exercício da sua ocupação, e, pelos recursos pecuniários que trazia como pelo seu trato jovial, conseguiu tornar-se figura obrigatória de todos os bailes e festas locais. Ao fim de cinco anos apresentou-se leproso um seu companheiro de folguedos e assim uma decaída com quem estabelecera relações. Mais dois anos decorridos, manifesta-se o mal num menino, vizinho do enfermeiro, com quem constantemente brincava. Mais outros dois anos, torna-se leprosa a mãe do menino e daí por diante um irmão mais velho e duas irmãs do mesmo. Propagou-se desde então a moléstia por toda a cidade que, em 1923, isto é, 15 anos depois, já contava 24 leprosos patentes (Lisboa, 1937, p.29-30).
Os discursos de Achilles Lisboa são particularmente importantes para o entendimento das políticas públicas em relação à lepra no Maranhão na década de 1930, porque ajudaram a disseminar na sociedade certo entendimento da propagação do mal pelo contágio. Suas falas traziam à platéia histórias cujas tramas eram tecidas nos múltiplos desdobramentos que levavam, inexoravelmente, à aquisição da doença. A moléstia, personagem oculta, quando identificada em alguém, acabaria contagiando, se não fossem tomadas medidas corretas, todos os membros da família ou mesmo propagando-se "por toda a cidade". Didáticas e assustadoras ao mesmo tempo, as histórias narradas por Achilles Lisboa atentaram os dirigentes locais sobre a necessidade pública e urgente de isolamento dos doentes contagiantes em colônias apartadas e distantes dos centros urbanos.
Sua 'palavra autorizada' e o conjunto de seus enunciados são aqui entendidos com base na noção de "discurso como prática ... em que falar é criar uma situação, é investir a fala como prática, entre outras práticas" (Araújo, 2004, p.217; Foucault, 1996). E, nesse sentido, as 'situações criadas' pela fala do doutor Achilles eram eivadas de imagens dramáticas. Sua eficácia discursiva pode ser depositada naquilo que Italo Tronca (2000, p.58) denominou clave do sublime, um recurso estilístico da narrativa sobre a doença que "visa sobretudo a potencializar a própria idéia de contágio", utilizando "a enormidade e a grandeza". Bom exemplo desse recurso estilístico do esculápio é uma passagem do seu Catecismo, em que, em tom de dramaticidade crescente, afirma: "Viver na mesma aldeia com um leproso infectante é perigoso; viver com ele na mesma casa, mais perigoso; viver no mesmo quarto, ainda mais perigoso; dormir com ele no mesmo leito, perigosíssimo!" (Lisboa, 1936, p.11).
Os escritos do médico também estavam afinados com a política nacional de saúde para os hansenianos, sobretudo a gerida a partir de 1935 com o Plano Nacional de Profilaxia da Lepra, aprovado pelo presidente Getúlio Vargas e cuja principal característica era o reforço da ideia de que a moradia dos hansenianos contagiantes, portadores das chamadas formas clínicas abertas, deveria ser apartada da sociedade sã, em colônias agrícolas. Nesse momento, as preocupações das elites dirigentes voltavam-se para as possibilidades de contaminação de uma mão-de-obra sadia, necessária para o bom êxito do mundo do trabalho. O movimento migratório, uma característica do período, também ajudou a tornar a hanseníase mais visível nos centros urbanos. São Luís, por exemplo, passou de 36.798 indivíduos recenseados em 1900 para 52.929 em 1920, 66.482 em 1935, e, em 1940, a população da capital foi calculada em 86.546 habitantes (Diário Oficial do Estado do Maranhão, 2 set. 1940, p.7).
Vale lembrar que a implementação de colônias agrícolas para os chamados leprosos já vinha ocorrendo desde 1924 (Souza-Araújo, 1924). Porém, como destaca Yara Monteiro (2003, p.97), foi a partir do período Vargas, especificamente entre 1931 e 1945, que tal política de exclusão tornou-se corrente, atingindo com maior abrangência o território nacional. Entre 1932 e 1937 o Maranhão viu o lançamento da pedra fundamental e a inauguração da Colônia do Bonfim.
O significado maior da implementação desses espaços para os hansenianos residia na necessidade de proteção da população sadia, passível de ser contaminada pelos doentes portadores de formas clínicas abertas, ou seja, contagiantes. Como bem observou Leila Gomide (1993, p.62),
A Colônia Agrícola, criada para isolar os doentes acometidos pela lepra, representava a instituição idealizada pelos agentes filantrópicos sob os auspícios da medicina, que fornecia os instrumentos e o respaldo da ciência para catalogar o doente, que deveria ser isolado. A criação do espaço dito terapêutico, propiciando a exclusão do leproso da sociedade, trazia em si algumas contradições inerentes à natureza do mal que não podia ser curado nas condições existentes, porém deveria ser amenizado para se evitar sua propagação.
Na mesma direção, Elisabeth Poorman (2006, p.75) afirma que, por trás da justificativa da política de exclusão dos doentes de hanseníase no período varguista, estava a necessidade primordial do progresso econômico e cultural do Brasil. E isso, na perspectiva dos dirigentes da política de saúde, só seria possível com a preservação de uma mão-de-obra sadia. A autora lembra ainda a associação estreita, à época, de política de saúde excludente e governo autoritário:
A ideia das colônias de leprosos era atraente a Vargas, em virtude da forte correlação existente entre a filosofia por trás desses espaços e sua ditadura. As pessoas que apoiavam tanto Vargas quanto as colônias acreditavam na necessidade de sacrificar a autonomia individual pelo bem comum. Quando o regime de Vargas se tornou mais opressivo, elas racionalizaram as políticas do período como necessárias para a melhoria da população.4 4 Tradução livre: " Leper colonies appealed to Vargas because of the strong ideological overlap between the philosophy behind them and his dictatorship. The people that supported both Vargas and the leper colonies, for one thing, believed in the need to sacrifice individual autonomy for the greater good. When Vargas's regime became more oppressive, they were able to rationalize his policies as necessary for the improvement of the masses".
A Colônia do Bonfim
Localizada em amplo espaço na chamada Ponta do Bonfim, suficientemente distante do centro de São Luís, a colônia dedicada apenas aos portadores do mal-de-lázaro teve suas obras iniciadas no segundo semestre de 1932. A construção serviria, no dizer das autoridades, para o preenchimento dos requisitos da "moderna profilaxia" voltada para o combate à doença. A área em que foi instalada a colônia já possuía vocação para abrigar parcelas de excluídos, pois, segundo informa Ana Maria Pinho, durante o século XVIII teria havido na região um albergue para prisioneiros atacados pelas 'bexigas' (varíola). No início do século XIX, a localidade serviu para a quarentena de escravos oriundos da Costa da África e ainda foi utilizada como cemitério de ingleses. De acordo com Pinho (2007), a Ponta do Bonfim "exatamente por ser um local bem afastado, tornou-se ideal para o isolamento de 'leprosos' como forma de afastá-los definitivamente do convívio social".
Um ano após o início da construção da Colônia, em 1933, o interventor do estado, capitão Antonio Martins de Almeida, já clamava por mais recursos financeiros em exposição dirigida a Getúlio Vargas: "É necessário, pelo menos, que venham recursos para a terminação das obras, já em estado de adiantamento. E deverá ser cuidado, também, da continuação desses trabalhos, afim de que o Estado possa, em tempo breve, ter isolado os seus 584 doentes recenseados. Para isso é absolutamente indispensável o auxílio do Governo Federal, com uma doação não inferior a 400 contos" (Maranhão, 1933, p.55). Ainda na mesma exposição, o interventor sugeria que o governo federal contribuísse com mais trezentos contos para duas outras colônias a serem instaladas no interior do estado, uma na cidade de Caxias e outra em Anajatuba (p.56).5 5 Sob a interventoria do capitão Antonio Martins de Almeida (1933-1935) o estado do Maranhão passou a reorganizar a estrutura administrativa da saúde, encampando serviços que antes pertenciam à Prefeitura, como a fiscalização de espaços destinados a gêneros alimentícios (matadouro e mercado público). A principal característica de seu governo, contudo, foi a expansão da interiorização dos serviços de saúde. Ainda que em seus relatórios o interventor criticasse o funcionamento dos postos regionais de saúde por não corresponderem aos fins a que se destinavam, a eles deu atenção especial, sobretudo pela necessidade de vacinação da população. Para tanto, as constantes epidemias de alastrim que dominavam o Maranhão, e que atingiram 17 municípios no ano 1934, foram preponderantes. Ainda durante sua gestão, o Bonfim teria sua infraestrutura básica implementada, bem como as primeiras casas erguidas. Além disso, o capitão Almeida enfatizou ações de polícia médica com fiscalizações de saúde constantes em estabelecimentos fabris e em instituições educacionais.
Seriam necessários mais quatro anos para que a primeira colônia de isolamento compulsório do Maranhão tivesse suas obras concluídas, e, vale lembrar, aquelas previstas para Caxias e Anajatuba não saíram do papel.
A demora na conclusão das obras do Bonfim fazia com que a imprensa continuamente publicasse matérias sobre o 'problema' dos lázaros de São Luís que viviam no Asilo do Gavião, situado nos fundos do cemitério. O jornal Tribuna do Norte registrou, em 1936, em mais de uma edição, o encontro de um de seus jornalistas com um grupo de doentes do Gavião que perambulavam, à noite, pelo centro da capital. O jornalista, diante do desespero dos "famintos" e "infelizes" hansenianos "fugitivos" do Gavião, a eles dirigiu as seguintes palavras: "Vocês erraram! A Colônia do Bonfim está a terminar. O governo está agindo. Vamos ter calma e coragem" (Tribuna do Norte, 20 out. 1936, p.1).
No dia 8 de outubro de 1937 realizou-se, finalmente, a cerimônia de entrega oficial da Colônia do Bonfim ao governo do estado, por parte do Ministério da Educação e Saúde. Na solenidade, o doutor Barros Barreto, diretor do Departamento Nacional de Saúde, discursou representando o ministro Gustavo Capanema. Destacou que, antes das iniciativas do governo Vargas, o Maranhão tinha grande deficiência na área de saúde pública e mais especialmente em relação à lepra, que era um dos maiores problemas do estado. Segundo Barros Barreto, a solidariedade da sociedade maranhense, no auxílio dado às famílias e aos filhos dos leprosos, tinha sido fundamental, porém a tarefa de levar a cabo a profilaxia da doença só poderia ser desenvolvida pelo poder central (Discurso..., 1937). O interventor Paulo Ramos também discursou. Além de agradecer a inestimável contribuição do governo federal para a concretização do Bonfim, lembrou aos presentes seu compromisso em resolver o problema do Asilo do Gavião. Assim, destacou, aquele momento "assaz lhe confortava o espírito, pois era assunto primordial do seu programa de governo amparar antes aqueles infelizes sepultados num cemitério de vivos que se limitava com o cemitério dos mortos" (Diário Oficial do Maranhão, 11 out. 1937, p.3).
Após a solenidade de 8 de outubro, outro evento foi marcado para o próximo dia 17, referente à inauguração da Colônia do Bonfim pelas autoridades estaduais. E, no dia seguinte, as festividades oficiais continuaram. O governador e demais autoridades, por volta das sete horas da manhã, rumaram novamente para o Bonfim e lá, após missa campal, inauguraram uma pequena escola para os internos. Na ocasião, o governador disse aos presentes "que, naquele momento, declarava criados, na Colônia, três cargos que seriam exercidos pelos próprios doentes: o de prefeito, o de chefe de polícia e o de professor da escola, percebendo os vencimentos mensais de 60$000 cada uma das pessoas em que, de acordo com a deliberação a ser tomada pelo doutor Rossas, recaísse a escolha" (Diário Oficial do Maranhão, 20 out. 1937, p.7).
Na mensagem apresentada pelo governador Paulo Ramos à Assembléia Legislativa, em 7 de setembro de 1937, o chefe do Executivo estadual explicitou os motivos de sua escolha pelo doutor Theodoro Rossas para o cargo de diretor do Bonfim:
Por sugestão do professor Eduardo Rabello, diretor do Instituto de Leprologia do Brasil e do professor Heraclides de Souza-Araujo, chefe da Seção de Leprologia do Instituto Oswaldo Cruz, de Manguinhos, ambos eminentes leprólogos, escolhi para dirigir o Leprosário do Bonfim o Dr. Thomas Pompeu Rossas, do quadro do Departamento Nacional de Saúde. Este médico é especializado no assunto e foi um dos primeiros classificados no curso de leprologia do Instituto ... (Maranhão, 1937, p.89-90).
O nomeado diretor da Colônia do Bonfim, doutor Thomaz Pompeu Rossas, explicitou, naquela ocasião, seu posicionamento quanto ao tratamento da hanseníase: "porque a patogenia do mal ainda é assaz obscura, a profilaxia racional distingue na lepra os casos abertos dos casos fechados, isto é, os de mais fácil dos de mais difícil ou nenhum contágio. Nos casos abertos exige o isolamento na casa do próprio doente ou no hospital; nos casos fechados, não: bastará o tratamento nos ambulatórios" (Diário Oficial do Maranhão, 20 out. 1937, p.3).
A partir de outubro de 1937, no espaço criado pelo governo federal e que também contava com o auxílio do governo estadual para seu funcionamento, eram administrados os hansenianos do Maranhão portadores de formas clínicas abertas que, uma vez em solo da colônia, deixavam suas relações sociais para trás, iniciando nova etapa de vida, sem saber se algum dia voltariam a desfrutar o convívio com parentes e amigos.
No Bonfim existiam vários grupos de moradias que formatavam uma microcidade com 72 casas. Segundo os dados oficiais, era possível abrigar ali trezentos doentes. Além das casas, havia na colônia uma enfermaria com quarenta leitos, cozinha, lavanderia a vapor e refeitório para atender a todos os pacientes. Ainda compunham a infraestrutura do Bonfim: um dispensário geral (com sala de operações, de curativos e farmácia), um posto para enfermeira de plantão, uma capela para doentes e uma casa de detenção (com duas celas). Um pouco além da área 'infectada', também pertencia à administração da Colônia um posto policial, uma residência de médico, uma residência de capelão e uma casa de administração, com acomodações para oito irmãs religiosas, com capela, almoxarifado, depósito etc. (Maranhão, 1935, p.68-69).
A disposição da infraestrutura do Bonfim seguiu o modelo da maioria das colônias para hansenianos já existentes no país. Distribuía-se em área não infectada e área infectada, esta última distanciada da primeira cerca de quinhentos metros e contando com um conjunto de 24 grupos de residências destinados a doentes solteiros, solteiras e casados. A Colônia do Bonfim não contou com pavilhões inspirados no modelo Carville (residências coletivas) que abrigavam (separadamente) homens e mulheres solteiros, construções comuns em colônias do Sul e do Sudeste do país. O conjunto de moradias era distribuído em 14 grupos de duas casas, dois grupos de três casas, cinco grupos de quatro casas e três grupos de seis casas, todas possuindo, segundo registrou o interventor capitão Antonio Martins de Almeida em sua exposição apresentada ao presidente Getúlio Vargas, o que preconizava a engenharia sanitária da época: esgoto, água potável e instalação elétrica; quanto à problemática dos resíduos das águas, a colônia contava com usina de depuração biológica que propiciava "a esterilização pelo cloro, antes de serem lançadas ao mar" (Maranhão, 1935, p.68-69).
O relatório governamental de 1939 informava: "O leprosário está racionalmente organizado, de modo a se poder desenvolver naturalmente, à medida que dispuser de novos elementos e de maiores recursos. Acha-se subordinado administrativamente à Secretaria Geral do Estado e em ligação técnica com a Diretoria de Saúde e Assistência. Mantém, igualmente, estreito contato com o Departamento Nacional de Saúde, do qual continua a receber valiosas contribuições" (Maranhão, 1939, p.56). Apontava, outrossim, o andamento da ampliação do espaço físico do Bonfim: "Encerrou-se o primeiro semestre deste ano com 135 internados, número que dentro de poucos meses poderá ser elevado a 400, pois já se acham bastante adiantadas as obras de ampliação do leprosário" (p.56).
Os discursos oficiais maranhenses elaborados desde meados da década de 1930 sempre destacaram a capacidade de abrigo da Colônia do Bonfim para vários hansenianos (de trezentos a quatrocentos internos). No entanto, entre outubro e dezembro de 1937, apenas o traslado dos hansenianos do Gavião mobilizou as autoridades sanitárias. O livro de registro de doentes encontrado no interior do Hospital Aquiles Lisboa6 6 O Hospital Aquiles Lisboa, inaugurado em 1990, situa-se no interior da antiga Colônia do Bonfim. Alguns poucos indivíduos remanescentes do período do isolamento compulsório ainda habitam os terrenos da antiga Colônia. Atualmente, todo o espaço é chamado de Hospital Aquiles Lisboa, local de referência no tratamento da hanseníase no Maranhão. indica, nesse período, a entrada de 131 hansenianos, número que incluía quase todos os doentes provenientes do antigo Gavião (125). Destes, a maior parte era natural de diversas cidades do Maranhão, mas alguns provinham do Piauí, Pará e Ceará. Nove anos após a sua inauguração, em dezembro de 1946, o Bonfim contava com 268 hansenianos internados compulsoriamente (Souza-Araújo, 1948).
Infelizmente é impossível esboçar o perfil dos pacientes internados no Bonfim. Seu livro de registro7 7 Trata-se de manuscrito que constitui uma espécie de livro de assento de doentes. Na primeira folha lê-se: "Serviço de Prophylaxia da Lepra no Maranhão. Colonia do Bonfim. Registro dos Doentes". Os registros (uma linha para cada doente, ocupando tanto o lado esquerdo como o direito do livro-de assento) trazem as seguintes variáveis: data, nome, sexo, cor, idade, naturalidade, filiação, estado civil, profissão, procedência, início da doença, investigação, regime sanitário, contágio, classificação (clínica, epidemiológica, administrativa), destino (localização, regime médico, atividade) e alta (condição, data, observações). Ao fazermos a crítica externa e interna do documento, chegamos à conclusão de que é documento precário e deve ser utilizado com cautela: além de fisicamente deteriorado em algumas partes, traz informações que não se referem apenas aos doentes isolados no Bonfim, como seu título sugere. Ali também estão registrados isolamentos domiciliares. Além disso, as anotações são bastante irregulares, e muitas variáveis nem sequer chegaram a ser registradas. Ao que tudo indica, o documento complementava as fichas dos pacientes (não encontradas). Após 1950 as anotações tornam-se cada vez mais escassas, e as informações praticamente deixam de ser registradas a partir do início da década de 1960. , além de precário do ponto de vista físico (deteriorado em algumas partes), deixou em branco muitas variáveis que ali deveriam ter sido anotadas e, das registradas, muitas o foram de maneira não sistemática. Além disso, apesar de o documento supostamente dever referir-se apenas aos hansenianos da Colônia do Bonfim, também mencionava portadores da doença que tiveram isolamento domiciliar, variável entretanto só anotada para alguns anos. Dessa forma, análises quantitativas e qualitativas tornam-se prejudicadas no que tange à caracterização do conjunto dos doentes maranhenses que viveram no interior da Colônia, apartados do mundo dos sãos. Ainda assim, a título de ilustração, extraímos desse documento algumas informações sobre três pacientes que viveram a experiência do isolamento compulsório no início das atividades da instituição.
O primeiro paciente registrado na condição de isolado compulsoriamente na Colônia do Bonfim, em 19 de outubro de 1937, foi A.E.J., proveniente do Gavião. Do sexo feminino, a interna foi registrada como de cor preta, nascida em 1879, natural da Ilha de São Luís, solteira, de profissão lavradora. A ela foi destinada moradia em uma casinha na avenida Getúlio Vargas, número 5, onde viveu até a data de sua morte, em 6 de dezembro de 1955.
O paciente com idade mais avançada a entrar na Colônia em seus anos iniciais foi M.L.L., do sexo feminino, nascida em 16 de outubro de 1864 e internada compulsoriamente no Bonfim em 13 de abril de 1940. Natural de Caxias (MA), tinha a doença desde 1921, era doméstica, viúva e foi registrada como branca. Pouco permaneceu na Colônia, pois faleceu exatamente oito meses após sua internação, em 13 de dezembro de 1940.
Entre os hansenianos que souberam declarar o tempo de convívio com a doença, F.C.H. disse, quando adentrou as portas do Bonfim, em 1938, que os sintomas do mal-de-lázaro já o acompanhavam havia quase cinquenta anos e manifestaram-se primeiramente por volta de seus 19 anos. Do sexo masculino, natural de São Bento (MA), nascido em 24 de abril de 1870, foi registrado como pardo, casado e comerciário de profissão. F.C.H. faleceu no Bonfim no mesmo ano em que ali ingressou.
Ainda pelo livro de registros é possível identificar que alguns doentes que tiveram decretado internamento compulsório na Colônia do Bonfim chegaram em levas vindos do interior, em possíveis caravanas de uma região ou cidade, como Caxias e São Bento, por exemplo. Muito provavelmente isso era resultado das ações de polícia médica que o doutor Achilles Lisboa tanto clamava para locais como escolas, fábricas, oficinas, repartições públicas, hotéis etc. e que excediam, portanto, os limites da capital.
Apesar de os documentos oficiais sempre destacarem a capacidade da Colônia do Bonfim em albergar de trezentos a quatrocentos pacientes, é provável que tal número nunca tenha sido atingido. É possível aventar a hipótese de que, para os propósitos da política de saúde no Maranhão do final da década de 1930, a Colônia do Bonfim, independentemente do número de hansenianos ali internados, cumpriu, sobretudo, uma função simbólica: além de retirar os "incômodos morféticos" do perímetro urbano da capital, constante cobrança da imprensa, o novo espaço indicava que o estado do Maranhão modernizava-se e não jazia esquecido pelo governo federal em termos de política de saúde. Assim, nas palavras do interventor Paulo M. de Souza Ramos, só a partir do Bonfim os doentes passaram a ser "submetidos à moderna terapêutica anti-leprótica" e, além disso, o leprosário fazia o estado ficar em "estreito contato com o Departamento Nacional de Saúde" (Maranhão, 1939, p.56).
É possível aventar ainda a ideia de que, após a inauguração do Bonfim, a política de saúde para a hanseníase no estado do Maranhão passou a enfatizar mais os isolamentos domiciliares do que os hospitalares na Colônia, bem como o controle da doença a partir dos dispensários e ambulatórios do interior.
Com efeito, estimular a 'profilaxia antileprótica' para além de São Luís e os exames da população nos dispensários das cidades em que havia postos regionais de saúde a partir de 1930 - Caxias, Pedreiras, Coroatá, Cururupu, e Candido Mendes - parece ter sido o desejo dos governantes maranhenses desde meados da década de 1930, pois esses postos não correspondiam a seu potencial de controle de várias doenças (Maranhão, 1935, p.74). Em 1943 tal política já estava em andamento, com novos postos regionais de saúde funcionando também em Viana, Brejo e Santo Antonio de Balsas. Naquele ano, só no posto da capital, compareceram 253 hansenianos para tratamento no Dispensário de Profilaxia da Lepra, anexo ao Hospital Geral (Maranhão, 1943, p.132-133).
A Colônia do Bonfim também cumpriu o papel de centro de estudo e pesquisa para que médicos recém-formados pudessem fazer treinamentos mais específicos em leprologia e, a partir daí, pudessem adentrar, com mais eficácia, o hinterland maranhense: "Um aspecto interessante da Colônia é o de estar preparando técnicos para os serviços de profilaxia da lepra no interior do Estado. Presentemente encontram-se no nosso 'hinterland', trabalhando no recenseamento de leprosos, dois jovens e diligentes médicos da Saúde Pública, que estagiaram no Bonfim durante dois meses e onde adquiriram sólidos conhecimentos de leprologia" (Maranhão, 1939, p.56).
Conclusão
A política pública mais efetiva sobre a questão da hanseníase no Maranhão só tomou força na década de 1930, quando o governo federal assumiu o modelo do isolamento compulsório como prioritário na profilaxia da doença. O ritmo centralizador imposto pelo Plano Nacional de Combate à Lepra, iniciado em 1935, ampliou medidas coercitivas em relação à moléstia por parte do governo federal e foi acompanhado pelas políticas públicas de saúde no Maranhão. No estado, o ápice desse movimento de exclusão deu-se com a inauguração da Colônia do Bonfim, uma microcidade para os leprosos, inaugurada em outubro de 1937.
Se a Colônia do Bonfim não chegou a albergar número muito elevado de hansenianos, nem por isso deixou de ser o local em que a segregação dos hansenianos maranhenses encontrou sua face mais evidente em termos de políticas públicas. A seu modo, o Maranhão acompanhou as práticas de exclusão para os portadores da moléstia, impulsionadas, sobretudo, pelas medidas centralizadoras de saúde da época de Vargas.
O Bonfim, apesar de receber doentes de várias partes do estado a partir da década de 1940, foi, sobretudo em seus anos iniciais, destino dos doentes de São Luís considerados contagiantes, que viviam, reiterava a imprensa da capital, como 'mortos vivos' nos fundos do cemitério do Gavião. Os jornais cobravam urgência das autoridades sobre o destino dos doentes, pois quando eles ousavam sair pelas ruas da cidade, com liberdade de trânsito, a população corria o risco de contágio.
O medo de que os portadores do mal-de-lázaro contagiassem a população sã dominou não apenas os discursos da imprensa maranhense nas décadas de 1920 e 1930, mas também esteve fortemente presente nos escritos do doutor Achilles Lisboa, que, como médico e político, constantemente veio a público reforçar a necessidade de medidas de polícia médica para o controle da doença no estado do Maranhão. O esculápio, já no final da década de 1920, defendia a construção de municípios separados para os 'leprosos contagiantes' de acordo com o que vinha ocorrendo em outras partes do Brasil. Mesmo tendo o doutor Achilles saído da cena política maranhense pouco antes da inauguração do Bonfim (os discursos das autoridades locais do período da inauguração da instituição solenemente o ignoraram), ele pode ser considerado o principal defensor de práticas de segregação de hansenianos no estado, e seus discursos contribuíram para legitimar tais práticas.
Com a nova Colônia do Bonfim, o Maranhão entrou definitivamente na fase do isolamento compulsório como medida de controle e profilaxia da chamada lepra. Tal política de saúde, segundo Cleusa Ornellas (1997), era considerada fundamental para as elites da década de 1930. Trazer para a responsabilidade direta do governo federal era uma "medida que vinha sendo recomendada pelos especialistas e reivindicada pela opinião pública" (p.80). Várias colônias federais para hansenianos foram criadas no período, em diversas partes do país. Ao final do governo Vargas, em 1945, quase todos os estados contavam com pelo menos uma instituição asilar nestes moldes (Santos, 2003).
No país, a política de isolamento compulsório para os hansenianos considerados contagiantes (no Maranhão registrados como portadores de formas clínicas abertas) teve vida longa, a despeito dos tratamentos à base de sulfonas durante as décadas de 1940 e 1950 na Europa e Estados Unidos. Aos poucos foi surgindo "não apenas o estabelecimento de uma nova prática terapêutica, mas também a afirmação de um novo discurso científico sobre essa doença" (Santos, Souza, Siani, 2008, p.44).
Com efeito, de acordo com Laurinda Maciel, nesse período o isolamento como medida profilática de saúde pública para o controle da hanseníase foi perdendo terreno. Para isso foi fundamental não apenas o avanço dos medicamentos quimioterápicos como também a percepção de que a política do isolamento "não diminuía o número de casos" (Maciel, 2004, p.111). Vale também destacar que congressos internacionais sobre a doença realizados a partir de 1946 já não recomendavam a exclusão dos doentes. No entanto, o Brasil seguiu com essa política de saúde excludente para os hansenianos ainda por mais de uma década.
NOTAS
Recebido para publicação em julho de 2008.
Aprovado para publicação em janeiro de 2009.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Jul 2009 -
Data do Fascículo
Jun 2009
Histórico
-
Recebido
Jul 2008 -
Aceito
Jan 2009