RESENHAS
As maravilhas do sexo que ri de si mesmo* * Resenha de LEITE Jr., Jorge Das Maravilhas e Prodígios Sexuais A Pornografia "Bizarra" como Entretenimento. São Paulo, Annablume/ Fapesp, 2006.
Larissa Pelúcio
Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos. larissapelucio@yahoo.com.br
"Não foi a minha maneira de pensar que me desgraçou, foi a dos outros", escreveu Sade a certa altura de sua vida polêmica e emblemática. Corria o século XVIII, época em que o poder exercia-se explicitamente sobre a carne e os suplícios públicos, impostos às pessoas infratoras, era da ordem do espetacular. O Marquês, com sua "desgraçada" maneira de pensar, tecia críticas a esse poder que se realizava pela submissão completa do outro até seu esgotamento, e que assim podia ser, pois a nobreza tinha tanta certeza de sua superioridade quanto de sua impunidade.
Apesar de sua verve crítica, o nobre e controverso autor de A Filosofia da Alcova se popularizou não por seu requinte filosófico, mas pela propalada crueldade em relação aos usos dos prazeres do sexo. Foi mais fácil classificá-lo como libertino do que ver em sua prosa a relação intrínseca entre sexo, poder, submissão e controle. Relação esta que Michel Foucault esmerou-se em desnudar em História da Sexualidade A vontade de Saber. A sexualidade, sendo ela mesma uma construção, tem uma história que não pode ser contatada sem que se fale das instituições de poder e dos discursos de saber que formularam verdades sobre o sexo.
Se a sexualidade tem sido sempre alvo de regramento e esmiuçamento por parte das instituições, o corpo feminino tem sido o lócus privilegiado do exercício desses poderes. Esta poderia ser uma das teses defendidas por Jorge Leite em Das Maravilhas e Prodígios Sexuais a pornografia "bizarra" como entretenimento. O livro, publicado em 2006, traz os resultados da pesquisa de mestrado em antropologia defendida por Leite na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Nele, o autor oferece um panorama histórico e analítico que coloca o sexo a nu, mostrando que este, mesmo quando feito entre risos, sempre foi sério, politicamente sério. "Humor e sexo juntos compõe, uma fórmula perigosamente transgressiva que os poderes da religião e da ciência procuram exorcizar", escreve Eliane Robert e Moraes na apresentação de Das Maravilhas (13).
O riso e os corpos "maravilhosos" são as duas linhas principais pelas quais o autor irá nos conduzir ao mundo do sexo como espetáculo e da pornografia "bizarra" como negócio. O autor inicia esse trajeto por uma questão conceitual: o que é pornografia e o que a diferencia do erotismo. A resposta para estas questões pode ser sintetizada na frase do escritor francês Robbe-Grillet citada por Leite, "a pornografia é o erotismo dos outros" (33). O antropólogo se vale das reflexões de outro francês, Pierre Bourdieu, para adensar a discussão. Leite propõe que o debate que dicotomiza termos e prazeres "pode ser visto como uma luta simbólica pela legitimidade das representações e práticas sexuais" (34). Para os detentores do gosto legítimo a pornografia resume a crueza literal das classes populares e seus gostos "vulgares". "A pornografia é considerada perigosa porque é o erotismo das massas e estas são sempre vistas com receio" (38). Esta associação, segundo o autor, deixa claro o cunho político do sexo e os tantos discursos que se pretendem legítimos sobre ele e o que se faz dele. Há toda uma estética do sexo que separa os "doentes" e "perigosos" dos "sadios" e "respeitáveis", como mostra o pesquisador.
Das Maravilhas traz o que Foucault chamou de "toda essa vegetação da sexualidade" e explicita a associação entre sexo e transgressão, controle e excitação. Na indústria do sexo como entretenimento, o "bizarro", o "não-convencional", está sempre associado aos discursos médicos, morais e, atualmente, aos publicitários. Assim, alguns comportamentos, práticas e, mesmo, estilos corporais, que há pouco tempo não seriam classificados como transgressivos como a gordura corporal e o tabaco ganham cada vez mais espaço na produção pornô. Fumar enquanto se faz sexo, exibir um corpo adiposo e praticar o sexo anal prazerosa e repetidamente é, de alguma maneira, brincar provocativamente com a visão higienista que prega a "qualidade de vida" como a forma ideal de existência do sujeito contemporâneo, aquele composto a partir do sutil controle de uma vida de privações alimentares voluntárias, de vigilância permanente sobre si e de abdicações de prazeres finamente calculados.
O sexo vem sendo tratado como coisa muito séria e, como tal, necessita ser apartado dos risos e da exibição lasciva das carnes. Falar de sexo, não de prazeres. Discursar sobre sexo, não exibí-lo. Em Das Maravilhas, Jorge Leite opta justamente pelo prazer e pela exibição.
O livro é comercializado com uma tarja preta onde se lê em letras brancas: "venda proibida para menores de 18 anos". A recomendação se justifica não só pelo conteúdo que trata explicitamente de sexo, não de qualquer sexo, mas daquele que Gayle Rubin categorizou como o "mau sexo"1 1 Rubin, em Thinking Sex (1984), defende que a ideologia sexual popular mescla a idéia de pecado à de inferioridade psicológica, anticomunismo (observo que o texto foi publicado pela primeira vez em 1984, antes do colapso socialista, portanto), histeria de massa, acusações de bruxaria e xenofobia. A mídia, segundo ela, corroboraria esse sistema de estigma e preconceito, favorecendo e fixando uma hierarquia de valor sexual, na qual, à "ralé sexual" caberia a segregação e o infortúnio. No sistema de valores sexuais, o sexo "bom" seria aquele feito entre um homem e uma mulher, preferencialmente casados, monogâmicos, que visam fins procriativos e, assim, fazem um sexo não comercial. Sendo o "mau sexo" o avesso dessa cadeia. , como traz fotos de "corpos que fazem maravilhas" e de "corpos que são maravilhas". Anões, travestis, xifópagas, mulheres muito gordas ou com seios enormes são algumas personagens que ilustram corpos que são maravilhas, enquanto os corpos que fazem maravilhas aparecem em fotos que comprovam a capacidade elástica de alguns orifícios ou de algumas pessoas para suportar a dor sem desassociá-la do prazer, do gozo e do riso.
As fotos são essenciais2 2 A dissertação que deu origem ao livro Jorge Leite valeu-se de centenas de fotos e ilustrações, porém, por questões de custos de edição, a maior parte não pode ser utilizada, levando o autor a selecionar as imagens a partir do critério de representatividade em relação ao conjunto do material levantado e dos temas abordados, bem como pela qualidade gráfica. , afinal se trata de pornografia: representação do sexual, do erótico, dos atos e corpos. É preciso, então, ver, saborear ou se escandalizar pelo olhar.
Logo nas primeiras páginas, Jorge Leite adverte que trabalha apenas com pornografia legalizada e com sexo consentido, desse modo, seu estudo não contempla zoofilia, necrofilia e pedofilia. Seu foco é o sexo como entretenimento, diversão, negócio e espetáculo.
Assim, procuramos mostrar as origens culturais de determinados elementos que, ao unirem-se e formarem estes produtos, os tornam sinônimos de "degradação" e "perigo". Nesta produção conhecida genericamente como pornografia "bizarra", o sexo, as risadas e os corpos e práticas incomuns são o tema central desta curiosa linha de espetacularização da vida moderna (17).
O pesquisador valeu-se de vídeos, filmes, sites e revistas especializadas em pornografia bizarra como material para suas observações, somando a essas fontes uma variada bibliografia que vai de Sade a Bakhtin, de Freud a Foucault, contemplado, ainda, estudos brasileiros sobre sexualidade, transgressão, riso e consumo.
A pornografia como entretenimento adulto não pode ser entendida fora da produção de uma cultura de massa que passa pela popularização da imprensa, pela invenção da fotografia, do cinema até à expansão da internet. Leite apresenta como, a partir da difusão e comercialização de imagens de pessoas nuas, de órgãos e atos sexuais, foi se constituindo uma indústria que gera lucros tão especulares quanto aquilo que vende. Apesar de deixar de fora algumas discussões importantes sobre cultura de massa e mesmo sobre a história da pornografia (por exemplo, a aids não aparece em nenhum momento como um elemento que desestabiliza e até mesmo pauta outras práticas no mercado do sexo), essas passagens apressadas são recompensadas pelo texto saboroso do autor que, se deixa de se aprofundar em algumas análises teóricas, fornece aos leitores e às leitoras um panorama expressivo de um universo desprezado pelas ciências sociais e dominado (no duplo sentido) pelas ciências psi e médicas.
A partir da crítica aos olhares classificadores e normalizadores sobre o sexo, Leite escreve o melhor capítulo de Das Maravilhas o IV, constituindo uma espécie de cronologia tipológica das figuras desviantes. O monstro é apresentado como um ancestral dos "perversos" e dos "anormais". Genealogia estabelecida em raízes históricas e que nos levará às personagens do sexo "bizarro", não sem passar pelo bufão e sua estética do grotesco e pelos freaks em suas mais diversas expressões.
Nesse resgate original, vemos como o monstro assustador e cômico, próprio do imaginário medieval, foi perdendo seu aspecto corpóreo e fabuloso até se tornar o monstro potencial e subjetivo que qualquer um pode guardar dentro de si. Se o monstro corporal amedronta, causa fascínio e faz rir, o monstro secreto da psiquiatria do século XIX não tem graça nenhuma. Nas mãos biologizantes da sociedade nascente, as deformidades corporais e as estranhezas comportamentais perdem sua aura de encantamento e tornam-se "casos" médicos ou de polícia.
O freak, que ainda achava espaço nos espetáculos baratos para as massas, vai cedendo lugar ao pervertido. Este já não se mostra, ao contrário, precisa ser retirado de cena, não sem que todo um discurso sobre ele se torne fartamente exibido. O anormal, o "monstro pálido", é digno de pena; o pervertido, cujo desvio ameaçador é, sobretudo, sexual, merece ser penalizado.
O corpo educado da nobreza cortesã, mimentizado e disciplinado pela burguesia ascendente, tornou-se, por fim, o modelo da civilização. Entre os excessos corporais controlados, a gargalhada, "que até então poderia ser causada pela visão da deformidade, torna-se lentamente ela mesma uma deformidade" (191). A burguesia, como os santos medievais, sorri. Enquanto o populacho e os loucos gargalham.
O capítulo sobre o riso é o mais extenso e talvez seja o que mais abre flancos para críticas, não pela qualidade das análises, mas por algumas ausências. Os leitores e as leitoras, familiarizados com os estudos históricos sobre o riso, podem sentir falta de autores como Dominique Arnould, Bernard Sarrazin, Jeannine Horowitz, entre outros. Lacunas que o autor parece ter procurado preencher a partir de trabalhos como o de José Rivair Macedo (2000). Ainda assim, Leite faz uma espécie de exegese dessa história para conduzir os leitores ao que de fato lhe interessa o riso na pornografia , procurando mostrar do que se ri quando o assunto é sexo.
Seguindo os argumentos de Leite, o potencial crítico e político do sexo irreverente perde sua verve contestatória, na medida em que a representação da pornografia vai se tornando um negócio. Humor e capital parecem não combinar. Assim, quanto mais a pornografia se rende ao mercado, mais o riso debochado ou desafiador se transformará em "simpatia burguesa. Simpatia entendida como aprovação secreta do sexo visando ao divertimento, ao entretenimento e à capitalização desta nova forma de espetáculo" (139). É como se o mercado domesticasse até mesmo as práticas e os corpos mais rebeldes, tornando sério o negócio do sexo e o sexo como negócio. Mais à frente, nesse mesmo tópico, Leite parece resistir à sua própria tese, propondo que o humor é ainda um elemento importante nas produções pornográficas. Assim, o autor abdica do caminho teórico sem surpresas, o de tomar o mercado como único elemento "pasteurizador" do potencial transgressivo das sexualidades disparatadas, buscando argumentos mais sofisticados e corajosos para enfrentar essa questão.
No capítulo V, onde as maravilhas e prodígios sexuais são apresentados e discutidos, Leite situa a pornografia "bizarra" como um reduto de resistência à domesticação e normalização dos corpos e das sexualidades. Nada de corpos magros, bronzeados e bonitos, tampouco o higienismo presente na maior parte das produções pornográficas convencionais. Excrementos, fluídos, excessos de toda ordem compõem o material excitante do "bizarro". Assim, o socialmente proibido e culturalmente interdito parece encontrar no ramo dissidente da pornografia "soft" um lugar de expressão. Porém, os "corpos que são maravilha" acabam encapsulados nesse espaço, mantendo uma associação ancestral entre anões, gordos e travestis com o burlesco, nas melhor das hipóteses, e com a perversão, sendo alvo de controle médico e/ou condenação social. A pornografia bizarra não consegue (até mesmo porque não pretende) deslocar essas pessoas do plano da abjeção, do não-humano, para o do socialmente viável. Ao contrário, mantém-se como um dos limites necessários que fazem da "normalidade" o modelo desejável. Desse ponto de vista, o papel transgressivo e contestador da pornografia "bizarra" torna-se questionável, uma vez que certos corpos e prazeres só serão legítimos como aberração e nunca como outras possibilidades de existência.
Ainda que, de certa forma, reconheça esse encapsulamento, o autor afirma que a sexualidade não-convencional tende a escapar da armadilha do mercado, assombrando mais do que gerando lucros. Daí a necessidade de "repaginar" os freaks shows, espetacularizando, via programas televisivos, "dramas" familiares ou corpos indomados (ou, ao contrário, tão controlados que se tornam aberrações), como se o enquadramento via show business expurgasse o perigo evidenciando o ridículo, salvaguardando a ordem vigente. Se o espetáculo das maravilhas e prodígios sexuais é capaz de desafiar o hegemônico, cabe aos leitores e às leitoras decidirem.
Jorge Leite arremata seu estudo voltando-se para o corpo-síntese da travesti. A discussão sobre gênero e corporalidade encontra aqui seu espaço. Sempre provocativo e irreverente, Das Maravilhas centra-se no corpo "dúbio" das travestis para descontruir o sexo e problematizar o gênero:
a figura da travesti prostituta encarna tudo que foi estudado até aqui: o comércio do sexo, a pornografia, o riso transgressivo, a associação com a delinqüência, a feminilidade obscena, o corpo "maravilhoso" e o conseqüente incômodo social que estes elementos provocam (272).
Se não há indiferença possível diante da travesti, figura emblemática desse estudo, tampouco há possibilidade de passividade na leitura do livro de Leite, que, na sua teratologia (do grego: narrativa de coisas maravilhosas), incita nosso vouyerismo e, como não poderia deixar de ser, instiga o riso. Um riso que bem poderia vir do deboche sadeano, mas que aqui é também provocado pelo prazer de uma boa leitura.
Referências bibliográficas
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, A Vontade de Saber. Vol. 1. 15ª ed. São Paulo, Graal, 2003.
MACEDO, José Rivair. Riso, Cultura e Sociedade na Idade Média. Porto Alegre/São Paulo, Ed. UFRGS/Editora Unesp, 2000.
RUBIN, Gayle. Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality. In ABELOVE, BARALE, HALPERIN et alii. (eds.) The Lesbian and Gay Studies Reader. London/New York, Routledge, 1992.
Recebida para publicação em agosto de 2006, aceita em setembro de 2006.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
29 Out 2007 -
Data do Fascículo
Dez 2007