Open-access Contribuições do pensamento de Didier Fassin para uma análise crítica das políticas de saúde dirigidas a populações vulneráveis

Contributions of the thought of Didier Fassin to a critical analysis of healthcare policies for vulnerable population groups

Resumos

Reflete sobre as contribuições dos últimos 14 anos de Didier Fassin em sua análise de questões apontadas pelo fenômeno migratório, sobretudo na França, no contexto contemporâneo. Sob sua perspectiva, torna-se fundamental compreender os usos políticos por trás do advento da 'razão humanitária' e do 'império do trauma', operadores fundamentais na sociedade atual para entender os sofrimentos causados por grandes e pequenas crises e o modo de ação das forças sociais a elas relacionadas. Retomando os conceitos foucaultianos de 'biopolítica' e 'biopoder', Fassin problematiza, criticamente, ações de ajuda e assistência aos 'indesejados' e seus modos de vida, marcados pela inscrição e desinscrição social por meio do corpo e do trauma.

direito humanitário internacional; migração; estresse psicológico; antropologia; saúde pública


This is a reflection on the contributions made over the last 14 years by Didier Fassin, in his analysis of issues raised by the phenomenon of migration in contemporary times, especially in France. He regards it as fundamental to comprehend the political uses behind the advent of 'humanitarian reason' and the 'empire of trauma', which underpin society today, in order to understand the suffering caused by large and small crises and the way social forces related to them act. Drawing on Foucault's concepts of biopolitics and biopower, Fassin makes a critical appraisal of the aid and assistance provided for society's 'unwanted' and their lifestyles, marked by social inclusion and exclusion via the body and trauma.

international humanitarian law; migration; psychological stress; anthropology; public health


Didier Fassin, médico, sociólogo e antropólogo francês, é atualmente professor de ciências sociais na cátedra James D. Wolfensohn no Institute for Advanced Study de Princeton e também diretor de estudos de antropologia política e moral na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) em Paris. Suas pesquisas acadêmicas concentram-se em analisar as relações sociais, políticas e morais nas sociedades contemporâneas, principalmente do ponto de vista da promoção e do controle da saúde. A partir de etnografias e análises da condição de migrantes, estrangeiros e excluídos em solo francês e em outras partes do mundo - África do Sul, Senegal e Venezuela, principalmente - , Fassin orientou suas pesquisas para o que chamou de 'economias morais', ou seja, os jogos normativos e sociais que fundam práticas políticas. Sendo ele também um antigo membro, e mesmo vice-presidente, da organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras, fato que parece marcar seu percurso, Fassin analisa o tratamento dado à pobreza, às vítimas de guerras e catástrofes, aos migrantes em geral, do ponto de vista do corpo e da crescente racionalidade humanitária que se configura como fundamental nesse campo político.

O objetivo deste artigo é explorar a perspectiva analítica proposta por Fassin a partir de alguns de seus trabalhos dedicados aos temas da exclusão social, da migração internacional e do advento das lógicas do trauma e do humanitarismo como atores políticos contemporâneos. Esses temas, também presentes na área da antropologia médica, podem ser pensados como uma aproximação para a compreensão sobre os modos de controle e cuidados ainda presentes em discurso e práticas correntes em algumas áreas da saúde pública e das políticas públicas, especialmente aquelas voltadas para os grupos identificados como 'populações vulneráveis' ou em 'risco social'. Dentre esses grupos, a intenção foi destacar migrantes, solicitantes de refúgio e refugiados, pois, como se verá, o percurso científico de Fassin expressa influência de seus trabalhos sobre a vida dessas pessoas na França. Como procedimento para seleções dos conceitos e significados empregados pelo autor, elegeram-se publicações do período de 1998 a 2010 voltadas para temas como o sofrimento social, o trauma, a compaixão e as figuras urbanas da saúde pública e, ainda, a articulação feita por Fassin dos conceitos foucaultianos de biopolítica e biopoder como apoio para as reflexões propostas. Essas publicações foram separadas para fins de análise. Ressalta-se que a leitura do material possibilitou identificar seus principais interlocutores - Veena Das, Richard Rechtman, Arthur Kleinman, entre outros, autores que buscam analisar o sofrimento, pessoal e social, e se interessam pelo tema do 'traumático', em diferentes grupos sociais, particularmente, migrantes, pessoas vivendo em condições de precariedade ou em situação de ilegalidade.

Ao observar a cronologia dos textos de Fassin é possível perceber certa ordem sucessiva em seus temas de análise. Iniciando-se com o estudo da ação da saúde pública em problemas sociais na França (grupos excluídos, como os consumidores de drogas especialmente, e as correspondentes ações de higienização e de promoção de uma escuta individualizada do sofrimento em detrimento de uma ação nos problemas coletivos), percebe-se a entrada do autor no tema das migrações. É na análise de grupos excluídos e grupos 'preferidos' pelo discurso medicalizante da saúde pública que Fassin se depara com imigrantes: ilegais, refugiados, fugitivos, estrangeiros de toda sorte. Por sua vez, é a partir da análise desses grupos e de suas relações com as políticas públicas e os modos sociais e morais de compreensão da questão do sofrimento que Fassin se encontra, finalmente, com o que ele nomeou como 'o império do trauma' e o 'governo humanitário': a noção de 'trauma' torna-se historicamente fundamental na compreensão das relações sociais, das políticas de saúde e de contenção de catástrofes e da justificativa da razão humanitária como forma moral cada vez mais em jogo nas relações institucionais e de poder. Esses são os temas principais abordados pelo autor no período analisado.

O pensamento de Fassin insere-se, a nosso ver, em um contexto histórico marcado por transformações globais que influenciam, também, sua reflexão. Desse modo, ressaltamos a importância de seus escritos no contexto atual.

Estamos diante de um novo cenário nesse início de século. A crise econômica e social visibilizada em 2008 nos países do hemisfério norte apresenta novos contornos, a migração internacional se complexifica, e suas rotas crescem em número e volume, ao mesmo tempo em que os países criam novas formas de lidar com ela ao gerenciar novas economias morais - aqui entendidas como decisões individuais, políticas e sociais baseadas em julgamentos de valor, ou seja, em princípios culturalmente fundados.

A imagem do imigrante como portador de riscos e malefícios sociais, pessoa de costumes 'estranhos', ainda permanece, sobretudo para os de origem negra e de religião islâmica ( Fassin, 2001a ): diferentes estratégias de contenção são estabelecidas, desde a dificuldade em conceder vistos até o fechamento das fronteiras europeias e os desafios impostos pela criação do espaço Shengen, passando pela permissão de estada por motivos humanitários dada apenas aos imigrantes portadores de doenças graves, como na França ( Fassin, 2001a ). Como no passado, o sujeito que migra continua sendo alvo de suspeitas e de políticas de filiação xenofóbica, como se pode observar nos vários exemplos vindos de países como França, Itália e Espanha, sobretudo após as recentes ondas migratórias de países como a Tunísia, o Marrocos e a Líbia desde o início de 2011. Assim, o número declarado de pessoas que demandaram asilo político no mundo industrializado, já em 2005, foi o menor desde 1987 ( Riera, 2006 ) e continuou a cair nos países mais desenvolvidos, como um exemplo do sucesso da política de fechamento de fronteiras dos países historicamente receptores de numerosas demandas de imigração, mas também como resultado da formação e do fortalecimento de novas rotas migratórias e do retorno aos países de origem, como se pode observar no caso do Brasil ( Seyferth et al., 2007 ).

Mattos ( 2007 ) também salienta a 'descategorização' dos imigrantes, cujos 'títulos sociais' são cada vez mais difíceis de ser definidos quando se observa, por exemplo, a jornada e a estratégia utilizada por migrantes para a inserção em seus países-alvo. Essa estratégia pode passar pelos pedidos de permissão de trabalho e estudo, pela forma do turismo, pelo pedido de asilo político, bem como por meio das redes ilícitas de migração. Essas estratégias, segundo Mattos, assemelham-se também às formas de redes de solidariedade e comerciais criadas naqueles países-alvo. Dessa forma, cada vez mais os refugiados 'originais' se veem misturados aos sans papiers , 'indesejados' etc., que procuram usar as mesmas rotas e os mesmos traficantes de pessoas para chegar a países com melhores condições de vida ( Riera, 2006 ; Pollock, 2011 ).

A denominação 'indesejados' foi proposta, entre outras, por Agier ( 2008 ), que a utiliza para se referir às 'pessoas menos pessoas', ou melhor, àquelas que, apesar de se ter conhecimento de sua existência, toma-se como não presentes (ou seria melhor que assim fossem) ou como não aptas ao alcance de certos direitos.

Essas discussões são levadas em conta por Fassin ao analisar o contexto em transformação das migrações internacionais e suas consequências, razão pela qual sua trajetória teórica deve também ser observada à luz desse panorama atual, bem como do fortalecimento da assistência humanitária privada e estatal e do crescimento dos usos do conceito de trauma como operador das crises sociopolíticas mundiais contemporâneas. A seguir serão analisados, por ordem cronológica, alguns conceitos propostos por Fassin ao considerar essa problemática.

Os 'locais de escuta'1

O primeiro trabalho de Fassin ( 1998 ) a ser comentado é seu estudo sobre as 'figuras urbanas da saúde pública', que consiste em uma análise sobre como a saúde pública mostra-se nas experiências micropolíticas, locais e comunitárias.

O pesquisador afirma que os dispositivos criados na França buscando favorecer o acesso à saúde dos mais vulneráveis enquanto estruturas comunitárias que envolveram não só médicos e psicólogos, mas também educadores, engenheiros, assistentes sociais, entre outros, foram um modo de transformar as políticas sanitárias em resposta a problemas do sofrimento social, ou seja, aquele que é partilhado de modo coletivo, de natureza social, e não exclusivamente individual, portanto não passível de ser tratado mediante a medicalização ou a terapia centrada no sujeito. Nota-se já nesse trabalho a preocupação de Fassin em demonstrar que as ações propostas para lidar com grupos excluídos e indesejados na França se pareciam mais com modos morais de intervenção, frequentemente com a ajuda da psicoterapia, por meio dos denominados locais de escuta, do que com reais propostas de transformação da realidade vivida por aquelas pessoas, já que se tratava de questões que deveriam ser percebidas também a partir de seu viés social e político. A intervenção da saúde pública na cidade parecia contribuir com a manutenção das exclusões sociais ao propor certos modos de ação.

Jaqueline Ferreira ( 2006 ) comenta essa estratégia em uma resenha do livro Des maux indicibles: sociologie des lieux d'écoute [Dos males indizíveis: sociologia dos locais de escuta], escrito por Fassin em 2004. De acordo com ela, o objetivo de Fassin nesse estudo é mostrar como a noção de sofrimento psíquico impõe-se de modo a explicar os males vividos pelos sujeitos à margem da sociedade, propiciando a criação de estratégia de escuta como instrumento psiquiátrico e até mesmo social para lidar com a questão. Foi esse o dispositivo proposto na França com o nome lieux d'écoute : locais que se podia frequentar e falar de seus problemas, sabendo-se que haveria uma 'escuta'.

Para a autora, a principal pergunta suscitada por essa fase das pesquisas de Fassin é justamente qual o significado de traduzir problemas de desigualdade social em sofrimento psíquico e de responder a isso propondo um local de escuta, e não outra estratégia, como foi feito pelo governo francês. Ao fazer isso, por um lado cria-se nos indivíduos clientes desses locais uma identificação com um papel de vítima de um contexto (sobre o qual nada se poderia fazer) e uma explicação biográfica para seu sofrimento. Dessa forma, calam-se as denúncias de violações institucionais e as interpretações de ordem mais geral do que se passa no contexto da vida desses sujeitos. Para Ferreira ( 2006, p.309-310 ):

A conclusão que nos oferece Didier Fassin é que estes locais de escuta, enquanto políticas sociais, têm função exclusivamente reparadora. A resposta que a sociedade oferece escutando o sofrimento das vítimas de desigualdade social revela uma dupla preocupação: pacificação (questões de ordem pública com intervenções locais restritas) e compaixão (os gestos dos usuários são lidos em termos afetivos). Onde práticas preventivas e repressivas são pouco eficazes, o Estado oferece uma resposta humanizada e imediatamente visível através da escuta.

Observa-se então que as pesquisas sobre as figuras urbanas da saúde pública e os 'locais de escuta' já demonstram um início da preocupação do autor com dispositivos e normas reparadoras mediadas pela compaixão com o sofrimento do outro, em detrimento de uma proposta mais comprometida com o real problema desses sujeitos que, em busca de solução, recebem uma escuta e acabam por conseguir apenas uma forma de 'apoio emocional'.

A migração: questão social, de saúde, de segurança ou moral?

As migrações internacionais aparecem com mais clareza na obra de Fassin a partir de análises realizadas por ele principalmente na França, sua terra natal. São essas análises que irão gerar algumas das principais contribuições do autor para uma discussão sobre a compaixão e os modos morais de lidar com o sofrimento social.

A ideia da compaixão aparece sobretudo na análise que Fassin faz dos fluxos migratórios para a França nas décadas de 1990 e 2000, período de grande parte de suas obras privilegiadas neste artigo ( 2001a , 2001b , 2001c , 2006a , 2006b , 2009 ). Ao apontar três grandes períodos da legislação francesa recente sobre migrantes ('o doente suspeito', antes dos anos 1990; 'o doente tolerado', de 1990 a 1996; 'o doente legítimo' a partir de 1997), Fassin ( 2001b ) aponta que o estrangeiro 'indesejado' passa a ser reconhecido pelo seu sofrimento, ou seja, como um corpo portador de um mal que pode então demandar um pedido de estada legalizada em solo francês. O corpo torna-se local onde a compaixão pode ser exercida, ao contrário do que era no passado, quando o corpo do migrante interessava pela força de trabalho que ele significava: "O corpo tornou-se local de inscrição das políticas migratórias, definindo o que chamamos, usando uma terminologia foucaultiana, de 'biopolítica da alteridade'" 2 (p.4). O sofrimento torna-se um modo de reconhecimento, até jurídico e diplomático, e propicia uma 'política do corpo' baseada na compaixão pelo sofrimento alheio.

Fassin adverte que essa estratégia de privilegiar o corpo na negociação da legitimidade de estada no país tem efeitos claros na identidade dos imigrantes. Ao analisar o microcontexto em que a doença do migrante é avaliada, Fassin mostra como os critérios não só variam dependendo do profissional de saúde responsável pela avaliação como também por meio de artifícios encontrados pelos próprios migrantes ao aperceberem-se do modo como serão avaliados, criando "um doente que não está em busca de cuidados e um profissional de saúde que não está apto a tratá-lo" ( 2001b, p.28 ) 3 - pois não é tratamento o que está sendo buscado, mas sim reconhecimento e possibilidades de vida, tampouco o tratamento proposto irá transformar a realidade vivida pelos migrantes.

Esse também é o foco de Ferreira ( 2004 ), em trabalho no qual analisa um serviço de uma organização humanitária francesa que presta atendimento aos imigrantes que chegam à França. A autora salienta que os pacientes utilizam-se de algumas estratégias para ser mais bem atendidos, como, por exemplo, a roupa - feia e velha - com que se apresentam para ir à consulta. A percepção do corpo e das roupas, diz a autora, muda a relação da equipe com os pacientes, pois uma percepção de melhor status socioeconômico poderia significar um tratamento diferente por parte dos médicos, que chegam a manifestar aos pacientes que aparentam melhor status social que eles não deveriam procurar aquele serviço, pois afinal de contas não precisariam disso. O corpo do imigrante, aqui também, carrega sinais da história social e da relação consigo mesmo e com os outros, mas deve ser apresentado de modo a confirmar o perfil de doente ou de vítima desejado pelas instituições, pois fazê-lo de outro modo pode descaracterizar a própria noção de ajuda.

A nosso ver, o pano de fundo dessa discussão aberta por Fassin é permeado pelo debate sobre a soberania e a segurança nacionais, os direitos humanos e o direito à mobilidade, que vai além do debate sobre o sofrimento e a compaixão. Esses elementos - soberania nacional, segurança nacional, direitos humanos e direito à mobilidade - são temas historicamente relacionados à abertura (ou ao fechamento) de fronteiras ( Andrade, 2005 ; Reis, 2004 ). Resumidamente, um país pode compreender que a entrada de estrangeiros afeta de modo negativo as relações sociais, econômicas e políticas de seus cidadãos, razão pela qual opta por restringir o acesso dessas pessoas. Por outro lado, a migração é não só componente fundamental da existência humana como também é parte integrante do sistema econômico contemporâneo, fato que pode ser comprovado por diversas pesquisas e relatos tanto atuais como passados ( Seyferth et al., 2007 ; Mattos, 2007 ; Andrade, 2005 ).

Ao verificar as estratégias utilizadas pelo governo francês para lidar com os estrangeiros pelo viés da saúde e da doença, quando não da saúde e da doença mentais, dispositivo ainda mais interessante e controverso, Fassin salienta como esse modo de ação pública desmancha e despotencializa os próprios indivíduos que deveriam ser beneficiados por ele, uma vez que desqualifica suas histórias e demandas ao exigir que se tenha uma doença para ser aceito no país e ao permitir como possibilidade de vida apenas um modo passivo e dependente de ajuda e compaixão alheias.

Portanto, o tema dos direitos humanos, mesmo que não nomeado como tal, está presente nos textos de Fassin nas críticas que o autor faz a essa abordagem aos imigrantes. O tema da saúde, por sua vez, é usado como estratégia de possibilidade de migração, sob o prisma da moralidade compassional, daquela que permite a estada do estranho a partir da ajuda que se pode prestar a ele, e não a partir de suas próprias demandas, das quais é preferível não tomar conhecimento.

Examinaremos em seguida como os conceitos de sofrimento social e compaixão continuam a articular o pensamento de Fassin sobre os modos contemporâneos de reparação e cuidado decorrentes do trauma, das catástrofes e das vidas precárias e indesejadas.

O sofrimento social e sua contrapartida - a compaixão

O conceito de 'sofrimento social', também presente nas análises sobre os 'locais de escuta' e os imigrantes, aparece com destaque nas obras dos antropólogos Veena Das e Arthur Kleinman, interlocutores de Fassin. No entanto, pode-se observar a aproximação de Fassin desse conceito, sobretudo em textos como "Et la souffrance devient sociale: de l'anthropologie médicale à une anthropologie des afflictions", de 2004, em que ele analisa publicações de Das e Kleinman, e em L'empire du traumatisme , de 2007, escrito com Richard Rechtman. É Kleinman ( 1997 ) quem define a noção de sofrimento social de modo mais claro e direto: o sofrimento é, sem exceção, uma experiência interpessoal ou intersubjetiva, o que o torna necessariamente social. Já para Fassin, no entanto, a preocupação que emerge no mundo contemporâneo com o sofrimento é um modo de individualizar as consequências de situações e posições sociais advindas de um contexto mais amplo.

Essa preocupação demonstra uma mudança profunda na economia moral da sociedade francesa e mesmo das sociedades ocidentais: o que Fassin denominou movimento da compaixão, no qual sentimentos como a empatia, a sensibilidade ao mal-estar do outro, a preocupação com esse outro, bem como uma paixão pela intimidade e uma busca pela proximidade, impactam o pensamento das políticas públicas e também das ações privadas. Esse resultado não é imediato nem exclui posturas de total indiferença ao outro ou buscas por sua exclusão, mas a 'invenção do sofrimento social' mostra, além das transformações na nosografia e práticas 'psis', uma influência dos sentimentos morais no repertório das políticas públicas ( Fassin, 2006a ), que deriva na noção de governo humanitário.

As sobreposições da antropologia e da medicina, cobertas pelos trabalhos de Kleinman e Das, podem ser observadas também no estudo realizado por Fassin a respeito da realidade vivida pelos doentes de HIV/Aids em um hospital de Johanesburgo, África do Sul, cujo objetivo foi compreender as formas de cuidado empregadas pelos profissionais locais ( Fassin, 2008 ). A proposta de Fassin foi realizar uma etnografia sobre as formas de cuidado dos doentes de HIV/Aids naquele país, ressaltando as diferenças entre a expectativa de cuidado dos pacientes e o que lhes é oferecido de fato pelos profissionais, no contexto das transformações sociais pós- apartheid e das dificuldades políticas e econômicas que o país teve que enfrentar.

Do mesmo modo que Das e Kleinman ( Das et al., 2000 ; 2001 ), comparando-se o ponto de vista médico tradicional com o ponto de vista antropológico, pode-se dizer que o primeiro ocupa-se da 'dor', dos afetos sentidos no corpo ou em suas partes, e o segundo ocupa-se do 'sofrimento', ou dos afetos abertos à reflexão, ao questionamento, ao contato consigo mesmo e então com o outro ( Fassin, 2008 ). Porém, a 'dor' também pode falar, também pode expressar vivamente uma história, assim como o 'sofrimento' pode calar ou apresentar-se sem linguagem. Desse modo, como compreender o sofrimento do outro?

No artigo publicado em 2004, Fassin, ao comentar um dos trabalhos da antropóloga indiana Veena Das, aponta a dificuldade remetida pela autora em lidar com o sofrimento do e no outro, considerando que uma das características do sofrimento é a marca da alteridade, entre aquele que sofre e aquele que é testemunha. São dois pontos de vista e duas posições diferentes na relação entre pessoas. Para resolver esse desafio, a autora citada por Fassin recorre aos trabalhos do filósofo alemão Ludwig Wittgenstein ( Das, 2007 ), ressaltando que, na investigação etnográfica do sofrimento, é preciso compreendê-lo como uma pesquisa por meio do outro, não no outro. Fundamental também é compreender que a escuta do sofrimento e da violência é duas vezes posta em questão: pelo que é possível ser compreendido e pelos efeitos que podem ser produzidos ao procurar escutar. Ainda que o silêncio fale, tanto o léxico corrente é colocado em questão por não ser suficiente ou preciso o bastante para expressar o que acontece quanto o fato de que o sofrimento fala para além de si: ele remete necessariamente à violência que o causou, mas não pode ser sempre representado pela linguagem ( Fassin, 2004 ; Carvalho, 2008 ).

Retomamos novamente aqui a criação dos dispositivos franceses conhecidos como locais de escuta, como exemplares das dificuldades e consequências das propostas para lidar com o tema do sofrimento na esfera pública e estatal. Junto com esses dispositivos e por meio deles apareceu na França uma nova linguagem para qualificar os problemas sociais, suas consequências sobre os indivíduos bem como as subsequentes soluções que poderiam ser propostas pelo poder público: "Os problemas foram correlacionados à exclusão, as consequências foram interpretadas em termos de sofrimento e as soluções foram propostas ao redor dos locais de escuta" 4 ( Fassin, 2006a, p.138 ). Os termos exclusão, sofrimento, escuta, denotam o caráter compassional do modo de encarar os problemas sociais e públicos, estratégia essa que aparece mais uma vez como recurso de análise preferido das formas de pensar e agir sobre o sofrimento e os problemas sociopolíticos.

Para que uma configuração semântica seja criada e adquira um reconhecimento considerável na sociedade, como portadora de uma 'explicação' para algo, é necessário que essa configuração seja autorizada a explicar e capaz de dar respostas plausíveis. Na França dos anos 1990, a saúde mental ocupou essa posição em relação às questões sociais, emprestando seu vocabulário para profissionais e gestores do sistema de saúde, interpretando então esses problemas na frequência da exclusão e do sofrimento necessitados de uma escuta. Assim, torna-se possível analisar a inovação social e a cristalização de representações e ideias introduzida pela saúde mental como corpo de profissionais e saberes que influenciam o discurso e a prática das políticas nacionais francesas voltadas para o 'social' ( Fassin, 2006a ).

Carvalho ( 2008 ) discorre sobre o conceito de sofrimento social à luz dos trabalhos de Veena Das: esse sofrimento é o reflexo de experiências variadas de dor, de traumas, de problemas, não só ligados a violências, mas também à fome, doenças crônicas, situações-limite. Da sua leitura de Arthur Kleinman, o autor afirma: "o que melhor caracteriza o sofrimento social é sua compreensão não como problema médico ou psicológico, o que reforçaria sua dimensão individual, mas como uma experiência social" (p.10-11).

Fassin ( 2004 ) também recortará esse olhar de Das ao especificar o sofrimento advindo da violência: a experiência de tal violência é que gera o sofrimento, porém, esse sofrimento é resultado também de memória, individual e coletiva, de representações, íntimas, midiáticas ou coletivas: "seu sentido, para as vítimas, os perpetradores ou as testemunhas, excede sempre a simples realização do ato [violento]" 5 (p.23). Mesmo quando inscrita em um ou em poucos corpos, tanto a violência quanto o sofrimento que a constitui são coletivos e são, quase sempre para o antropólogo, um relato, uma defasagem no tempo, já que não são uma descrição da própria atualidade do ato, mas sim do discurso de sua memória por uma vítima-testemunha.

À propósito da memória - que memória? Ela existe de fato? Como acessá-la? Em uma situação de dor extrema, de contato com o limiar da morte, ela é representável? Esse é um tema caro para as discussões sobre o trauma, para as correntes psicológicas e para a economia moral humanitária.

Assim, o imbricamento de categorias morais e psíquicas justificando ações públicas e políticas também pode ser observado no tratamento dado aos 'indesejados' - particularmente aos que chegam aos países europeus e, na análise de Fassin, na França, como será observado a seguir. O advento do 'império do trauma', ou da noção de traumático como valor moral principal para a reorganização de problemas sociais, políticos e econômicos em situações de grande impacto, como as catástrofes, é outro fator relacionado tanto a esse 'movimento de compaixão', pois agrega-se a uma certa razão humanitária que governa políticas nacionais e internacionais - a ajuda humanitária é até razão de intervenção bélica, como se pode observar em conflitos na Líbia (2011), no Haiti (2008) e no Afeganistão (2003) - , quanto ao fortalecimento da noção de sofrimento no seu modo individual e coletivo. A trajetória teórica de Fassin leva-o a primeiro problematizar o sofrimento e o seu interlocutor, a compaixão, para então chegar às noções de trauma, traumatismo e de governo humanitário como operadores coletivos.

Trauma: do conceito de crise à crise como possibilidade de ação política

Ressalta Fassin que todo tratamento do sofrimento causado por uma violência supõe uma política da memória ( 2004, p.26 ), de modo que o passado possa se fazer presente por dispositi-vos individuais ou coletivos. Isso é corroborado por Rosa et al. (2009), por outros autores da área da saúde mental e sobretudo pela tradição psicanalítica que se propõe a pensar no tratamento de uma situação dita traumática ( Ferenczi, 1982 ; Nathan, 1988 ; Knobloch, 1998 ).

Baseado na obra Violence and subjectivity , de Das et al. ( 2000 ), Fassin ( 2004 ) enumera cinco modos possíveis e usuais para se lidar com o sofrimento: o modo jurídico (como o proposto pelo Tribunal Penal Internacional); as Comissões de Verdade e Reconciliação (como a da África do Sul pós- apartheid ); as estratégias culturais (como museus, exposições etc.); as lógicas comunitárias (como os grupos que buscam desaparecidos políticos) e, por fim, um processo de medicalização instaurado pela psicologização do sofrimento produzido pela violência e pela criação de categorias nosográficas psiquiátricas, como o conceito de estresse pós-traumático - como pode ser observado, por exemplo, no Brasil, após as tragédias da região serrana fluminense em janeiro de 2011, com o deslizamento de encostas e o alto número de vítimas fatais. O trauma e o sofrimento, sendo polissêmicos e complexos, permitem diversos modos de pensar sua elaboração, tanto do ponto de vista da cultura e do indivíduo quanto do ponto de vista político.

Fassin ( 2004 ) ressalta que os modos de lidar com o sofrimento gerado a partir da violência são modos absolutamente recentes, apesar de a violência existir desde sempre. Ressalta também que esses modos compreendem certa heterogeneidade, como, por exemplo, as tentativas dos perpetradores de violências na época do apartheid sul-africano de acusar o Estado como o grande executor da violência, e eles como vítimas, assim como mulheres vítimas da bomba de Hiroshima em 1945 que foram alçadas à categoria de 'culpadas' pela dor dos filhos mutilados e doentes devido à radiação - mulheres essas que conseguiram formar um grupo comunitário forte a tempo de retomar sua condição de vítimas da guerra.

Junto com Richard Rechtman, Fassin ( 2007 ) periodiza o advento do 'império do trauma' ao notar que os modos de lidar com as crises podem esconder uma exclusão moral de certos grupos abaixo dessa 'capa' criada pelo sentimento de que o trauma é coletivo, atinge todos os moradores de um local da mesma forma e necessita, consequentemente, de uma reparação. Um dos exemplos dessas crises ou catástrofes de que falam Fassin e Rechtman foi um acidente que ocorreu em Toulouse, França, em uma fábrica dos arredores da cidade em setembro de 2001, logo em seguida aos ataques às torres gêmeas de Nova York. O acidente aconteceu em uma zona industrial empobrecida e carente de recursos, ao lado de um hospital psiquiátrico. Por trás das ações de emergência médica, psicológica e de assistência social à disposição dos afetados pelo acidente escondiam-se as exclusões próprias da cidade. Todos os moradores foram percebidos, ao mesmo tempo, tanto como vítimas quanto como potenciais 'terapeutas', uma vez que se apresentaram como voluntários para ajudar com doações, conversas, orações e outras práticas. Nenhuma das equipes de emergência formalmente mandadas para atuar na crise, porém, preocupou-se em verificar o estado de saúde dos doentes internados no hospital psiquiátrico, mesmo sabendo que, se há o estresse pós-trauma - ainda que raro, raríssimo - ele atinge com mais força aqueles que já sofrem anteriormente com sua constituição psíquica. A isso se juntou a recusa em considerar os moradores mais próximos ao local do acidente industrial como 'mais vitimados', ou 'principais vítimas', mesmo que já estivessem há muito tempo em condições precárias. Para completar, os trabalhadores da fábrica acidentada não puderam inscrever-se como vítimas nas negociações que visavam à reparação dos danos aos atingidos: sob eles pesava a suspeita da culpabilidade pelo ocorrido. Assim, o trauma operou nesse exemplo como um reforço de uma exclusão já existente, porém, sob a forma da compaixão e dos afetos ligados à solidariedade.

As análises da produção e dos usos do trauma na atualidade inscrevem os modos de lidar com a violência (social, política, natural etc.) na lista de tópicos relevantes para o mundo contemporâneo. Para Fassin e Rechtman, o trauma se torna um operador contemporâneo das disputas políticas, das ações públicas e privadas, das indústrias biomédicas e da saúde, e demonstra um claro papel nas relações de poder. Somando o exemplo dos ataques do 11 de setembro de 2001 às Torres Gêmeas nos EUA, outros acidentes na França, ações humanitárias na Palestina e o tratamento dado aos imigrantes em território francês, Fassin e Rechtman ( 2007 ) demonstram como o trauma torna-se lugar de ação social e política quase indiscutível. Se houver trauma, há que agir. As crises - bélicas, catastróficas, acidentais, individuais 6 - são inscritas na sociedade pelo trauma, consequentemente, pelo que Fassin chama de razão humanitária, dele advinda.

Quando um trauma acontece, a cura desse sofrimento depende, sobretudo, de redescobrir o mundo, sublinhando a influência que a linguagem terapêutica tem nesse contexto. Se a violência é a origem do mal, o trauma é parte integrante de sua interpretação. No entanto, além da resposta psiquiátrica ao trauma, é possível propor e considerar outras formas de ação, como a reconstituição das identidades e das comunidades atingidas, a reorganização das narrativas ou dos rituais sociais, conforme descrito anteriormente.

Há outras opções; no entanto, esse modo antropológico de se ocupar das coisas do mundo - ao qual Fassin se vincula - deve também estar aberto à reflexão, considerando que a disciplina, assim como outras, corre o risco de tomar o outro que sofre como mais um objeto de estudo, em um mundo no qual ela também poderia contrair certo saber moral sobre o sofrer, adquirindo então status de tradutora da expressão dos que sofrem.

Rosa et al. ( 2009 ) também salientam modos de elaborar o sofrimento e lidar com o traumático ao comentar os atendimentos psicoterapêuticos psicanalíticos realizados com pessoas 'errantes', conforme denominação usada pelos autores: migrantes, refugiados e imigrantes. A importância da comunidade e dos rituais de passagem do luto individual, da perda concreta ou simbólica de algo, alguém ou de um estado pessoal é fundamental, se bem que cada vez menos presente. De acordo com essa concepção e com essas constatações, é papel do analista dar espaço para a fala sintomática do silêncio, aquilo que, diz Fassin, não pode sempre ser dito porque não há palavras para expressá-lo ou porque remete à situação da violência vivida diretamente.

Aqui, o conceito de compaixão aparece como um risco de criar corpos dóceis e submetidos, dessa vez submetidos a um saber sobre eles mesmos e sobre sua história. Esse risco é partilhado por intelectuais, terapeutas, trabalhadores humanitários, enfim, todos aqueles que se dispõem a agir sobre o sofrimento. Harrell-Bond ( 2002 ) assinala que as organizações humanitárias que lidam com refugiados, com sua razão humanitária e sua ação política interagem com essas pessoas/objetos de suas intervenções como se elas fossem todas crianças, ou mesmo seres incapazes de pensar por si e de decidir os rumos de suas vidas; indefesos, sem iniciativa, alguém em quem a caridade pode ser praticada; em resumo, o que Mahmood Mamdani (citado em Harrell-Bond, 2002, p.60 ) chamou de "uma criatura totalmente maleável" - pois submetida a uma lógica de assistência que pressupõe uma necessidade e leva em conta sempre uma desconfiança para com suas 'reais intenções' enquanto refugiado ou solicitante de asilo, o que não lhe permite a construção de relações que possibilitem autonomia e novas construções de vida.

É a razão humanitária que surge então como força contemporânea inegável: para Fassin ( 2010 ), são os sentimentos morais que se tornam um elemento importante das políticas contemporâneas, uma vez que eles alimentam os discursos políticos e legitimam as práticas coletivas de vitimização e compaixão. De modo bastante singular e inédito, a razão humanitária direciona-se ao estrato mais desfavorecido da sociedade - seja aos que pertencem ao mundo próximo, como aqueles visados pelas políticas de atendimento aos usuários de drogas nas cidades francesas e mesmo brasileiras, seja aos que pertencem ao mundo distante, como, por exemplo, pós-catástrofes planetárias, como os tsunamis na Indonésia e no Japão ou o terremoto no Haiti. "Por sentimentos morais entendemos as emoções que nos conectam ao mal-estar dos outros e que nos fazem querer corrigi-lo" 7 ( Fassin, 2010, p.7 ). Criar empatia, corrigir, sanar: termos correntes nesse embricamento de campos de ação e de propostas políticas.

Em texto de 2005, Fassin e Vasquez já assinalavam a importância teórica e política da compreensão da lógica humanitária, ao observar a coincidência entre um grande desastre natural na Venezuela em 1999, que aconteceu no mesmo dia em que estava marcado um plebiscito sobre a nova constituição do país. Nesse evento, os autores notam a força do jogo de compaixão e ajuda às vítimas como operadoras de um estado de exceção, por razões humanitárias, criado para conter a crise interna. Em outras palavras, a ocorrência de uma catástrofe 'caiu bem' para a união do povo e o apagamento de outras crises internas, tão ou mais graves e difíceis. Recorrer ao trauma, à compaixão e à necessidade de intervenção foram ações que propiciaram, ou ao menos colaboraram significativamente, para acontecimentos no campo político.

Considerações finais

As questões da ordem do 'sofrimento social', da 'compaixão', do 'trauma', da 'migração' permeiam a obra do pesquisador francês e são também um modo de operacionalizar a análise das relações entre a saúde pública, suas práticas e suas interações com as populações excluídas no Brasil, caso dos refugiados, dos solicitantes de asilo, dos moradores de rua ou dos usuários de drogas ilícitas.

Para concluir esta leitura sobre o pensamento de Fassin e suas análises dos fluxos migratórios atuais, das noções de trauma, sofrimento e razão humanitária, é necessário retomar sua proposta de reinterpretação dos conceitos de 'biopolítica' e 'biopoder'. Fassin ( 2009 ) observa que, nos anais dos cursos de 1979 de Michel Foucault, o conceito de 'biopolítica' referia-se sobretudo à ideia de população e de como uma tecnologia de um governo pode interferir em problemas específicos da vida das pessoas, tema que perduraria desde o século XVIII. Fassin, por sua vez, propõe compreender a 'biopolítica' não apenas como uma política da vida, como seria sugerido pela etimologia da palavra, mas como uma política sobre populações, entendidas como comunidades de seres vivos - é preciso então relacionar, a partir desse conceito, a ideia de vida e a ideia de população e observar que, por exemplo, imigrantes e indesejados em geral têm muito menos oportunidade e expectativa de vida na França do que outras populações ou grupos sociais. A diferença em termos de tempo e qualidade de vida é concreta sob a ação biopolítica ( Fassin, 2001a ). O conceito de 'biopoder', por sua vez, seria não um poder sobre a vida, mas um poder sobre a conduta humana - é preciso repensar como a governabilidade e a vida se inter-relacionam nas práticas políticas para poder pensar em outra política da vida.

Na chegada dos indesejados à França, percebe-se uma desigualdade significativa entre estrangeiros e franceses no que diz respeito a morbidade e mortalidade ( Fassin, 2001b ). Para Fassin, apenas o reconhecimento de que uma diferença natural ou física - a cor da pele, o tipo físico - , socialmente construída como discriminação racial, pode estar na origem da mais inaceitável das desigualdades 'políticas' ou 'morais' de todas - a desigualdade sobre a expectativa de vida. Essa constatação seria provavelmente a mais radical invalidação da retórica dos direitos humanos tão cara aos franceses ( 2001b ): o reconhecimento de que uma diferença percebida no corpo pode levar a uma desigualdade em termos de doença e morte deve de fato surpreender aqueles que acreditam lutar pela igualdade de direitos entre humanos.

Em "Conflitos do outono de 2005 na França", único artigo de Fassin ( 2006b ) traduzido para o português até o momento, ele afirma que os conflitos ocorridos na periferia de Paris naquele ano trouxeram à tona justamente a discriminação racial em solo francês. É nesse texto que o autor exprime, em raro momento em seus trabalhos, uma proposta de ação para além das críticas às intervenções existentes: "Precisamos deixar de pensar como incompatíveis os dois modelos que fundam a justiça: o da desigualdade que exige a redistribuição e o da alteridade que exige o reconhecimento" (p.194).

A vigência da biopolítica não é compatível com a política, proposta por ele sob influência dos trabalhos de Hannah Arendt, ou seja, a política como reconhecimento do pertencimento num corpo político comum ou como reconhecimento da diversidade humana sob uma perspectiva universal. É preciso perceber que a ação biopolítica contemporânea:

apesar da perspectiva recorrente, ... não opera como lógica única. Ela demonstra uma tensão, inscrita no corpo, entre a suprema universalidade da vida (que permite a um indocumentado portador de Aids ser reconhecido pelo estado por conta de sua doença) e a exaltação da diferença, para a qual a biologia oferece uma aparentemente intransponível fundação (permitindo a qualquer pessoa a percepção de algum tipo de desigualdade nas características físicas dos outros) 8 ( Fassin, 2001b, p.7 ).

Em suas conclusões ao texto publicado em 2009 sobre as outras possíveis políticas da vida, Fassin resume o modo como encara a importância da discussão sobre os temas tratados aqui - vistos como ações políticas na esfera das vidas, dos modos de vida e das possibilidades de morte:

O que a política faz para a vida - e as vidas - não é apenas uma questão de discursos e tecnologias, de estratégias e táticas. É também uma questão do modo concreto no qual indivíduos e grupos são tratados, em nome de quais princípios e de qual moral, implicando em quais tipos de inequidades e sub-reconhecimentos 9 ( Fassin, 2009, p.57 ).

As pesquisas e análises de Fassin contribuem para a reflexão sobre acontecimentos da ordem das migrações, das desigualdades sociais, das catástrofes naturais e das ações de contenção do sofrimento, também presentes no Brasil.

A propósito das migrações, pode-se afirmar que o Brasil vem experimentando nos últimos anos um crescimento do número de pessoas que chegam ao país procurando refúgio ( UNHCR, 2010 ), bem como de pessoas em busca de trabalho ( Mattos, 2007 ; Seyferth et al., 2007 ) ou mesmo de estrangeiros que desembarcam no Brasil, tentam embarcar novamente traficando drogas na bagagem, são pegos, presos e condenados no país ( Ministério da Justiça, 2006 ). Mesmo que o volume total de pessoas estrangeiras que entram no país não possa ainda ser comparado com o de brasileiros no exterior nem com o de imigrantes que o país já recebeu no passado, a chegada aqui de solicitantes de refúgio, refugiados e 'imigrantes econômicos' - os 'indesejados', repetindo-se aqui a terminologia proposta por Agier ( 2008 ), entre outros - , essa forma de migração internacional e os modos como se lida com ela são cada vez mais presentes nas grandes cidades brasileiras.

Por sua vez, as catástrofes naturais, imprevisíveis, mas responsivas a ações de prevenção e contenção, parecem ter tomado maior espaço no debate proposto por algumas classes profissionais, como, por exemplo, a dos psicólogos ( Weintraub, 2011 ). Por mais que se argumente contra um aumento da frequência de catástrofes no país, elas parecem tomar maior espaço na mídia e nas ações públicas no Brasil, notadamente após o grande desastre ocorrido na região serrana do estado do Rio de Janeiro em 2011.

Portanto, o debate sobre migrações e ações políticas postas em prática a partir da constatação de traumas e sofrimentos é também pertinente e oportuno para o Brasil. As discussões propostas por Fassin ao longo de sua trajetória acadêmica podem contribuir com a construção de estratégias brasileiras mais comprometidas com a abertura de novas possibilidades de vida para aqueles que também são, de um modo ou de outro, afetados por esses acontecimentos ou por essas escolhas que dizem respeito à mudança de país.

Agradecemos a Didier Fassin, primeiro leitor deste artigo em setembro de 2011, bem como às agências Capes e Fapesp pelo financiamento de bolsa de estudos de mestrado nos períodos de julho de 2010 a fevereiro de 2011 e março de 2011 a abril de 2012, respectivamente.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Nesta expressão e nas demais citações de textos em outros idiomas, a tradução é livre.
  • 2
    "The body has become the site of inscription for the politics of immigration, defining what we can call, using Foucauldian terminology, 'a biopolitics of otherness'".
  • 3
    "un malade qui n'est pas en attente de soins et un professionnel de santé qui n'est pas en mesure de le traiter".
  • 4
    "Les problèmes on été rapportés à exclusion, les conséquences on été interprétées en termes de souffrance, des solutions on été proposées autour de lieux d'écoute".
  • 5
    "son sens, pour les victimes, les bourreaux ou les témoins, excède toujours la seule réalisation de l'acte".
  • 6
    Os autores, nesse contexto, trazem como exemplos as ações do serviço médico e psicológico de atendimento móvel na França, chamado tanto para acidentes industriais sérios quanto para resolver o problema de uma professora na periferia de Paris que não conseguia conter seus alunos em classe.
  • 7
    "Par sentiments moraux, on entend les émotions qui nous portent vers les malheurs des autres et nous font souhaiter les corriger".
  • 8
    "despite common perspective, biopolitics does not proceed by one logic. It demonstrates a tension, inscribed in the body, between the supreme universality of life (which allows a "sans papiers" with AIDS to be recognized by the state in the name of his/her pathology) and the exaltation of difference, for which biology offers an apparently insurmountable foundation (allowing each person to perceive a natural source of inequality in the physical characteristics of others)".
  • 9
    "What politics does to life - and lives - is not just a question of discourses and technologies, of strategies and tatics. It is also a question of the concrete way in which individuals and groups are treated, under which principles and in the name of which morals, implying which inequalities and misrecognitions".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    July-Sept 2013

Histórico

  • Recebido
    Set 2011
  • Aceito
    Abr 2012
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