RESENHAS
Soraya Fleischer*
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Brasil
MILSTEIN, Diana. Higiene, autoridad y escuela madres, maestras y médicos: un estudio acerca del deterioro del Estado. Buenos Aires: Miño y Dávila, 2003. 159 p.
Em 1999, várias crianças de uma cidadela ao norte da Patagônia argentina foram identificadas com hepatite. O que poderia ser mais um problema de saúde passageiro foi habilmente interpretado como um intenso drama social pela antropóloga Diana Milstein em sua dissertação de mestrado pela Universidad Nacional de Misiones, na Argentina, agora publicada como livro. Diversas e interessantes dimensões sobre o surto da doença foram apresentadas, em uma importante contribuição sobre "las relaciones entre familias y escuelas centradas en las prácticas del cuidado de la salud y la higiene de los niños" (p. 33).
Milstein se aproximou do Alto Valle del Río Negro ao longo de três décadas. Originalmente de Buenos Aires, viveu na região quando criança nos anos 1970. Na década seguinte, ela trabalhou como professora primária e universitária no povoado de Cipolletti. E, já na década de 1990, ela retornou em projetos de pesquisa e em trabalho de campo no povoado de El Paraje Contraalmirante Guerrico, com seus 52 km2 e 2 mil habitantes e, mais especificamente, em uma das duas escolas locais, a Escola 68, com seus 180 alunos e 16 professoras na época.
Assim que os primeiros doentes são diagnosticados, a diretora da Escola 68 desinfeta suas fontes de água, alimento e dejetos. Mas, para evitar o alastramento do problema, requisita a imediata suspensão das aulas junto às instâncias superiores. O pedido é negado, e reuniões são realizadas na escola para que a agente sanitária do posto de saúde e o médico do hospital dêem palestras informativas sobre prevenção, sintomas e cura da hepatite. Em franco conflito, as mães ignoram os médicos e as professoras, deixam seus filhos em casa e adentram a escola para limpá-la com muita lavandina (água sanitária) durante dois dias. Este fantástico embate é configurado com cada vértice do drama culpando outra ponta do triângulo. As mães acreditam que o foco da hepatite está na escola, exigem que ela seja fechada pelas professoras e concluem que os médicos estão subestimando a gravidade do caso. A escola resiste em admitir que o problema está em suas instalações, mas responsabiliza as autoridades sanitárias por não terem prevenido o surto e não permitir o recesso forçado. Os médicos, por sua vez, acusam as professoras de lidar com uma situação que não lhes diz respeito e localizam o foco da doença nas casas. Cada ponta disputava "el poder de definición de la hepatitis" (p. 119). Milstein resume: "La importancia de este conflicto residió en que puso en entredicho la relación jerárquica entre madres, maestras y médicos, estabelecida por el Estado higienista como condición de su soberanía sobre la vida de los individuos" (p. 118). Apoiando-se na idéia de "drama social" de Victor Turner, Milstein apresenta e analisa esta "representación teatralizada" (p. 31) que "intregró como un todo lo que los actores pensaban, actuaban, percibían y sentían" (p. 30).
Duas são, a meu ver, as grandes contribuições de Milstein dentro da antropologia da saúde. Primeiro, a autora revela que os três grupos de atores, em diferentes posições de autoridade, compartilham os mesmos ideais higienistas que foram incisivamente imputados:
En vários países de América Latina hacia finales del siglo XIX [ ] el Higienismo se consolidó como política de Estado, vinculado a la lucha antiepidémica [ ] [y su rol] consistía en la injerencia en el ámbito familiar para controlar las dimensiones materiales y morales de la vida de las familias, para enseñar los preceptos de una "vida higiênica" y para corregir los "malos hábitos". (p. 35, 148).
É dentro desse paradigma higienista que os conflitos acontecem a ponto de momentaneamente inverter as sólidas relações de força. O Estado, encarnado em dois de seus mais importantes expoentes públicos, o hospital e a escola, é desautorizado, questionado e substituído: sucede "una suerte de inversión de roles entre fiscalizadores y fiscalizados, acusadores y sospechados [ ], gobernantes y gobernados" (p. 153-154). O livro apresenta um evento microscópico que ilustra uma realidade macroscópica o enxugamento e a desresponsabilização por parte do Estado. Assim, Milstein, oferecendo justamente o que a antropologia tem de melhor, faz um profundo mergulho local com fôlego para pensar o global.
Segundo, a autora mostra que uma doença ultrapassa sua base biológica e expressa instigantes enunciados morais sobre os indivíduos e os grupos envolvidos (abordagem classificatória, sob forte influência de Mary Douglas). A hepatite é relacionada à sujeira de latrinas, cozinhas e lavanderias, principalmente, em uma clara "vinculación entre enfermidad y modos de vida familiares" (p. 128). Em Contraalmirante Guerrico, acusaram e discriminaram os pobres, os sujos, os periféricos, pais solteiros, famílias numerosas e heterodoxamente constituídas, imigrantes chilenos e bolivianos (similar ao que acontece no clássico A Peste, de Albert Camus). A hepatite é usada para denunciar o desvio e anunciar a norma. Ao destacar essa doença, Milstein revela muito mais do que uma epidemia. Ela nos apresenta as fissuras de raça, etnia, classe e gênero que subsistem no povoado.
O livro começa com uma clássica descrição do cenário geográfico, econômico e social da região, e se calca em entrevistas feitas com agentes sanitários de Contraalmirante Guerrico e professoras e diretoras da Escola 68. Lança mão de fontes como jornais, mapas, fotografias. Contudo, cinco pequenas ressalvas precisam ser feitas. As mães e familiares, os alunos, as equipes médicas do hospital, os técnicos das instituições sanitárias estaduais e nacionais, os atendentes tradicionais de saúde (caso a região contasse com raizeiros, parteiras, benzedeiras), os repórteres responsáveis pelas matérias publicadas na época e os membros da outra escola do povoado deveriam ter sido igualmente entrevistados. Esses atores são meramente mencionados, mas suas vozes não aparecem no texto. Segundo, faltou descrever as casas das crianças envolvidas e o hospital de Allen (já que mães, professoras e médicos aludiram constantemente a esses cenários), da mesma forma cuidadosa e pormenorizada com que descreveu a escola, o povoado e a região. Terceiro, um de seus informantes-chave, o agente sanitário Nelson, não é tido como mais uma expressão num cenário polifônico, mas ganha status absoluto. A posição de Nelson e a relação entre ele e Milstein deveriam ter sido melhor problematizadas. Quarto, Milstein comenta ao final do primeiro capítulo que realizou "reuniones com algunos interlocutores para contarles y también leerles la historia que yo estaba narrando" (p. 51). Esse "retorno" oferecido pela autora é fundamental e deveria ter sido mais detalhado, a fim de ilustrar para outros antropólogos como esta importante etapa pode ser realizada. E, por fim, faltam várias das interessantes referências bibliográficas citadas ao longo do texto.
O livro Higiene, Autoridad y Escuela é uma bela etnografia, cuidadosamente tecida. Analisa e relativiza as concepções relacionadas aos espaços privados e públicos, a semântica dos fluidos corporais (principalmente fezes, urina e saliva, que são os vetores da hepatite), o movimento do higienismo, o papel socializador e fiscalizador da escola, os limites do sistema de saúde, a progressiva desestruturação do Estado. Sua leitura deve interessar de acadêmicos das ciências sociais e das áreas médicas aos planejadores de políticas públicas e projetos sociais e educadores de uma forma geral, não só na Argentina, mas também no Brasil e na América Latina. E sua tradução para o português deve ser incentivada, assim como outro livro da autora, La Escuela en el Cuerpo: Estudios sobre el Orden Escolar y la Constitución Social de los Alumnos en Escuelas Primarias, que muito pode ser útil à antropologia do corpo e da saúde.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
28 Jan 2005 -
Data do Fascículo
Dez 2004