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Problematizações das relações de gênero no primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia: status da mulher, determinação de sexo biológico e controle reprodutivo

Problematization of gender relations at the first Brazilian Eugenics Conference: the status of women, determination of biological gender and reproductive control

Resumo

O artigo problematiza as relações de gênero no primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, realizado no Rio de Janeiro, em 1929. Abalizadas como a maior manifestação pública do movimento eugênico no Brasil, as Atas e Trabalhos do Congresso foram foco de uma análise das questões de gênero expressas sob o espectro de intrínsecas concepções sobre hereditariedade e reprodução. As problematizações empreendidas se empenham em discutir, por meio do trabalho de diversos participantes do congresso, o papel e o status da mulher na eugenia brasileira, o controle reprodutivo no Brasil e a relação entre os estudos envolvendo a determinação de sexo biológico e a melhora da raça humana.

eugenia; relações de gênero; hereditariedade; reprodução; medicina

Abstract

This article problematizes gender relations during the first Brazilian Eugenics Conference, held in Rio de Janeiro in 1929. Seen as the largest public manifestation of the eugenics movement in Brazil, the Atas e Trabalhos do Congresso (Conference Minutes and Proceedings) were analyzed in terms of gender issues expressed through the spectrum of intrinsic conceptions of hereditarianism and reproduction. The problematizations make an effort to discuss, through the works of several participants in the conference, the role and status of women in Brazilian eugenics, reproductive control in Brazil and the relationship between studies involving determination of biological gender and improvement of the human race.

eugenics; gender relations; hereditarianism; reproduction; medicine

O movimento eugênico brasileiro, predominantemente entre as décadas de 1910 e 1940, é considerado um dos casos mais complexos da América Latina (Stepan, 1991STEPAN, Nancy Leys. The hour of eugenics: race, gender and nation in Latin America. Ithaca: Cornell University Press. 1991., p.35). Na literatura científica nacional daquele período, o termo “eugenia” caracterizou-se como emblema de modernidade cultural, associado a um conhecimento científico que designava uma versão mais atualizada da ciência moderna da época. A introdução do termo simbolizou a preocupação das elites políticas e intelectuais com o deplorável estado de saúde da população, a situação sanitária e a composição racial do Brasil, além da própria preocupação inerente ao posicionamento do Brasil no âmbito internacional (Souza, 2008SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Por uma nação eugênica: higiene, raça e identidade nacional no movimento eugênico brasileiro dos anos 1910 e 1920. Revista Brasileira de História da Ciência, v.1, n.2, p.146-166. 2008.).

Do ponto de vista epistêmico, quando tratamos de eugenia como movimento científico, um fator é essencial para sua definição: a melhora da raça humana por meio das leis de hereditariedade. À vista disso, não era apenas melhorar os indivíduos de forma isolada, mas sim garantir que a descendência estivesse de acordo com os critérios eugênicos aos quais pais e mães também eram submetidos (Stepan, 1991STEPAN, Nancy Leys. The hour of eugenics: race, gender and nation in Latin America. Ithaca: Cornell University Press. 1991.). Nesses grupos eugênicos, duas linhas de pensamento científico dominavam quando se discutia eugenia: a linha adepta da herança de caracteres adquiridos (HCA), reiteradamente denominada neolamarckista por muitos historiadores, e a linha mendeliana. A primeira pressupunha a influência de fatores ambientais na descendência. Por outro lado, a linha mendeliana baseava-se na póstuma adoção das ideias de Mendel em 1900, preceito científico que defendia estarem os fatores hereditários também condicionados a fatores internos, o que atualmente atribuímos aos cromossomos e, portanto, ao DNA (Stepan, 1991STEPAN, Nancy Leys. The hour of eugenics: race, gender and nation in Latin America. Ithaca: Cornell University Press. 1991.; Bizzo, 1994BIZZO, Nélio Marco Vicenzo. Meninos do Brasil: ideias de reprodução, eugenia e cidadania na escola. Tese (Livre-docência) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1994.).

Muito comum na época discutir a respeito da eugenia no Brasil exprimia preocupações acerca de progresso e evolução racial (Souza, 2008SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Por uma nação eugênica: higiene, raça e identidade nacional no movimento eugênico brasileiro dos anos 1910 e 1920. Revista Brasileira de História da Ciência, v.1, n.2, p.146-166. 2008.). Assim, ao analisar a produção da literatura sobre eugenia, encontramos uma exaustiva quantidade de trabalhos com reflexões pertinentes a etnia e miscigenação que envolvem o discurso eugênico (Stefano, 2009STEFANO, Waldir. Octavio Domingues: concepções sobre miscigenação no contexto eugênico. Temas e Matizes, n.15, p.42-54. 2009.; El-Dine, 2016EL-DINE, Lorenna Ribeiro Zem. Eugenia e seleção imigratória: notas sobre o debate entre Alfredo Ellis Junior, Oliveira Vianna e Menotti Del Picchia, 1926. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.23, supl.1, p.243-252. 2016.; Góes, 2015GÓES, Weber Lopes. Racismo, eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato Kehl. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Marília. 2015.; Silva, Fonseca, 2013; Bizzo, 1994BIZZO, Nélio Marco Vicenzo. Meninos do Brasil: ideias de reprodução, eugenia e cidadania na escola. Tese (Livre-docência) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1994.; Souza, 2011SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropológico brasileiro (1905-1935). Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, Rio de Janeiro. 2011.; Maio, 2004MAIO, Marcos Chor. Raça, doença e saúde pública no Brasil: um debate sobre o pensamento higienista do século XIX. In: Monteiro, Simone; Sansone, Livio (Org.). Etnicidade na América: um debate sobre raça, saúde e direitos reprodutivos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. p.15-44. 2004.; Gould, 2014GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes. 2014.).

Contudo, por meio de um ângulo menos abordado na literatura científica, muito pode ser discutido sobre as questões de gênero, uma vez que as políticas eugênicas estavam centradas na mulher como alvo de controle da questão reprodutiva, direta ou indiretamente, sendo estruturante na maneira pela qual os eugenistas aplicavam a eugenia. O discurso de gênero – representado aqui na questão dos papéis de gênero e nas relações sociais de poder entre homem e mulher – foi fulcral na eugenia, em função de as modificações e transmissões das características hereditárias para as futuras gerações ocorrerem pela reprodução sexual. Eugenistas pensavam na reprodução humana não como uma atividade individual ou como um resultado da sexualidade, mas tinham-na como uma responsabilidade coletiva, em que os indivíduos eram produtores de boa ou má hereditariedade. Foi no contexto da eugenia, mergulhado no sentimento nacionalista, acentuado especialmente na década de 1920, que a fertilidade da mulher se estabeleceu como um recurso crucial para a construção da nação. A mulher, a partir de seu papel reprodutor, tornou-se uma ponte entre a definição de raça e a nação. Portanto, o sexo feminino tinha a responsabilidade sobre o controle da prole, podendo “sujar” seu útero ao mesclar-se com homens de outras raças ou condições consideradas “desfavoráveis” pelo conceito dos eugenistas. Pode-se definir o pensamento eugenista geral sobre as mulheres como se elas representassem “úteros a serviço da nação” (Castañeda, 2003CASTAÑEDA, Luzia Aurélia. Eugenia e casamento. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.10, n.3, p.901-930. 2003., p.925-926; Stepan, 1991STEPAN, Nancy Leys. The hour of eugenics: race, gender and nation in Latin America. Ithaca: Cornell University Press. 1991.).

Nesse sentido, propomos aqui uma reflexão sobre um documento histórico que é considerado por diversos historiadores, como Stepan (1991)STEPAN, Nancy Leys. The hour of eugenics: race, gender and nation in Latin America. Ithaca: Cornell University Press. 1991., uma das maiores manifestações públicas da eugenia no Brasil: o volume 1 das Atas e Trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (Atas..., 1929ATAS... Atas do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (Biblioteca da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, Rio de Janeiro). Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=acebibcoc_r&pagfis=9788>. Acesso em: 25 jun. 2019. 1929.
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). Com relação a esse congresso, ocorrido no Rio de Janeiro, em 1929, buscamos problematizar as questões de gênero associando-as com suas concepções científicas sobre hereditariedade por intermédio da análise dessa peça histórica. Nesse sentido, apenas discutiremos os trabalhos de eugenistas que possibilitem essa análise, os quais serão detalhados nas seções seguintes.

Souza (2009SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Arquivo de Antropologia Física do Museu Nacional: fontes para a história da eugenia no Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.16, n.3, p.763-777. 2009., p.765) destaca a importância das Atas e Trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, argumentando que o material representa um evento científico de relevância nacional não exclusivamente para o movimento dos eugenistas brasileiros, mas para a própria história intelectual do Brasil. Esse autor também aponta a carência de trabalhos científicos específicos sobre o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (PBCE), incentivando estudos sobre o documento (p.771-772). Além disso, destacamos a relevância de utilizar tal registro como fonte documental principal deste trabalho pelo fato de alguns dos temas discutidos no congresso terem repercutido, na década de 1930, e mesmo de forma significativa durante a Era Vargas, envolvendo discussões como seleção imigratória, educação física e políticas públicas médicas (Geraldo, 2007GERALDO, Endrica. O “perigo alienígena”: política imigratória e pensamento racial no governo Vargas (1930-1945). Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2007.; Stepan, 1991STEPAN, Nancy Leys. The hour of eugenics: race, gender and nation in Latin America. Ithaca: Cornell University Press. 1991., p.124-127).

A Academia Nacional de Medicina foi o fator principal para o então desencadeamento do primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, dando origem ao documento aqui utilizado. A instituição iniciou divulgação para realizar um congresso nacional sobre eugenia como parte das comemorações que marcariam o centenário da entidade, cuja fundação aconteceu em 1829. A anunciação do congresso, para os eugenistas da academia, reafirmava o anseio de se consolidar a eugenia como uma área de interesse dos intelectuais brasileiros, definindo novos caminhos que o movimento eugênico trilharia durante a década de 1930 (Souza, 2009SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Arquivo de Antropologia Física do Museu Nacional: fontes para a história da eugenia no Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.16, n.3, p.763-777. 2009., p.767).

A análise dessa fonte primária visa evidenciar discussões científicas e propostas para as políticas públicas saídas diretamente da voz dos eugenistas brasileiros daquele tempo. O índice do primeiro volume do congresso inclui: convite-circular, regimento interno, atas do Congresso de Eugenia, conferências de cinco cientistas e apresentação do trabalho de vinte cientistas, referentes a cerca de 370 páginas.

Para conceituar gênero, dentro da problematização desta pesquisa, utilizaremos como referência o conceito estabelecido pela historiadora Joan Scott. Em seu texto “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, traduzido no Brasil em 1990, Scott articula a ideia de poder, resgatando diferenças entre sexo e gênero, já adotada em 1960. Para ela, gênero é baseado em relações sociais percebidas entre os sexos e que se fundam em relações de poder (Scott, 1990SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica. Educação e Realidade, v.16, n.2, p.5-22. 1990.). A autora explica que sua definição é pensada no sentido que lhe dá Michel Foucault, ou seja, sempre relativo; o significado de gênero nasce e se constrói de uma disputa política que se estabelece a partir da dominação e da subordinação (Scott, 1994SCOTT, Joan. Prefácio a: “Gender and politics of history”. Cadernos Pagu, n.3, p.11-27. 1994.). É relevante esclarecer que adotamos essa concepção de gênero por melhor se adequar ao escopo desta pesquisa, para uma análise prévia do conteúdo das atas e trabalhos do PCBE. No documento, não há discussões a respeito de sexualidade que permitam reflexões sobre orientação sexual ou identidade de gênero. Apesar de estarmos cientes de teorias mais recentes e definições mais amplas para gênero a partir de 2000, como, por exemplo, a de autores importantes como Butler e Weed (2011)BUTLER, Judith; WEED, Elizabeth. The question of gender: Joan W. Scott’s critical feminism. Bloomington: Indiana University Press. 2011. e suas reflexões sobre o próprio trabalho de Scott, escolhemos a referência aqui empregada por focalizar as relações de poder entre homem e mulher, trazendo subsídios mais pertinentes à nossa discussão.

Nesse sentido, a utilização da análise de gênero na narrativa histórica pode ser muito importante para o entendimento da conjuntura da época, permitindo que pesquisadoras e pesquisadores analisem como, em diferentes momentos do passado, as tensões e os acontecimentos envolvem ou são produtos do gênero (Pedro, 2005PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. História, v.24, n.1, p.77-98. 2005.). Apesar de a análise englobar todos os trabalhos apresentados no congresso, apenas alguns serão citados e mais bem analisados, visto que nos atentaremos àqueles que fomentam discussões sobre as relações de gênero na eugenia, pertinentes, portanto, ao objetivo da análise.

Reflexões sobre gênero: status e papel da mulher na eugenia brasileira no início do século XX e suas menções no primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia

Trataremos da discussão da perspectiva de gênero a partir de um panorama para entendimento global, refletindo sobre como as mulheres eram vistas e quais eram suas funções dentro do movimento eugênico internacional, expressas pelos trabalhos no PCBE ou entrelaçadas ao contexto que eles abarcam, afunilando, em seguida, para a conjuntura brasileira. O uso da palavra “gênero” tem história mais recente que a dos movimentos eugênicos e que é, geralmente, atribuída a movimentos sociais de mulheres e da comunidade LGBTQ+, intrínseca à sua luta por direitos civis, direitos humanos, igualdade e respeito. Em específico para os feminismos, que utilizaremos no plural (acentuando a sua multiplicidade de ideias e definições), a palavra “gênero” passou a ser empregada nos debates que se travaram dentro do próprio movimento, buscando uma explicação para a subordinação das mulheres e das relações sociais de poder entre homens e mulheres, endossando a definição de Scott que utilizaremos na nossa análise (Pedro, 2005PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. História, v.24, n.1, p.77-98. 2005.; Scott, 1990SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica. Educação e Realidade, v.16, n.2, p.5-22. 1990.).

No início do século XX, em escala global, preocupações sobre mudanças em taxas de fertilidade, saúde reprodutiva e mortalidade infantil levaram muitas mulheres a se tornar ativas em movimentos reformistas de higiene social. Nessa circunstância, eugenia – envolvendo um programa científico que lidava com saúde hereditária – incorporou-se nos movimentos sociais femininos, abrangendo questões sobre o controle da natalidade e a prevenção de doenças hereditárias. Assim, os movimentos eugênicos no mundo caminharam na história paralelamente à ascensão dos movimentos feministas e ao questionamento que eles representaram para as visões tradicionais sobre o local e os direitos das mulheres (Stepan, 1991STEPAN, Nancy Leys. The hour of eugenics: race, gender and nation in Latin America. Ithaca: Cornell University Press. 1991., p.102-104).

A eugenia, apesar de associar-se majoritariamente aos movimentos de direita e às ideias conservadoras, também se vinculou a movimentos reformistas, de caráter socialista ou comunista (Stepan, 1991STEPAN, Nancy Leys. The hour of eugenics: race, gender and nation in Latin America. Ithaca: Cornell University Press. 1991., p.107). Frequentemente, portanto, mulheres engajadas nesses movimentos aceitaram os vieses de raça e classe do discurso eugênico, refletindo seu próprio status privilegiado de mulheres brancas dentro da classe média. Nos EUA, Margaret Sanger (1879-1966) foi conhecida por se envolver em movimentos reformistas pelo controle da natalidade e responsável pela luta científica e social para a criação da primeira pílula anticoncepcional diante de todas as barreiras da época, apesar de defender publicamente a eugenia. Em um artigo em 1921, ela afirmou que o problema mais urgente daquela época era como limitar e desencorajar o aumento da fertilidade de deficientes físicos e mentais (Sanger, 1921SANGER, Margaret. The eugenic value of birth control propaganda. Birth Control Review, v.5, n.10, p.5. Disponível em: <http://birthcontrolreview.net/Birth%20Control%20Review/1921-10%20October.pdf>. Acesso em: 27 set. 2018. 1921.
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).

Contudo, tais vieses dos diversos tipos de feminismos não se limitaram aos EUA, também sendo vistos no Brasil. De acordo com Ramos (2002)RAMOS, Maria Bernadete. Ao Brasil dos meus sonhos: feminismo e modernismo na utopia de Adalzira Bittencourt. Estudos Feministas, v.10, n.1, p.11-37. 2002., uma das autoras modernistas brasileiras, Adalzira Bittencourt, conseguiu unir feminismo e eugenia em uma de suas obras: Sua Excia. a presidente da República no ano de 2500. O Brasil sonhado na obra pela modernista era baseado numa superioridade eugênica. No conto, o governo, sob a presidência de uma mulher em 2500, fortalecera a raça a ponto de embranquecê-la totalmente, determinando que os setores da população que tivessem de 1% a 20% de sangue africano fossem deportados para a África. Também instituiu ainda que tuberculosos e leprosos fossem esterilizados, sendo submetidos à eutanásia os casos de deformidades físicas e mentais (Ramos, 2002RAMOS, Maria Bernadete. Ao Brasil dos meus sonhos: feminismo e modernismo na utopia de Adalzira Bittencourt. Estudos Feministas, v.10, n.1, p.11-37. 2002.).

Por outro lado, segundo Stepan (1991STEPAN, Nancy Leys. The hour of eugenics: race, gender and nation in Latin America. Ithaca: Cornell University Press. 1991., p.209), todos esses movimentos, que criaram oportunidades e possibilidades para mulheres como sujeito e objeto de políticas sexuais na esfera da eugenia, foram diferentemente configurados ou escassos no Brasil. De acordo com Góes (2015)GÓES, Weber Lopes. Racismo, eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato Kehl. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Marília. 2015., uma das poucas tentativas de participação de mulheres envolvidas em movimentos sociais na eugenia, especificamente no PCBE, é descrita em uma das cartas do acervo de documentos pessoais do eugenista Renato Kehl. Vinda de uma militante do movimento anarquista do Brasil e encaminhada ao eugenista Edgard Roquette-Pinto, a carta de Maria Lacerda de Moura (1887-1945) criticava categoricamente a exclusividade de homens no congresso, o preconceito sexual sofrido pela mulher e a monogamia hipócrita da sociedade (Góes, 2015GÓES, Weber Lopes. Racismo, eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato Kehl. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Marília. 2015., p.167). Pela análise dos congressistas presentes e autores de trabalhos apresentados, tudo indica que, apesar de seus esforços, a presença de Lacerda Moura não foi aceita no congresso.

Para Stepan (1991)STEPAN, Nancy Leys. The hour of eugenics: race, gender and nation in Latin America. Ithaca: Cornell University Press. 1991., por volta da década de 1920, em países da América Latina como o próprio Brasil, o México e a Argentina, a maioria dos homens e mulheres via ideias feministas como interpretações estranhas e estrangeiras sobre necessidades e papéis naturais das mulheres. Por outro lado, para historiadoras como Ramos (2002)RAMOS, Maria Bernadete. Ao Brasil dos meus sonhos: feminismo e modernismo na utopia de Adalzira Bittencourt. Estudos Feministas, v.10, n.1, p.11-37. 2002., podia-se considerar o movimento feminista no Brasil como tendo caráter conservador, especialmente na década de 1920, por privilegiar o papel da educação na formação da mulher para o exercício da maternidade e de atividades profissionais aceitáveis para a condição feminina, como o magistério.

Apesar de seu trabalho no PCBE não se debruçar sobre a discussão de gênero, Renato Kehl, um dos maiores difusores da eugenia no Brasil, dedicou-se em diversos outros trabalhos à discussão do papel da mulher no tema. Segundo análise feita por Góes (2015)GÓES, Weber Lopes. Racismo, eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato Kehl. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Marília. 2015., em trabalhos de Renato Kehl como Melhoremos e prolonguemos a vida (1923b), A cura da fealdade (1923a), Formulário de beleza (1927) e Lições de eugenia (1929), o eugenista problematizava questões relacionadas às mulheres no viés eugênico, isto é, como deveriam se portar, quais os procedimentos que deveriam adotar para “escolher um bom marido” e como adquirir “bons costumes”. Nesse sentido, Renato Kehl concebia dois “tipos de feminismo”: o “bom” e o “ruim”. O primeiro era aquele que aceitava o lugar estabelecido para a mulher, cujo objetivo era elevá-la a um patamar acima daquele no qual ela se encontrava, todavia, consolidando sua função de mãe e esposa. Por outro lado, o “feminismo ruim”– cujas apoiadoras Kehl denominava “mulheres extremistas” – seria adverso à função de mãe e esposa (Góes, 2015GÓES, Weber Lopes. Racismo, eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato Kehl. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Marília. 2015., p.169). Especialmente em Lições de eugenia, Renato Kehl (1929)KEHL, Renato. Lições de eugenia. São Paulo: Livraria Francisco Alves. 1929. estabeleceu o parâmetro de mulher ideal eugênica: branca, cabelos louros e longos (dentro do padrão de beleza nórdico), educada e praticante de exercício físico (desde que não a masculinizasse). Assim, pela análise de Góes (2015GÓES, Weber Lopes. Racismo, eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato Kehl. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Marília. 2015., p.172-174), Kehl parametrizava as mulheres por meio daquelas pertencentes às elites, enquanto às mulheres pobres e negras ele recomendava procedimentos médicos para a esterilização.

Algumas ideias convergentes a esses trabalhos de Kehl podem ser bem exemplificadas nas atas do PCBE a partir de um trecho da conferência de Levi Carneiro (1929CARNEIRO, Levi. Educação e eugenia. In: Congresso Brasileiro de Eugenia, 1., Rio de Janeiro, 1929. Anais... Rio de Janeiro: Academia Nacional de Medicina. v.1, p.107-116. 1929., p.114) em que elogia o comentário do ginecologista e professor doutor Fernando de Magalhães:

Ainda a preocupação dos problemas sociais revelou o Congresso ao aplaudir – com extraordinário calor e não aplaudiria apenas o orador eloquente e apaixonado – as palavras do Sr. Professor Fernando de Magalhães, sobre o feminismo. Furtou-se o brilhante conferencista a formular conclusões, mas advertiu, por forma impressionante, declarando que o fazia como ginecologista, dos perigos que o feminismo acarreta para a raça, perturbando a função genética.

No volume 1 menciona-se o anseio de se publicar mais dois volumes com os trabalhos aprovados na ata citada, que incluiria o trabalho de Magalhães (Atas..., 1929ATAS... Atas do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (Biblioteca da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, Rio de Janeiro). Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=acebibcoc_r&pagfis=9788>. Acesso em: 25 jun. 2019. 1929.
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), intitulado “O feminismo e a raça”, cujo texto não foi encontrado até a finalização desta pesquisa. Apesar disso, a partir da discussão abaixo, supõe-se que seus argumentos para o dano à raça causado pelo feminismo sejam similares aos apresentados por Kehl. Entretanto, os volumes 2 e 3 do PCBE não foram publicados para que se pudesse verificar tal hipótese.

Em 2006, o Departamento de Antropologia do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), divulgou o inventário do Arquivo de Antropologia Física (Souza, 2009SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Arquivo de Antropologia Física do Museu Nacional: fontes para a história da eugenia no Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.16, n.3, p.763-777. 2009., p.768). Nesse material, havia alguns trabalhos inéditos, entre eles um da única mulher médica e eugenista a publicar no PCBE: Maria Antonieta de Castro. Ela e a secretária Celina Padilha, responsável pela transcrição da maioria das atas, eram as duas únicas representantes femininas no congresso. O texto de Maria Antonieta de Castro, “A influência da educação sanitária na redução da mortalidade infantil”, focaliza as atividades que a Inspetoria de Educação Sanitária do Estado de São Paulo desenvolvia em relação à saúde materna e infantil (Souza, 2009SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Arquivo de Antropologia Física do Museu Nacional: fontes para a história da eugenia no Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.16, n.3, p.763-777. 2009., p.770). Em seu trabalho, Castro tangenciou o tema central da discussão de gênero da eugenia: a maternidade. Tal ênfase não era exclusividade do trabalho de Castro, mas também se apresentava no de outras mulheres eugenistas, como a escritora modernista Adalzira Bittencourt, em seu já citado livro Sua Excia. Na obra, era depositada nas mães toda a responsabilidade de regeneração da raça, priorizando-se o papel reacionário e exclusivo da mulher como progenitora dos descendentes da nação (Ramos, 2002RAMOS, Maria Bernadete. Ao Brasil dos meus sonhos: feminismo e modernismo na utopia de Adalzira Bittencourt. Estudos Feministas, v.10, n.1, p.11-37. 2002., p.13).

O discurso médico da época frequentemente representava a maternidade a partir de um forte determinismo, devendo as mulheres disponibilizar todas as suas energias para tal “mandado biológico”. O caráter biológico da maternidade, acreditado pelos cientistas da época, englobava questões sociais, dado que os sentimentos maternais justificariam os serviços aos filhos e aos membros da família. Consequentemente, os médicos propagavam que qualquer outra atividade feminina que não estivesse envolvida com a de mãe e esposa, realizada dentro do ambiente familiar, deveria ser entendida como degeneradora e coadjuvante (Matos, 2000MATOS, Maria Izilda Santos de. Em nome do engrandecimento da nação: representações de gênero no discurso médico: São Paulo, 1890-1930. Diálogos, v.4, p.77-92. 2000.; Machado, 1925MACHADO, Pedro de Alcântara Marcondes. Um ensaio de moral sexual. São Paulo: Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo. 1925.). Qualquer trabalho feminino externo provocava indignação aos médicos, sendo exposto em discursos com preocupações morais. Ressaltava-se a representação quimérica das mulheres dedicadas às tarefas do lar, ao mesmo tempo que os trabalhadores masculinos deveriam assumir seu papel de único chefe de família. Censurava-se o trabalho extradoméstico das mulheres, que, sobretudo nas camadas mais elitizadas da sociedade, era visto como um gasto físico de energias femininas, além de elemento nocivo à moralidade. Num contexto sociopolítico no qual a classe trabalhadora sofria altíssimas taxas de mortalidade infantil e das mães nas cidades grandes, em crescente processo de urbanização e imersas numa grande desigualdade social, havia a culpabilização da mãe que se dedicasse mais ao trabalho que à maternidade. Assim, elas eram responsáveis pela mortalidade infantil e pelas desordens sociais, tendo o abandono das crianças e a marginalidade como consequências nocivas (Matos, 2000MATOS, Maria Izilda Santos de. Em nome do engrandecimento da nação: representações de gênero no discurso médico: São Paulo, 1890-1930. Diálogos, v.4, p.77-92. 2000.; Medeiros, 1926MEDEIROS, Potyguar. Sobre a profilaxia da sífilis. São Paulo: Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo. 1926.).

Para os médicos da época, a “fraqueza moral” das mulheres era considerada inerente à sua natureza, encontrando no ambiente de trabalho uma válvula de escape para manifestar-se. Consequentemente, o discurso médico encorajava a remoção das mulheres de fábricas e de outras atividades, já que costureiras, operárias e empregadas no teatro eram consideradas mais propensas à prostituição (Matos, 2000MATOS, Maria Izilda Santos de. Em nome do engrandecimento da nação: representações de gênero no discurso médico: São Paulo, 1890-1930. Diálogos, v.4, p.77-92. 2000.; Medeiros, 1926MEDEIROS, Potyguar. Sobre a profilaxia da sífilis. São Paulo: Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo. 1926.). Curiosamente, uma vez que eugenistas associavam inerentemente os conceitos de inteligência e moralidade, Robert M. Yerkes, famoso professor da Universidade de Harvard, propôs estudos aplicando testes mentais em prostitutas que acompanhavam o exército em suas batalhas. Yerkes buscou evidenciar que 53% das prostitutas tinham debilidade mental (44% das brancas e 68% das negras), esclarecendo, assim, os males de um ambiente inadequado para a fraqueza moral das mulheres (Gould, 2014GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes. 2014., p.206).

Por outro lado, quando o trabalho feminino era necessário à sobrevivência da família, o discurso médico procurava legitimá-lo, defendendo melhores condições de trabalho e de cuidados maternos (Matos, 2000MATOS, Maria Izilda Santos de. Em nome do engrandecimento da nação: representações de gênero no discurso médico: São Paulo, 1890-1930. Diálogos, v.4, p.77-92. 2000., p.83). Portanto, havia abertura para a defesa do trabalho extradoméstico feminino em certas condições, como o magistério, profissão considerada socialmente como redentora da mulher (Ramos, 2002RAMOS, Maria Bernadete. Ao Brasil dos meus sonhos: feminismo e modernismo na utopia de Adalzira Bittencourt. Estudos Feministas, v.10, n.1, p.11-37. 2002., p.8).

Em outro trecho das Atas do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (1929, p.24), o doutor Medeiros de Albuquerque contesta o trabalho de Fernando de Magalhães durante o encontro:

Tem a palavra o Dr. Medeiros e Albuquerque e contesta os pontos de vista da tese de Dr. Fernando de Magalhães sobre os perigos com que o feminismo ameaça a raça, lembrando que a pátria do fundador da Eugenia, habitada por uma raça forte, inteligente e ativa, acaba de conduzir por eleição mulheres ao seu parlamento e até uma ministra.

Tal argumentação configura um confronto de ideias e mostra um apoio de Albuquerque à emancipação das mulheres, apesar de se basear num argumento eurocêntrico (Atas..., 1929ATAS... Atas do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (Biblioteca da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, Rio de Janeiro). Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=acebibcoc_r&pagfis=9788>. Acesso em: 25 jun. 2019. 1929.
http://docvirt.com/docreader.net/DocRead...
, p.24). Tal argumento flexível de Medeiros de Albuquerque mostra a complexidade das posturas do movimento eugênico sobre as mulheres. No mesmo sentido, soma-se o fato de que, de acordo com os estudos de Hahner (1990)HAHNER, June. Emancipating the female sex: the struggle for women’s rights in Brazil. Durham: Duke University Press. 1990., houve menos oposição para a demanda de voto de mulheres no Brasil comparado a outros países da América Latina. Entretanto, ao mesmo tempo, o tipo de feminismo de cunho mais progressista no Brasil acabou sendo minimizado, sobretudo pela forte influência da Igreja católica sobre as questões reprodutivas, barrando métodos contraceptivos de controle de natalidade.

Apesar de uma possível variável dos fatores em questão, a baixa participação de mulheres na eugenia e, de forma mais ampla, na produção científica em geral pode estar relacionada com a falta de organização dos movimentos sociais no Brasil, quando comparados aos instituídos na Europa. Para mulheres de classe média, as barreiras começaram a se quebrar a partir da década de 1920, quando elas se tornaram professoras, advogadas e funcionárias públicas. No entanto, ainda permaneciam limitadas e aglomeradas em áreas mal pagas do ensino, na burocracia e em funções na enfermagem e farmácia. Nesse ponto, encontramos a linha de gênero bem demarcada: as mulheres inicialmente se concentraram nas áreas que envolviam o cuidado e a saúde, novamente em torno das características da maternidade, nas quais ocupavam raramente os cargos mais reconhecidos e de maior status (Stepan, 1991STEPAN, Nancy Leys. The hour of eugenics: race, gender and nation in Latin America. Ithaca: Cornell University Press. 1991., p.109).

Todas essas questões de gênero, maternidade e sexualidade conectavam-se com a eugenia de uma forma peculiar no Brasil. No primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Castro Barreto publica o trabalho “Maternidade consciente”, em que discute a importância da educação eugênica. Inspirado nos EUA, ele propõe um curso de maternidade chamado “Escola das pequenas mães”, para ser aplicado em escolas brasileiras e destinado às meninas em período da puberdade (12 a 14 anos). Na sua descrição, Castro Barreto (1929, p.322) informa que o mestre que ministraria as aulas – destaca-se aí o gênero masculino do artigo – deveria ter feito uma disciplina de puericultura, área em que se acompanha o desenvolvimento infantil. Tal mestre dissertaria sobre a importância da maternidade para a espécie, sobre a fragilidade do recém-nascido, seus cuidados devidos e sobre os resultados desses cuidados na vida da criança e do adulto. Esse tipo de educação materna era justificada pelas altas taxas de mortalidade de mães e filhos da época e pela necessidade de uma ação preventiva (Matos, 2000MATOS, Maria Izilda Santos de. Em nome do engrandecimento da nação: representações de gênero no discurso médico: São Paulo, 1890-1930. Diálogos, v.4, p.77-92. 2000.). Nesse sentido, o trabalho da única mulher brasileira eugenista no PCBE, Maria Antonieta de Castro, também engrossava tal perspectiva relacionada às taxas de mortalidade. A autora enfatizava, com dados estatísticos, que os programas de higiene e de educação materna eram fundamentais na geração de um descendente saudável. Exibindo gráficos e ilustrações, o artigo de Maria Antonieta apresenta dezenas de fotografias referentes aos serviços de higiene pré-natal, do “Curso das Mãezinhas”, designado à educação materna (Souza, 2009SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Arquivo de Antropologia Física do Museu Nacional: fontes para a história da eugenia no Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.16, n.3, p.763-777. 2009., p.770).

Durante esse momento histórico, desenvolveu-se a maternologia no Brasil, impulsionada por médicos higienistas no sentido de uma profissionalização da maternidade. As atividades da maternologia e as campanhas dos centros de saúde vinculavam-se às ideias higiênicas e eram redentoras da maternidade e da proteção à infância, especialmente das camadas populares mais pobres. Matos (2000)MATOS, Maria Izilda Santos de. Em nome do engrandecimento da nação: representações de gênero no discurso médico: São Paulo, 1890-1930. Diálogos, v.4, p.77-92. 2000. descreve que a maternidade deixava de ser uma experiência de caráter exclusivamente feminino, divergindo ao se transformar em um saber advindo de um discurso profissional da medicina, caracteristicamente masculino (Matos, 2000MATOS, Maria Izilda Santos de. Em nome do engrandecimento da nação: representações de gênero no discurso médico: São Paulo, 1890-1930. Diálogos, v.4, p.77-92. 2000., p.82).

Portanto, a educação feminina tornou-se um ponto prioritário para a medicina, uma que, por meio dela, pretendia-se o aprimoramento físico e moral das mulheres como mães e das futuras gerações do país. As “novas mulheres” eram definidas como agentes familiares da higiene social e deveriam tornar-se o porto seguro da moral da sociedade. Exemplificando o ideal dessas “novas mulheres” submetidas à tutela médica, segundo as atas do primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, organizou-se no Brasil, em 1926, o primeiro Concurso de Eugenia. Organizado por dois engenheiros eugenistas, o concurso, cuja submissão de inscrição foi de caráter popular, almejou premiar crianças brasileiras que mais se aproximassem do tipo eugênico ideal. Apoiado por Moura Campos, presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia, que pretendia homenagear o centenário da morte da imperatriz Leopoldina, o concurso submeteu crianças a exames de seleção para sua classificação eugênica (Atas..., 1929ATAS... Atas do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (Biblioteca da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, Rio de Janeiro). Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=acebibcoc_r&pagfis=9788>. Acesso em: 25 jun. 2019. 1929.
http://docvirt.com/docreader.net/DocRead...
, p.57). Em seu trabalho, a médica Maria Antonieta de Castro também descreve concursos para selecionar a melhor robustez infantil, inclusive escolhendo um “Bebê eugênico”, que tinha como objetivo eleger as crianças a partir do critério de serem eugenicamente saudáveis (Figura 1) (Souza, 2009SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Arquivo de Antropologia Física do Museu Nacional: fontes para a história da eugenia no Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.16, n.3, p.763-777. 2009., p.770).

Figura 1
: Criança premiada como “Bebê eugênico”; ilustração do trabalho “A influência da educação sanitária na redução da mortalidade infantil”, apresentado no primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia por Maria Antonieta de Castro (Arquivo de Antropologia Física, Museu Nacional/UFRJ; foto:Adenir F. Carvalho)

Segundo Góes (2015)GÓES, Weber Lopes. Racismo, eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato Kehl. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Marília. 2015., a metodologia do Concurso Eugênico era a análise de fichas preenchidas pelos inscritos em relação à ascendência e às suas enfermidades físicas e mentais. Incluíam-se não apenas o aspecto físico, mas a história familiar de doenças mentais, taras, sífilis, tuberculose, lepra, homossexualidade (denominada na época de homossexualismo), prostituição, alcoolismo e assassinato (Ramos, 2002RAMOS, Maria Bernadete. Ao Brasil dos meus sonhos: feminismo e modernismo na utopia de Adalzira Bittencourt. Estudos Feministas, v.10, n.1, p.11-37. 2002., p.10).

Elegeram-se trinta finalistas, dos quais três meninas foram premiadas: Adenir, Ruth e Rachel. Os critérios que levaram Adenir a ser classificada como a primeira colocada como criança eugênica do Brasil foram: ter 3 anos de idade, oito irmãos, todos vivos, seis tios maternos e sete paternos, todos sadios (Góes, 2015GÓES, Weber Lopes. Racismo, eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato Kehl. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Marília. 2015.). A partir do resultado do concurso denota-se a associação direta entre função reprodutiva e a figura feminina, uma vez que apenas meninas foram vencedoras, alçadas como o futuro exemplo de novas mulheres: aquelas submetidas à seleção eugênica.

Análise de gênero no primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia: as ideias de Jorge de Lima sobre determinação de sexo biológico

Inicialmente, discutiremos aqui um ponto relevante para entender como as relações de gênero se conectavam aos conhecimentos específicos dentro das teorias eugênicas, expressos em conceitos como a determinação do sexo biológico para o melhoramento da raça humana. Durante o primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Jorge de Lima (1893-1953) apresenta o trabalho “A procriação voluntária do sexo de acordo com a época da coabilitação”. Apesar do congressista ter se graduado médico pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Jorge de Lima é mais conhecido por suas obras da literatura, sobretudo por sua poesia da década de 1930 e por fazer parte da segunda fase do movimento modernista brasileiro.1 1 Na década de 1940, Jorge de Lima foi premiado pela Academia Brasileira de Letras. Seu poema mais conhecido é “Essa nega fulô”, ressaltando a beleza, a sexualização e a servidão de uma mucama – no qual o autor é influenciado por tendências parnasianas (Barbosa, 2010).

Antes de analisarmos as questões de gênero do trabalho citado, cujo assunto central era a determinação do sexo, é essencial entendermos a conjuntura científica sobre o tema na época, uma vez que seu conteúdo científico mostra um desacordo com alguns dos principais estudos sobre o assunto.

Segundo Martins (1999)MARTINS, Lilian Al-Chuyer Pereira. McClung e a determinação de sexo: do equívoco ao acerto. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.6, n.2, p.235-256. 1999., entre o final do século XIX e os primeiros anos do século XX havia duas perspectivas sobre a determinação do sexo. A primeira corrente de pensamento acreditava que o sexo era determinado por fatores ambientais, como quantidade de alimento acessível para o embrião e para a mãe ou mesmo a variação de temperatura durante o período de desenvolvimento do embrião. Essa perspectiva, descrita como “ambientalista” pela autora, baseava-se em mudanças em fatores do ambiente que afetavam a proporção sexual nas mais variadas espécies.

De acordo com a segunda corrente de pensamento mencionada por Martins (1999)MARTINS, Lilian Al-Chuyer Pereira. McClung e a determinação de sexo: do equívoco ao acerto. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.6, n.2, p.235-256. 1999., o sexo seria determinado no momento da fertilização ou mesmo antes, em função de fatores internos existentes no óvulo, no espermatozoide ou em ambos. Os cientistas que negavam as influências ambientais, chamados de hereditaristas pela autora, se aproximavam, majoritariamente, das perspectivas mendelianas. A linha dos hereditaristas salientava a influência de fatores hereditários contrapondo-se aos fatores ambientais na diferenciação sexual.

Ainda segundo Martins (1999)MARTINS, Lilian Al-Chuyer Pereira. McClung e a determinação de sexo: do equívoco ao acerto. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.6, n.2, p.235-256. 1999., um dos mais importantes estudiosos sobre a determinação de sexo no fim do século XIX foi o biólogo americano Clarence Erwin McClung (1870-1946). A hipótese de McClung, em 1899, pertencia à perspectiva segundo a qual a determinação do sexo poderia ocorrer durante a fecundação. Entretanto, ele também considerava a existência de trabalhos que pareciam fornecer evidências sobre a influência das condições ambientais na proporção sexual, incluindo aquelas que agiam após a fecundação. Apesar de outros cientistas do início do século XX mostrarem que algumas teorias de McClung estavam equivocadas – uma vez que ele acreditava que o óvulo seria capaz de selecionar o espermatozoide que iria fecundá-lo –, muitas contribuições científicas vieram de seus estudos. Uma delas foi que McClung chamou atenção para a relação entre sexo e cromossomos especiais – futuramente chamados de sexuais – e defendeu que dois tipos de espermatozoides eram formados, dessa maneira, trazendo contribuições para a teoria cromossômica. Além disso, seu trabalho foi muito relevante por estimular uma maré de pesquisas sobre a determinação do sexo (Martins, 1999MARTINS, Lilian Al-Chuyer Pereira. McClung e a determinação de sexo: do equívoco ao acerto. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.6, n.2, p.235-256. 1999.).

Em específico, chamamos atenção para um ponto: McClung (e a maioria dos pesquisadores na época) não estudou a determinação de sexo nas fêmeas, utilizando apenas gafanhotos machos. Apesar de justificar dificuldades no estudo da ovogênese das fêmeas e alegar que machos possuíam maior necessidade de gasto de energia que fêmeas, é muito provável que o motivo também tenha sido influenciado socioculturalmente: na visão geral desses cientistas, os machos eram superiores às fêmeas, possuíam algo a mais do que elas, explicitando a hierarquização dos sexos (Martins, 1999MARTINS, Lilian Al-Chuyer Pereira. McClung e a determinação de sexo: do equívoco ao acerto. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.6, n.2, p.235-256. 1999.; Martins, Brito, 2006).

Em 1925, o biólogo americano Calvin Bridges evidenciou a importância dos cromossomos em drosófilas (moscas de fruta), deslocando a importância para os cromossomos, hoje definidos como os sexuais, para a determinação do sexo por um balanço genético (Bizzo, 1994BIZZO, Nélio Marco Vicenzo. Meninos do Brasil: ideias de reprodução, eugenia e cidadania na escola. Tese (Livre-docência) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1994.).2 2 Aos olhos de hoje, a determinação de sexo ainda é um assunto complexo, devido à extrema diversidade dos modelos de determinação sexual entre os variados seres vivos, especialmente os insetos (Martins, Brito, 2006).

Porém, tais influências cromossômicas para a explicação da hereditariedade não estavam bem difundidas, fossem os estudos da determinação do sexo de Calvin Bridges, de 1925, ou mesmo a teoria cromossômica de herança, a qual já era aceita pela maioria dos profissionais das ciências biológicas a partir da década de 1910 (Bizzo, 1994BIZZO, Nélio Marco Vicenzo. Meninos do Brasil: ideias de reprodução, eugenia e cidadania na escola. Tese (Livre-docência) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1994.).

Por outro lado, trazemos aqui alguns pontos para refletir sobre generalizações: alguns eugenistas brasileiros mostravam-se cientes de como a teoria cromossômica esclareceu pontos sobre a hereditariedade, como questões da herança ligada ao sexo. Também no primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Dreyfus discute em sua conferência “O estado atual do problema de hereditariedade” sobre duas teorias para a herança ligada ao sexo: ambas de caráter hereditarista. Uma delas é a teoria então descrita por Winiwarter e Oguma sobre a determinação de sexo na espécie humana, na qual as mulheres teriam mais cromossomos que os homens (48 contra 47). A segunda é de Painter, tendo homens e mulheres ambos 48 cromossomos, sendo que o sexo feminino possuía XX e o masculino apresentava o X e um Y, sendo este último descrito por Dreyfus (1929, p.94) como tão pequeno que, muitas vezes, era como se não existisse. Logo, o médico brasileiro se mostra a par dos conceitos de hereditariedade discutidos na Europa à época.

Dado tal panorama, o eugenista brasileiro Jorge de Lima no seu trabalho discorre sobre a determinação de sexo e, apesar de todos os referenciais inclusive aqueles citados por Dreyfus no PCBE, decide se basear no filósofo natural alemão Carl Siegel (1872-1943), que escreveu obras no campo da epistemologia e metodologia das ciências naturais. Menciona-se que o trabalho de Siegel foi rejeitado na França, grande influenciadora do Brasil em vários períodos históricos, fato que Jorge de Lima aponta como uma das razões para as teorias de Siegel não terem sido muito difundidas no Brasil. O médico brasileiro demonstra apoio às teorias ambientalistas de Siegel sobre a determinação voluntária do sexo – que ele destaca serem mais tendências do que realmente utilizáveis para a seleção do sexo. Segundo Jorge de Lima (1929, p.280), Siegel fez diversos estudos examinando casais no tempo de guerra, exaltando os soldados: “quando aos ‘heróis’ era permitida uma licençazinha para ver a família”. Apesar de o artigo de Lima não esclarecer abertamente qual seria a contribuição da escolha do sexo para a melhora da raça humana, as teorias de Siegel sustentam pontos que estão de acordo com os valores da época – o que será discutido adiante – servindo como um argumento de autoridade científica para ditar como mudanças sociais poderiam influenciar a biologia. Consequentemente, segundo ele, se as normas da sociedade fossem seguidas corretamente, havia uma tendência em se obter mais “meninos”.

O anseio em se obter mais meninos, apesar de não ser declarado diretamente pelo eugenista como proposta para os congressistas brasileiros, é demonstrado por diversas vezes no trabalho. Ao citar o posicionamento dos judeus frente às ideias de Siegel, Lima (1929LIMA, Jorge de. A procriação voluntária do sexo de acordo com a época da coabitação. In: Congresso Brasileiro de Eugenia, 1., Rio de Janeiro, 1929. Anais... Rio de Janeiro: Academia Nacional de Medicina. v.1, p.277-292. 1929., p.279) argumenta que a religião judaica era positiva por demarcar tempo certo para o coito, afirmando: “Na Alemanha, na Rússia, na Romênia, em toda a parte em que o judeu é uma força, a raça é fértil de meninos”. Sobre o registro de nascimentos, ele citava: “De outro lado, as autoridades só verificavam rigorosamente o registro de meninos para efeito do serviço militar. Não se importavam com o registro das meninas” (p.279).

Supomos que tal interesse implícito de Siegel em obter mais meninos, refletido no trabalho de Jorge de Lima, seja relacionado a um pensamento militar, pois mais homens seriam necessários naqueles tempos, o que é evidenciado pela já citada preocupação eugênica específica do congresso com os militares, vista em outros de seus trabalhos, bem como no escrito por Rezende (1929)REZENDE, Motta. Factores de degeneração observados nas praças da Polícia Militar. In: Congresso Brasileiro de Eugenia, 1., Rio de Janeiro, 1929. Anais... Rio de Janeiro: Academia Nacional de Medicina. v.1, p.311-314. 1929.. Assim, Lima decide não mencionar importantes estudos científicos, mesmo estando em 1929 (muito depois da exposição das teorias de Morgan e Bridges nos EUA), e usar como referencial estudiosos alemães: país em franca recuperação seguida de intenso crescimento econômico, político e militar no período entre as duas grandes guerras mundiais, superando a hiperinflação alemã do início da década de 1920 pós-Primeira Guerra Mundial e contornando a grande depressão dos anos 1930 (Couto, Hackl, 2007).

Dessa maneira, Lima demonstra, por meio da menção de vários trechos em alemão, uma admiração por esse povo e por seu idioma, canalizados em sua visão sobre o trabalho de Siegel. No início de seu texto, Lima (1929, p.277) cita que encontrou Siegel e mostra satisfação: “Quando bem não acabou a guerra, eu travei conhecimento com Siegel: fiquei satisfeito de topar com o homem que esclareceu melhor o problema da procriação voluntária do sexo”.

Baseando-se também no trabalho dos alemães Hofacker e Sattler, Jorge de Lima oferece várias suposições sobre a determinação do sexo, levando em conta a idade dos pais. Tais determinações apoiavam maior número de meninos seguindo as normas morais da época para as idades do casamento: o homem um pouco mais velho que a mulher. Com relação à quantidade de filhos por mãe, Lima informa que, ao primeiro parto, mulheres tendem a dar à luz meninos, enquanto as primíparas jovens demais têm maior tendência a conceber meninas. Ademais, a probabilidade de obter meninas seria proporcional ao aumento gradativo do número de partos por mulher, ou seja, mães do segundo parto em diante (pluríparas) tenderiam a ter mais meninas. Consequentemente, comparando-se diretamente primíparas e pluríparas, a influência da idade da mãe ficaria, para ele, comprovada: a primípara, por ser quase sempre mais jovem que a plurípara, produziria mais crianças do sexo masculino. No entanto, no caso de primíparas na idade avançada, haveria uma tendência à diminuição de nascimentos de meninos, que, para Lima, não se poderia explicar numericamente, mas que parecia existir. Na discussão específica sobre a idade do pai para a determinação do sexo, Lima (1929, p.280-283) ainda afirma, baseado nos trabalhos de Siegel e Hofacker que, em três mil partos, não se notou nenhuma influência da idade do pai em favor da determinação do sexo, apenas no caso de homens serem mais de dez anos mais velhos que as mulheres.

Dessa maneira, nota-se a vivacidade da crença de a idade das mulheres ter papel central na determinação do sexo do filho, ressaltando o desencorajamento masculino por mulheres mais velhas, pelo fato de supostamente gerarem mais meninas. Tais teorias conectavam-se, portanto, ao crescente desenvolvimento da maternologia no Brasil – uma vez que as mulheres deveriam ainda jovens se dedicar à maternidade – e à preocupação da sociedade médica em relação à possibilidade de as mulheres gerarem seus filhos mais velhas, sobretudo por sua crescente entrada no mercado de trabalho a partir da década de 1920, ponto explicitado aqui pelo trabalho de Matos (2000)MATOS, Maria Izilda Santos de. Em nome do engrandecimento da nação: representações de gênero no discurso médico: São Paulo, 1890-1930. Diálogos, v.4, p.77-92. 2000..

Lima também dispõe da maioria de seu trabalho para citar uma série de experimentos feitos por Siegel sobre o tempo de coabitação de muitos casais, em meio aos quais ele traz gráficos e esquemas feitos à mão para o Congresso (Figura 2). O eugenista brasileiro avalia a relação que havia entre o dia da cópula e o ciclo menstrual das mulheres na formação do sexo do bebê. Isso é bem representado pelo trecho:

Figura 2
: Na primeira tabela, Lima mostra a diferença entre a quantidade de nascimentos entre os sexo sem relação à diferença de idade dos pais. Nas figuras feitas à mão, indica a proporção de nascimentos entre os sexos de acordo com o ciclo menstrual da mulher (Lima, 1929)

Siegel garantia poder-se obter o sexo à vontade, de acordo com a época da cópula. A coabitação praticada, depois da menstruação ao tempo em que os óvulos estão novos, dá crianças do sexo feminino numa proporção de 90%; feita nos dias anteriores ao catamiento (quando a mulher teve um ciclo regular de 28 dias), dá machos na proporção de 100%. Outras fases do período intermenstrual fazem a mulher propensa a produzir meninos ou meninas, conforme a hipo ou hipermadureza do óvulo, tudo isso ligado à ruptura do folículo também (Lima, 1929LIMA, Jorge de. A procriação voluntária do sexo de acordo com a época da coabitação. In: Congresso Brasileiro de Eugenia, 1., Rio de Janeiro, 1929. Anais... Rio de Janeiro: Academia Nacional de Medicina. v.1, p.277-292. 1929., p.278).

Dessa maneira, tais evidências pareciam indicar que a determinação do sexo dependia da maturação do óvulo no momento da fecundação, suposições que entravam em diálogo com estudos feitos em animais por outros pesquisadores. Por conseguinte, quando o óvulo estivesse em estágio mais maduro durante a fecundação havia o nascimento de um menino – sugerindo nesse ponto uma “possível qualidade” do óvulo. Por outro lado, quando o óvulo ainda estava imaturo, havia o nascimento de uma menina, explicitando a ideia de hierarquização dos sexos (Lima, 1929LIMA, Jorge de. A procriação voluntária do sexo de acordo com a época da coabitação. In: Congresso Brasileiro de Eugenia, 1., Rio de Janeiro, 1929. Anais... Rio de Janeiro: Academia Nacional de Medicina. v.1, p.277-292. 1929., p.283-291).

Dentro da história das ciências, e não apenas nas discussões eugênicas, é constante a responsabilização da mulher em questões da determinação de sexo. O próprio Lima (1929LIMA, Jorge de. A procriação voluntária do sexo de acordo com a época da coabitação. In: Congresso Brasileiro de Eugenia, 1., Rio de Janeiro, 1929. Anais... Rio de Janeiro: Academia Nacional de Medicina. v.1, p.277-292. 1929., p.280) menciona que o filósofo grego Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) acreditava que as glândulas do ovário do lado direito nas mulheres formavam meninos e as do lado esquerdo formavam meninas. Desse modo, novamente notamos a hierarquização dos sexos nas teorias de Aristóteles. Historicamente, o lado direito sempre foi uma posição de importância cultural. A título de exemplificação, na Bíblia, estar do lado direito significa ser identificado como estar numa posição de honra. No momento em que o próprio Jesus explica sobre as ovelhas e bodes, ele coloca as ovelhas à direita e os bodes à esquerda (Ryken, Wilhoit, 1998).

A responsabilização da mulher, frequentemente de caráter punitivo, está imersa no passado em várias áreas da ciência, e há marcas culturais remanescentes que extrapolam a conjuntura científica. Tais traços podem ser bem representados até mesmo nas religiões, como a punição divina de Eva no Gênesis, repercutindo nas dores no parto para as mulheres como penitência (Ryken, Wilhoit, 1998). Assim, a figura feminina é frequentemente castigada, bem representada no discurso do doutor Paz Soldán, um dos participantes peruanos do primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. Nas atas do evento, ele constata: “a contribuição do pai na formação do filho não é idêntica à da mãe; uma é de prazer, outra é de dor” (Atas..., 1929ATAS... Atas do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (Biblioteca da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, Rio de Janeiro). Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=acebibcoc_r&pagfis=9788>. Acesso em: 25 jun. 2019. 1929.
http://docvirt.com/docreader.net/DocRead...
, p.34).

Dentro das teses eugênicas, é essencial ressaltar como as ideias de hereditariedade poderiam estar diretamente envolvidas e sustentar medidas eugênicas incisivas, de caráter educacional e social, que acabavam repercutindo em intervenções com forte viés de gênero.

Durante o primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, nota-se uma grande parcela de cientistas adeptos das ideias de herança de caracteres adquiridos, apesar de muitos estarem cientes da ascensão das ideias de Mendel. Como exemplo disso, Lima (1929LIMA, Jorge de. A procriação voluntária do sexo de acordo com a época da coabitação. In: Congresso Brasileiro de Eugenia, 1., Rio de Janeiro, 1929. Anais... Rio de Janeiro: Academia Nacional de Medicina. v.1, p.277-292. 1929., p.291) compartilha as menções de Dreyfus no PCBE e finaliza seu trabalho mostrando ciência da descoberta e da importância das leis de Mendel: “As observações mendelianas ficaram meio século esquecidas como fantasias do frade. Só em 1900 é que se começou a olhar com algum interesse o que Mendel observara. Não! Vislumbrara!”. Apesar do conhecimento sobre Mendel, e de citar propostas de teoria cromossômica referida por Dreyfus, inclusive mencionando Morgan, Lima insiste na relevância dos trabalhos de Siegel e compara o descrédito que Mendel recebeu por suas propostas na época da publicação com a situação de Siegel perante cientistas da sua época, descrentes da herança de caracteres adquiridos:

Não há dúvida: a verificação citológica pertence ao futuro. Isto não quer dizer que a observação eugênica da procriação voluntária do sexo não tenha sido vislumbrada por Siegel. Também um frade obscuro fixou no seu tempo as leis ‘paracientíficas’ nas fundamentais da hereditariedade (Lima, 1929LIMA, Jorge de. A procriação voluntária do sexo de acordo com a época da coabitação. In: Congresso Brasileiro de Eugenia, 1., Rio de Janeiro, 1929. Anais... Rio de Janeiro: Academia Nacional de Medicina. v.1, p.277-292. 1929., p.291; destaque no original).

Ele finaliza seu trabalho ressaltando a importância dos estudos alemães, mostrando sua admiração por empregar termos como “vitoriosa” e “grande obra” e por serem comprovados por experiências visíveis pelo povo (utilizando a palavra “vulgo”) (Lima, 1929LIMA, Jorge de. A procriação voluntária do sexo de acordo com a época da coabitação. In: Congresso Brasileiro de Eugenia, 1., Rio de Janeiro, 1929. Anais... Rio de Janeiro: Academia Nacional de Medicina. v.1, p.277-292. 1929., p.292).

Apesar do reconhecimento das Leis de Mendel, muitos cientistas consideravam a influência do meio na definição das características. Consequentemente, argumentos para a educação feminina visando à maternidade, para impedir a degeneração moral supostamente hereditária, ganhariam mais força. Aliadas a isso, propostas para impedir casamentos e para propor esterilização de parcelas da população, como mulheres com doenças mentais e psíquicas, fortaleciam-se cada vez mais: pontos que serão vistos na seção seguinte abarcando mais reflexões sobre as relações de gênero e subordinação na eugenia.

Ideias de controle da reprodução expressas no primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia: casamento e esterilização da população

De acordo com Stepan (1991)STEPAN, Nancy Leys. The hour of eugenics: race, gender and nation in Latin America. Ithaca: Cornell University Press. 1991., a Igreja católica foi um oponente central contra a disseminação de pílulas anticoncepcionais – não apenas no contexto brasileiro, mas no mundial –, impedindo planejamento familiar e desencorajando as mulheres brasileiras, esmagadoramente católicas na época, a fazer parte de movimentos reformistas nesse sentido. Todavia, a Igreja teve papel fundamental no Brasil barrando medidas eugênicas extremas. A esterilização em massa da população – isto é, a intervenção médica direta para tornar estéreis parcelas “degeneradas” da população – foi quase inteiramente minada no Brasil pela forte influência da doutrina católica. De acordo com o catolicismo, valores espirituais no casamento se sobrepunham aos mais altos valores físicos; o propósito do casamento era reprodução, assim, o direito de reproduzir era inegociável. Ademais, os descendentes do contrato matrimonial eram denominados uma expressão da vontade de Deus, portanto, a Igreja não almejava proibir o casamento dos ditos “degenerados”. Mais especificamente, a Igreja católica rejeitou a esterilização, vista como um insulto à integridade dos corpos humanos que não tinha justificativa na ciência, na moralidade ou na doutrina católica (Stepan, 1991STEPAN, Nancy Leys. The hour of eugenics: race, gender and nation in Latin America. Ithaca: Cornell University Press. 1991., p.111-112).

Ao contrário do Brasil, campanhas de esterilização multiplicaram-se por EUA, Alemanha, Suécia, Dinamarca, Noruega, Finlândia, Estônia, Suíça e Inglaterra, muitas delas se consolidaram, tornando-se políticas públicas. A aceitação dessas ideias parecia muito maior nos EUA, onde o estado de Indiana promulgou leis que determinavam a esterilização obrigatória de portadores de características “indesejáveis”, para o melhoramento da raça. Em 1887, com a legislação aprovada, começaram a esterilização de milhares de criminosos e deficientes mentais em estados como Califórnia, Nova York, Nova Jersey e no território de Porto Rico (Bizzo, 1994BIZZO, Nélio Marco Vicenzo. Meninos do Brasil: ideias de reprodução, eugenia e cidadania na escola. Tese (Livre-docência) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1994.).

Apesar da esterilização nunca se consolidar como política pública ou intervenção em massa no Brasil, muitos importantes intelectuais do movimento eugênico brasileiro defenderam a esterilização no país. Entre eles estava Levi Carneiro (1929)CARNEIRO, Levi. Educação e eugenia. In: Congresso Brasileiro de Eugenia, 1., Rio de Janeiro, 1929. Anais... Rio de Janeiro: Academia Nacional de Medicina. v.1, p.107-116. 1929., cuja afirmação veio publicamente durante sua conferência apresentada no PCBE. Além disso, nesse sentido, intervenções médicas isoladas aconteceram no Brasil, sobretudo na população feminina (Stepan, 1991STEPAN, Nancy Leys. The hour of eugenics: race, gender and nation in Latin America. Ithaca: Cornell University Press. 1991., p.113).

Nas questões de controle reprodutivo, uma vitória relevante do movimento eugênico brasileiro – que inclusive se efetivou na Constituição brasileira de 1934 na Era Vargas – foi a adoção do exame pré-nupcial. Inspirado na constituição francesa, o teste pré-nupcial era uma exigência aos casais em apresentar prova médica de sua saúde mental e física antes do casamento. Apesar de ter sido amplamente discutido na Assembleia Constituinte entre 1933-1934, sua aplicação e obrigatoriedade não foi nacionalmente efetivada da maneira intencional por parte do movimento eugênico, em função das dificuldades e isolamento de certas regiões brasileiras. A ideia foi inicialmente discutida a partir de 1918, introduzida pelo médico Renato Kehl. Eugenistas argumentavam sobre a necessidade de tais exames para evidenciar o prejuízo hereditário que poderia ser eliminado das populações se fosse barrado já no casamento (Peixoto, 2016PEIXOTO, Priscila Bermudes. O exame médico pré-nupcial em debate: uma proposta de intervenção eugênica no Brasil, 1910-1940. História, Ciências Saúde – Manguinhos, v.23, supl.1, p.253-260. 2016., p.255; Stepan, 1991STEPAN, Nancy Leys. The hour of eugenics: race, gender and nation in Latin America. Ithaca: Cornell University Press. 1991.).

De acordo com a pesquisa de Peixoto (2016PEIXOTO, Priscila Bermudes. O exame médico pré-nupcial em debate: uma proposta de intervenção eugênica no Brasil, 1910-1940. História, Ciências Saúde – Manguinhos, v.23, supl.1, p.253-260. 2016., p.257), no caso brasileiro, o exame pré-nupcial buscava barrar enfermidades contagiosas ou hereditárias, cônjuges com grande diferença de idade ou com grau de parentesco próximo, como os casamentos consanguíneos (p.255), tema, aliás, de um dos trabalhos do PCBE, escrito por Newton Belleza e intitulado “Consanguinidade” (Atas..., 1929ATAS... Atas do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (Biblioteca da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, Rio de Janeiro). Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=acebibcoc_r&pagfis=9788>. Acesso em: 25 jun. 2019. 1929.
http://docvirt.com/docreader.net/DocRead...
). Alguns eugenistas brasileiros desaconselharam uniões inter-raciais no Brasil, inspirados na legislação então vigente nos EUA, onde houve leis proibindo matrimônios inter-raciais (Stepan, 1991STEPAN, Nancy Leys. The hour of eugenics: race, gender and nation in Latin America. Ithaca: Cornell University Press. 1991.). Contudo, a partir da análise de Peixoto (2016PEIXOTO, Priscila Bermudes. O exame médico pré-nupcial em debate: uma proposta de intervenção eugênica no Brasil, 1910-1940. História, Ciências Saúde – Manguinhos, v.23, supl.1, p.253-260. 2016., p.258) de documentos históricos das primeiras décadas do século XX no Brasil, não se encontrou nenhum tipo de impedimento matrimonial em relação ao fato de os cônjuges serem de etnias diferentes.

Segundo Stepan (1991STEPAN, Nancy Leys. The hour of eugenics: race, gender and nation in Latin America. Ithaca: Cornell University Press. 1991., p.124-127), a orientação adepta da HCA de muitos eugenistas incentivava a incluir na lista uma mistura heterogênea de condições como passíveis de serem assimiladas hereditariamente através do ambiente – como sífilis, doenças mentais e físicas, abuso de drogas, inclusive álcool. Eles acreditavam que as condições ambientais, sofridas ao longo da vida pelo alcoolista, poderiam prejudicar as células germinativas (os gametas) e, portanto, degenerar os descendentes.

No PCBE, acontecido anteriormente à consolidação do exame pré-nupcial como política pública, Joaquim Moreira da Fonseca (1886-1970) apresentou o trabalho “Casamento e eugenia”, no qual alguns nortes foram dados para orientação em direção a um casamento eugênico. Uma das discussões foi a respeito da idade, novamente focalizando as esposas. Moreira da Fonseca dissertava sobre os perigos do casamento com uma esposa de idade precoce, em virtude de a mortalidade infantil ser maior na prole dessas mães, ignorando todos os determinantes sociais, essenciais nessa discussão. O médico também pontuava que era necessário que a mulher estivesse em condições fisiológicas adequadas, argumentando que os primeiros sinais de puberdade não eram indícios de maturidade sexual (Fonseca, 1929, p.300-302) – período da vida das mulheres que era praticamente demonizado pelo eugenista. Moreira da Fonseca listou uma série de pesquisadores que defenderam que as meninas diminuíam consideravelmente sua capacidade intelectual durante essa época da vida e acrescentou: “A maturação sexual não aparece sem perigos, sendo a ocasião mais propícia para pôr à mostra as taras e os estigmas latentes, como se fosse um verdadeiro agente provocador” (Fonseca, 1929, p. 302). Além de sintomas e desvios graves no âmbito biológico, o médico ainda citava as frequentes perturbações mentais da puberdade, quando meninas apresentavam crises de tristeza, manias religiosas, que podiam chegar até mesmo a psicoses.

Moreira da Fonseca discutia que, para o casamento, a idade legal mínima exigida pelo Código Civil nem sempre satisfazia o desenvolvimento da capacidade de reprodução, podendo o resultado do exame pré-nupcial gerar o adiamento do casamento. Assim, o médico levantava a questão de que o contrato matrimonial deveria estar de acordo para gerar uma descendência eugênica, que levava em conta, para a maturidade sexual, exclusivamente requisitos biológicos –, diâmetro da bacia, consolidação das peças do osso ilíaco e ossificação das epífises do osso sacro – nunca mencionando o consentimento ou maturidade psicológica do casal (Fonseca, 1929, p.304).

Todas as reflexões abarcando os gêneros, sobre o princípio da diferença sexual na eugenia, envolvendo ideias sobre religião e casamento, podiam ganhar contornos subjetivos na dinâmica social da época. Transpondo as ideias de Matos (2000)MATOS, Maria Izilda Santos de. Em nome do engrandecimento da nação: representações de gênero no discurso médico: São Paulo, 1890-1930. Diálogos, v.4, p.77-92. 2000. sobre o movimento sanitarista-higienista para a conjuntura do movimento eugênico brasileiro, ambos contemporâneos, e associando as ideias de poder de Scott (1994)SCOTT, Joan. Prefácio a: “Gender and politics of history”. Cadernos Pagu, n.3, p.11-27. 1994., colocavam-se naquela época os homens na esfera pública e as mulheres no mundo privado. Essa separação entre público e privado era vista como inevitável, natural ou justificável pela biologia do período, que delimitava os espaços para os sexos. Na realidade, tal divisão é construída social, cultural e historicamente. Assim, percebeu-se um movimento gradativo de privatização do espaço, em que a esfera pública invadiu o espaço privado até o domínio das intimidades. Portanto, refletir sobre o ambiente familiar implicava colocar as mulheres numa esfera distante do mundo público, ocultando a presença de uma dinâmica de poder que agia entre os sexos. Nessa representação, os médicos higienistas, que incluíam muitos eugenistas, podem ser analogamente vistos como sacerdotes, julgando o matrimônio e garantindo à família um nascimento legítimo e eugênico, percebendo a sexualidade feminina como objeto de atenção reforçada (Matos, 2000MATOS, Maria Izilda Santos de. Em nome do engrandecimento da nação: representações de gênero no discurso médico: São Paulo, 1890-1930. Diálogos, v.4, p.77-92. 2000.).

Além disso, nossa análise documental na parte de gênero contempla outros trabalhos que analisam a eugenia em outros países, como o de Toledo e Vimiero (2018)TOLEDO, Eliza Teixeira de; VIMIERO, Ana Carolina. A vida sexual, de Egas Moniz: eugenia, psicanálise e a patologização do corpo sexuado feminino. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.25, supl., p.69-86. 2018., a respeito de uma obra do escritor eugenista português Egas Moniz. As autoras afirmam que uma perspectiva da história das ciências que envolva questões de gênero auxilia na percepção de discursos médico-científicos que reforçam um alicerce ideológico e a hierarquização das relações na sociedade, embasando a ideia de submissão feminina (p.83).

Considerações finais

O trabalho de Jorge de Lima – apesar da participação desse autor sobre o tema da eugenia ser mais esporádica – carece de estudos na historiografia atual, e nossa pesquisa apresenta, nesse aspecto, um ineditismo quanto ao tema da eugenia no Brasil. O texto do eugenista pode ser utilizado como oportuno para sintetizar algumas ideias da época, refletindo a inerente inseparabilidade das ideias socioculturais no fazer científico, mesmo em um trabalho que propõe uma neutralidade matemática e epistêmica. Assim sendo, para os eugenistas como Lima, a determinação de sexo biológico estava à mercê do ambiente, ou seja, condicionada a costumes sociais do período. Associava-se o conteúdo de genética, expresso nos estudos de determinação voluntária dos sexos, a ideias nacionalistas e militaristas, sustentando um ideal de hierarquização entre os sexos, considerando os costumes sociais e conjuntura política do período histórico.

As ideias de herança de caracteres adquiridos envolvidas com questões de gênero permeavam vários trabalhos, como o de Castro Barreto, sobre educação feminina, e o de Moreira da Fonseca, sobre exame pré-nupcial. Imersos na noção de determinismo ambiental, consideravam que as populações estavam propensas a uma maior degeneração biológica ao longo das gerações por condições de pobreza e imoralidade.

Nas concepções dos eugenistas brasileiros acerca dos gêneros, a religião representou um papel principal em dois pontos: com a Igreja católica, barrando medidas extremas da eugenia, coibindo que a esterilização se tornasse uma política pública; e, como segundo fator, sustentando o autoritarismo científico da época, no qual os médicos eram figuras análogas aos sacerdotes da Igreja, validando os casamentos e os comportamentos da época (Foucault, 1977FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense. 1977.).

Do ponto de vista intelectual, esses discursos, apresentados aqui por eugenistas brasileiros como Jorge de Lima, Castro Barreto, Fernando de Magalhães, Maria Antonieta de Castro, Moreira da Fonseca, Renato Kehl e Adalzira Bittencourt, legitimavam comportamentos e papéis sociais para homens e mulheres na época, assim como descritos em trabalhos com análises de gênero na eugenia de outros países (Toledo, Vimiero, 2018). Portanto, o trabalho dos eugenistas brasileiros sujeitava a ciência a princípios de hegemonia masculina e, concomitantemente, de submissão feminina.

Para historiadores como Davis (1976)DAVIS, Natalie Zemon. Women’s history in transition: the European case. Feminist Studies, v.3, n.3-4, p.83-103. 1976., o uso da categoria de análise de gênero na história significa combater o determinismo biológico, focalizando a relação entre homens e mulheres, compreendendo as significações de gênero no passado, como a crença do mandado biológico da maternidade às mulheres. Nesse período da história da ciência brasileira, viu-se o mito de uma profissão médica nacionalizada, dedicada à saúde dos corpos com poderes similares aos que o clero exercia sobre as almas (Foucault, 1977FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense. 1977.). Assim como as ideias de gênero para Scott (1994)SCOTT, Joan. Prefácio a: “Gender and politics of history”. Cadernos Pagu, n.3, p.11-27. 1994., discutir essas questões dentro da eugenia possibilita a reflexão sobre as representações do masculino e do feminino, denotando não apenas suas diferenças, mas ressaltando suas hierarquias históricas, suas imagens de poder, a dominação do masculino sobre o feminino e a exclusão das mulheres nas discussões científicas. Ademais, a análise de gênero contribui ainda esclarecendo questões localizadas, a exemplo de matrimônio, educação e escolha do gênero dos descendentes, enriquecendo o entendimento de questões específicas do contexto brasileiro no momento histórico. Grande parte dessas reflexões na época tinha como alicerce, no contexto eugênico, um rico repertório de argumentação com base biológica.

Na eugenia, desigualdades sociais e culturais entre homens e mulheres eram pautadas e justificadas em argumentos de base biológica trazidos por Jorge de Lima, Castro Barreto, Moreira da Fonseca ou Fernando de Magalhães no PCBE: todos médicos homens e cientistas das ciências naturais. Contudo, não foi a biologia em si que inferiorizou as mulheres: foram as interpretações sociais sobre o biológico. Tal discussão é essencial na atualidade, em função de ainda vermos, lamentavelmente, o biológico sendo utilizado como argumento para validar injustiças sociais de forma a desconsiderar a desigualdade histórica de oportunidades e os trabalhos acadêmicos de grandes intelectuais da área de gênero, como Butler ou Scott. Intensificadas pela falta de esclarecimento de enorme parcela da população, encontramos barreiras substanciais para medidas envolvendo a promoção de igualdade de gênero, as quais podem ser motivadas assentando-se em problematizações históricas trazidas a público, a exemplo das abordadas nesta pesquisa.

AGRADECIMENTOS

Este artigo é parte da pesquisa feita para a dissertação de mestrado no Programa de Pós-graduação em Ensino e História das Ciências e da Matemática da Universidade Federal do ABC, Problematizações históricas do primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia para o ensino de biologia. A dissertação foi defendida por Anderson Ricardo Carlos sob a orientação da professora doutora Fernanda Franzolin e coorientação da professora doutora Márcia Helena Alvim.

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NOTAS

  • 1
    Na década de 1940, Jorge de Lima foi premiado pela Academia Brasileira de Letras. Seu poema mais conhecido é “Essa nega fulô”, ressaltando a beleza, a sexualização e a servidão de uma mucama – no qual o autor é influenciado por tendências parnasianas (Barbosa, 2010BARBOSA, Virgínia. Jorge de Lima. Pesquisa escolar on-line da Biblioteca Blanche Knopf. Recife: Fundação Joaquim Nabuco. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/>. Acesso em: 6 jan. 2019. 2010.
    http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaesc...
    ).
  • 2
    Aos olhos de hoje, a determinação de sexo ainda é um assunto complexo, devido à extrema diversidade dos modelos de determinação sexual entre os variados seres vivos, especialmente os insetos (Martins, Brito, 2006).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2019
  • Aceito
    4 Mar 2020
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