Resumos
A figura do hermafrodita ou andrógino foi fundamental para todo o discurso médico-moral-espiritual sobre sexo e gênero em nossa cultura, desde a Antiguidade até o século XVIII. Com a mudança epistemológica que ocorre a partir do século XVI, o antigo hermafrodita, associado ao mundo mágico e religioso, perde seu lugar nas classificações modernas. A partir do século XIX nasce uma nova entidade conceitual no Ocidente: o pseudo-hermafrodita da medicina, não mais "maravilha" da natureza, mas um erro desta; filho do racionalismo iluminista e do positivismo, vindo a tornar-se o pai - e mãe - das futuras identidades transgêneras.
Hermafroditas; Andróginos; Monstros; Transgênero
The image of the hermaphrodite or androgyne was essential for all medical-moral-spiritual discourses about sex and gender in our culture, from Antiquity until the eighteenth century. With the epistemological change that has happened since the sixteenth century, the old hermaphrodite, associated with the magical and religious world, has lost his/her place in modern classifications. From the nineteenth century on, a new conceptual entity in the West takes place: the pseudo-hermaphrodite from medicine, not the wonder of nature anymore, but its error; a product of the illuminist rationalism and positivism, gradually becoming the father and mother of future transgender identities.
Hermaphrodites; Androgynous; Monsters; Transgenders
"Que nunca chegue o dia que irá nos separar" - notas sobre epistémê arcaica, hermafroditas, andróginos, mutilados e suas (des)continuidades modernas* * Dedico este artigo à Mariza Werneck. Este texto é uma adaptação do primeiro capítulo de minha tese de doutorado intitulada - "Nossos corpos também mudam": sexo, gênero e a invenção das categorias "travesti" e "transexual" no discurso científico, PUC-SP, 2008.
"May it never come the day that will tear us apart" - notes About classical epistémê, hermaphrodites, androgynous, mutilated people and their modern (dis)continuities
Jorge Leite Jr.
Professor substituto do departamento de sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). jcabelo@uol.com.br
RESUMO
A figura do hermafrodita ou andrógino foi fundamental para todo o discurso médico-moral-espiritual sobre sexo e gênero em nossa cultura, desde a Antiguidade até o século XVIII. Com a mudança epistemológica que ocorre a partir do século XVI, o antigo hermafrodita, associado ao mundo mágico e religioso, perde seu lugar nas classificações modernas. A partir do século XIX nasce uma nova entidade conceitual no Ocidente: o pseudo-hermafrodita da medicina, não mais "maravilha" da natureza, mas um erro desta; filho do racionalismo iluminista e do positivismo, vindo a tornar-se o pai - e mãe - das futuras identidades transgêneras.
Palavras-chave: Hermafroditas, Andróginos, Monstros, Transgênero.
ABSTRACT
The image of the hermaphrodite or androgyne was essential for all medical-moral-spiritual discourses about sex and gender in our culture, from Antiquity until the eighteenth century. With the epistemological change that has happened since the sixteenth century, the old hermaphrodite, associated with the magical and religious world, has lost his/her place in modern classifications. From the nineteenth century on, a new conceptual entity in the West takes place: the pseudo-hermaphrodite from medicine, not the wonder of nature anymore, but its error; a product of the illuminist rationalism and positivism, gradually becoming the father and mother of future transgender identities.
Key Words: Hermaphrodites, Androgynous, Monsters, Transgenders.
O hermafrodita ou andrógino1 1 É importante esclarecer que os termos "hermafrodita" e "andrógino" não são equivalentes ou sinônimos, possuindo cada um a sua especificidade e distinção. Ainda assim, desde pelo menos o final da Antiguidade até aproximadamente o século XVIII, grande parte da literatura filosófica, religiosa e médica utilizou estes termos de forma intercambiável. Isto será desenvolvido no decorrer deste artigo. , figura constante no que se convencionou chamar genericamente de cultura ocidental, não é apenas mais um monstro dos compêndios e coletâneas de narrativas fantásticas, mas o grande prodígio sexual que cresce em importância e influência da Antiguidade até o surgimento da "ciência sexual" no século XIX. Fonte de medo e curiosidade, mas também de fascínio e desejo, a idéia de um ser ao mesmo tempo macho e fêmea, feminino e masculino, ameaça e questiona os limites dos padrões culturais sobre o que é ser homem ou mulher.
Constantemente evocado, da praticidade mágica popular ao saber científico, da filosofia à política, da espiritualidade aos deleites sexuais permitidos ou proibidos, a idéia do hermafrodita revela-se algo fundamental nos debates históricos sobre sexo e gênero, tanto por seu constante redimensionamento - mesmo quando considerado elemento raro - quanto por sua impactante aparição e transformação ao longo dos séculos. Frente aos chamados hermafroditas e/ou andróginos, corpos e conceitos tiveram suas antigas certezas e limites abalados, assim como novas esperanças e expectativas despertadas. Dessa forma, a pessoa considerada hermafrodita foi fundamental para todo o discurso médico-moral-espiritual da Antiguidade ocidental, tanto pela matriz greco-romana quanto judaico-cristã.
Representante de uma ordem cósmica ideal ou maldita, benéfica ou caótica, o hermafrodita ou andrógino adquire um papel cada vez mais relevante nas discussões sobre as diferenças biológicas entre os sexos não por sua íntima e indissociável relação com o universo mágico-religioso, mas por sua gradual apropriação pelo discurso médico científico. Conforme Foucault (2001:83),
na Idade Clássica, é um terceiro tipo de monstro que, na minha opinião, é privilegiado: os hermafroditas. Foi em torno dos hermafroditas que se elaborou, em todo caso que começou a se elaborar, a nova figura do monstro, que vai aparecer no fim do século XVIII e que vai funcionar no início do século XIX.
A ciência então descarta o hermafrodita antigo, excessivamente ligado ao mundo do fantástico, e cria sua própria entidade teratológica: o pseudo-hermafrodita da biomedicina moderna, que transgride não mais as "leis de Deus", mas as culturalmente inventadas "leis da natureza" sobre os sexos/gêneros. Assim, o objetivo deste artigo é traçar um breve histórico sobre o desenvolvimento dos conceitos de hermafrodita e andrógino e sua gradual apropriação pelo discurso médico-científico, apontando algumas de suas mudanças ou permanências durante este trajeto.
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O importante do período que vai da Antiguidade grega clássica até aproximadamente o século XVIII, é que ser homem ou mulher fazia parte de um todo envolvendo posição social, grau de liberdade, desejos, roupas, comportamentos e espiritualidade, sendo a diferenciação genital apenas mais um, mas não o principal, dos elementos que caracterizavam essa distinção, pois o corpo era visto como um só para os dois, variando apenas seu grau de desenvolvimento - tanto físico como espiritual (Laqueur, 2001).
Nesse período histórico, segundo Foucault, o que rege as formas do saber desenvolvidas até então é aquilo que o autor analisa como uma epistémê antiga ou arcaica que, entre os séculos XVII e XVIII, começa a adquirir novos contornos e outra epistémê, moderna, formada a partir de rupturas com o modelo anterior e consolidada no século XIX, gerando assim suas específicas taxonomias e categorias de pensamento (Foucault, 1987).
Dentro da forma antiga de refletir sobre o próprio conhecimento e organizar o universo, alguns elementos conceituais eram fundamentais, tais como as correspondências entre as formas, as semelhanças entre os espaços e os corpos, a simpatia ou antipatia entre os elementos do mundo e a íntima relação entre a parte e o todo, sendo uma antes de tudo a manifestação da outra e existindo entre elas apenas uma graduação manifesta, inclusive entre a voz e o objeto nomeado, entre os sons e as substâncias, entre "as palavras e as coisas". Assim, havia um princípio de circularidade e extensão entre o microcosmo e o macrocosmo, o corpo humano e o universo, ambos sendo tomados como constantes referências de si mesmos e de suas relações, representadas desde as estações da natureza até as roupas usadas no cotidiano.
Ainda segundo Foucault (1987: 33),
até o fim do século XVI, a semelhança desempenhou um papel construtor no saber da cultura ocidental. Foi ela que, em grande parte, conduziu a exegese e a interpretação dos textos: foi ela que organizou o jogo dos símbolos, permitiu o conhecimento das coisas visíveis e invisíveis, guiou a arte de representá-las. O mundo enrolava-se sobre si mesmo: a terra repetindo o céu, os rostos mirando-se nas estrelas e a erva envolvendo nas suas hastes os segredos que serviam ao homem. A pintura imitava o espaço. E a representação - fosse ela festa ou saber - se dava como repetição: teatro da vida ou espelho do mundo, tal era o título de toda linguagem, sua maneira de anunciar-se e de formular seu direito de falar.
Dessa forma, se a questão da diferença entre homens e mulheres é tão focada hoje na fisiologia e no sexo, este ponto não era o principal do debate até então. Atitudes, vestuários e conhecimentos considerados masculinos em pessoas reconhecidas como mulheres e vice-versa poderiam exemplificar uma indevida mistura entre homens e mulheres, universos masculinos e femininos, caracterizando também um certo tipo de hermafroditismo. Uma genitália ambígua era sim um sinal de desordem espiritual-social-corporal, como o era uma vestimenta ambígua ou um comportamento ambíguo, e o que variava a periculosidade de tal situação era o grau quantitativo de tal mistura. Por isso que, durante muito tempo, exceto em textos médicos específicos, o termo andrógino era muitas vezes usado como sinônimo de hermafrodita, cujo sentido principal residia na união homem/mulher ou masculino/feminino em um mesmo ser.
A figura do hermafrodita possui um especial foco na genitalidade, e ela adquire relevância conceitual e terminológica para biomedicina moderna não por este foco ser importante no período da epistémê antiga, mas porque vai se tornar importante como lócus de diferenciação a partir do século XVIII. Com o advento da modernidade e toda a mudança política, econômica, social e epistemológica que esta trouxe, a existência mágica e sobrenatural é - quase completa e definitivamente - afastada da cultura "oficial" que, desde então, estrutura-se como racionalista e científica. Dessa maneira, a figura do hermafrodita perde seu lugar como representação de uma ordem superior, ao mesmo tempo perigosa e saudosista.
Surge então o pseudo-hermafrodita, longe dos deuses, filho da modernidade, da medicina e da "ciência sexual". Não mais um prodígio da natureza, mas um desvio desta. Não mais um monstro fascinante, mas um anormal. Passa-se agora a buscar o "verdadeiro sexo" que irá definir quem é homem e quem é mulher, sem os "perigosos" riscos de interpretações equivocadas. Nesse processo, a ambigüidade sexual não perde lugar, mas é principalmente interiorizada. Dentro do nascente universo das ciências da psique, toda uma fauna humana irá desabrochar na visão dos cientistas. Nasce aí o "hermafrodita psíquico".
Dele irão se originar todos os "perversos sexuais" do século XIX, em especial aqueles que misturam e discutem, de forma direta e intencional ou não, as questões entre homens e mulheres, masculinos e femininos. Intersexuais, homossexuais, "invertidos", travestis, transexuais, crossdressers, entre tantas, novas e possíveis identidades, todas vêm de um mesmo ser nunca antes aparecido na cultura ocidental: o hermafrodita psíquico, criado pelo debate científico entre cirurgiões, endocrinologistas, psiquiatras, psicólogos e psicanalistas.
O novo e último hermafrodita conceitual do Ocidente, o pseudo-hermafrodita do século XIX, principalmente em sua versão interiorizada, o "hermafrodita psíquico", é o grande pai - e mãe - das identidades "transgêneras" da segunda metade do século XX e início do XXI, cuja matriz conceitual, ainda que dessacralizada, é o antigo hermafrodita ou andrógino da epistémê antiga. Vejamos então um breve histórico desses mitos/conceitos em algumas de suas curiosas e persistentes influências até o século XIX. Afinal, como narrou Ovídio (2003: 314), "todas essas coisas tiveram início em alguma outra criatura".
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Durante o período em que prevaleceu a chamada epistémê arcaica, são constantes os relatos de mulheres que se transformavam em homens e vice-versa, seja entre reis, sacerdotes ou pessoas "comuns".
Há inúmeros relatos de homens que amamentavam e imagens do menino Jesus com seios. As meninas podiam tornar-se meninos, e os homens que se associavam intensamente com mulheres podiam perder a rigidez e a definição de seus corpos perfeitos, e regredir para a efeminação (Laqueur, 2001:19).
Esse tipo de metamorfose não ocorria apenas em humanos, mas também era possível acontecer com deuses, animais ou mesmo plantas. Assim, toda a classe de seres que eram divididos de maneira binária em machos e fêmeas poderia, quer por uma bênção, maldição, destino ou mesmo acaso, transitar entre os sexos/gêneros.
Dessa maneira, a figura do hermafrodita ou andrógino revela sua fascinante e incômoda especificidade: não apenas o estranho e possível trânsito entre machos e fêmeas, masculinos e femininos, mas a espantosa e incomum união destes elementos em um mesmo ser. Conforme analisou Mircea Eliade (1999), a idéia de androginia em seu sentido mais amplo, pode-se dizer mítico, revela, para este autor, a nostalgia de toda cultura por uma nunca existente idade de ouro, quando os opostos eram unos, as diferenças integradas e as divergências, contradições e desigualdades não tinham lugar distinto na existência. Assim, independente do quanto o conceito de um mundo perfeito e perdido tem ressonâncias universais ou não, o mito da união entre macho/fêmea e masculino/feminino, exemplificado em nossa cultura exemplarmente pelo andrógino e encarnado em sua figura mais expressiva, o hermafrodita, é antes de tudo pertencente ao campo do fantástico, mas um fantástico intrinsecamente ligado à vida cotidiana.
Conforme a crítica literária Marie Miguet (2005), em seu verbete "andróginos" no Dicionário de mitos literários, possivelmente existia na Antiguidade uma tradição mística órfico-babilônica que seria a fonte tanto do mito do andrógino em Platão quanto o de um Adão masculino e feminino, o Adam Cadmon, que influenciaria interpretações apócrifas do mito da criação do Gênesis na cultura judaico-cristã.
Unidos ao tema do deus Hermafrodito narrado por Ovídio, essas três fontes vão influenciar a discussão mística, artística, filosófica, social e médica sobre a ambigüidade sexual e os limites culturais e fisiológicos entre masculino e feminino com reflexos até os dias de hoje, embora a distinção deste tema entre tais campos do conhecimento só tenha se dado mais fortemente - mas nunca completamente - a partir do fim do século XVIII.
Apesar de serem originados em três períodos históricos distintos, com suas respectivas visões culturais sobre sexo e gênero, como os textos de Platão no fim do período conhecido como Grécia Clássica, os do poeta latino Ovídio durante o Império Romano e as interpretações rabínicas de pelo menos o início da Alta Idade Média, o que une essas específicas matrizes culturais é o compartilhar da mesma epistémê antiga e da concepção de um sexo único com dois gêneros hierarquizados.
Platão (1996) em O Banquete, pela voz de Aristófanes, conta o mito grego dos andróginos. Segundo o autor, antigamente a natureza humana era composta de três seres: os machos, filhos do Sol, as fêmeas, filhas da Terra e os andróginos, filhos da Lua, que por sua vez era filha do Sol e da Terra. Todos tinham as formas arredondadas, como esferas, além de dois braços, duas pernas, dois genitais e uma cabeça com dois rostos opostos. A única diferença encontrada nos andróginos é que eles possuíam os dois sexos, um masculino e outro feminino.
Por tentarem fazer guerra contra os deuses, Zeus os castigou dividindo-os em dois corpos distintos, cada um possuindo apenas um sexo, para assim enfraquecer-lhes. Depois, virou o rosto e o agora único sexo deles para trás, que passou a ser, a partir de então, a parte da frente do novo corpo, dando assim a oportunidade destes novos seres de procriarem durante a busca por sua metade perdida. Zeus também deixou um sinal para o homem lembrar-se de sua condição anterior e não se esquecer de seu castigo: o umbigo. Desta maneira, a humanidade atual descenderia de encontros sexuais motivados por uma frustrada busca por outra parte de si mesmo.
No mito grego escrito por Platão, o conceito de androginia, que aí encontra sua fonte inspiradora do termo, vai representar antes de tudo uma divina e perdida união espiritual. Os andróginos possuem a junção do masculino e do feminino, inclusive no próprio nome (do grego andros significando "homem" e gynos, "mulher"), e evocam o saudosismo de uma vivência de completude. Referem-se ao universo perfeito das Idéias, verdadeira origem de nosso mundo decaído, o das aparências e enganos, gerador de angústias e aflições segundo a doutrina deste filósofo. Conforme Miguet (2005: 27), "vê-se bem a função etiológica do mito: relatar o sofrimento dos amantes separados, quer sejam homossexuais ou heterossexuais".
Mas esse sofrimento em Platão é, antes de tudo, pela perda da união harmoniosa que só é possível no mundo Ideal, muito mais do que pela separação entre os amantes. O amor que causa a eterna busca por algo que falta é o amor por aquele mundo perdido, onde os amantes eram unos. Por isso, apesar de haver uma gradação entre amores considerados mais simplórios, como aqueles entre um homem e uma mulher (originados neste texto da Vênus vulgar) e os mais desenvolvidos, como entre um homem e um jovem (originados da Vênus Celeste), segundo a voz de Pausânias, a origem de toda dor amorosa está ligada à ruptura com um plano superior da existência. Todos os seres humanos atuais seriam, assim, a encarnação de uma punição e uma falta, e o andrógino, a representação do que não somos e nem podemos mais ser: "cada um de nós é, pois, uma metade de homem separada de seu todo" (Platão, 1996:37).
Ainda para Marie Miguet, através de rituais religiosos de influência oriental (como a troca ritual de roupas entre os sexos) e principalmente via representação estética, o mito do andrógino divulgado por Platão, sem foco discursivo algum em sua genitalidade, vai desenvolver-se gradualmente como a imagem de uma pessoa com dois sexos, tanto na questão corporal quanto em sutilezas de papéis de gênero masculinos e femininos. Para a representação concreta do andrógino platônico foi fundamental a união deste com a figura explícita do hermafrodita da religiosidade popular grega.
Um dos maiores modelos dessa figura com os dois sexos pode ser encontrado no livro Metamorfoses, do autor latino Ovídio, escrito entre 8 e 14 d.C., no qual ele narra o na época já muito antigo mito do deus Hermafrodito (ou Hermafrodite).
Hermafrodito, filho de Hermes, mensageiro dos deuses, e de Afrodite, deusa da beleza e do amor, unia a graça e a formosura de sua mãe com a virilidade e força de seu pai. Um dia, ao banhar-se em um lago, a ninfa Salmákis, que lá habitava, apaixonou-se por sua figura e tentou possuí-lo, abraçando-o fortemente. Assustado, ele a repeliu, mas a sensual ninfa rogando aos deuses que não o separassem, conseguiu juntar seu corpo ao de Hermafrodito, suplicando: "Que nunca chegue o dia que irá nos separar!" (Ovídio, 2003:82).
Segundo Miguet, para Hermafrodito a união ao corpo feminino é sinônimo de queda, desgraça e inferiorização através da divisão e enfraquecimento de seus atributos antes unicamente masculinos. Ele transforma-se em um meio homem, pois também torna-se uma meia mulher. Para a ninfa, a união não só é motivo de prazer pelo não afastamento do amado, mas também é causa de um incremento de poder e reconhecimento, pois agora ela também se torna um meio homem. O deus então pragueja e amaldiçoa o lago e seus futuros banhistas:
Hermafrodite viu que a água havia feito dele um meio homem. Mirou seus braços macios e elevou a voz a um tom que era quase de soprano, implorando: "Ó pai e mãe, concedam-me essa graça! Que daqui para frente, todo aquele que vier mergulhar nesta lagoa, saia dela meio homem, feito mais fraco pelo toque desta maléfica água" (Ovídio, 2003:83).
Através do mito, uma desqualificação do feminino e da mulher é apresentada e a idéia de ambigüidade sexual mostra-se um mau augúrio, um triste destino a ser evitado. Por ser feminina, e assim entendida como um masculino não completamente evoluído, a ninfa enfraquece Hermafrodito ao unir-se a seu corpo. Assim, a união dos dois sexos parece ferir não apenas a hierarquia de uma ordem divina, mas principalmente a social, que teme a desorganização de um mundo com papéis bem distintos e claramente delimitados, arriscando pela proximidade perigosa entre os sexos, seus papéis e lugares sociais, o retorno ao imaginado caos social, um mito tão estruturante e persistente como o da idade do ouro primordial, da qual os andróginos faziam parte.
Não podemos nos esquecer que, como afirmou Eliade (1999:103), desde a Grécia o nascimento de pessoas com alguma forma grave de ambigüidade genital era motivo de sacrifício da criança, pois consideravam um tipo de mau presságio ou um castigo dos deuses. Tais seres, fora da "ordem" anatômica conhecida e desejada, encarnavam a punição por algum desvio não apenas dos pais ou da família próxima, mas talvez de toda a coletividade. O filósofo, orador e político Marco Túlio Cícero, do séc. I a.C., questiona: "e o nascimento de um andrógino não foi um prodígio funesto?" (Montero, 1998:127).
No mito dos andróginos de Platão, escrito no século IV a.C., a união sexo/gênero é originada no campo das idéias perfeitas e associada a uma elite sócio-cultural, os filósofos. Em relação ao deus Hermafrodito, a origem é distinta. Segundo o médico francês Louis Ombrédanne (1939:6), o deus com dois sexos veio do Oriente e penetrou na Grécia talvez via Chipre no século V a.C., ou seja, um século antes do textos de Platão. Neste, percebe-se um inegável foco em sua corporalidade, ostentando os genitais masculinos e femininos e suas inúmeras variações focadas nos caracteres sexuais ditos hoje "secundários", como os seios e a barba. Da mesma forma, o culto a hermafrodito possui um forte apelo popular e material.
Percebe-se assim uma já sutil, mas persistente, distinção entre essas duas entidades/conceitos desde suas origens gregas: filósofos e sábios, ou seja, um pequeno grupo detentor de um alto e valorizado "capital cultural" (Bourdieu, 1988) - e, neste caso, "capital espiritual" pela não distinção entre conhecimento e espiritualidade - devota-se a reflexões sobre o mito da nostálgica androginia perdida e almejada. Já pessoas comuns, "do povo", cultuam um deus cuja especificidade é descaradamente corporal e genital, exigindo obrigações e, principalmente, sacrifícios concretos e, no caso de crianças com genitais "deformados" ou "ambíguos", sacrifícios humanos.
Da idéia de um ser original associado ao mundo divino, cujo foco era a unidade das almas masculina e feminina, desdobra-se a imagem de um deus com características dos dois sexos em um mesmo corpo. Do ideal espiritual aparece o prodígio da natureza, a maravilha que causa espanto, medo e fascinação. Mas por representar um corpo demasiadamente concreto e "genitalizado", distanciando-se do mundo perfeito, ideal e abstrato do platonismo - nessa época já popularizado e uma das mais importantes e fortes influências do recém-nascido cristianismo -, quando Ovídio escreve sobre Hermafrodito, este deus já apresenta muito mais as marcas de uma dita "decadência" humana do que uma lembrança da união espiritual. Ele evoca nem tanto uma humanidade perdida, mas uma junção trágica e infeliz para a vida humana, em especial para o macho da espécie, medida e padrão da cultura greco-romana.
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Já considerados funestos e maus presságios desde a Antiguidade, os ditos hermafroditas, andróginos ou quaisquer pessoas com "deformidades", ambigüidades ou alterações físicas passam a ser vistas, desde a baixa Idade Média, como essencialmente malignas, pois sua origem não pode ter outra causa que a de encontros, castigos ou pactos com Satã (Kappler, 1994). Agora passam a ser mortas não apenas para eliminar um Mal que elas inevitavelmente encarnam para os olhos de tal cultura, mas principalmente em nome de um Bem maior: evitar que o demônio e seus frutos desorganizem o frágil e constantemente ameaçado reino de Deus sobre a terra.
A questão dos limites e junções entre homem/mulher, masculino/feminino e mesmo Adão/Eva é tão grave para a tradição religiosa ocidental que, pelo menos desde o século XIII, segundo a crítica literária Marie Miguet, surgem interpretações rabínicas sobre o Adão Cadmon, um Adão primeiro que, novamente, evoca o mito do andrógino original ao unir em si mesmo as naturezas masculinas e femininas.
Seja para judeus ou cristãos, as diferenças entre o que é ser homem ou mulher e, principalmente, onde reconhecer tais limites - do ser espiritual anterior à queda, até a pessoa concreta com suas vestes cotidianas - uma passagem bíblica sempre os inquietou: antes da narração do nascimento de Eva aparece em Gênesis (1:26):
Disse também Deus: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, o qual presida aos peixes do mar, às aves do céu, às bestas, e a todos os répteis, que se movem sobre a terra, e domine em toda a terra. E criou Deus o homem à sua imagem: Fê-lo à imagem de Deus, e criou-os macho e fêmea (Bíblia Sagrada, 1964). [Em outra tradução desta parte final (Gênesis 1:27)]: Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou (Bíblia Sagrada, 1969).
Esse trecho, narrando a criação de um ser homem e mulher, inspirará as idéias tanto do Adão Cadmon judeu quanto de um Cristo andrógino, ao resgatar depois de ressuscitado a dignidade perdida do Adão cristão, juntando em si a "natureza" masculina e feminina.
Também a figura do diabo, a partir da baixa Idade Média, começa a ser apresentada, muitas vezes, como possuindo pênis e seios femininos em um só corpo (Kappler, 1994:375). Assim, o diabo forja-se como o "oposto" e a "inversão" de Deus, sendo inconstante, transitório, exageradamente ligado à variedade e mudança das formas, nunca definitivo, completo ou perfeito. Deus revela-se nas idéias claras e aparências precisas, enquanto o diabo associa-se aos conceitos dúbios e formas intermediárias (Minois, 2003).
Apesar de a grande maioria das representações de tal entidade mostrá-la principalmente como masculina, pois sua versão feminina ganha cada vez mais espaço na imagem da bruxa, quando satã é associado à união do masculino e feminino, ele está mais para os dois sexos no corpo, como os hermafroditas, do que os dois gêneros no espírito, sem foco algum nos genitais, como o andrógino que, por estar mais associado ao mundo ideal e mais afastado da matéria, não por acaso, foi relacionado ao Cristo.
Dessa maneira, forma-se gradualmente uma relação sutil na qual o Cristo e seus anjos são quase assexuados, pois o que importa são as sutilezas do espírito em manifestações de masculinidade ou feminilidade, enquanto o diabo e seus demônios tornam-se hipersexuados, focando na genitalidade corporal todo o desregramento cósmico da junção macho e fêmea.
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Animais e plantas com os dois sexos já eram famosos desde a Antiguidade e com a descoberta do Novo Mundo readquirem novo fôlego no hoje chamado "imaginário" ocidental. Dessa maneira, a partir do Renascimento e do movimento humanista, os hermafroditas acendem um novo debate sobre sua condição, deixando de ser perseguidos pela Igreja e queimados nas fogueiras inquisitoriais apenas por sua ambigüidade sexual e conseqüente indefinição quanto a um gênero masculino ou feminino.
Conforme mostrou Foucault (2001:84), e segundo o próprio especialista em monstros do período, o médico Ambroise Paré (2000:38), a partir de agora, os hermafroditas devem escolher um sexo social e viver de acordo com ele: roupas, atitudes, sentimentos, papéis sociais, hierarquias, tudo deve estar em conformidade com o sexo escolhido, sem espaços para a ambigüidade de gênero, sob pena de perseguição, prisão ou mesmo a pena de morte.2 2 Thomas Laqueur (2001:161), em seu livro Inventando o sexo, faz uma crítica a esta visão de Foucault, chamando-a de utópica e afirmando não ser tão simples a questão da "escolha" do gênero a que se ia pertencer, pois isso era mais imposto pelo grupo local do que pela "autonomia" da pessoa. Porém, o importante é ressaltar que, a partir de então, os hermafroditas não eram mais perseguidos apenas por terem essa característica.
As proibições relativas ao sexo eram, fundamentalmente, de natureza jurídica. A "natureza" em que às vezes se apoiavam era ainda uma espécie de direito. Durante muito tempo os hermafroditas foram considerados criminosos, ou filhos do crime, já que sua disposição anatômica, seu próprio ser, embaraçava a lei que distinguia os sexos e prescrevia sua conjunção (Foucault, 1988:39).
Montaigne, em seus Ensaios, de 1580, falando sobre a "força da imaginação", cita uma história contada por Plínio na qual um homem transforma-se em mulher no dia de suas núpcias, afirmando que vários autores antigos narraram metamorfoses desse tipo. O próprio Montaigne diz ter sido testemunha de um caso inverso:
de passagem por Vitry-le-François, foi-me dado ver um rapaz a quem o bispo de Soissons dera o nome de Germain na confirmação, e que todos os habitantes do lugar haviam tratado por Maria, como mulher, até a idade de vinte e dois anos. Quando o conheci já era velho, muito barbudo e não se casara. Explicou-me que, em conseqüência do esforço feito para saltar, ocorrera o aparecimento de seus órgãos viris. (...) Não é tão extraordinário assim o caso e, essa espécie de acidente se verifica não raro. Pode-se observar que a ação da imaginação em tais casos consiste em uma contínua obsessão e excitação que levam a mudança definitiva de sexo como solução mais cômoda e eficiente (Montaigne, 1972:56).
O curioso do primeiro exemplo de Montaigne, o de um homem que vira mulher, é esse tipo de metamorfose ser uma exceção - mas não uma impossibilidade - para as idéias da época. Ao menos no campo literário-filosófico, desde Aristóteles acreditava-se que mulheres poderiam se transformar em homens, pois a natureza tende sempre a evoluir para as formas mais perfeitas. Sua lógica tem base segundo o mesmo argumento evolutivo das formas. No caso citado por Montaigne, da mulher/feminino para o homem/masculino, o contrário raramente se apresentaria, sendo um regresso da natureza, um tipo de involução fisiológica que atentaria contra a própria ordem do cosmos.
Quem explica essa concepção é uma das grandes autoridades em monstros do período, o cirurgião francês Ambroise Paré, em seu livro Des monstres et prodiges de 1575, visando à sistematização do assunto e a uma tentativa de "naturalização" destes seres, no qual toda uma parte é dedicada aos hermafroditas e às mulheres que viram homens. Esse texto é extremamente importante porque influenciará gerações de médicos e estudiosos sobre o assunto.
Narrando alguns dos exemplos que depois serão constantemente repetidos sobre mulheres que se transformam em homens, este cirurgião esclarece que
a razão porque as mulheres podem converter-se em homens é que têm oculto dentro do corpo o que os homens têm a descoberto, salvo que não têm bastante calor nem capacidade para sair para fora o que, devido a frieza de seu temperamento, se mantém como preso em seu interior (Paré, 2000:42).
Buscando responder às questões de sua época, Paré enumera as causas do aparecimento destes seres, que vão da glória de Deus (1ª causa) ao diabo (13ª), passando por toda uma série de motivos naturais e sociais. Ainda assim, a influência do mundo sobrenatural e a periculosidade do hermafrodita são fundamentais para essas interpretações. No prefácio, o autor afirma:
monstros são coisas que aparecem fora do curso da Natureza (e que, na maioria dos casos, constituem sinais de alguma desgraça que vai ocorrer), como uma criatura que nasce com um só braço (...) prodígios são coisas que acontecem totalmente contra a Natureza, como uma mulher que dá a luz a uma serpente ou a um cachorro (...) os mutilados são os cegos, tortos, zarolhos, coxos ou que têm seis dedos na mão ou nos pés, ou menos de cinco, ou juntas unidas, ou braços muito curtos, ou o nariz muito encravado como têm os achatados, ou os lábios grossos e salientes, ou fechamento da parte genital das donzelas por causa do hímem, ou carnes suplementares, ou que sejam hermafroditas, ou que tenham manchas, verrugas, tumores, ou outra coisa contrária à Natureza (Paré, 2000:21).
Aqui uma nova concepção se inicia: o hermafrodita não é classificado nem como monstro, nem prodígio da natureza, mas como mutilado. A interpretação sobre essas pessoas é naturalizada ou biologizada, apesar de as causas mágicas não estarem totalmente descartadas para o autor.
Paré dedica um capítulo inteiro de seu livro ao tema aqui abordado. No capítulo IV - "dos hermafroditas ou andróginos, quer dizer, que têm dois sexos em um mesmo corpo" -, o autor os divide em quatro tipos: primeiro, os hermafroditas machos, que possuem o sexo de homem perfeito, podem gerar filhos e, no períneo, entre o escroto e o ânus, têm um orifício em forma de vulva, mas que não penetra no corpo e não expele nem urina nem sêmen. Segundo, a mulher hermafrodita que, apesar de ter o aparelho genital perfeito e funcionando conforme o esperado possui um pênis, mas que não fica ereto. Terceiro, os hermafroditas que não são nem de um nem de outro tipo, não podem procriar e seus genitais estão completamente misturados, possuindo os dois sexos de maneira confusa e desordenada, podendo usá-los apenas para expelir a urina. Por último, os hermafroditas machos e fêmeas, que possuem os dois sexos em perfeito estado e podem gerar filhos. São estes que, segundo o autor, devem escolher qual sexo querem assumir socialmente e assim podem viver em sociedade, sob pena de punição se agir como o sexo abandonado.
Percebe-se nesse trabalho o nascimento de uma linha de interpretação sobre as "anomalias" humanas que busca a origem desses fenômenos não somente no universo mágico-espiritual, mas também no corpo. A organização fisiológica passa a ser vista gradualmente, não mais como conseqüência de um caos cósmico-social, mas como causa de uma desordem compreendida, cada vez mais como um problema pessoal. A figura do hermafrodita vai gradativamente perdendo sua expressão de um complexo microcósmico que espelha uma possível confusão macrocósmica entre os mundos masculinos e femininos e passa a centralizar o debate sobre tais limites em sua genitalidade e caracteres sexuais orgânicos.
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Assim, Paré trabalha com o modelo de um sexo com dois gêneros (e suas possíveis misturas) como analisado por Thomas Laqueur em Inventando o sexo. Apesar dessa tradicional e milenar visão já ser questionada desde o Renascimento, é apenas no século XVIII, decorrente de toda mudança cultural, política e filosófica, que esse conceito é gradualmente alterado, não sem disputas, para o modelo de dois sexos com dois gêneros. O importante a ressaltar é que, segundo Laqueur, esse novo modelo surgiu também como reação aos novos horizontes que as questões de gênero estavam tomando na cultura européia setecentista.
Ser homem ou mulher era manter uma posição social, um lugar na sociedade, assumir um papel cultural, não ser organicamente um ou outro de dois sexos incomensuráveis. Em outras palavras, o sexo antes do século XVII era ainda uma categoria sociológica e não ontológica (Laqueur, 2001:19).
Por isso que, muito além dos genitais, uma pessoa que mostrasse uma indevida mistura entre masculino e feminino, fosse em vestimentas, atitudes ou mesmo idéias, poderia ser considerada um tipo de andrógino ou hermafrodita.
Até este período e o novo modelo médico de dois corpos e dois gêneros distintos e opostos, mas ao mesmo tempo complementares, a diferença entre homens e mulheres era uma questão de hierarquia fisiológica, social e espiritual, onde uma característica refletia e confirmava a outra. Se a pessoa nascesse com vagina, já se sabia que seu corpo não tivera forças e calor suficientes para os genitais voltarem-se para fora (e assim surgir o pênis), logo, deveria ficar em posição subordinada na hierarquia social, o que por sua vez confirmava a inferioridade e precariedade espirituais, que só poderiam vir de um corpo também mais "frágil" por ser "incompleto".
A partir do racionalismo de Descartes, a questão da supremacia da razão e a conseqüente igualdade de capacidade racional entre homens e mulheres fornece uma autonomia conceitual às mulheres antes pouco experimentada. Com o Iluminismo e a importância que as mulheres adquirem na cultura de corte, a diferenciação hierárquica de poderes entre os gêneros passa a focar não mais na graduação da alma, decorrente e intrinsecamente unida a um modelo único de corpo sexuado. Agora, a distinção passa a ser encontrada na diferenciação da psique masculina e feminina, originária da separação conceitual dos corpos em dois sexos.
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Em meio a um conjunto de transformações que engloba o humanismo renascentista, estão o emergente racionalismo e sua moderna separação conceitual entre matéria física e espírito e a conseqüente mecanização dos conceitos sobre o corpo que ocorrem nos séculos XVII e XVIII; as profundas mudanças políticas e sociais que acontecem na Europa, como a gradual ascensão da burguesia ao poder, a consolidação do Estado moderno e sua burocracia; a crescente luta pela legitimidade filosófico-social entre ciência e religião (que, nessa época, está no auge da caça às bruxas); enfim, tudo aquilo que Foucault chamou de mudança da epistémê arcaica para a epistémê moderna, desenvolve-se também uma nova maneira de compreender as diferenças entre os sexos. Conforme o filósofo,
a profunda interdependência da linguagem e do mundo acha-se desfeita. O primado da escrita está suspenso. Desaparece então esta camada uniforme e onde se entrecruzavam indefinidamente o visto e o lido, o visível e o enunciável. As coisas e as palavras vão separar-se. O olho será destinado a ver e a somente ver; o ouvido somente a ouvir. O discurso terá realmente por tarefa dizer o que é, mas não será mais o que ele diz (Foucault, 1987:59).
Nessa nova maneira de pensar, classificar e representar o universo, homens e mulheres não mais referem-se a uma graduação de um mesmo ser, mas a distintas e opostas categorias ontológicas. A figura que até o século XVIII literalmente encarnava o andros (homem) e o gynos (mulher) num mesmo corpo, o andrógino - ou hermafrodita - pertencente à lógica da epistémê antiga, lentamente perde lugar nas novas classificações modernas.
Dessa forma, a diferenciação entre homens e mulheres e sua mistura vista como funesta, exemplificada na pessoa do hermafrodita, mostra-se antes de tudo uma questão de poder, uma divisão entre uma parcela de pessoas que detém a maior parte do controle e coerção social e outra que não o possui, estando assim mais vulnerável aos mandos e desmandos do primeiro grupo. Se até o século XVIII essa diferenciação tinha por base conceitos filosóficos e espirituais, que se manifestavam como um bloco único em roupas, fisiologia, comportamentos e privilégios (ou a falta destes), a nova ordem política e epistemológica vai buscar especificamente no corpo anatômico esta suposta diferença para a manutenção da distinção social. O antes extraordinário "animal fantástico", o hermafrodita, cede espaço para a comum pessoa "sexuada" e, principalmente, "sexualizada".
Assim, o antigo hermafrodita conceitual se distancia da ciência e vai encontrar abrigo apenas nas já tradicionais áreas desse debate: a religião e a arte. No constante diálogo entre os campos artístico, religioso e científico na modernidade, quem vai buscar o monopólio do discurso "legítimo" sobre pessoas com ambigüidades de sexo/gênero serão cada vez mais os cirurgiões, endocrinologistas, psiquiatras e outros médicos especialistas.
Agora, a ambigüidade sexual passa a ser muito mais uma questão biológica, envolvendo principalmente a fisiologia e a psique e menos uma tensão espiritual. Dentro do novo modelo, que passa a vigorar no século XVIII, predominantemente, mas não completamente, de dois sexos, cada um com um gênero distinto, o hermafroditismo torna-se não mais o incômodo de um ser intermediário, mas o impasse de um ser impossível. Não há mais lugar na ciência para alguém com os dois sexos/gêneros, apenas pessoas com um sexo e seu pressuposto gênero correspondente.
A partir de então, através do discurso médico-científico, homens e mulheres se distinguem menos pelo grau de espiritualidade e mais por seus "sexos" agora opostos, cujo reconhecimento vai da aparência dos genitais aos mais sutis elementos químicos encontrados no sangue; de uma pressuposta "natureza" humana inata, ao recém inventado inconsciente. O que era a alma, única e hierarquizada por seu grau de perfeição, dividiu-se em dois tipos de psique absolutamente estranhas uma à outra, a masculina e a feminina.
Ainda assim, a figura que central da discussão entre os novos limites e definições sobre o homem e a mulher é justamente a do hermafrodita fisiológico, segundo o livro de Alice Domurat Dreger, Hermaphrodites and the medical invention of sex. É no corpo das pessoas com algum tipo de ambigüidade sexual ou que deixam margens para dúvida que a medicina vai focar sua atenção e criar uma nova maneira de interpretar os sexos, de início, através dos cirurgiões, desde o fim do século XVIII e depois com os endocrinologistas e psiquiatras, no fim do XIX.
Em diálogo com os nascentes movimentos pelos direitos das mulheres e dos chamados homossexuais, seja ajudando a forjar ou limitando as potencialidades políticas, aparece o hermafrodita criado pela ciência ou, mais precisamente, o pseudo-hermafrodita, encarnando a mudança do modelo de um sexo com dois gêneros hierarquizados para o modelo de dois sexos com dois gêneros distintos.
Dessa forma, reforça-se a tentativa de se fixar o conceito de que ou se é homem ou se é mulher. Os hermafroditas, pessoas que um século antes eram consideradas possuidoras de dois sexos, não passam agora de homens com caracteres femininos ou vice-versa. São "apenas" pseudo-hermafroditas masculinos ou femininos, falsos andróginos, seres equivocados e muitas vezes ignorantes de sua "real" condição sexual.
Conforme mostrou Foucault, é no século XIX, com o nascimento da ciência sexual, que aparecem conceitualmente o pseudo-hermafrodita, os perversos sexuais e as histéricas, entre outras tantas identidades clínicas criadas no período. É importante realçar as duas maiores influências de então para o surgimento dessas novas figuras e de todas as futuras identidades do século XX baseadas na sexualidade: as médico-cirúrgicas e as ciências da psique - psiquiatria, psicologia e psicanálise. Os primeiros vão focar a busca pela distinção do verdadeiro sexo entre homens e mulheres no mais profundo da carne humana, enquanto os segundos vão procurar no mais íntimo da psique.
Aqui se intensifica a separação corpo/mente e enquanto, de um lado, surge o novo pseudo-hermafrodita, tendo sua origem e distinção no fisiologismo, de outro surge o curioso conceito de "hermafrodita psíquico" com uma série de vertentes e variantes. Segundo Foucault (1988: 44),
a homossexualidade apareceu como uma das figuras da sexualidade quando foi transferida, da prática da sodomia, para uma espécie de androginia interior, um hermafroditismo da alma.
Assim, para muitos médicos e cientistas do século XIX, as "inversões sexuais psíquicas" eram apenas uma forma extrema de hermafroditismo biológico.
Conforme Laqueur (2001:191), "o trabalho cultural que no modelo de uma só carne fora feito pelo gênero, passava agora para o sexo". Por isso o antigo hermafrodita "completo", ou seja, a idéia de uma pessoa com os dois sexos - que, relembrando, se manifestavam no que hoje chamamos de distinção de gêneros, através de signos sociais, tais como roupas e comportamentos - não é mais concebível no XIX.
Entre caracteres sexuais primários e secundários - secreções hormonais, "natureza humana", instinto, libido e vários outros elementos criados e evocados para demarcar as diferenças entre homens e mulheres - surgem os conceitos de "inversão" sexual e sua conseqüente interiorização, figurada pelos "hermafroditas psíquicos" junto a uma série de termos inventados no período como uranistas, terceiro sexo, entre vários outros. O que até o século XVIII se apresentava como um bloco único entre aparência, comportamento, posição social, roupas e mesmo espiritualidade, com o auge da separação científica entre corpo e mente, assim como a idéia de hermafroditismo, também vai se fragmentar e, principalmente, interiorizar.
Os antigos monstros, graças à naturalização e patologização do discurso sobre eles, passam da matéria física para a psique. Nascem os teratas e seus irmãos com a antiga "monstruosidade" interiorizada: os anormais. Gradativamente saem do auge das discussões acadêmicas os "aleijões", "deformados" e "degenerados" como o Homem-Elefante, a mulher barbada ou a criança-diabo e ganham as atenções e prestígios científicos os psicopatas, maníacos, histéricas, perversos e pervertidos. Assim, o antigo hermafrodita é interiorizado, enquanto surge o pseudo-hermafrodita da teratologia.
O "desvio", que mistura fêmeas e machos, masculinos e femininos, mulheres e homens, passa a ser encontrado não apenas no corpo, mas também na mente. Os traços de indefinição entre homens e mulheres migram para a psique como o último grau de uma sutil mistura entre os sexos. Como analisou Dreger (2003:153), à medida que o antigo "ser com dois sexos no corpo" vai sendo desacreditado pela medicina, surge no mesmo período e ganha cada vez mais espaço o "homossexual" e suas infinitas variações, representando na a época os "seres com dois sexos (ou gêneros) na mente".
É em cima dessa idéia de um hermafroditismo da psique (com suas inúmeras variações) que Krafft-Ebing, no final do século XIX, se baseará para analisar o caso do médico húngaro que, mesmo não possuindo nenhuma forma de alteridade sexual biológica, compreende a si mesmo como uma mulher; ou Magnus Hirschfeld, em 1910, criará a moderna noção de "travesti" associada ao universo da sexualidade.
Mesmo com a gradual separação conceitual entre sexo, gênero e orientação sexual que vai ocorrer durante o século XX, os ecos da noção de um hermafrodita interiorizado - que demonstra sua presença nas ambigüidades dos papéis de gênero - estarão presentes inclusive nas análises de Harry Benjamin em 1954, ajudando a criar e consolidar o conceito de "transexual", sobre o qual afirma: "aqui, o hermafroditismo psíquico parece que vem a ser uma descrição útil, embora cientificamente incorreta" (Benjamin, 1966:220. Itálico do autor).
Assim, não apenas as pessoas chamadas atualmente de "intersexos" ou com "distúrbios da diferenciação do sexo (DDS)" possuem sua origem conceitual no pseudo-hermafrodita da biomedicina do século XIX, como as ainda hoje existentes categorias clínicas (ou mesmo as identidades políticas) de "travestis", "transexuais" e uma série de novas classificações para pessoas que transitam entre os gêneros sem nenhum tipo de "anomalia" fisiológica descendem, mesmo que indiretamente, da noção de "hermafrodita psíquico".
Como vimos, o hermafroditismo psíquico era visto como o outro extremo do hermafroditismo físico. Neste caso, não eram as características fisiológicas de um sexo espúrio que interferiam no "verdadeiro" sexo da pessoa, mas os caracteres "mentais" atribuídos ao "outro" sexo que exerciam uma influência tida como nefasta, pois vista como "invertida". Dessa forma, o que hoje chamamos de "travestilidade" e "transexualidade" só podem ser compreendidas como "perversão", "parafilia" ou "transtorno de identidade de gênero", quando se parte do princípio que existe um "sexo do corpo" que conflita com o que é "naturalmente" esperado do "sexo da mente" (ou gênero), evocando a noção de uma desordem maligna.
O hermafrodita de epistémê arcaica, já morto, ajudou a adubar o solo sobre o qual plantamos e colhemos muitas das idéias modernas sobre sexo e gênero. Conforme Foucault (1988:38), "nossa época foi iniciadora de heterogeneidades sexuais".
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Dessa forma, através do processo de medicalização, o antigo hermafrodita com seus dois sexos anatômicos, sociais ou míticos, é desacreditado via teratologia, tornando-se assim um "falso"-hermafrodita, ao mesmo tempo em que a noção de um hermafroditismo "completo" ou "verdadeiro" é interiorizada. Se na antiguidade grega, dentro do mito dos dois sexos unidos em um mesmo ser, este é punido e separado em dois, na modernidade européia a mesma idéia dos sexos unidos num só corpo é desacreditada pela ciência, dividindo-o novamente em pseudo-hermafrodita masculino ou feminino.
O hermafrodita que vai surgir então, mais uma vez cindido, porque agora um pseudo-hermafrodita, não é mais o fruto de um combate cósmico, de uma união mítica apaixonada e ao mesmo tempo indesejada ou de infrações a regras espirituais, mas sim da medicina oitocentista e das recentes ciências da psique, tornando-se uma categoria clínica específica e distinta - não mais uma maravilha da natureza, mas uma deformidade. Entre o hermafrodita da Antiguidade e o do século XIX não houve "evolução", mas rupturas, mudanças e o surgimento de uma nova entidade conceitual. Como afirmou mais à frente um cirurgião especializado no tema:
o pseudo-hermafrodita é unicamente objeto de curiosidade e burla, assim como o psicopata sexual o é de desprezo e desconsideração. O primeiro é um ser monstruoso, um fenômeno com certa comicidade; o segundo é um detestável vicioso (García, 1925:555).
Talvez para tristeza e desespero da ninfa Salmákis, o dia que ela tão ardentemente implorou aos deuses para que nunca chegasse, chegou. Este dia foi o século XIX.
Recebido para publicação em outubro de 2009, aceito em novembro de 2009.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Fev 2010 -
Data do Fascículo
Dez 2009
Histórico
-
Aceito
Nov 2009 -
Recebido
Out 2009