Apresentação
Ao concebermos a organização deste número sobre etnografias, tínhamos por projeto não apenas reunir artigos que trouxessem o debate contemporâneo e crítico sobre o saber e o fazer etnográfico, mas conquistar um espaço para homenagear cinco artigos que marcaram nossa formação em antropologia na sua condição de constituição do conhecimento antropológico e epistemológico no âmbito das ciências sociais no Brasil. Artigos que são ainda hoje, para nós, referências fundamentais no processo de iniciação científica de alunos na prática da pesquisa em antropologia.
Não se trata de ressaltar nossa trajetória intelectual, no singular, mas de reverenciar, de uma forma oblíqua, uma produção sobre a prática da etnografia em sociedades complexas que foi, e continua sendo, no plural, paradigmática para o campo interpretativo fecundo na antropologia brasileira. Seja pela forma como marcou o processo de formação de alunos de graduação e pós-graduação, nos anos 1970 e 1980, seja no aprimoramento das pesquisas de docentes e de pesquisadores, mais recentemente.
Primeiramente rendemos homenagem aos autores de dois dos artigos publicados em 1978 no livro intitulado A aventura sociológica, organizado por Edson de Oliveira Nunes e publicado pela editora Zahar. Trata-se dos artigos que constam no módulo denominado "Versão qualitativa". São eles "O ofício de etnólogo, ou como ter 'anthropological blues'", de Roberto DaMatta, e "Observando o familiar", de Gilberto Velho. Assim como nós, devem ser muitos os professores de antropologia no Brasil que iniciam seus alunos, neófitos na aventura etnográfica, a partir da leitura desses artigos. Na transposição dos conceitos de estranhamento e relativização aos alunos, quem de nós não se apoiou no estudo das diferenças entre as duas viagens (a xamânica e a heroica) sugeridas por DaMatta? Quem não explorou a noção de "anthropological blues" que esse autor desenvolveu ao tratar dos percalços do trabalho de campo pelos quais passam todos os antropólogos em sua formação para a prática da etnografia?
O artigo de Gilberto Velho faz ressoar o "blues" em notas complexas tornando-se paradigmático para todos aqueles que realizam uma etnografia no contexto das modernas sociedades urbano-industriais. Reiteradamente acompanhamos a forma emocionada como os alunos das primeiras disciplinas da área de antropologia (no nosso caso, Introdução à Antropologia) experimentam concretamente em suas primeiras idas a campo a descoberta dos fenômenos do estranhamento ao familiar e ao conhecido. Os primeiros deslocamentos os levam à reflexão sobre a alteridade que não está tão distante geograficamente, e a descoberta do Outro, tão próximo, os seduz à prática do campo sob o prisma de categorias antropológicas.
Esses autores contribuíram definitivamente para que atingíssemos a compreensão de que o conhecimento antropológico resulta de um singular processo de construção de pensamento que não se gesta nem antes, nem depois, mas no meio - "in between", nos termos de Paul Rabinow em sua obra Antropologia da razão (1999). E não apenas no meio, senão que no interior do trabalho de campo. Um conhecimento científico que não pode se abster da prática, e cujo processo de conceituação que acompanha seus saberes práticos jamais pode permanecer implícito ou parcialmente explícito. Assistimos, assim, à explicitação de uma premissa importante para a produção do conhecimento antropológico, a de que não há situações etnográficas sem sujeito, seja o do antropólogo, seja o do "nativo", ambos munidos de intencionalidades e de inteligências, sendo justamente o diálogo entre ambos o que faz um episódio banal da vida dos sujeitos e/ou grupos pesquisados se transformar em situação de pesquisa para o primeiro.
Não por acaso, outro dos cinco artigos que marcou nossas trajetórias intelectuais, e que permanece cada vez mais como um marco nos processos de iniciação à prática da pesquisa em antropologia, é o texto escrito por Teresa Pires do Rio Caldeira, em 1981, e intitulado "Uma incursão pelo lado 'não respeitável' da pesquisa de campo" (Ciências Sociais Hoje, n. 1, Anpocs/CNPq). Nele as reflexões sobre o lugar da etnografia na produção do conhecimento dessa matriz disciplinar se complexificam.
A partir da leitura desse artigo torna-se quase impossível, para nós antropólogos, não avaliarmos as implicações de nossos saberes e fazeres sobre aqueles com quem dividimos nossas pesquisas. A autora problematiza a aura romântica do encontro intersubjetivo entre o pesquisador e o grupo pesquisado ao mostrá-lo como um fenômeno permeado de reflexões sobre as diferenças de condições sociopolíticas no processo de interlocução, revelando impasses e questões éticas que tangenciam a experiência etnográfica. Para as aprendizagens dos neófitos no trabalho de campo se torna fundamental sua atenção às relações de poder, e os constrangimentos possíveis no processo da prática etnográfica se colocam como condição de conhecimento do Outro e de si. O conceito de etnografia se complexifica em suas propriedades em razão da multiplicidade de situações de pesquisa aos quais corresponde. O desafio de se pensar o "mal-entendido" ou "desconhecido", que cerca a representação etnográfica em sua estreita interdependência com a experiência do antropólogo no trabalho de campo, é aqui exposto à reflexão.
Os dilemas das situações de campo e suas implicações para o encontro etnográfico com o Outro e sua cultura ganham a cena. Em tempos de rebeldia, os riscos de interpretações errôneas ou equivocadas que toda etnografia contempla passam a ser avaliados a partir da própria linguagem que lhe dá suporte, a escrita. A polêmica acerca dos limites da introdução representacional do Outro e de sua cultura no âmbito da produção textual do antropólogo ganha vulto e com ela avança o sentimento de desconfiança em relação ao estatuto científico da escrita etnográfica. De uma reflexão sobre a importância do rigor metodológico adotado pelo etnógrafo na busca de um diálogo mais cuidadoso e diligente com o Outro, passamos rapidamente para o questionamento das formas do etnógrafo situar-se representacionalmente no mundo do Outro, em especial pela via da escrita. O que fazer para se transpor aos alunos, em sua formação em antropologia, as técnicas e os procedimentos de pesquisa de campo que fundam essa matriz disciplinar? Afinal, a produção de etnografias e o próprio método etnográfico ainda teria algum vigor para esse campo disciplinar?
O artigo de Mariza Peirano "A favor da etnografia" foi soberano para nos orientar nesse processo, em resposta ao artigo "Against ethnography" do australiano Nicholas Thomas. Escrito no início dos anos 1990, e publicado pela autora em livro de mesmo nome, a declaração "a favor da etnografia" investe num processo de releitura da tendência crítica da antropologia internacional. Rende homenagem à perspectiva inovadora ou da retomada reflexiva do fazer etnográfico inaugurada por Clifford Geertz, e suas preocupações com as "estratégias narrativas" e os "aparatos retóricos" adotados pelos antropólogos para descrever a sua experiência de campo, e reinventada pelos pósmodernos.
A autora em seu esforço compreensivo revisita as etnografias canônicas no sentido de dimensionar a rede de linhagens da qual todo o antropólogo, em sua prática de trabalho de campo, faz parte. Seu artigo é um convite à leitura dos clássicos, instigando-nos a revisitá-los a partir de interlocuções teóricas profícuas, no reconhecimento do vigor das práticas etnográficas para o processo de construção e consolidação da matriz disciplinar no campo dos saberes científicos. Ela nos ensina que, diferentemente da situação de vulnerabilidade e risco que o desentendimento pode provocar às formas de produção do pensamento antropológico, o "mal-entendido" ou "desconhecido" não se refere a uma situação em que o sentido do que está sendo dito e ouvido pelo antropólogo se polemiza com a racionalidade do logos de sua comunidade linguística. Ao contrário, o sentido do que está sendo dito e ouvido contempla uma tensão inerente ao encontro etnográfico, onde a palavra viva do Outro, para ser transmitida, necessita se submeter ao corpo da letra do antropólogo.
Essa dimensão é revelada no artigo de Roberto Cardoso de Oliveira "O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir e escrever", com quem encerramos nosso tributo. Em 1998 esse artigo aparece publicado em seu livro intitulado O trabalho do antropólogo (Editora Unesp e Paralelo 15). Estar atento à observação, dispor-se à escuta, concentrar-se na escrita, faz emergir as etapas básicas que configuram o projeto científico de produzir conhecimento antropológico. São atos cognitivos e reflexivos indissociáveis da circulação do pensamento antropológico. É a partir dessa prática que reconhecemos uma comunidade de diálogo profícua no contexto brasileiro.
Nossa homenagem a essas reflexões sobre o fazer etnográfico na sabedoria desses antropólogos brasileiros é extensiva à comunidade de profissionais que confere à antropologia no Brasil um lugar de reconhecimento e respeitabilidade ímpar. Isso se deve justamente à capacidade de estudar alteridades, como esclarece Roberto Cardoso de Oliveira, "dando conta do próprio campo semântico em que o investigador está inserido".
Com esse autor, podemos compreender que a escrita etnográfica é uma entre outras formas (ler e ouvir) adotadas pelo antropólogo para situar-se "representacionalmente" no mundo do Outro. Sem dúvida, ao ser adotada ela traz consigo a perturbação clássica inerente às formas de construção do pensamento antropológico e de sua matriz disciplinar. Isso porque, ao exilar a voz do Outro e colocá-la fora do seu campo de enunciação, a palavra "nativa" não fica restrita apenas à racionalidade do logos da escrita antropológica, mas acha-se sujeita às interações dos antropólogos com os grupos por eles pesquisados. No mundo contemporâneo, sejam quais forem as formas adotadas para o fazer etnográfico, essa situação se agrava diante do papel que pode vir a ocupar o antropólogo no interior das dinâmicas de mundialização das culturas.
Portanto, para nós, esta revista pode ser entendida como parte desse percurso de consolidação da etnografia como expressão de uma teoria prática do conhecimento antropológico, por traduzir uma ação operatória dos conceitos de sua matriz disciplinar com o mundo concreto da vida social; uma forma de conhecimento que procura dar conta dos problemas com os quais todos nós, seres humanos, nos confrontamos na vida ordinária.
Inspiradas por essas ideias aqui apresentadas é que ordenamos esta publicação em dois grupos temáticos. O primeiro grupo responde à démarche sobre o saber e a prática etnográfica hoje. Nós tomamos esse primeiro grupo de artigos como projetos de reflexão. Ensinam-nos a ampliar a avaliação constante que as assimetrias da disciplina requerem em seu próprio movimento dinâmico crítico e interpretativo. Neles emerge o tema da ética pelo compromisso de atualizar a etnografia na conjunção de novos problemas sociais no século que inicia com a emergência da imagem e da palavra do Outro no deslocamento de pensar a própria disciplina, colocando em sintonia os processos atuais de reconhecimento social e de participação pública.
O segundo grupo de artigos relata imersões de campo na sensibilidade da escritura etnográfica. Nesses se descortina a aventura antropológica e se desvenda a vocação do etnógrafo que narra vidas em seus dilemas, atores em seus conflitos, personagens em seus dramas, sujeitos em suas éticas, encontrando-se, simultaneamente, com constante diálogo no interior da comunidade antropológica de interpretações.
Inauguramos nosso número temático com o artigo do renomado antropólogo americano Michael M. J. Fischer. Para a tradução desse complexo artigo para a língua portuguesa, recebemos o apoio de revisão das prestigiadas antropólogas Mariza Peirano e Alcida Ramos, da Universidade de Brasília. Essa colaboração intelectual é um gesto de afeto à produção de conhecimento na antropologia brasileira que queremos compartilhar e agradecer.
"Etnografia renovável: seixos etnográficos e labirintos no caminho da teoria" propõe um mergulho denso nos processos recentes de construção etnográfica, tanto na dimensão do trabalho de campo quanto na experiência da escrita, que, como mostra Fischer, estão em constante renovação. Para o autor,o dinamismo de novas gerações apreenderem o método na revisitação do que circula na trajetória antropológica situa o ato de "ler pela etnografia" como fecundo para o deslocamento do pensamento antropológico e da produção etnográfica. Dessa forma, as respostas sobre o Outro elaboradas nos trabalhos canônicos são apreendidas a partir da leitura e interpretação de novas gerações de etnógrafos que podem, agora, fazer novas perguntas. Para tratar desse processo, o autor analisa a produção etnográfica de antropólogos formados no Departamento de Antropologia da Universidade de Rice, EUA, todos produzindo em torno de temas que nos instigam na atualidade a partir de suas complexidades. São teses e projetos pedagógicos encompassados pela relação de nossa disciplina com outros campos de conhecimento em suas teorias e em suas novas epistemologias. Importam igualmente as ressonâncias dessas dinâmicas no âmbito da própria disciplina, como se pode constatar nas transformações que a antropologia conhece como crítica cultural, em atenção às questões políticas e econômicas na era da globalização. O autor destaca igualmente, no rastro dos debates entre os intelectuais da Universidade de Rice, a mudança e ampliação de interlocutores na sociedade civil que se reflete na etnografia, sobretudo com o necessário diálogo com os estudos das ciências e com as teorias da globalização.
"As complexidades da nossa época requerem habilidades etnográficas", afirma o autor ao propor "ler pela etnografia" e reconhecer as mudanças de estilo de escrita em face de nossas possibilidades de comunicação, como na consolidação de novas tecnologias. Etnografa, pois, essas experiências que revigoram as modalidades da crítica cultural etnográfica.
De fato, no trajeto da disciplina antropológica podemos observar uma constante presença nos embates sociopolíticos da contemporaneidade. Assim foi em relação ao tema do reconhecimento das minorias, dos direitos humanos, das questões de gênero, da globalização, da bioética, do risco global, da propriedade intelectual, entre outros temas, que vemos configurados novos movimentos intelectuais de transformação da disciplina e de questões epistemológicas que questionam a própria escrita etnográfica e a autoridade do antropólogo.
Os temas da ampliação dos direitos, do reconhecimento da cidadania e do poder do Estado, que se consolidam no campo do saber antropológico neste século XXI, são atualizados na investigação etnográfica de Mariza Peirano. Em "O paradoxo dos documentos de identidade: relato de uma experiência nos Estados Unidos", questões em torno de papéis legais são fatos etnográficos que revelam pontos polêmicos relacionados a políticas internas para a tolerância à imigração naquele país. Um personagem político entra em cena e a sociedade civil se vê envolvida em um debate que tem por pano de fundo a identidade nacional e os direitos políticos ideais para sustentar essa representação de nação. Uma etnografia que atualiza os sentidos da configuração social do mundo moderno.
O tema do Estado e as dilacerações de suas estruturas de poder é arquitetado no próximo artigo a partir de uma perspectiva da cidade no contexto argentino. Ariel Gravano nos apresenta uma etnografia que vai montando as peças do complexo jogo da planificação urbana e as implicações da privatização do espaço público. Na experiência relatada, a perspectiva da participação popular é alinhada nesse processo, alimentando a ponderação dos imaginários como um objeto de estudo relacionado ao planejamento e projetos urbanos. Assim, em "La proyección del enfoque etnográfico hacia la facilitación organizacional en procesos participativos de planificación urbana", o antropólogo argentino revela os bastidores dos jogos de poder que entram em cena quando o tema é planejamento urbano.
Contemporaneamente, a experiência etnográfica conhece um questionamento de novas demandas sociais que reorientam a prática etnográfica. O fazer etnográfico como um esforço artesanal é eixo do artigo dos antropólogos franceses Patrick Gaboriau e Philippe Gaboriau em "Vers un nouvel artisanat? Quelle enquête pour quel terrain". Nesse processo é importante reconhecer a trajetória que os conceitos de sociedade e cultura ocupam nas transformações da pesquisa etnográfica. Mudanças de paradigmas por um lado, mudanças de relações com os grupos sociais por outro, não se trata mais de unicamente relativizar o tempo e o espaço social. Trata-se de considerar, doravante, a própria experiência etnográfica a partir de uma multiplicidade de fatores que levam em conta a sociedade e a cultura nessa inter-relação do pesquisador com o grupo pesquisado. Os autores mostram o ato de talhar e a arte de bricolar do antropólogo, o cuidado com a diversidade de fatores em jogo exigindo uma vigilância constante na pesquisa, em relação à experiência de campo e em relação aos sistemas envolventes associados. Um movimento de constante refinamento e detalhamento no processo do fazer etnográfico.
As transformações no cenário urbano, a emergência de novos atores sociais, a consolidação do método etnográfico para conhecimento desses atores trazem novas questões para a prática da etnografia. Com vasto conhecimento de estudos no campo da antropologia urbana, o antropólogo José Guilherme Cantor Magnani traz à luz o jogo complexo de formas de continuidade e descontinuidade na prática da pesquisa de campo, diferenciando "prática" e "experiência". Ambas as formas contêm um dinamismo recíproco. O autor pondera que esse dinamismo do ato etnográfico implica a evocação de novos arranjos do sentido de totalidade que configura o fazer etnográfico. Essa diversidade de configurações é arranjada conforme as complexidades teóricas em cada processo no envolvimento com os atores. Essa especificidade conhece em "Etnografia como prática e experiência" um relato singular a partir do exercício do Núcleo de Antropologia Urbana da USP desenvolvido junto ao "mundo surdo" no cenário paulista.
Também a técnica do diário de campo, sempre presente como instrumento de deslocamento reflexivo pela escritura da experiência do antropólogo, é presença importante como tema no artigo da antropóloga francesa Florence Weber. Em "A entrevista, a pesquisa e o íntimo, ou: por que censurar seu diário de campo?" podemos nos perguntar, afinal, o que é um diário de campo? Ou, mais especificamente, no que consiste esse exercício de escrita constante do fazer etnográfico? Que diferença temos entre as diversas formas e estilos de relato na pesquisa de campo, que níveis de transparência e de confissão devem atingir? E afinal, escrevemos diário para quem? Florence Weber trata dos limites que se colocam na intenção de sua publicação, seja pela natureza espontânea do diário intimista, seja porque o autor, na demanda editorial, se vê mediante a autocensura. A autora comenta sobre algumas experiências de antropólogos clássicos e relata sua própria experiência recente nesse processo de refletir sobre o diário de campo. Não são questões com respostas prontas. Mas questões que nos dimensionam as inquietudes e tensões éticas que a construção da escrita dos diários de campo coloca.
Esse primeiro módulo de artigos, que refletem sobre a inteligibilidade da prática etnográfica, sua condição de produção de conhecimento sobre e com o Outro, é finalizado pela poética do deslocamento que encontramos em "A situação etnográfica: andar e ver", de Hélio R. S. Silva. Entre prescrições e efemeridades, a etnografia é uma dramática como um jogo hologramático acionado pelo ato de andar, ver e escrever, que revela tensões e operações entre subjetividades e objetividades do mundo sensível, urbano, por exemplo. A etnografia é assim movimento, sempre fluxos, entre "os influxos dos outros". Ou, como diria nosso mestre Marcel Mauss, são sempre misturas. No deslocamento, segue o etnógrafo seu percurso, que é também o percurso da etnografia. No fluxo do andar, ver e escrever, nada ingênuo, nada puro, nada fácil, se detêm o mistério da inteligibilidade da imaginação criadora e a arte da circulação do conhecimento que a etnografia revela.
Abrimos o segundo módulo com o artigo de Eliane Gonçalves, intitulado "Nem só nem mal acompanhada: reinterpretando a 'solidão' das 'solteiras' na contemporaneidade". Com uma afável criatividade, as vozes de mulheres de camadas médias constroem uma forma de ser no mundo urbano moderno. Essa estética da solidão tem os contornos dos conceitos que configuram as suas trajetórias entre razões familiares, razões individuais ou lógicas sociais: sexualidade, feminismo, masculinidade, gênero, amor... a autora tece uma aliança entre as solteiras e o poder de recriar, ou, como ela própria diz, a solidão é reinterpretada.
Em sequência, a antropóloga Marta Cioccari nos instiga a uma premissa: a questão de gênero interfere na pesquisa. Como que para construir uma intriga do ato de etnografar, a autora convida os leitores a compartilhar do relato de sua experiência etnográfica junto a dois grupos sociais em que predomina, por atividade produtiva, o trabalho masculino. Olhar e ser olhada, ouvir e ser ouvida, reconhecer e ser reconhecida, classificar e ser classificada, a escrita traz à tona os constrangimentos e dilacerações de uma andarilha no enfrentamento das armadilhas que o ofício agencia. Mas a questão de gênero não é apenas percepção ou cognição, é mais, implica reciprocidades cognitivas e lógicas em movimento que dão à pesquisa uma tonalidade de drama social. Entre comunidades de mineiros de carvão no Brasil e na França, Marta nos traz a instigante descoberta de se ver pensando sua observação sendo observada e pensada pelos nativos. Etnografia é interação, interação é jogo de atribuições de reconhecimentos e estranhamentos que permitem à pesquisadora experimentar uma teoria em ato. No olhar intrigado do Outro, a questão do gênero da pesquisadora chama ao debate autores e atores que dão à etnografia uma dimensão de uma descoberta de si no descobrir o Outro, nessas "Reflexões de uma antropóloga 'andarina' sobre a etnografia numa comunidade de mineiros de carvão".
A dimensão trágica da vida cotidiana, tantas vezes relevadas pela escrita etnográfica com eficácia simbólica de conhecimento da alteridade, recebe no artigo de Guadalupe García uma versão narrativa da experiência do corpo doente de quatro mulheres grávidas infectadas pelo HIV. Na tensão com o campo médico, uma série de questões são relatadas nas narrativas de mulheres nessa etnografia no contexto hospitalar no Sul de Buenos Aires. Trilhando os ensinamentos de Paul Ricoeur, a autora vive a experiência intersubjetiva da etnografia sobre o Outro em sua experiência com o corpo. A situação da doença, a experiência da aflição em face do tratamento necessário em confronto com a prática biomédica são apresentadas no artigo "Cuerpo y narrativa: una aproximación etnográfica al proceso de atención del embarazo, parto y puerperio de mujeres viviendo con VIH en la ciudad de Buenos Aires". Na distensão do tempo da experiência da dor e da angústia, as narrativas dessas mulheres expõem a dimensão vivida da cultura institucional hospitalar em seus paradoxos.
Os conflitos e negociações entre atores pertencentes a diferentes instituições em contexto urbano também ganham forma na experiência etnográfica de Margareth da Luz no artigo "Nasce uma nova Niterói: representações, conflitos e negociações em torno de um projeto de Niemeyer". Trata-se de um projeto de revitalização da cidade e da construção em Niterói de mais um monumento grandioso arquitetado pela genialidade de Niemeyer. Mas tudo isso se dá no âmbito de esferas políticas de diferentes níveis de responsabilidade e de poder. O significado dessa experiência para a população de Niterói envolvida no élan publicitário de construir uma nova imagem para a cidade é levado a termo nessa etnografia, que recupera discursos políticos, documentos históricos, reportagens de imprensa, desvelando, na posição galgada por cada ator nesse jogo político a que está submersa dialeticamente, as imagens consumidas e desejadas de cidade.
Por fim, com o artigo de Marluci Menezes, trazemos mais uma etnografia que conecta experiências e narrativas no contexto urbano contemporâneo. Deslocamos nosso olhar etnográfico agora para uma cidade mais distante, Lisboa. Atenta ao cenário social em "A praça do Martim Moniz: etnografando lógicas socioculturais de inscrição da praça no mapa social de Lisboa", a autora nos convida a compartilhar de seu olhar mais de perto e de dentro (no que segue José Magnani) do lugar público.
Como um micromundo, a praça como lugar de dramas sociais é mote do relato de uma etnografia da realidade urbana em que a antropóloga negocia sua presença na rotina do lugar, na rede de relações na esfera local para reconhecer e interpretar os paradoxos entre pertenças e identidades tanto quanto entre discriminações, embates, conflitos e resistências. Tomada de lógicas do dentro e do fora, dos mais ou menos legítimos, a autora mostra como o lugar público pode ser lido a partir de formas ritualizadas. Além disso, busca nas categorias analíticas de lugar sugeridas por José Magnani - como pedaço, trajeto, circuito e mancha - interpretar a experiência observada. Também busca reconhecer as disputas que estão em jogo nesse palco em torno dos sentidos que a noção de cidadania pode comungar. Nesse ínterim recorre aos estudos de John Holston a fim de reconhecer as disputas por imagens de cidadania em sua multidimensionalidade, que tanto é apresentada sob a estética da resistência e busca de solidariedade quanto sob a estética do medo, da segurança, de decisões de ordem dominante. Nessa instância, a autora abre para as interpretações possíveis desse lugar em suas dramáticas sociais no contexto urbano, através dessa etnografia da circunstância presente.
A seção Espaço Aberto traz a trajetória da antropóloga Claudia Fonseca, a partir de entrevista realizada em 2009 pelas coordenadoras do projeto Banco de Imagens e Efeitos Visuais, e filmada e fotografada por pesquisadores da equipe desse projeto. A intenção aqui é homenagear a nossa querida etnógrafa "com sotaque" no ano em que o PPGAS da UFRGS completa 35 anos de existência. Claudia é professora no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFRGS desde 1978. Ocupou inúmeros cargos representativos e em seu curriculum consta produção científica de grande circulação na comunidade acadêmica. Mas é no jeito simples de ser e com sua risada gostosa que compartilhamos de alguns instantes que a entrevista, aqui transcrita, pode eternizar.
Para finalizar, a ilustração da capa deste número foi extraída do livro Dieu d'Eau, de Marcel Griaule, que buscava com ele render uma homenagem às culturas africanas. O livro que consultamos foi publicado pela Fayard em 1966. Traz o relato da aventura etnográfica de Griaule em sua pesquisa junto aos dogons das Falaises de Bandiagara e reproduz as entrevistas que realizou junto com a equipe que o acompanhava, os relatos do caçador Ogotemmêli, na época, já cego por um acidente. A fotografia foi tirada pelo próprio autor. Nela Ogotemmêli aparece sentado sob o marco de entrada de sua casa, sendo entrevistado por uma das assistentes de pesquisa de Marcel Griaule. Essa imersão em campo dá continuidade à famosa missão Dakar-Djibouti empreendia em 1931. Segundo Geneviève Calame-Griaule, que escreve o avant-propos dessa edição, o livro original é de 1948. O estilo da etnografia revela a intenção do antropólogo de romper com dogmas academicistas para atingir um público mais amplo que o intelectualizado na descoberta dos segredos da cosmologia dogon.
Antes de encerrar esta apresentação e convidar os leitores para sua apreciação, queremos aproveitar o ensejo da passagem dos 35 anos de existência do PPGAS UFRGS para cumprimentar os editores de Horizontes Antropológicos, Professores Sérgio Alves Teixeira, Carlos Alberto Steil, Ruben George Oliven e agora, agregando-se à equipe, Ari Pedro Oro. Parabéns pelo sucesso dessa trajetória.
Ana Luiza Carvalho da Rocha
Cornelia Eckert
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Ago 2011 -
Data do Fascículo
Dez 2009