Resumos
Propõe-se neste artigo uma breve reflexão metodológica por uma leitura o menos anacrónica possível das notícias dos periódicos de Antigo Regime. Isso é feito através de uma reconstituição do "horizonte de expectativa" (Hans-Robert Jauss) de um conjunto específico de leitores da Gazeta de Lisboa (1715-1760). Trata-se do círculo de letrados que é possível traçar a partir do redactor da Gazeta e das suas relações de correspondência. A partir de um estudo de caso - notícias sobre incidentes diplomáticos envolvendo a corte do rei D. João V -, procura-se demonstrar a coexistência de patamares distintos de leitura das notícias, consoante os diferentes meios de comunicação. Num segundo momento, procura-se uma generalização explicativa desse sistema de troca de informação, assente nas diferenças - políticas, sociais, técnicas - que na época existiam entre o suporte impresso e o manuscrito.
cultura impressa e manuscrita; Gazeta de Lisboa; Portugal; século XVIII
Against a common anachronistic bias in historical readings of XVIIIth news and periodicals, this article tries to build an "horizon of expectation" (Hans-Robert Jauss) of well-informed readers of the Lisbon gazette (Gazeta de Lisboa, published between 1715 and 1760). As a case study, I analyse the way the gazette refrained from speaking of the diplomatic conflicts in which Portugal was then involved. Under a surface of apparent silence, though, manuscript journals and periodicals show us to which extent reading of the printed newspaper is more complex than we may expect. In the second part of the article, I try to describe the relationship between printed and handwritten news as a coherent system of communication, based on political, social and technical differences. I argue that, more than of opposition, we should speak of complementary roles of these two media.
Lisbon Gazette; Portugal; print and scribal culture; XVIIIth Century
ARTIGOS
Notícias impressas e manuscritas em Portugal no século XVIII: horizontes de leitura da Gazeta de Lisboa* * Neste artigo foi mantida a grafia vigente em Portugal (N. dos Org.).
André Belo
Université Charles de Gaulle - Lille 3 - França
RESUMO
Propõe-se neste artigo uma breve reflexão metodológica por uma leitura o menos anacrónica possível das notícias dos periódicos de Antigo Regime. Isso é feito através de uma reconstituição do "horizonte de expectativa" (Hans-Robert Jauss) de um conjunto específico de leitores da Gazeta de Lisboa (1715-1760). Trata-se do círculo de letrados que é possível traçar a partir do redactor da Gazeta e das suas relações de correspondência. A partir de um estudo de caso notícias sobre incidentes diplomáticos envolvendo a corte do rei D. João V , procura-se demonstrar a coexistência de patamares distintos de leitura das notícias, consoante os diferentes meios de comunicação. Num segundo momento, procura-se uma generalização explicativa desse sistema de troca de informação, assente nas diferenças políticas, sociais, técnicas que na época existiam entre o suporte impresso e o manuscrito.
Palavras-chave: cultura impressa e manuscrita, Gazeta de Lisboa, Portugal, século XVIII.
ABSTRACT
Against a common anachronistic bias in historical readings of XVIIIth news and periodicals, this article tries to build an "horizon of expectation" (Hans-Robert Jauss) of well-informed readers of the Lisbon gazette (Gazeta de Lisboa, published between 1715 and 1760). As a case study, I analyse the way the gazette refrained from speaking of the diplomatic conflicts in which Portugal was then involved. Under a surface of apparent silence, though, manuscript journals and periodicals show us to which extent reading of the printed newspaper is more complex than we may expect. In the second part of the article, I try to describe the relationship between printed and handwritten news as a coherent system of communication, based on political, social and technical differences. I argue that, more than of opposition, we should speak of complementary roles of these two media.
Keywords: Lisbon Gazette, Portugal, print and scribal culture, XVIIIth Century
Como a história do livro e outras áreas de pesquisa do passado, também a história da imprensa periódica tem adorado esse "ídolo das origens" de que falou Marc Bloch (1993, p. 85).1 1 "Il n'est jamais mauvais de commencer par un mea culpa. Naturellement chère à des hommes qui font du passé leur principal sujet d'études de recherche, l'explication du plus proche par le plus lointain a parfois dominé nos études jusqu'à l'hypnose. Sous sa forme la plus caractéristique, cette idole de la tribu des historiens a un nom: c'est la hantise des origines." A sua tradição constituiu-se em torno da identificação de um momento inicial a partir do qual se inicia uma narrativa que decorre até ao presente em que o historiador escreve. Essa narrativa apresenta-se sem rupturas, de forma contínua, entre a origem e o presente. O finalismo, isto é, a orientação da narrativa do passado em direcção ao que acontece no presente, e o seu inerente anacronismo, com a projecção no passado das características supostamente identificadas no presente, são duas das consequências mais importantes do culto historiográfico das origens.
Assim, a investigação sobre as publicações periódicas portuguesas nos séculos XVII e XVIII foi marcada, durante muito tempo, pela busca de um momento inicial o primeiro jornal português e por uma perspectiva finalista ou teleológica. Nos trabalhos de síntese mais conhecidos produzidos nesta área no século XX, autores como Alfredo da Cunha (1941) e José Tengarrinha (1989) deram expressão a esta postura, muito banhada pela ideia de progresso. Em aliança com os estudos bibliográficos, mercúrios e gazetas foram sistematicamente lidos como um embrião do que haveria de se formar depois, ou um mero ponto de passagem em direcção ao género jornalístico moderno, cujo modelo foi situado na segunda metade do século XIX.2 2 O Diário de Notícias, fundado por Eduardo Coelho em 1864, representa para os autores citados a modernidade industrial da imprensa. Ele constitui, a um tempo, fim da evolução e modelo projectado sobre o passado. Ausência de objectividade e lentidão das notícias, submissão política e menoridade estética constituíram as principais características atribuídas a esses periódicos, numa análise muito marcada pela ausência, por traços "ainda" por concretizar. O tratamento noticioso do terramoto de Lisboa de 1755 pela Gazeta de Lisboa, em suas curtas linhas,3 3 "O dia primeiro do corrente ficará memorável a todos os séculos pelos terremotos e incêndios que arruinaram uma grande parte desta Cidade, mas tem havido a felicidade de se acharem na ruína os cofres da fazenda Real e da maior parte dos particulares" ( Gazeta de Lisboa, n. 45 de 1755, de 6 de Novembro); "Entre os horrorosos efeitos do terremoto que se sentiu nesta Cidade no primeiro do corrente, experimentou ruína a grande torre chamada do Tombo em que se guardava o Arquivo Real do Reino, e se anda arrumando; e muitos Edifícios tiveram a mesma infelicidade" ( Gazeta de Lisboa, n. 46 de 1755, de 13 de Novembro). As citações de fontes foram convertidas, em todo o artigo, para português moderno (N. do A.). tornou-se o exemplo paradigmático da infirmidade desses periódicos do ponto de vista informativo e da sua incapacidade para cumprirem com o que os autores citados consideravam ser a missão unívoca da imprensa periódica ao longo dos tempos. Pela desproporção constatada entre as escassas notícias publicadas na Gazeta de Novembro de 1755 e a dimensão esmagadora do acontecimento, estava apresentada a demonstração mais eloquente desta análise.
Fiz do exemplo do terramoto o ponto de partida para um questionário aprofundado sobre a Gazeta de Lisboa nos reinados de D. João V e D. José (Belo, 2000). Tratava-se de empreender uma reflexão sobre uma publicação periódica portuguesa de Setecentos4 4 A Gazeta de Lisboa, no período abrangido por este estudo, iniciou a sua publicação em 10 de Agosto de 1715 e durou ininterruptamente até 1760, com a morte do redactor, e na altura também proprietário do privilégio, José Freire de Montarroyo Mascarenhas. A sua periodicidade foi semanal, tendo sido bissemanal entre 1742 e 1752. Para mais detalhes sobre a cronologia e propriedade da Gazeta de Lisboa, ver Belo (2001, p. 35-39). colocando-a tanto quanto possível fora de uma linha evolutiva cujo resultado final fosse previamente conhecido. A projecção anacrónica de categorias contemporâneas no passado, com efeito, contribui para obscurecê-lo, mais do que para compreendê-lo. Categorias como "objectividade da informação", por exemplo, para além de certamente não resistirem a um escrutínio crítico mesmo se o objecto fosse o tratamento noticioso do nosso presente, necessitam de dar lugar a grelhas de análise que incluam, entre outros aspectos, as categorias interpretativas com que historicamente eram escritas e lidas as notícias da Gazeta do século XVIII. Essas categorias eram distintas das nossas e interpretavam meios de comunicação também eles muito diferentes dos actuais.
Onde a perspectiva teleológica sublinhava a continuidade, prefiro assim sublinhar as descontinuidades, por considerar que estas nos ajudam melhor a compreender a especificidade deste objecto de estudo: o que era uma publicação periódica num ambiente de comunicação muito diferente da nossa "comunicação de massas"? Penso que a resposta à interrogação pode ser dada através de uma série de operações de contextualização. São elas que nos conduzem à reconstituição do contexto de comunicação e do ambiente sociocultural que pode dar sentido a um periódico como a Gazeta de Lisboa. Operação utópica, impossível de delimitar completamente, e que nos conduziria a relacionar todos os aspectos relacionados com o objecto impresso (da redacção à leitura, passando pelo fabrico, o controlo político, a venda) ao seu contexto social. Neste artigo, falarei essencialmente do aspecto da leitura. A partir de alguns exemplos de notícias da Gazeta, procurarei propor um modelo possível de leitura histórica desses relatos, tendo em conta as práticas socioculturais de uma comunidade específica de leitores, aquela que estava em relação com o redactor do periódico e onde este último se inseria também. Trata-se, no fundo, e seguindo ensinamentos da teoria da história literária (Jauss, 1993), de fazer um trabalho de reconstituição de um "horizonte de expectativa" das notícias impressas, um horizonte de leitura e também de redacção das notícias da Gazeta.
Mas nunca é má ideia continuar com um mea culpa. Não se pretende opor ao ídolo das origens uma perspectiva sem enviesamento, seja ele o anacronismo ou outro. O emprego de expressões teleológicas enraíza-se nas operações de classificação mais elementares, muitas vezes inconscientes, do historiador. A tomada de consciência do anacronismo tornou-se, neste caso, apenas mais fácil pela distância que a historiografia mais recente assumiu em relação a perspectivas anteriores, marcadas pela ideia de uma evolução linear, sem rupturas, orientada para o progresso. É isso e não uma pretensa superioridade epistemológica que nos permite ver hoje melhor o anacronismo de estudos anteriores. A ambição iconoclasta do presente artigo é portanto modesta. Ele inspira-se em trabalhos recentes que aprofundam a reflexão sobre os diferentes meios de comunicação existentes na Europa da época moderna (Bouza, 2001; Chartier, 1999; Jouhaud; Viala, 2002; Lisboa, 2002; Love, 1998; Moureau, 1993), e é também devedor de trabalhos que, noutras áreas de investigação como a história do direito e das instituições, têm criticado o finalismo de modo mais sistemático (Hespanha, 1997, p. 26-27).
Ler um incidente diplomático
Tomemos como alavanca a forma como a Gazeta de Lisboa tratou o incidente que desencadeou a interrupção de relações diplomáticas entre a Coroa portuguesa e a francesa durante cerca de quinze anos, entre 1725 e 1739. A 16 de Setembro de 1724 chegava a Lisboa o novo embaixador do rei de França, François Sanguin, abade de Livry. Cinco dias depois, a Gazeta de Lisboa publicava:
Sábado passado [16 de Setembro] chegou a esta Corte o Abade de Livry embaixador del Rei Cristianíssimo, a quem foi conduzir em coche de Sua Majestade, que Deus guarde, e por ordem sua, para o Palácio do Conde de Soure que lhe estava preparado, o Conde do Coculim, D. Francisco Mascarenhas, acompanhado de três coches seus, com Gentis homens. Tem concorrido muita parte da nobreza a cumprimentar a S. Excelência e toda volta mui satisfeita do seu grande talento e agrado. (Gazeta de Lisboa, n. 38 de 1724, de 21 de Setembro).
Logo após esta chegada, o novo embaixador e o secretário de Estado português, Diogo Mendonça de Corte Real, entraram em conflito sobre o protocolo a observar entre as duas partes: antes de enviar ao rei português as suas cartas de apresentação, o enviado francês esperou por uma primeira visita do secretário de Estado, alegando ser essa era a forma do cerimonial que teria sido praticada com os seus predecessores e com os seus homólogos embaixadores. Pelo seu lado, Diogo de Mendonça recusou-se a deslocar-se para ir cumprimentar o embaixador, alegando que tal obrigação de cerimonial não estava formalmente consagrada. O conflito durou mais de três meses, sem que houvesse cedências de parte a parte. Em Janeiro de 1725, o abade de Livry recebeu de França instruções para abandonar Portugal, o que foi feito (Brazão, 1980, p. 140). Durante todo este tempo, a gazeta portuguesa nada disse sobre o impasse diplomático criado. Apenas publicou, no dia 1 de Fevereiro, a notícia da partida: "O Abade de Livry partiu desta corte [de Lisboa] quinta-feira passada [25 de Janeiro], e o foram acompanhando até Aldeia Galega os ministros estrangeiros" (Gazeta de Lisboa, n. 5 de 1725, de 1 de Fevereiro). Sem qualquer referência explicativa às circunstâncias que envolveram a partida intempestiva do embaixador, o texto da Gazeta, aos olhos do historiador em busca de informação, destaca-se mais por aquilo que não diz do que por aquilo que diz.
Este silêncio tem uma evidente intencionalidade política. Podemos dizer que a Gazeta decidiu calar o diferendo enquanto ele existiu. Apenas depois de ser consumada a ruptura diplomática encontramos uma referência ao desfecho do conflito, mas essa referência esconde ao leitor tudo o que é politicamente sensível na notícia da partida, o contexto sem o qual, no fim de contas, tal partida resulta incompreensível. A mesma lógica está presente no tratamento noticioso que foi dado a outros conflitos diplomáticos que se deram ao longo do reinado de D. João V, como o que se verificou entre Portugal e a Santa Sé em torno da pretensão portuguesa de obter um novo cardinalato, e que teve como consequência a interrupção de relações diplomáticas entre Lisboa e Roma de 1728 a 1731.5 5 Foi a não nomeação por Bento XIII de Monsenhor Bichi, núncio em Lisboa, como cardeal que despoletou a ruptura em 1728. Numa política diplomática de alcance simbólico, o rei português empenhara-se junto à Santa Sé, a partir de 1720, para obter uma equiparação a cardinalato da nunciatura de Lisboa, tal como acontecia com as de Madrid, Paris e Viena (Almeida, 1926, p. 269-278). Podemos encontrar na gazeta portuguesa referência ao acontecimento que motivou directamente a crise diplomática e uma alusão aos decretos régios que formalizaram a ruptura de relações. Essas referências, no entanto, aparecem de modo fragmentado, despojadas de elementos de contextualização, impossibilitando uma leitura política explícita da crise. Só uma vez sanado o diferendo, em 1731, foi possível à Gazeta referir-se directamente ao corte de relações que sucedera anteriormente e que, ao longo de três anos, ficara totalmente implícito no texto do periódico.
Não sabemos até que ponto estes silêncios politicamente significativos resultaram de cortes vindos da censura prévia, feita no palácio real, a que o periódico se devia submeter a cada semana, ou se eles eram previamente decididos pela redacção. Mas trata-se, no fundo, de uma questão de pormenor para o que aqui nos interessa afirmar. Para além da censura semanal prévia do manuscrito do periódico, o redactor recebia reacções vindas do Paço sobre certas notícias que tinham desagradado ao rei, por vezes com instruções precisas sobre o modo de proceder no futuro.6 6 Estas reacções podem ser lidas na correspondência do redactor da Gazeta a Rodrigo Xavier Pereira de Faria, existente na Biblioteca Pública de Évora: "Cartas originais de José Freire Montarroio Mascarenhas para o Dr. Rodrigo Xavier Pereira de Faria" (1741-1749), CVIII/1-4. Os homens que editavam o periódico estavam perfeitamente a par dos contrangimentos políticos sobre a publicação de notícias de acontecimentos que diziam respeito à política da Coroa; notícias detalhadas sobre questões de "política interna" não faziam parte das atribuições de uma gazeta, e nada nos permite dizer que quem a publicava estivesse em oposição a esse princípio. A política da gazeta da corte não devia afastar-se da política da corte: o respeito pelos arcana imperii, do segredo com que se governavam os assuntos de Estado, era o melhor espelho dessa política.
Para além dos constrangimentos políticos, havia outra razão pela qual a publicação de notícias sobre a corte estava limitada. O espaço tipográfico disponível para elas era limitado pelo próprio ritmo de produção do periódico. Por causa do tempo necessário para a impressão e da necessidade de planear com antecedência cada número do periódico, as notícias "nacionais", sobre o que acontecia em Portugal e em Lisboa, não ultrapassavam, em geral, uma a duas páginas do periódico. As notícias vindas do exterior, essencialmente sobre as guerras e a política entre os Estados europeus, em que a exigência de actualidade era menor, constituíam a parte predominante da Gazeta. Esta é uma característica estrutural do periódico e comum a outras gazetas europeias existentes em regime de privilégio, isto é, usufruindo de um monopólio. Como aconteceu em França, apenas a nova imprensa nascida com as revoluções liberais e com o fim dos privilégios veio modificar esta situação (Popkin, 1999, p. 285).
A articulação entre constrangimentos políticos e tipográficos dá-nos uma medida das limitações existentes à publicação de notícias sobre assuntos internos. Mas, mesmo assim, não podemos falar de um silêncio total da Gazeta de Lisboa sobre os assuntos politicamente importantes relacionados com o Reino. Não foi por acaso que falámos do contexto político "implícito"ou "escondido" destas notícias. Eis aqui uma primeira tentativa para compreender o texto da gazeta a partir do horizonte de leitura do seu tempo: para os leitores do periódico português que liam regularmente as gazetas estrangeiras que chegavam a Portugal, esse contexto que a gazeta portuguesa escondia era bastante visível. Para o compreender, basta ler a forma como estas questões diplomáticas apareceram na contemporânea gazeta de Amsterdão, periódico em língua francesa de circulação internacional na época e que era lido também em Portugal. Enquanto a Gazeta de Lisboa mantinha silêncio sobre o impasse de ceremonial em torno do embaixador francês entre Setembro de 1724 e fim de Janeiro de 1725, a sua congénere holandesa referiu-se ao conflito pela primeira vez a 3 de Novembro de 1724, avançando desde logo com uma primeira versão explicativa: "Diz-se que é por causa da recusa do secretário de Estado de S.M. portuguesa a ir visitar primeiro o embaixador, tendo alegado que não era esse o costume" [On dit que c'est au sujet du refus qu'à fait le Secrétaire d'Etat de S.M. Portugaise de lui rendre la première visite, ayant allegué que ce n'étoit point l'usage] (Amsterdam, n. 88 de 1724, de 3 de Novembro). Em fins de Dezembro de 1724, o periódico relatava que a corte francesa ia ordenar a retirada do embaixador e, a 6 de Fevereiro de 1725, consumada essa partida, uma longa carta contava os detalhes do conflito diplomático desde o seu início. Esta era já uma síntese das regulares referências ao assunto feitas ao longo de alguns meses: ao contrário do que aconteceu no periódico português, a partida de Livry pôde ser entendida pelo leitor habitual da gazeta de Amsterdão como um ponto de chegada de uma cadeia de notícias, uma narrativa em constituição que permitiu a progressiva aquisição de um sentido.
Entre estes leitores habituais do periódico holandês contava-se muito provavelmente o redactor da gazeta portuguesa, José Freire de Montarroyo. A gazeta de Amsterdão era para ele um instrumento de trabalho, contando-se entre as fontes que utilizava para escrever as notícias da gazeta portuguesa. De facto, a redacção do periódico português assinava e traduzia das "gazetas do Norte" inúmeros capítulos com notícias internacionais. Ao publicar ou não as suas próprias notícias em português, Montarroyo tinha presentes as notícias internacionais que lia sobre o mesmo assunto. Ao compararmos as datas de publicação das notícias em Amsterdão com as datas da publicação das mesmas notícias na gazeta portuguesa, ficamos com uma ideia, que até peca por excesso, da velocidade a que Montarroyo recebia os relatos do periódico holandês: em 1745, por exemplo, as notícias holandesas eram publicadas em Lisboa com um mês de diferença.7 7 Numa comparação rápida dos conteúdos, pude apurar que vários capítulos da Gazeta de Lisboa, n. 8 de 1745, de 23 de Fevereiro, com notícias de Itália e da Alemanha, foram traduzidos de capítulos de diferentes números da gazeta de Amsterdão, datados de 15, 19 e 22 de Janeiro. Os restantes leitores portugueses de gazetas estrangeiras recebiam as notícias de Amsterdão em prazos semelhantes. O que quer dizer que conheceram os primeiros relatos holandeses que se referiram à recusa de visita do secretário de Estado português antes do fim de Novembro. Isto para não falar de eventuais relatos que terão certamente circulado antes, impressos noutras gazetas estrangeiras de países mais próximos de Portugal. Para o que nos importa aqui, podemos afirmar sem margem para dúvidas que, no interior de uma fronteira sociocultural criada pela capacidade para ler em francês e para aceder a uma assinatura de gazetas estrangeiras, a crise diplomática se deixava ler de modo bem diverso.
Podemos agora avançar um pouco mais. É também evidente que esta estimativa tem algo de académico: Montarroyo e outros leitores da imprensa internacional que residiam junto da corte não sabiam em primeira mão de notícias relativas a eventos ocorridos em Lisboa por uma gazeta vinda do estrangeiro. Montarroyo recebeu eco imediato dos acontecimentos por via da oralidade e/ou de textos manuscritos. As notícias chegadas do exterior vinham apenas juntar-se a uma informação já disponível por outros meios. De facto, se não dispomos de testemunhos directos da forma como tais notícias chegaram a Montarroyo, podemos verificar o fenómeno indirectamente, através de depoimentos de outros observadores que acompanhavam a actualidade, como era o caso de Tristão da Cunha de Ataíde, 1º Conde de Povolide (Ataíde, 1990). No seu diário manuscrito, ele dá-nos um exemplo da velocidade a que a notícia deste incidente circulou em Lisboa e foi por ele registada. Logo três dias depois da chegada do abade de Livry (Ataíde, 1990, p. 368) antes da Gazeta o fazer, portanto o conde descreveu-a em termos bastantes semelhantes aos do periódico de Lisboa, mas acrescentando à descrição o problema criado em torno do protocolo. Cerca de dois meses mais tarde, Povolide retomaria a narrativa sobre um assunto que teimava em não se resolver, resumindo os episódios que haviam marcado o impasse até ao momento em que escrevia: as alegações feitas em torno do costume do ceremonial feitas por ambas as partes, a troca de correio entre as respectivas cortes, as tomadas de posição dos diplomatas espanhol e inglês em Lisboa.
É neste contexto que um outro pequeno incidente nos é revelado:
Passaram-se dois meses pouco mais ou menos nisto; e dentro neles sucedeu que em uma das nossas gazetas de cada semana dizia uma que a França estava atenuada e falta de navios, e mandou o Abade de Livry chamar o impressor das gazetas António Correia, e lhe estranhou que pusesse aquilo na gazeta; ao que [este] lhe respondeu que ele punha o que lhe mandavam e que José Freire Montarroyo era quem tinha essa incumbência. Mandou o dito Abade Embaixador chamar a José Freire, que se escusou de ir, porém mandou-lhe a gazeta inglesa, dizendo que dela tirara o que dizia a portuguesa; e que ainda a inglesa diria mais naquela matéria em que reparara como dela veria. E depois se disse que falando nisso o Embaixador de França ao enviado de Inglaterra este lhe respondera que não tinha para que fazer reparo naquilo que dizia a gazeta, nem queixar-se disso. (Ataíde, 1990, p. 374).
A comparação entre este texto e o tratamento noticioso da Gazeta é eloquente: o primeiro inclui não apenas uma narração seguida e relativamente detalhada dos acontecimentos, mas inclui também um relato sobre a tensão provocada pela leitura da gazeta no contexto desses acontecimentos. Pela pena do conde de Povolide, obtemos um ponto de vista sobre a redacção do periódico e as pressões a que, para além da censura régia, ela podia estar sujeita. E assim o protagonista do incidente diplomático que a gazeta impressa decidira omitir faz uma aparição brusca junto das duas principais pessoas que estavam na época ligadas ao periódico: o redactor, José Freire Montarroyo, e o detentor do privilégio de impressão na época, António Correia. Ao mesmo tempo que silenciavam o diferendo diplomático ao longo das semanas, os homens ligados à gazeta estiveram, pelo menos num momento preciso, envolvidos numa relação de proximidade com os acontecimentos, participando nos microincidentes a eles associados e contactando directamente com um dos intervenientes.
Por outro lado, o objecto desta "estranheza" do embaixador deve também ser sublinhado. Com efeito, à "estranheza" do embaixador francês sucede-se a nossa: o que motiva o seu desagrado não é um texto com referência directa aos incidentes ocorridos, mas outra notícia sobre as privações da França, "atenuada e falta de navios". Só que esta notícia, traduzida de uma gazeta inglesa e sem aparente relação com a crise diplomática, deixou-se ler à luz das difíceis relações existentes entre Portugal e a França de então. Começámos procurando notícias sobre Livry na secção das notícias de Lisboa e acabámos encontrando uma leitura política de outras notícias do periódico feita pelo próprio Livry. Eis um exemplo de como, pegando numa expressão de Daniel Roche (1995, p. 236), a leitura "baralha as cartas", redistribui-as de modo diferente daquilo que esperávamos. Para a nossa própria leitura histórica das notícias, isto significa que, mesmo calando o "caso Livry", a Gazeta não ficou ao abrigo de uma leitura política, feita por um dos protagonistas da questão.
Para compreendermos um pouco melhor o alcance destes exemplos e destas leituras, propõe-se, na segunda parte deste artigo, uma generalização e sistematização da diferença de conteúdo entre notícias impressas e manuscritas. Diferença, mas também proximidade: entre os dois suportes, mais do que uma oposição, existia uma relação umbilical de complementaridade.
Notícias impressas e manuscritas: um sistema de informação
Existem diversas outras fontes para um trabalho de reconstituição do horizonte de leitura do redactor da Gazeta de Lisboa no momento em que este escrevia as suas notícias. Na Colecção Pombalina da Biblioteca Nacional de Lisboa, por exemplo, encontram-se vários volumes de miscelâneas manuscritas que fizeram parte da biblioteca de Montarroyo, com textos por ele recolhidos.8 8 Refiro-me nomeadamente aos códices 126 a 132 da Colecção Pombalina (PBA), contendo miscelâneas poéticas, e ao códice 672 da mesma, contendo documentação noticiosa diversa. Entre esses volumes encontram-se centenas de obras poéticas que circularam na época e que eram motivadas pelos acontecimentos da actualidade. Numerosas décimas e sonetos satíricos, ou outras composições poéticas em géneros variados que tinham como objecto os mais variados eventos sucedidos na corte, no Reino ou no estrangeiro, das guerras europeias pela sucessão na Casa de Áustria ao novo invento para voar inventado pelo padre Bartolomeu de Gusmão, da doença de D. João V (vítima de grave acidente vascular em Maio de 1742) às histórias picantes envolvendo os conventos de freiras de Lisboa. Encontramos também compilações de fontes de informação relativas a acontecimentos de que Montarroyo foi contemporâneo, incluindo documentos que foram usados na redacção de notícias para a gazeta e outros que conheceram apenas uma circulação manuscrita. Entre esses documentos encontramos, por exemplo, cartas e notícias sobre o fim do referido conflito diplomático entre Portugal e Roma, enviados pelo correspondente habitual de Montarroyo em Sevilha, o jesuíta André de Sá y Avila.9 9 Biblioteca Nacional de Lisboa, PBA, 672, f. 99-100a.
Não era por acaso que o autor da Gazeta de Lisboa dispunha de tanta informação manuscrita: notícias impressas e manuscritas faziam nesta época parte do mesmo mundo de informação e circulavam pelos mesmos agentes sociais. Ilusta-o cabalmente a correspondência enviada pelo redactor da Gazeta a Rodrigo Xavier Pereira de Faria entre 1741 e 1749.10 10 Ver nota 7. Ela permite observar o activo intercâmbio de notícias, impressas e manuscritas, entre ambos. Escrivão da Câmara de Santarém e fornecedor habitual de notícias para a Gazeta de Lisboa, Pereira de Faria estava associado nessa actividade ao padre Luís Montez Matoso, um notário apostólico da mesma localidade ribatejana. Os dois homens coordenaram a redacção de uma série de periódicos escritos e copiados à mão que conheceram na época uma difusão regular, embora numa extensão difícil de definir com rigor. É a partir de 1740 que se constitui uma série periódica bem individualizada de notícias manuscritas copiadas por amanuenses ou enviadas para cópia ao destinatário. Elas eram compiladas em Santarém, mas apresentadas como oriundas de Lisboa, aproveitando a posição geográfica privilegiada da localidade ribatejana, de fácil acesso a Lisboa pelo rio Tejo.
Estes periódicos conheceram, alternadamente ou em paralelo, os títulos de Folheto de Lisboa, Folheto de Lisboa Ocidental, Mercúrio de Lisboa ou Mercúrio Histórico de Lisboa. Para além de possuir um título, cada edição era numerada em série e saía em dia regular, o sábado. Apesar de estes elementos, nomeadamente o título, poderem variar de cópia para cópia, eles demonstram a vocação pública destes objectos. Gravuras e letras capitulares impressas são também visíveis em diferentes números conservados, alguns deles deixados em branco, prontos para a cópia.11 11 O mais rico fundo de cópias destes periódicos manuscritos encontra-se na série da Biblioteca Pública de Évora (CIV, 1-5 a CIV, 1-23) incluindo, com repetições e descontinuidades, quase duas dezenas de tomos manuscritos com notícias de 1729 a 1754. Este fundo começou recentemente a ser editado em livro, por ordem cronológica (Lisboa; Miranda; Olival, 2002). Outras cópias, relativas aos anos 1740 a 1745, existem nos "reservados" da Biblioteca Nacional de Lisboa (Cod. 8065 e 8066; Cod. 554). O texto do ano de 1740, editado em livro pela Biblioteca Nacional (Matoso, 1934-1938), encontra-se agora disponível na Internet, no projecto Biblioteca Nacional Digital ( http://bnd.bn.pt/obras-digitalizadas/od-novas2003-10-30.html). Na Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa encontra-se um volume relativo ao ano 1744 (Ms. Vermelhos 873). Por fim, um outro fundo de correspondência, contendo cartas enviadas a Montez Matoso, dá-nos testemunhos concretos de leituras e leitores destes periódicos, espalhados por diversos pontos do Reino.12 12 "Cartas de Fr. Apolinário da Conceição e de diversos sujeitos ao P. e Luís Montez Matoso" (1740-1749), Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa, Ms. Vermelhos 835. Esses leitores eram, ao mesmo tempo, correspondentes dos periódicos manuscritos, enviando notícias para Santarém. E um desses correspondentes era, precisamente, Montarroyo, o redactor da gazeta impressa, que enviava notícias da corte a Pereira de Faria e a Montez Matoso nas suas cartas, ou em manuscritos separados a que dava também o nome de "folhetos".13 13 Nas fontes manuscritas que consultei, a palavra "folheto" parece significar folha manuscrita dobrada contendo notícias. Numa correspondência de final do século XVII, José da Cunha Brochado, agente diplomático português em Paris, fala de uma "gazeta de mão" a que chama também "folheto" (Brochado, 1944, p. 31-32). Uso portanto aqui a palavra "folheto" como sinónimo de notícias manuscritas. Em troca, ele recebia de Santarém notícias da província para publicação na Gazeta de Lisboa.
Este intercâmbio, que estava longe de se limitar às notícias de actualidade, baseava-se na reciprocidade da troca de informação e de favores. Enquanto redactor da gazeta impressa, Montarroyo contava com fornecedores de notícias em Lisboa, em diversas outras partes do Reino e também no estrangeiro, como o citado correspondente jesuíta de Sevilha. Por outro lado, ele estava integrado em redes de circulação manuscrita de notícias, na qual participava também, enviando e recebendo informação. Montarroyo participava assim em dois mundos diferentes, mas inteiramente complementares, de difusão de notícias, o impresso e manuscrito. Por seu lado, os homens de Santarém e outros correspondentes de Montarroyo actuavam essencialmente no mundo manuscrito da circulação das notícias, mas tinham acesso à publicação na gazeta impressa através de Montarroyo.
Redigidas pelos mesmos actores sociais, as notícias impressas e manuscritas desempenhavam funções complementares. A comparação sistemática entre o conteúdo da gazeta impressa e o dos folhetos manuscritos revela-o: no manuscrito podia circular o que não tinha lugar num impresso em que existiam restrições importantes à entrada de notícias, sobretudo as que diziam respeito à corte portuguesa. As notícias manuscritas instalavam-se assim na grande margem de discurso que a gazeta da corte não imprimia, mas que circulava por outros meios. A circulação do manuscrito era também mais rápida: enquanto o impresso devia passar pela censura prévia e pela composição tipográfica, o manuscrito entrava mais rapidamente em circulação. O prólogo ou "antelóquio" do n. 1 do Folheto de Lisboa, datado de 2 de Janeiro de 1740, indica-nos bem como o periódico manuscrito se posiciona em relação à gazeta impressa:
[ ] publicaremos daqui em diante em todas as semanas um Folheto com todas as noticias não só de fora antecipadas à Gazeta, mas tambem com as do Reino, principalmente as que por particulares se não costumam estampar. (grifo meu).14 14 Biblioteca Nacional de Lisboa, cod. 8065, Folheto de Lisboa, n. 1 de 1740, de 2 de Janeiro, p. 2.
Estas duas qualidades fundamentais do manuscrito em relação ao impresso são as mesmas que encontrámos antes no relato do conde de Povolide: maior velocidade e maior quantidade de informação nas notícias do Reino. Outros "diários" e cartas noticiosas sobre os acontecimentos do presente partilham estas características. É o caso do "diário" do 4º Conde de Ericeira, fornecedor habitual de notícias da corte para a gazeta, e cujas notícias comprovadamente foram difundidas (Lisboa; Miranda; Olival, 2002). Nem todos os manuscritos com relatos de actualidade terão circulado e nenhum apresenta características tão próximas de uma gazeta impressa como os folhetos ou mercúrios de Lisboa escritos em Santarém. No entanto, podemos dizer que em todos eles se encontra esta relação complementar entre notícias impressas e notícias manuscritas. Trata-se de um sistema informativo que se constrói em torno de diversos aspectos articulados. Em primeiro lugar, é a existência de privilégios de impressão e de censura prévia que explica a proliferação, à margem do texto impresso, de densas redes de troca de notícias manuscritas, por vezes difundidas periodicamente, não publicáveis na gazeta. A estes aspectos políticos, vêm-se juntar aspectos sociais e técnicos, relativos à qualidade dos dois suportes; sem serem censuradas previamente, mas dispondo de uma difusão socialmente mais controlada, as notícias manuscritas podiam beneficiar-se de uma certa tolerância da parte dos poderes que controlavam os textos. Existia, assim, uma partilha social da informação em função da sua circulação mais ou menos alargada, isto é, entre o impresso e o manuscrito. Isso explica outra diferença importante: ao contrário do que acontecia com a gazeta impressa, as notícias manuscritas registavam também a informação que vinha da oralidade, muitas vezes por confirmar. A circulação de rumores era reprimida no impresso e relativamente tolerada no manuscrito. Por outro lado, este carácter socialmente mais restrito da circulação manuscrita relacionava-se com as qualidades técnicas do suporte: maior velocidade em relação ao impresso e possibilidades de personalização do texto, permitindo a adaptação do conteúdo a cada destinatário ou conjunto de destinatários. Eram portanto três as qualidades comparadas do suporte manuscrito: rapidez, informação mais abundante em razão da circulação mais discreta e possibilidade de personalização.
Penso que esta caracterização de um sistema interligado de notícias manuscritas e impressas poderá ser generalizada a outras regiões europeias dos séculos XVII e XVIII. Na elaboração de um elenco de séries de notícias manuscritas (nouvelles à la main) na França de Antigo Regime, coordenado por François Moureau, assinalou-se a quase perfeita coincidência entre o nascimento e desaparecimento das gazetas impressas e a circulação, paralela, de notícias manuscritas de carácter também periódico. (Moureau, 1993, p. 118). Tal não significa que devamos negligenciar as diferentes características e cronologias dos periódicos europeus de Antigo Regime, enquadrados por sistemas jurídicos e políticos diversos. Mas, onde existiram gazetas impressas dotadas de monopólio, existiu ao mesmo tempo o papel informativo fundamental das notícias manuscritas, baseado nas qualidades relativas desse suporte em relação ao impresso. Os periódicos manuscritos terão assim servido, como refere Harold Love a propósito da Inglaterra de Carlos II, de contrapartida doméstica às gazetas impressas (Love, 1998, p. 12). E, já em pleno século XVIII, o caso português dá-nos uma ilustração eloquente deste funcionamento e das virtualidades das notícias manuscritas em face dos constrangimentos que pesavam sobre a publicação de notícias no suporte impresso.
Resta-nos especificar ainda um pouco melhor o sentido desta complementaridade. Com efeito, a caracterização feita pode deixar a impressão seguinte: que os periódicos manuscritos nasceram devido ao controlo político existente sobre os periódicos impressos. Penso, de acordo com uma ideia defendida por Habermas noutro contexto (1997, p. 31-32), que essa ideia deve ser invertida: era do mundo da troca de informação manuscrita e das suas redes que dependia a informação impressa. A publicação da Gazeta de Lisboa a partir de Agosto de 1715 veio integrar-se num sistema de troca de notícias anteriormente existente, sistema em que, de resto, já existia uma relação complementar entre o manuscrito e o impresso como a que analisámos, com manuscritos acompanhando a circulação de folhetos impressos não periódicos e de gazetas estrangeiras. Começando a editar notícias periodicamente em português, a Gazeta vinha reestruturar uma paisagem informativa que já existia. Os "folhetos", "diários" ou cartas noticiosas que então circulavam reagem então ao aparecimento da nova publicação e vão incorporá-la no seu horizonte de leitura e escrita de notícias. Uma maneira de observar o fenómeno consiste em ler a "Gazeta em forma de carta", atribuída a José Soares da Silva. Existindo pelo menos desde 1701, ela regista o nascimento da Gazeta de Lisboa e adapta imediatamente o seu conteúdo ao novo periódico:
Vai baixar o decreto para a reforma militar que toda veio de cima, excepto os capitães e alferes, o que tudo se refere miudamente nas nossas gazetas, que saem todos os sábados com as novas da Terra e do Mundo, e me poupam deste trabalho, as quais começaram em sábado 10 do corrente e se diz serem feitas por José Freire, um moço de bastante erudição e notícias.15 15 Biblioteca Nacional de Lisboa, FG, 512, "Gazeta em forma de carta", f. 285.
Para Soares da Silva, a partilha de funções informativas podia começar. A gazeta impressa, contendo notícias em português sobre a corte e o estrangeiro, poupava-o de se referir a certas notícias. De então em diante, a "Gazeta em forma de carta" ia referir exclusivamente notícias que a gazeta impressa não tinha publicado. Isto é dito explicitamente dias mais tarde, a propósito de outra notícia: "digo isto porque as nossas gazetas o não referem [ ] e assim no que toca a esta como às demais novas daqui por diante me refiro a elas [às gazetas], e só direi o que elas não contarem".16 16 Biblioteca Nacional de Lisboa, FG, 512, "Gazeta em forma de carta", f. 285v.
A partir deste momento, o papel do manuscrito encontra-se deslocado. Ele dá espaço à gazeta impressa e posiciona-se na sua margem. A citação implícita ou explícita da gazeta torna-se frequente. O texto manuscrito incorpora-a no seu horizonte de leitura-escrita de notícias. A partilha de funções entre o impresso e o manuscrito só se pode fazer na medida em que o impresso está implicitamente presente na leitura de notícias manuscritas. O leitor implícito do texto de Soares da Silva é também um leitor da Gazeta de Lisboa.
A incorporação da gazeta impressa no horizonte de leitura das notícias manuscritas é uma característica presente em todas as compilações do género conhecidas para o Portugal desta época. A gazeta é citada e, sobretudo, a sua presença faz-se sentir implicitamente na redacção das notícias. É também a esta incorporação que procede em Janeiro de 1740, no seu citado prólogo, o padre Montez Matoso. Os "folhetos" existem por referência ao periódico impresso, discretamente parasitando a sua insuficiência informativa, mas tendo-o em conta no protocolo de leitura que estabelecem com o leitor. Antecipam-se à gazeta, citam-na, corrigem-na. As notícias manuscritas tornam-se assim um ângulo de observação das impressas e uma fonte privilegiada para a história da sua leitura.
Conclusão: o leitor "discreto"
É a partilha de funções entre o impresso e o manuscrito, partilha que contava com a participação do redactor da Gazeta e dos autores de notícias manuscritas, que explica a distância entre o que se podia ler num diário manuscrito como o do conde de Povolide e a Gazeta de Lisboa. Essa partilha desenha um primeiro círculo de leitores do periódico impresso, situados bem perto da Gazeta, círculo para o qual é possível definir um modelo. Podemos designá-lo como o modelo do "leitor discreto", seguindo as categorias retóricas dominantes no mundo ibérico da época moderna, estruturadas em torno da dicotomia entre "vulgo" e "discreto" (Chartier, 2001, p. 350). Neste modelo têm lugar os leitores que estavam integrados em ambientes socioculturais de abundante circulação de notícias, orais, manuscritas e impressas, para os quais o que era publicado na Gazeta era apenas uma pequena parte da informação conhecida. O leitor "discreto" da Gazeta era aquele que conhecia tanto a informação que era publicada nela como aquela que, mais rapidamente, circulava por outros meios. Lendo a gazeta impressa com uma considerável quantidade de informação previamente acumulada, ele podia comparar o texto da gazeta com toda essa informação. Assim, ele era capaz de detectar omissões significativas no texto da gazeta, era capaz de decifrar também aquilo que ela não publicava quando tal omissão era significativa. De facto, a ausência de notícias podia ser notícia. Um exemplo dessa grelha de leitura das omissões da gazeta, que tem um investimento político, está presente numa passagem do diário do conde de Povolide relativa a um outro acontecimento. Atento a um conflito de precedências muito importante que o envolvia, em conjunto com os demais condes da corte, num conflito com os cónegos da Patriarcal, o conde de Povolide escrevia no seu diário em fins de 1723: "a nossa gazeta, que relata com grande miudeza a entrada e audiência do Embaixador [de Espanha], não falou palavra alguma nos cónegos patriarcais" (Ataíde, 1990, p. 361).
É esta mesma capacidade para ler o sentido político das omissões do periódico que o correspondente de Sevilha, André de Sá y Avila, revela, em carta a Montarroyo datada de 23 de Outubro de 1731. Depois de lhe transmitir a notícia de que a Santa Sé nomeara finalmente os cardeais que a Coroa portuguesa pretendia havia anos, ele escreve: "Esperamos agora pelo capítulo de Roma na Gazeta de Lisboa; que é o que muito se estima por cá nestes tempos" [Aora esperamos en la Gazeta de Lxa. capítulo de Roma; que es lo que mucho se estima por aca en estos tiempos].17 17 Biblioteca Nacional de Lisboa, PBA 672, f. 100-100a. De facto, a partir de 1728, após a ruptura diplomática entre Portugal e o Vaticano, as notícias de Roma, até então publicadas regularmente, tinham cessado de sair na gazeta portuguesa. Deste modo indirecto, através da supressão de uma parte das notícias vindas do exterior, a Gazeta tinha tomado uma posição sobre o conflito diplomático. E, conhecendo os constrangimentos que pesavam sobre a Gazeta, André de Sá y Ávila sabia que, uma vez sanado o conflito, podia esperar o recomeço desse discurso que fora interrompido. Reencontramos aqui um paralelo possível com a leitura de outro leitor "discreto", o embaixador francês. Também ele nos convida a transferir o investimento político do periódico para o noticiário internacional. Com esta chave de leitura de notícias, a questão da sensibilidade política do periódico encontra-se assim reformulada e deslocada para objectos diferentes dos iniciais. Esta deslocação metodológica fundamental só foi possível depois de uma reconstituição de um horizonte de expectativa de alguns leitores habituais das gazetas. Ela não nos devolve o olhar destes actores históricos sobre as notícias do seu tempo.
Mas permite-nos lê-las, de algum modo, por cima dos seus ombros.
Recebido em 19/05/2004
Aprovado em 10/06/2004
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Jan 2005 -
Data do Fascículo
Dez 2004
Histórico
-
Aceito
10 Jun 2004 -
Recebido
19 Maio 2004