Open-access Raízes do vitalismo francês: Bordeu e Barthez, entre Paris e Montpellier

Resumos

Analisa as propostas classificadas como vitalistas, formuladas na França no século XVIII. Contextualiza a tradição da escola médica de Montpellier, abordando as concepções fisiológico-médicas de Théophile de Bordeu. Nesse ambiente Paul-Joseph Barthez realizou sua formação original. Sua concepção sobre a autonomia da vida também foi influenciada pela interação com círculos dos enciclopedistas de Paris. No entanto, na formulação desse conceito identificam-se igualmente ruptura e permanência com relação a ambas as linhas de pensamento - a respeito do conceito de ser humano na classificação das ciências prescrita pela Encyclopédie e na tradição típica de Montpellier.

vitalismo; Théophile de Bordeu (1722-1776); Paul-Joseph Barthez (1734-1806); França; séc. XVIII


This article analyzes several French eighteenth century physiological theories that later on were classified as vitalist. The overall background is set by the tradition of Montpellier medical school, in particular by the physiological and medical ideas of Théophile de Bordeu. Paul-Joseph Barthez was initially trained in this setting, however, his conception of the autonomy of life was also heavily influenced by the circle of Paris encyclopedists. For this reason, Barthez's elaboration shows elements of continuity and discontinuity regarding both the notion of human being as represented in the classification of sciences of the Encyclopédie, and the typical Montpellier.

vitalism; Théophile de Bordeu (1722-1776); Paul-Joseph Barthez (1734-1806); France; eighteenth century


ANÁLISE

Raízes do vitalismo francês: Bordeu e Barthez, entre Paris e Montpellier

Silvia WaisseI, *; Maria Thereza Cera Galvão do AmaralII; Ana M. Alfonso-GoldfarbIII

IProfessora do Programa de Estudos Pós-graduados em História da Ciência e pesquisadora do Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência/Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); editora executiva de Circumscribere: International Journal for the History of Science; membro do Governing Board de World History of Science Online, International Union for the History and Philosophy of Science/Division of History of Science and Technology. swaisse@pucsp.br

IIMédica veterinária; doutora em História da Ciência pelo Programa de Estudos Pós-graduados em História da Ciência/PUC-SP. mariathereza.amaral@gmail.com

IIICoordenadora do Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência, professora do Programa de Estudos Pós-graduados em História da Ciência e adjunta especializada da Pró-reitoria da Pós-graduação/PUC-SP; CESIMA, PUC-SP, Rua Caio Prado, 102, s. 46-49. 01301-000 - São Paulo - SP - Brasil. Honorary Research Fellow do Department of Science and Technology Studies/University College London. aagold@dialdata.com.br

RESUMO

Analisa as propostas classificadas como vitalistas, formuladas na França no século XVIII. Contextualiza a tradição da escola médica de Montpellier, abordando as concepções fisiológico-médicas de Théophile de Bordeu. Nesse ambiente Paul-Joseph Barthez realizou sua formação original. Sua concepção sobre a autonomia da vida também foi influenciada pela interação com círculos dos enciclopedistas de Paris. No entanto, na formulação desse conceito identificam-se igualmente ruptura e permanência com relação a ambas as linhas de pensamento - a respeito do conceito de ser humano na classificação das ciências prescrita pela Encyclopédie e na tradição típica de Montpellier.

Palavras-chave: vitalismo; Théophile de Bordeu (1722-1776); Paul-Joseph Barthez (1734-1806); França; séc. XVIII.

O termo vitalismo tem sido fortemente associado à medicina setecentista de Montpellier. De fato, o adjetivo vitalista - que, ao que tudo indica, apareceu antes do substantivo - foi cunhado por Charles-Louis Dumas (1765-1813), em 1800, para se referir, precisamente, à tradição dessa escola (Rey, 1997, p.7-8) e, particularmente, às ideias de Paul-Joseph Barthez (1734-1806), embora não mencione explicitamente o nome desse autor. Desde então, o termo vitalismo seria associado a uma tal diversidade de conceitos, que um historiador da biologia do porte de William Coleman (1977) solicitou uma profunda revisão dele, chegando a afirmar: "não há qualquer outra expressão na linguagem da biologia tão ambígua e exposta ao mau uso e abuso" (p.145), tanto assim que "sua utilização sem qualificações explícitas é geralmente perniciosa" (p.12).1

Tal situação não se modificou até a década de 1990, como se pode verificar no simpósio Vitalisms From Haller to the Cell Theory, realizado em Zaragoza, cujo objetivo era precisamente o de definir o que se entende por vitalismo, como forma de pensamento nas ciências da vida desenvolvidas entre os séculos XVIII e XIX. O estado - confuso - da questão é ilustrado pela estudiosa Jacalyn M. Duffin (1997, p.221-222):

Vitalismo é mente, livre-arbítrio, em oposição ao determinismo; mas também é determinismo, intuição ou teleologia; é o reconhecimento de uma alma moral que influencia o ser físico; é holismo ou monismo e um ataque ao dualismo cartesiano; é a enteléquia aristotélica ou drieschiana; é o oposto do mecanicismo; o oposto do materialismo; é o oposto do existencialismo; é tanto sustentado como refutado pela evolução darwinista; é bioeletricidade; é o cognato biológico da gravidade; é o oposto da arrogância científica; é heresia científica.

Diante desse quadro, é possível inferir que o pedido formulado por W. Coleman, em 1977, não pôde ser atendido. Há pouco tempo, Silvia Waisse-Priven (2009) procurou mapear a história do conceito de vitalismo, especialmente, seu desenvolvimento nos territórios de fala alemã, ao passo que o projeto da estudiosa Roselyne Rey (1997) de esboçar as "linhas de força" nos estudos sobre o vitalismo, enfocando em particular os autores franceses, se viu interrompido devido ao falecimento prematuro da autora.2 O presente artigo busca aprofundar essa questão, por meio de um estudo do vitalismo na França e privilegiando as visões de Théophile de Bordeu (1722-1766) e Paul-Joseph Barthez.

A escola de medicina de Montpellier

Desde seu estabelecimento na Idade Média (as primeiras menções datam do século X) e devido à sua localização, Montpellier teve o perfil de uma cidade portuária. Por esse motivo, a circulação contínua de pessoas e a mistura de culturas ali foram a tônica, acentuada pela intensa atividade comercial. Como capital da região de Languedoc, foi e ainda é um importante centro urbano, do ponto de vista político-administrativo, econômico, religioso e também educativo, entre várias outras esferas.

Montpellier chegou a ser conhecida como uma 'cidade médica', pois devido aos intensos intercâmbios comerciais constituiu, desde a Idade Média, uma importante etapa para peregrinos, cruzados e outros viajantes. Essa singular combinação impôs demandas particulares de atendimento médico, originando diversas instituições de caridade e hospitalares, bem como sua escola de medicina (Williams, 1996, p.205-207).

Não se sabe com certeza em que momento médicos árabes e judeus procedentes da Espanha e recebidos pelos condes de Montpellier começaram a ensinar medicina na localidade. No começo do século XIII, a Faculdade de Medicina já era um dos quatro maiores centros de ensino médico na Europa Ocidental, posição que manteve ao longo dos cinco séculos seguintes. Para se ter uma ideia da reputação dessa escola, entre 1610 e 1752, seis entre os dez Primeiros Doutores (os médicos do rei da França) foram formados em Montpellier, e entre 1803 e 1806, quase a metade dos médicos franceses (45,9%) era graduada pela instituição (Raynaud, 1998, p.726; Williams, 1996, p.218). Entre os mais famosos, cabe mencionar Laurent Joubert (1529-1682), Lazare Rivière (1589-1655), Joseph Pitton de Tournefort (1656-1708), Théodore Turquet de Mayerne (1573-1654 ou 1655), Jean Astruc (1684-1766), Pierre-Jean-George Cabanis (1757-1808), Philippe Pinel (1745-1826) e Marie François Xavier Bichat (1771-1802).

Desde a Idade Média, a Faculdade de Medicina de Montpellier teve feições próprias e originais. Assim, por exemplo, nem mesmo nesse primeiro período o ensino foi livresco: nos anos 1200, os estatutos da universidade estabeleciam que os alunos deveriam se afastar da cidade e interromper suas atividades em sala de aula para realizar prática clínica, sendo esta uma parte do programa de estudos (Nance, 2001, p.68).

A reputação de Montpellier como centro de ensino médico aberto à inovação, que atualizava continuamente seus equipamentos e contratava professores progressistas se manteve no decorrer dos séculos. Coleman (1974, p.400) afirmou que tal processo se deu em um contexto intelectual que colocava o ser humano como parte do mundo natural, vale dizer, um 'animal racional', cuja saúde podia ser conservada pela medicina. Por outro lado, ao menos a partir do século XVII, os médicos de Montpellier priorizaram os dados obtidos através da senso-percepção (Nance, 2001, p.68).

A literatura especializada tende a identificar Montpellier como um dos principais centros do surgimento da abordagem das ciências da vida que seria conhecida posteriormente como vitalismo. Sobre uma base fornecida por forte viés prático do ensino - que acentuava a singularidade do paciente particular, e não tanto as categorias gerais da teoria médica -, essa identificação reforçou-se e atualizou-se com a incorporação das ideias animistas de Georg E. Stahl (1659-1734), levadas de Halle a Montpellier por François Boissier de Sauvages (1706-1767). A autonomia da vida a respeito das leis e dos conceitos utilizados para explicar os fenômenos na matéria bruta foi enfatizada por Bordeu. Finalmente, a própria emergência do termo vitalismo esteve associada a um membro dessa escola: Barthez.

O vitalismo em Montpellier

Em meados do século XVIII, quando surgiram as primeiras ideias que, mais tarde, seriam denominadas vitalistas, a escola de Montpellier estava dividida em uma multiplicidade de tendências conflituosas, que variavam entre o animismo de Stahl, introduzido por Sauvages, e o mecanicismo de Antoine de Fizes (1689-1765). Verificava-se, ainda, a influência do germânico Albrecht Von Haller (1708-1777), que descrevera propriedades inerentes à fibra viva e inexistentes na matéria bruta - irritabilidade (contratilidade), sensibilidade e força muscular imanente (vis insita). Nesse contexto desenvolveram-se as ideias de Louis de La Caze (1705-1765), Gabriel F. Venel (1723-1775) e Bordeu (1751, p.455-456; Lordat, 1818, p.43-44).

Rey (2000, p.177) afirma que é muito difícil distinguir as contribuições individuais de La Caze e de Bordeu, uma vez que eles atuaram muito estreitamente, e em certas circunstâncias também com Venel.3 Desse grupo surgiu uma das principais elaborações do que mais tarde seria chamado vitalismo, tipicamente associado a Montpellier e incluindo os elementos explorados a seguir.

Em primeiro lugar, destaca-se a crítica à aplicação, na medicina, da física, da mecânica e da química, para afirmar como fundamentos autênticos da disciplina os fenômenos acessíveis à observação, tanto na saúde quanto na doença. Por exemplo, na elaboração de Bordeu (1818, v.2, p.1007): "Deve-se concordar em que esse objetivo nunca será alcançado - nem por meio da anatomia ou da química, nem através de experimentos físicos ou acadêmicos. Só acompanhando o curso das doenças e meditando sobre elas captaremos a verdadeira composição, as combinações e a natureza dos humores animais".

Em segundo, postularam-se duas propriedades fundamentais do corpo humano vivo: o movimento e o sentimento (Rey, 2000, p.183). De acordo com Pierre Flourens (1794-1867), médico de Montpellier que escreveu em 1858, o que opunha essencialmente Bordeu e Haller - definindo, portanto, a linha de estudos de Montpellier - é que, embora ambos acentuassem propriedades vitais, o primeiro privilegiou a sensibilidade e o segundo, a irritabilidade.

O tema foi favorecido por Bordeu desde a sua tese de doutoramento, em 1742, intitulada Da sensibilidade em geral. Nela, contesta as três teorias prevalentes na época: a doutrina tradicional dos espíritos animais, originada em Galeno; o animismo de Stahl, que atribuía todos os fenômenos à alma; e o mecanicismo de Hermann Boerhaave (1668-1738). Bordeu trata resumidamente as duas primeiras abordagens para centrar-se na refutação da teoria de Boerhaave sobre a secreção glandular, mero efeito mecânico e secundário à compressão física desses órgãos. Sustenta que nenhuma glândula no corpo humano está anatomicamente disposta a sofrer compressão mecânica e infere que tal processo tem uma causa muito diferente e de ordem superior: a sensibilidade mediada pelos nervos. A prova simples e evidente, argumenta ele, é que a boca saliva assim que sente o odor de um alimento, emoções ternas produzem lágrimas e assim por diante (Flourens, 1858, 2. parte, p.43-50). Após estabelecer a existência de uma sensibilidade geral, comum a todas as partes, e de uma sensibilidade própria a cada órgão, Bordeu conclui: "A secreção se reduz a uma espécie de sensação; as partes capazes de excitar tal sensação passarão, e as outras serão rejeitadas; cada glândula, cada orifício terá sua predileção particular" (citado em Flourens, 1858, p.169).

Na mesma linha de estudos, Henri Fouquet (1727-1806) reconhecia ambas as forças, sensibilidade e motricidade, porém, seguindo Bordeu, privilegiou o estudo da sensibilidade, à qual dedica um artigo de 47 páginas na Encyclopédie (Dulieu, 1952, p.20). Foi nesse artigo que cunhou a expressão que se tornaria célebre, "pequenas vidas": "Estando a sensibilidade distribuída por doses em todas as partes orgânicas do corpo, cada órgão vive ou sente a seu próprio modo, e o concurso ou a soma dessas vidas particulares faz a vida em geral, da mesma forma que a harmonia, a simetria e o arranjo dessas pequenas vidas (petites vies) fazem a saúde" (citado em Flourens, 1858, p.169).

Finalmente, em terceiro lugar, destaca-se o conceito de organização, com uma forma particular de interpretá-lo, derivada da noção de moléculas orgânicas, de Georges-Louis de Leclerc, conde de Buffon (1707-1788). Desse ponto de vista, no embrião a vida se localiza nas moléculas orgânicas que formam a semente; elas se desenvolvem dando origem aos diversos órgãos, redundando em duas ordens de 'vidas particulares': as vidas particulares das moléculas orgânicas e as vidas particulares dos órgãos; da fusão de todas elas resulta a vida do organismo em sua totalidade.

Daí a ênfase que a linha de 'vitalistas de Montpellier' - Bordeu, Fouquet, Jean J. Menuret (1733-1815), entre outros - conferiu à sensibilidade, tida como resultado da multiplicação das vidas particulares, ou pequenas vidas, no organismo. Em outras palavras, o corpo deveria ser considerado "um conjunto infinito de pequenos corpos igualmente semelhantes, igualmente animados, igualmente viventes, cada um dos quais tem uma vida, uma ação, uma sensibilidade, um jogo e movimentos próprios e particulares e, ao mesmo tempo, uma vida, uma sensibilidade etc. comuns [a todos] e gerais" (Menuret, 1765, p.240a).

Esse modelo é claramente ilustrado pela comparação que faz Bordeu (1751, p.187) entre o organismo e um enxame de abelhas:

Comparamos o corpo vivo, para sentir bem a ação particular de cada parte, a um enxame de abelhas que se reúnem em pelotões e se penduram em uma árvore à maneira de um cacho de uvas; não soou mal o que disse um célebre Antigo acerca de uma das vísceras do baixo ventre: era animal in animali; cada parte é, por assim dizer, não um animal, sem dúvida, mas uma espécie de máquina à parte, que, à sua maneira, contribui para a vida geral do corpo. Assim, para retomar a comparação com o cacho de abelhas que devem agir em conjunto para se portarem bem, há algumas que se ligam às primeiras e assim sucessivamente: todas contribuem para formar um corpo bastante sólido, e ainda assim cada uma tem sua ação particular à parte ... (grifos do original).

Note-se que, com tal comparação, Bordeu acentua tanto a harmonia do todo quanto a autonomia de cada parte. De acordo com Rey (2000), a origem dessas ideias sobre a organização deve ser buscada em La Caze, que definiu a vida com um conjunto de muitos movimentos "ligados por uma dependência mútua" (p.160).

Desse modo, pode-se dizer que duas noções caracterizam sobremaneira a escola médica de Montpellier, na segunda metade do século XVIII: a de organização - relações entre partes orgânicas individuais que formam um todo harmônico - e a de animação da vida, não explicável por meio de conceitos, métodos e leis da matéria bruta, mas sim por intermédio de forças ou princípios singulares à vida. Por este último motivo, os médicos de Montpellier passaram a ser chamados retrospectivamente de vitalistas.

Por outro lado, o interesse pela fisiologia humana não era meramente acadêmico, mas também visava à aplicação prática na clínica. Seria, então, interessante, analisar a clínica de Montpellier em relação à animista, originada em Stahl, no intuito de melhor compreender seus matizes específicos.

Da clínica animista de Stahl à clínica vitalista de Montpellier

Uma vez que, para a escola de Stahl, a alma regeria tanto o estado de saúde quanto o de doença, não haveria qualquer diferença qualitativa entre ambos os estados, o que contradiz a tradicional conceituação do primeiro como estado 'natural' do corpo e do segundo como estado 'contra' ou 'preternatural'. Ao contrário, a alma causa e regula os movimentos do corpo no intuito de preservar a saúde e, de modo análogo, organiza movimentos similares para restaurá-la (Stahl, 1831-1833, v.1, p.230, 474).

Como resultado, os sintomas da doença representariam simplesmente a reação da alma à causa nociva, apontando, com isso, o caminho para se recuperar a saúde. Assim, o médico poderia servir-se dos sintomas para compreender os movimentos da alma (Stahl, 1831-1833, v.1, p.242, v.2, p.306). A terapêutica, consequentemente, estaria dirigida a reforçar a alma quando ela enfraquece, ou acalmá-la quando se torna demasiado vigorosa, tal como revelado pelos sintomas (v.1, p.132, 490).

Alguns elementos da doutrina de Stahl permaneceram em Montpellier. Por exemplo, Bordeu (1818, v.2, p.832) conserva a noção de continuidade entre os estados de saúde e doença. No entanto, enfatiza o papel do coração, do cérebro e do estômago na origem da doença, de forma tal que as moléstias resultariam do desarranjo da inter-relação entre esses três órgãos. Nota-se, aqui, mais uma vez, a ênfase da escola de Montpellier no aspecto da organização e das relações orgânicas. Consequentemente, aliado ao exame do doente, o recurso diagnóstico privilegiado por Bordeu consiste na determinação do pulso. Sobre o tema, o autor publicou, em 1750, Recherches sur le pouls par rapport aux crises. Cabe também lembrar que ele e seus discípulos chegaram a distinguir mais de quatrocentas variedades de pulso.

Como Stahl, Bordeu também afirmava que a tarefa do médico é assistir aos esforços da natureza. Porém, julgando a atitude do primeiro perigosamente expectante, o arsenal terapêutico de Bordeu considerava todo tipo de recursos para restaurar a normalidade das funções - incluindo a sangria - quando o paciente apresentasse sinais que demandassem essa indicação (Bordeu, 1818, v.2, p.845-846).

Paris, a Encyclopédie e a ciência do homem

Na segunda metade do século XVIII, Paris era o ponto de atração de quem quisesse brilhar em alguma área do palco político e intelectual. Portanto, é compreensível que montpellerinos como Bordeu, Venel e Barthez se tenham deslocado para a capital. Entre o final da década de 1740 e 1750, os três ingressaram no círculo dos enciclopedistas: Bordeu e Venel por meio de contato com Denis Diderot (1713-1784) e Barthez, por intermédio de Jean Le Rond d'Alembert (1717-1783), bem como o médico Camille Falconet (1716-1791) (Williams, 2003, p.168). Essa rede de influências é especialmente visível na obra de Barthez, membro de uma geração mais jovem e então no início de carreira, como veremos adiante.

Intitulada Nouveaux éléments de la science de l'homme4, a obra principal de Barthez tem início com a seguinte afirmação: "A Ciência do Homem é a primeira das ciências" (Barthez, 1806, v.1, p.1). Contudo, como ele não explicita em lugar algum o que entendia como ciência do homem, para melhor definirmos essa concepção, além da análise de seu texto é igualmente necessário levantar o contexto e as fontes que lhe deram origem.

Uma vez que as relações entre Barthez e d'Alembert são bem conhecidas, logo de início a pesquisa se orientou, de modo quase natural, para a Encyclopédie. De fato, no sistema de organização dessa obra, intitulado "Système figure des connaissances humaines" (Diderot, D'Alembert, 1751), a ciência do homem consta como um dos ramos do conhecimento. A influência onipresente da Encyclopédie no mundo intelectual francês do século XVIII e, em particular, de sua 'árvore do conhecimento', originada em Francis Bacon (1561-1626), permeia boa parte da reflexão europeia (Bacon, 1952, p.32 e ss), o que talvez explique por que Barthez considerou desnecessário explicitar essa fonte. O mesmo não se aplica para o estudioso moderno, por isso vale lembrar, ainda que brevemente, em que consistia tal árvore do conhecimento.

O primeiro critério dessa classificação diz respeito à faculdade da mente envolvida, de modo que as ciências se dividem em Ciências da Memória, da Razão e da Imaginação. À Memória corresponde a História e à Imaginação, a Poesia. As Ciências da Razão (Filosofia) subdividem-se em: Metafísica Geral (Ontologia ou Ciência do Ser em Geral); Ciência de Deus; Ciência do Homem; e Ciência da Natureza. Vejamos em detalhes as duas últimas categorias.

Enquanto a ciência do homem está restrita ao estudo da alma humana, à lógica e à moral, os aspectos físicos do ser humano são implicitamente assimilados à sua natureza 'animal' e, consequentemente, alocados como objetos da zoologia, que, sendo assim, inclui também a medicina. Em Nouveaux éléments, Barthez (1806) centra-se exatamente nesse conceito de ciência do homem e afirma que pretende reformulá-lo e ampliá-lo com base na noção montpellerina da integridade do ser humano (sintetizando seus aspectos 'morais' e 'físicos').5 Em outras palavras, a obra de Barthez opõe-se à separação, proposta pela Encyclopédie, entre aspectos espirituais e morais do ser humano, por um lado, e aspectos físicos, por outro (v.1, p.21). O autor explica que, além de qualquer interesse que essa nova versão da ciência do homem possa ter para a "metafísica e a moral", ela também serviria ao objetivo fundamental de fornecer a base sólida da arte da cura (v.1, p.1). Para tanto, a ciência do homem serve-se, naturalmente, da metafísica, mas também da física e da mecânica, uma vez que estas fornecem a explicação dos órgãos e de suas funções. Tal afirmação pode surpreender, tendo em vista que a escola de Montpellier considerava irrelevante (e até rejeitava) a inclusão das ciências da matéria bruta no domínio ciências da vida. Temos aqui, portanto, um primeiro elemento de ruptura entre Barthez e a tradição da escola em que se formou. Cabe, então, investigar as possíveis fontes que levaram a essa ruptura. No entanto, antes de avançarmos nessas considerações, devemos abordar outro aspecto importante acerca de Barthez: seu método filosófico.

Barthez e "o bom método de filosofar"

Barthez descreve a si mesmo como o Bacon da Ciência do Homem, pois tal como o filósofo inglês considera necessário renovar o "método de filosofar". Para tanto, toma o princípio ockhamiano de restringir ao mínimo o número de princípios (leis gerais) necessários. Baseado no contexto da época, assume que o fundamento dos conhecimentos sólidos consiste nos fenômenos naturais acessíveis aos sentidos e nas leis imediatamente inferíveis a partir deles, assim como adverte contra conclusões gerais e prematuras tomadas a partir de um pequeno número de fatos. Por fim, recorre a d'Alembert e ao matemático Roger Cotes (1682-1716) para propor o método correto a ser aplicado: uma primeira fase analítica, na qual dos fenômenos experimentados e observados se passa para as leis utilizadas pela natureza para produzi-los, seguida por uma fase sintética, na qual essas leis são aplicadas na explicação de outros fenômenos (Barthez, 1806, v.1, p.16-17, 21-22, 24).

Cabe nos determos nesse aspecto epistemológico. Barthez define a filosofia natural como a pesquisa das causas dos fenômenos apreensíveis por meio da experiência. No entanto, alerta que a experiência não pode nos fazer conhecer a essência do modo de agir das causas, mas apenas a ordem e a regra que os fenômenos seguem em sua sucessão temporal. Por esse motivo, o termo causa (e seus sinônimos força, princípio, poder, faculdade etc.) se aplica àquilo que faz com que um fenômeno suceda outro no tempo. Elevando-se indutivamente por intermédio da corrente de causas, chega-se à causa mais geral de todas, que o autor denomina causa experimental. Reciprocamente, afirma: "explicar um fenômeno resume-se sempre a mostrar que os fatos que apresenta se seguem em ordem análoga à ordem de sucessão de outros fatos mais familiares e que, por isso, parecem ser mais bem conhecidos" (Barthez, 1806, v.1, p.7-8). Por outro lado, "combinando e calculando" os fatos bem observados e ligados a cada causa experimental, é possível descobrir as leis secundárias dessa mesma causa, que permitem definir novas ordens de fenômenos dependentes dessas leis (v.1, p.14-16).

No entanto, o princípio (causa, força etc.) que Barthez coloca no centro de seu sistema é um ente de razão, o "princípio vital". Tão central se afigura no pensamento do autor, que chega a definir a própria ciência do homem como "o conhecimento das leis que segue o Princípio da Vida no corpo humano" (Barthez, 1806, v.1, p.35). Nota-se, assim, por que Barthez se viu obrigado a tornar explícita sua forma de filosofar. Com isso em mente, voltemos às questões anteriores, sobre as fontes que o levaram a reformular as concepções tradicionais sobre a autonomia da vida.

Barthez e o princípio vital no ser humano

A elaboração de Barthez parte de uma crítica às visões contemporâneas da fisiologia (ciência da natureza humana). A visão dos mecanicistas fora consistentemente refutada pelos animistas, de modo que Barthez concentra-se nos erros cometidos por estes últimos. A argumentação restringe-se, virtualmente, a uma única tese: não se pode atribuir os movimentos voluntários e involuntários do corpo humano a uma só entidade, a "alma pensante". Portanto, há que assumir - "dado o estado atual dos nossos conhecimentos" - dois princípios diferentes, cuja ação não é mecânica e a natureza é oculta para nós: a alma pensante e o princípio da vida (Barthez, 1806, v.1, p.20).

O autor enfatiza que nada pode ser afirmado a respeito da natureza íntima do princípio vital e que somente seria possível pesquisar as leis gerais que dirigem suas forças no ser humano, ou seja, as faculdades desse princípio que servem a cada função do corpo e suas modificações. Reciprocamente, as doenças não seriam senão afetações do princípio vital - mais raramente, consequências da vontade da alma pensante - ou lesões físicas na organização das partes do corpo (Barthez, 1806, v.1, p.28, 43).

Barthez entende a causalidade, na fisiologia humana, como uma 'corrente' de instâncias que se estende de Deus, o "Autor da natureza", até os fenômenos perceptíveis por intermédio dos sentidos humanos: leis primordiais; princípio vital; e forças do princípio vital. Desse modo se determinam e modificam as ações da matéria que compõe os corpos vivos. Ressalte-se, porém, que nenhum elemento dessa corrente causal é acessível à indagação, que, desse modo, se vê limitada aos fenômenos perceptíveis aos sentidos humanos e às leis inferíveis a partir deles.

Consequentemente, os objetos próprios à ciência do homem seriam: as forças do princípio vital; a conexão mútua entre elas ("simpatias"); sua reunião num 'sistema'; suas modificações conforme os diversos temperamentos e idades; sua extinção no momento da morte (Barthez, 1806, v.1, p.33). Temos aqui uma instância de ruptura e permanência simultâneas, tanto a respeito da tradição de Paris quanto à de Montpellier. Da primeira, conserva-se a ciência do homem, mas redefinida em seu objeto e, consequentemente, em seu lócus na árvore do conhecimento. Da segunda, mantém-se a autonomia da vida, mas Barthez não mais rejeita - ao contrário, exige - a inclusão das ciências da matéria bruta nas ciências da vida, como decorrência de sua síntese dos aspectos físicos e morais do ser humano. Barthez também considera a singularidade do vivo um princípio único, o princípio vital, intermediário entre a alma pensante e a matéria do corpo. Observe-se, a esse respeito, que a expressão princípio vital já tinha uma história em Montpellier. Bordeu, por exemplo, indica seu uso em Fizes, que, no entanto, havia definido vagamente tal princípio como onipotente, ou seja, capaz de tudo operar, "tanto o branco quanto o preto" (Bordeu, citado em Flourens, 1858, p.94 e ss).

Barthez retoma muitos temas e estilos em curso na época para explicar os princípios do movimento no ser humano, o que fez com que os estudiosos de sua obra identificassem diversas influências. Fala-se, por exemplo, em newtonianismo, uma vez que Barthez se refere a um agente "oculto" (como a gravidade), que não se pode definir em si mesmo, como origem de todos os movimentos no corpo vivo (Wolfe, Terada, 2008, p.562). No entanto, o interesse de Barthez seria simplesmente o de descrever a interação dos diversos princípios e forças no corpo como um todo, sem se deter em qualquer elemento 'oculto'.

O primeiro questionamento feito por Barthez em relação a essa questão diz respeito ao fato de o conhecimento humano limitar-se aos fenômenos apresentados aos sentidos pelos corpos vivos, de onde deriva a pergunta: como podem ser inferidos os princípios do movimento? A resposta passa pela comparação entre os corpos sólidos - cuja propriedade é a inércia - e aqueles mais sutis e fluídos, como "os movimentos sensíveis do ar, que é invisível, levaram à suposição de que o ser oculto, que dava movimento e vida a cada animal e que se esvai com sua morte, era uma substância aérea" (Barthez, 1806, v.1, p.63). Nesse ponto, discute minuciosamente o conceito de alma tal como representado por diversos sistemas religiosos e filosóficos. No entanto, seu caminho de reflexão será outro. Barthez abstrai todas as qualidades sensíveis dos corpos - que considera acidentais à sua matéria - e chega à noção de uma substância imaterial (v.1, p.74-75). Acrescenta que, ao longo da história, todos os autores - por ele identificados como aristotélicos e cartesianos - que admitiram a existência de substâncias imateriais também distinguiram no ser humano uma terceira instância, diferente da mente e do corpo (v.1, p.76-77). Nesse ponto novamente o interesse de Barthez concentra-se nos animistas - sobretudo aqueles da corrente stahliana -, para introduzir outros argumentos a favor da distinção entre a alma pensante e o princípio vital, nesse caso baseados no conceito de liberdade (v.1, p.85).

Embora em Oratio academica de principio vitali hominis, de 1773, Barthez já afirme que o princípio vital, no ser humano, independe do mecanismo do corpo e das afecções da alma pensante, nas sucessivas edições de Nouveaux éléments ele acrescenta mais motivos pelos quais o princípio vital deve ser distinguido da alma pensante. Por exemplo, na segunda edição, de 1806, inclui o argumento do estudioso germânico Friedrich K. Medicus (1813-1893): "se a Faculdade Vital pudesse pertencer à Alma, ela teria caracteres extraordinariamente diferentes dos das outras faculdades da Alma, pois essa Faculdade Vital não se fatiga jamais em suas operações, é perfeita desde o primeiro momento de vida, e não precisa que decorram os anos para que se desenvolva etc." (Barthez, 1806, v.1, p.76).6 Além disso, os stahlianos eram obrigados a atribuir as doenças a 'erros da alma', o que constituía uma contradição em termos. Finalmente, os seguidores de Stahl representavam a alma como um ente simples, o que era incompatível com a multiplicidade de movimentos e sentimentos que existem no ser humano a cada instante de sua vida (v.1, p.100-109). Por isso, Barthez (v.1, p.94-95) conclui:

parece-me que não se pode evitar distinguir o Princípio Vital do Homem de sua Alma pensante. Essa distinção é essencial, quer se imagine que esses dois princípios existam por eles mesmos e sejam substâncias, quer se suponha que existam como atributos e modificações de uma só e a mesma substância ... pouco importa que se dê ao Princípio Vital o nome de Alma, Arqueu, Natureza etc., mas o absolutamente essencial é que as determinações desse princípio não sejam jamais relacionadas às afecções derivadas das faculdades de previdência ou de outras atribuídas a essa Alma ...

A questão que interessa a Barthez, em seguida, é estabelecer se o princípio vital tem existência própria ou se, ao contrário, é uma propriedade emergente da organização da matéria viva, tal como sustentava, por exemplo, Bordeu. Obviamente, Barthez rejeita a segunda possibilidade, uma vez que, para ele, tal princípio é a origem da organização da matéria, portanto nunca seu resultado. Por outro lado, dedica longa e profunda atenção à discussão das diversas modalidades de autossubsistência desse princípio.

A primeira possibilidade seria atribuir ao princípio vital uma natureza substancial. Barthez discute longamente essa opção nas notas explicativas que acrescenta à segunda edição de Nouveaux éléments, com base em ideias desenvolvidas por John Locke (1632-1704) - refletindo, mais uma vez, a profunda influência do empirismo britânico em seu pensamento -, para concluir, citando Willem's Gravesande (1688-1742), reconhecido divulgador das ideias de Newton no continente, que a substância em si é incognoscível e que só podemos conhecer algumas de suas propriedades (Barthez, 1806, v.1, p.86 e ss).7

No texto principal da obra, no entanto, enuncia sua tese forte: uma lei geral, estabelecida pelo Autor da natureza, que coloca uma faculdade vital - isto é, o princípio vital -, dotada de forças motrizes e forças sensitivas, que determinam a combinação da matéria de que cada corpo é formado. Essa faculdade vital é, para o autor, "razão suficiente" para a sequência dos movimentos necessários ao longo da vida de um animal. Assim, não tem objeções em admitir a possibilidade de que "Deus una à combinação da matéria disposta para a formação de cada animal um Princípio de Vida que subsiste por si mesmo e que no homem difere da Alma pensante" (Barthez, 1806, v.1, p.98).

Tudo indica que Barthez supunha que o princípio da vida teria existência separada do corpo que ele anima, embora também coubesse a possibilidade de constituir uma faculdade inata ou adquirida do corpo dos animais. De todo modo, ele produz e dirige, seguindo as leis primordiais estabelecidas pelo Autor da natureza, todas as correntes de movimentos espontâneos possíveis no corpo animal (Barthez, 1806, v.1, p.117-126).

As provas aduzidas por Barthez para sustentar sua tese são nitidamente empíricas e apoiadas por uma multidão notável de exemplos relacionados nas notas explicativas acrescentadas à segunda edição de Nouveaux éléments (Barthez, 1806, v.1, p.89-111). Seus argumentos empíricos podem ser agrupados nas seguintes categorias:

- Pode haver ausência de atividade funcional sem qualquer alteração orgânica perceptível, isto é, a destruição do princípio vital. Reciprocamente, esse princípio pode-se manter em atividade, e longamente, mesmo depois da afetação maciça da integridade anatômica dos órgãos, incluídos os mais essenciais à vida;

- Em estados violentos de perigo, o princípio vital imprime movimentos no corpo que não podem produzir qualquer mudança mecânica nos órgãos, movimentos estes completamente distintos daqueles produzidos em estado 'natural' (o que hoje chamamos de normal). Por outro lado, tais movimentos são contrários aos que uma alma livre e previsora deveria imprimir no corpo para poupá-lo do perigo iminente;

- Barthez afirma, assumindo uma postura epigenética, que no desenvolvimento embrionário os órgãos se aperfeiçoam gradualmente, ao passo que a ação organizadora do princípio vital é integral e perfeita desde o início;

- O mesmo se aplica ao instinto animal: o princípio vital dirige os animais, desde seu nascimento, para aqueles objetos que satisfazem suas necessidades.

Uma vez que qualquer tentativa de extrapolação ultrapassa os limites da experiência, Barthez (1806, v.1, p.126-127) conclui que deve ser mantida a noção abstrata do princípio vital como simples faculdade vital do corpo humano, dotado de forças motrizes e sensitivas. E, reciprocamente, se deve considerar as funções da vida no ser humano como produzidas pelas forças do princípio vital e governadas por suas leis primordiais. Essas leis são, sim, passíveis de serem determinadas pelos resultados das indagações peculiares à ciência do homem e podem ser confirmadas através de sua aplicação a fatos análogos. Em síntese, as leis primordiais do princípio vital e suas forças podem ser descobertas por intermédio da observação das funções da vida no ser humano e somente através dela.

O princípio vital, enfatiza Barthez, produz nos órgãos do corpo uma infinidade de movimentos necessários às funções da vida. Tais movimentos, no ser humano vivente, devem ser distinguidos daqueles causados pela alma pensante (sentimentos claros e vontades racionais) (Barthez, 1806, v.1, p.127). Não obstante, o autor admite que, após se conhecer a multiplicidade de fatos positivos ignorados em seu tempo, haveria a possibilidade de sintetizar o princípio vital e a alma pensante em um terceiro princípio de natureza mais geral. Em outras palavras, seria possível reduzir duas causas ou faculdades ocultas em uma única, resultante da pura experiência (v.1, p.127-128).

Assim, Barthez argumenta que a unidade do princípio da vida pode ser estabelecida a partir da correspondência íntima que liga todas as partes do corpo e comanda as funções úteis ou necessárias à vida, como também com base na individualidade que o corpo de cada organismo recebe de seu princípio de vida. Ambas as propriedades teriam confirmação empírica no fato de que, no decorrer da vida, as partes do corpo são 'desgastadas' e destruídas, mas, ao mesmo tempo, reparadas pelo princípio de vida comum a todas elas, que as renova incessantemente e opera diversas modificações sempre convenientes ao ser que ele anima.

Alguém admite ser um vitalista?

Na França do século XVIII, os médicos vitalistas foram os principais antagonistas do modelo fisiológico do corpo-máquina, tradição que passava de René Descartes (1596-1650) à iatromecânica e com representantes como Julian Offray de La Mettrie (1709-1751) e barão d'Holbach (1723-1789). Contrários a essa perspectiva, que prescreve leis universais válidas para todo e qualquer fenômeno, tanto na natureza bruta quanto na viva, os vitalistas de Montpellier postularam uma separação absoluta entre os seres vivos organizados e a matéria inerte.

Além disso, atribuíram essa singularidade da vida a uma força, princípio ou faculdade cujo estatuto ontológico era desconhecido. Assim, era possível enxergar a vida como derivada das atividades correlacionadas e harmoniosas do corpo humano e como que engajada em constante contenda contra processos causadores de desarmonia e desintegração, tal como epitomado pelo caso da doença. Esses estudiosos perceberam as interações incessantes entre a disposição interna do organismo e o meio externo, e as tomaram como base para a compreensão da individualidade humana e sua suscetibilidade às diversas influências.

Os estudiosos modernos têm identificado permanências e rupturas entre a elaboração considerada 'típica' de Montpellier (como a de Bordeu) e a de Barthez. De acordo com Charles T. Wolfe e Motoichi Terada (2008, p.539), ambos rejeitaram o apelo stahliniano à alma como princípio explicativo para invocar um outro, relacionado à atividade do corpo humano vivo. Para Bordeu, esse princípio era resultado da organização coordenada dos órgãos, tese completamente rejeitada por Barthez, que considerava o princípio vital fundamento do sistema e, portanto, causa e não resultado de sua organização. Uma interpretação similar é apresentada por Elizabeth L. Haigh (1977, p.1-2), ao afirmar que o elemento distintivo consistiria no fato de que, para a tradição emblematizada por Bordeu, o princípio de animação é imanente à matéria, ao passo que, para Barthez, ele seria uma instância separada e exterior a ela.

Outros autores, no entanto, insistem em apresentar generalizações dicotomizadas como, por exemplo, a tese de que o vitalismo foi o elemento de distinção entre a medicina de Paris e aquela de Montpellier, no século XVIII. Barthez, que precisamente por isso foi objeto deste estudo de caso, ilustra o risco implícito de tais polarizações. Vitalista convicto - como bom montpellerino -, aplicou em seu raciocínio conceitos e métodos tipicamente atribuídos a Paris pelos estudiosos: determinismo das leis universais da natureza; uso da matemática na análise dos resultados de observações e experimentos; negação da existência de finalismo na natureza - todos, na verdade, devidos à influência da nova ciência inglesa (Williams, 2003, cap.2).

A análise que apresentamos será, provavelmente, útil para a compreensão de um incidente curioso e sem explicação até o presente, porém muito relevante, uma vez que inclui a primeira menção do termo vitalista na história. No prefácio de Principes de physiologie, publicado em 1800, seu autor, Charles-Louis Dumas, escreve:

diferentes maneiras de ver as causas que dirigem os fenômenos da economia animal originaram diferentes hipóteses, que possuem, todas, vícios mais ou menos consideráveis. Todas provêm de aplicações abusivas que os Filósofos e os Médicos fizeram à doutrina do homem vivente, ora das ciências físicas, ora das ciências metafísicas. Aqueles que abusaram das ciências físicas deram origem à anciã e numerosa seita dos materialistas. Aqueles que abusaram das ciências metafísicas originaram a seita não menos anciã dos espiritualistas. Entre elas, existe uma terceira classe de Fisiologistas, que não associam todos os fenômenos da vida nem à matéria nem à alma, mas sim a um princípio intermediário com faculdades diferentes de uma e de outra e que regula, dispõe, ordena todos os atos da vitalidade, sem que seja movido pelos impulsos físicos do corpo material nem aclarado por afecções Morais ou as previsões intelectuais do princípio pensante. Dessas três seitas derivam todas aquelas que criaram os fisiologistas até o presente. A primeira fez nascer os sistemas dos Mecanicistas e dos Químicos; a segunda deu origem àquela dos Animistas e dos Stahlianos; a seita dos Vitalistas seguiu-se à terceira (Dumas, 1800, p.65-66).

É evidente que Barthez pertencia a essa terceira orientação8 e surpreende que, na edição de 1806 de Nouveaux éléments, se tenha mostrado ofendido com a 'acusação' de ser vitalista, ou pior, de ser o "Chefe da Seita" (Barthez, 1806, v.1, p.96-100). No presente trabalho, não nos interessa determinar se Barthez estava 'certo' ou 'errado', se a 'acusação' de Dumas era fundamentada ou não, e sim o fato de que a argumentação de sua resposta nos permite compreender melhor o que ele tinha em mente ao introduzir um princípio vital em fisiologia.

Barthez (1806, v.1, p.96-100) alega ter reportado os fenômenos fisiológicos à ação de um princípio vital por estar convicto de que, dessa forma, contribuía ao propósito de fazer avançar a ciência do homem. Esse princípio era, segundo ele, um ente de razão, uma abstração tomada dos fenômenos da natureza devido às características do processo de conhecimento humano. Por esse motivo, o autor hipostasiou o princípio vital - abstração derivada dos fenômenos - como uma 'entidade' com existência real, embora artificial, atribuindo-lhe uma natureza fixa e rigorosa. Seria uma espécie de mecanismo heurístico que se tornara útil, na prática, para dar conta da fisiologia, da patologia e da terapêutica. A esse respeito, mais uma vez Barthez recorre a Francis Bacon, para quem, segundo o autor as noções abstratas e as expressões gerais das causas estabelecidas em uma ciência de fatos podem servir ao avanço da ciência uma vez que sejam úteis para classificar os fatos e combiná-los em analogias esclarecedoras (p.86-100).

Barthez contradiz explicitamente as teses que apresenta em Nouveaux éléments, mesmo em sua segunda edição, nas quais a hipóstase não é a de um ente de razão, um princípio heurístico; ela é definida com um estatuto ontológico bem preciso. Chama a atenção o fato de que Barthez, na segunda edição da obra, em vez de modificar as partes pertinentes, tenha apenas acrescentado sua resposta às 'acusações' de Dumas. Infelizmente, não há fontes documentais que permitam esclarecer tal contradição.

Outro fato notável é que, para definir o princípio vital, Barthez utilizou um processo de raciocínio matemático muito semelhante ao que, duzentos anos mais tarde, Hans Driesch (1867-1941) elaboraria para o conceito de enteléquia como a propriedade determinante da singularidade da vida. Esse modo de raciocinar foi rigorosamente desenvolvido, com base no trabalho de Joseph Fourier (1768-1830), por Johann P.G. Lejeune-Dirchlet (1805-1859) como o conceito moderno de função matemática, levado às ciências naturais por Heinrich W. Dove (1803-1879) e, mais especificamente, às ciências da vida pelos fisiologistas Emil du-Bois-Reymond (1818-1896), Carl Ludwig (1816-1895) e Hermann Von Helmholtz (1821-1894) (Waisse-Priven, 2009). No caso de Barthez, trata-se de aplicar o raciocínio algébrico (que ele denomina geométrico) e representar o fator (a "qualidade oculta") que determina a vida como a incógnita x em uma equação. Por isso, afirma que Dumas, nesse sentido, o interpretou corretamente: "A coisa que se encontra nos seres vivos e que não se encontra nos mortos, a chamaremos de Alma, Arqueu, Princípio Vital, X, Y, Z, como as quantidades desconhecidas dos Geômetras. Não nos resta senão determinar o valor dessa incógnita, cuja suposição facilita os cálculos dos fenômenos que conhecemos e aqueles que procuramos conhecer" (Barthez, 1806, p.16, Notas).9

Considerações finais

François Duchesneau (1997) sustenta que não se pode falar em vitalismo, mas sim em vitalismos, uma vez que a teoria teve formas muito variadas, conforme os diferentes contextos e as escolas. O autor identifica, no século XVIII, três loci principais para a gênese dessa abordagem: a escola de Montpellier, da qual Barthez apresentaria a versão definitiva; a escola de Göttingen, representada por Johann F. Blumenbach (1752-1840); e a escola de Edimburgo, que alcançaria sua formulação derradeira com John Hunter (1728-1793). Duchesneau (p.307) define a especificidade de Montpellier como "influenciada conjuntamente pela tradição microestrutural e por certos temas stahlianos, orientada segundo as exigências de uma prática que pretende beber nas fontes metodológicas do hipocratismo". No entanto, não leva em conta os elementos da matemática e do empirismo inglês no pensamento de Barthez. Além disso, tudo parece indicar que a tradição forte do hipocratismo esteve localizada em Paris, e não em Montpellier, com os reconhecidos 'hipocráticos de Paris' do século XVI, bastante mencionados pela maioria dos autores médicos do século XVIII: Jacques Houllier, Louis Duret, Guillaume de Baillou e Desidère Jacot (Lonie, 1985).

No outro polo da escala hermenêutica, Wolfe e Terada (2008, p.555) reinterpretam o conceito de vitalismo de Montpellier como se fosse apenas uma forma de "mecanicismo expandido". Quanto às teses de Barthez, os autores depreciam toda a construção sobre o princípio vital, qualificando-a como mera entidade abstrata. E concluem que o autor francês poderia ser classificado, junto a Haller, como newtonianista vital (p.565), não obstante os esforços de Barthez para diferenciar sua visão daquela de Haller. O tipo de consideração tecida por Wolfe e Terada, ao mesmo tempo lembra e contradiz a mencionada advertência de Coleman (1977), feita há mais de 35 anos, acerca do cuidado necessário com a nomenclatura adotada, ao longo da história, para explicar a vida e seus fenômenos.

De todo modo, o termo 'vitalismo' ficou ligado aos nomes de Bordeu e Barthez, o que nos permite concluir que, ao menos em sua origem, o conceito teve uma raiz médica, nutrida por singulares vínculos entre Paris e Montpellier.

NOTAS

Recebido para publicação em maio de 2010.

Aprovado para publicação em novembro de 2010.

Referências bibliográficas

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  • *
    A participação de Silvia Waisse é decorrente de seu pós-doutorado, com bolsa Fapesp, processo 2007/59694-0.
  • 1
    Nesta e nas demais citações de textos em outros idiomas, a tradução é livre.
  • 2
    A literatura sobre vitalismo e sua história é muito extensa. No entanto, quase não há revisões sistemáticas dessa literatura, tal como as oferecidas por Rey (1997), publicada, ainda que inconclusa, nos anais do Simpósio de Zaragoza, Vitalisms From Haller to the Cell Theory, e por Waisse-Priven (2009, cap.1).
  • 3
    Bordeu (1980) comenta que foi ele quem redigiu a primeira edição de
    Specimen novi medicinae conspectus de La Caze, ao passo que a edição seguinte da obra foi feita por Venel. Deve-se lembrar, contudo, que La Caze e Bordeu escreveriam conjuntamente
    Idée de l'homme physique et morale (La Caze, Bordeu, 1775).
  • 4
    No presente artigo, recorremos às três edições dos
    Nouveaux éléments, de Barthez: a primeira, datada de 1778, a segunda - corrigida e aumentada pelo autor - de 1806, e a terceira, reeditada em 1858 pelo sobrinho-neto de Barthez. As citações neste artigo são da segunda edição da obra, tendo em vista que nela Barthez esclarece diversos conceitos e conserva a organização originalmente estabelecida por ele.
  • 5
    Embora as noções de o físico e o moral do ser humano tenham sido popularizadas por Pierre-Jean-George Cabanis, em sua obra
    Rapports du physique et moral de l'homme, de 1802, o conceito fora desenvolvido em 1775, por La Caze e Bordeu em
    Idée de l'homme physique et moral (Williams, 1994, p.8).
  • 6
    Cabe lembrar, entretanto, que as ideias de Medicus não exerceram qualquer influência no mundo de fala alemã (Waisse-Priven, 2009, p.95).
  • 7
    A obra de Willem 's Gravesande a que Barthez se refere é
    Physices elementa mathematica experimentis confirmata, o que denota, mais uma vez, suas tendências epistemológicas e, em particular, seu interesse pela matemática e pela abordagem empírica.
  • 8
    De fato, Dumas não menciona explicitamente Barthez, mas a alusão era tão clara que este sentiu imediatamente o 'golpe' (Rey, 1997, p.21-22; Williams, 2003, p.276).
  • 9
    Comenta Barthez (1806, p.17) ainda que havia estabelecido essa comparação com a álgebra em sua
    Nouvelle méchanique analytique des mouvements de l'homme et des animaux, de 1798: "Os nomes das qualidades ocultas são úteis para simplificar o cálculo dos fenômenos ... Esses nomes são utilizados como as letras da Álgebra".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Set 2011

    Histórico

    • Aceito
      Nov 2010
    • Recebido
      Maio 2010
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