ESPAÇO ABERTO
Os ciclistas de Brasília
Mariza Corrêa
Universidade Estadual de Campinas Brasil
"Olé, olé, Roberto Carlos é um chimpanzé" cantava a torcida do Atlético de Madrid em janeiro, durante o jogo entre este clube e o Real Madrid que tem dois jogadores brasileiros no seu time, Roberto Carlos e Ronaldo (Perrone, 2005). Dois jogadores negros condição que não é mencionada na reportagem. Mesmo uma leitora que não sabe nada de futebol, no entanto, pode entender por que o repórter qualifica de ofensa racista esse estribilho. Aparentemente, xingamentos são corriqueiramente ouvidos por jogadores negros que atuam em times espanhóis e ninguém parece ter dúvidas sobre eles serem racistas, por serem dirigidos a quem são. Inversamente, por que é então tão difícil qualificar como negro alguém que possa ser alvo de tais ofensas? Essa é a difícil questão tratada nesse artigo de Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos, ao analisar o ingresso de negros na Universidade de Brasília através de cotas destinadas a eles. De fato, eles se desviam da questão das cotas para discutir o papel do antropólogo na sociedade brasileira, incluídos os dois antropólogos de Brasília responsáveis pelo plano implementado pela universidade ainda que não pela comissão de averiguação da raça e o antropólogo anônimo que participou da malfadada comissão. Por isso, creio que a parte mais interessante do artigo é a que compara o trabalho do antropólogo como perito nesse caso à peritagem antropológica regularmente feita a pedido da justiça sob os auspícios da ABA nos casos de demarcação de terras indígenas. Creio também que os autores poderiam ter ido adiante nesse questionamento, já que mencionam o fato de a Funai ter assegurado cotas para índios nas universidades. Não creio ter visto nenhum artigo sobre esse fato em nenhum de nossos jornais diários ou revistas antropológicas apesar de haver em todos esses meios de comunicação um farto debate sobre se as cotas para negros na universidade deveriam existir ou não. Também não vi nenhum debate sobre a distribuição de terras, algumas delas com reservas minerais riquíssimas, a descendentes de índios e, agora, também, de quilombolas. Parece-me que, se vamos contestar o papel de perito dos antropólogos, é preciso contestá-lo em geral e não apenas a partir de um exemplo específico, caso em que pareceria haver má vontade da comunidade antropológica com os antropólogos envolvidos naquele caso.
Apesar de a discussão sobre cotas universitárias aos afro-descendentes que me parecem um equivalente simbólico das terras dadas aos índios no nosso país (demarcação que, anos atrás, se centrou, justamente, em como se definia quem era índio) não estar no centro da discussão nesse artigo, ela é uma presença gritante, já que é só graças à sua existência nesses últimos anos que a Universidade de Brasília pode meter os pés pelas mãos ao criar a tal comissão de averiguação racial. E é evidente que se trata, num caso como no outro, de uma questão política, não científica. Que interesses políticos se valham, retoricamente, da ciência para melhor salvaguardá-los, é coisa antiga num mundo no qual a ciência é tão valorizada. Marcos e Ricardo poderiam até ter lembrado velhos equipamentos e testes (americanos) usados em algumas das pesquisas do Projeto Unesco, e que eram aplicados a membros de comunidades rurais brasileiras, com o intuito de comprovar "cientificamente" a cor dos entrevistados. Portanto, assim como a burocracia da universidade merece ser criticada por ter usado a ciência como pretexto para sua avaliação objetiva dos candidatos, nós todos merecemos ser criticados se pretendemos que o que fazemos em casos semelhantes é parte de nosso arsenal teórico ou de nossas práticas de pesquisa se é, enfim, uma atividade científica. Não, é política, e isso deveria poder ser dito com todas as letras para que, assim, possamos ter clareza sobre nossos horizontes e limites como cidadãos que não deveriam ser mais dilatados nem mais estreitos do que os dos cidadãos do país em geral. Ou seja, se a identidade (esse termo tão esgarçado) dos envolvidos está, como dizem os autores, em constante rearticulação, há uma disputa política em andamento na nossa sociedade sobre qual a feição que tal identidade deverá ter e, assim, é perfeitamente legítimo tanto defender a existência de cotas na universidade quanto criticar sua aprovação. O que não é legítimo é desqualificar a postura dos defensores de um ou outro campo, sugerindo que se trata de uma postura "não científica", e sugerindo no mesmo passo que a postura adotada por quem fala é a única embasada em razões científicas. As causas para tais ou quais movimentações políticas são também políticas. É esse o recado sutil dos autores do artigo?
A propósito de mobilizações políticas, lendo o texto de Marcos e Ricardo, lembrei da piada de um humorista judeu, num programa de tevê americano. Dizia ele para seu interlocutor: "Hitler deveria ter perseguido os ciclistas e não os judeus." "Os ciclistas?", diz o outro, espantado, "por que os ciclistas?".
"E por que os judeus?", responde ele.
Referência
PERRONE, Ricardo. Dupla do Brasil cala a torcida. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. D1, 10 jan. 2005.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Ago 2005 -
Data do Fascículo
Jun 2005