Open-access Enfrentando a diversidade de ambientes carcerários na pesquisa em prisões: lições do meu trabalho de campo com mulheres em três prisões na Espanha

Resumo

Reflexões acerca de questões metodológicas e éticas têm progressivamente surgido na pesquisa em prisões. O propósito deste artigo é contribuir para esse debate a partir de uma abordagem feminista, considerando as particularidades do contexto prisional espanhol. O artigo irá explorar um conjunto de questões associadas à obtenção de acesso a instituições penitenciárias, a relação entre pesquisador e participantes, bem como outros aspectos do trabalho de campo, para refletir sobre suas implicações para o processo de pesquisa. Ao compartilhar experiências de pesquisa e reconhecer o papel das emoções na pesquisa social, podemos aprender uns com os outros e fortalecer os conjuntos de ferramentas disponíveis, contribuindo para a construção da pesquisa social como uma atividade genuinamente humana engajada com a justiça social.

Pesquisa em prisões; Criminologia feminina; Reflexividade; Espanha; Prisões femininas

Abstract

Reflections on methodological and ethical issues have been emerging progressively in prison research. The purpose of this paper is to contribute to this debate from a feminist approach considering the particularities of the Spanish prison context. The article will explore a set of issues associated to gaining entrance to a penitentiary institution, the relationship between the researcher and participants as well as other aspects of fieldwork to reflect on their implications for the process of inquiry. By sharing research experiences and recognizing the role of emotions in social research, we can learn from each other and strengthen the toolkits available, contributing to the construction of social research as a genuinely humane activity engaged with social justice.

Prison Research; Feminist Criminology; Reflexivity; Spain; Women’s Prisons

Introdução

Reflexões acerca de questões metodológicas e éticas nas ciências sociais, e especificamente na criminologia e pesquisa em prisões, têm progressivamente surgido em décadas recentes ( Bosworth et al., 2005 ; Calderón, 2018 ; Crewe, 2014; Downing, Polzer e Levan, 2013 ; Duarte e Gomes, 2017 ; Gelsthorpe, 1990 ; Jewkes, 2011 , 2014 ; Liebling, 2001 ; Lumsden e Winter, 2014 ; McCorkel e Myers, 2003 ; Phillips e Earle, 2010 ; Piacentini, 2013 ; Schlosser, 2008 ). Contudo, pouco foi escrito sobre esses assuntos na literatura acadêmica, algo que se deve em parte à tradicional predominância da metodologia quantitativa, que é frequentemente considerada a mais válida e rigorosa, e também a uma abordagem que sacraliza um conceito particular de objetividade e distância em relação ao objeto como aspectos-chave da pesquisa científica ( Flavin, 2001 ; Gelsthorpe, 1990 ; Jewkes, 2011 ; Renzetti, 2013 ). Questionando esses pressupostos a partir de uma perspectiva feminista, Donna Haraway define a objetividade feminista (1991) como saberes situados (itálico no original). Nesse sentido, ela ressalta que essa objetividade diz respeito à “localização limitada e saber situado, não à transcendência e separação entre sujeito e objeto” (190:1991). Atenção especial é dada à produção de conhecimento, entendida como uma “prática narrativa no sentido de práticas historicamente específicas de interpretação e testemunho” ( Haraway, 1989: 4) e ao papel que o “objeto” desempenha na construção social da ciência ( Haraway 1989 ), enfatizando a frequência de situações em que sujeitos têm sua agência negada e suas vozes apropriadas ( Haraway, 1991 ).

No referencial da pesquisa etnográfica sobre prisão e reclusão, alguns autores passaram a considerar problemas que surgem a partir do inquérito científico ( Gelsthorpe, 1990 ; Jewkes, 2011 ; McCorkel; Myers, 2003 ; Piacentini, 2013 ). Essas questões envolvem decisões metodológicas e éticas, em conjunção com reflexões sobre a posicionalidade de pesquisadores e a forma como poder e controle conformam a pesquisa em prisões. O conceito de reflexividade

se refere à identificação dos pressupostos subjacentes ao esforço de pesquisa e com frequência inclui a reação do investigador a fazer a pesquisa (…). A reflexão sobre o processo de pesquisa chama a atenção para possíveis fontes de viés introduzidos, ao mesmo tempo em que fornece orientação a pesquisadores futuros ( Flavin, 2001: 278).

A prática da reflexividade demonstra um compromisso com boas práticas de pesquisa que visam à visibilidade de mulheres e outros grupos historicamente marginalizados e ao aumento do envolvimento dos sujeitos no processo de pesquisa ( Flavin, 2001 ). A reflexividade também ajuda a fortalecer o processo de pesquisa ao promover “honestidade e ciência das limitações e vieses inerentes à pesquisa” ( Flavin 2001 ).

Nos países do sul europeu, o desenvolvimento e visibilidade dessas reflexões é ainda muito limitado. Essa lacuna é parcialmente explicada pelo fato de que a criminologia e estudos prisionais são menos institucionalizados e consolidados do que outros campos, mas também devido aos obstáculos a tornar internacionalmente visível a contribuição de pesquisadores não anglo-saxões ( Faraldo, 2018 ; Larrauri, 2008 ; Medina, 2011 ). Contudo, nos últimos anos, pesquisadores do sul europeu têm contribuído reflexões sobre o papel desempenhado por pesquisadores no campo, bem como os dilemas metodológicos e éticos associados ( Duarte; Gomes, 2017 ). Na mesma linha, Cunha (2014) ressalta a importância de se estar ciente da historicidade e contexto cultural do inquérito etnográfico de forma a ampliar o escopo da reflexividade ( Cunha, 2014: 226).

Em meio a esse contexto, o objetivo deste artigo é contribuir para esse debate internacional a partir de uma abordagem feminista, considerando as particularidades do contexto prisional espanhol e analisando seu impacto em minha pesquisa. Especificamente, irei refletir sobre uma série de questões relacionadas à obtenção de acesso a instituições penitenciárias, a relação entre a pesquisadora e os participantes, bem como outros aspectos do trabalho de campo, e explorar suas implicações para o processo de pesquisa, a natureza dos dados coletados e minha posicionalidade como pesquisadora.

Para tanto, irei primeiro resumir as principais contribuições sobre reflexividade na criminologia e pesquisa em prisões e situar esse contexto no referencial de abordagens feministas das ciências sociais, especialmente a criminologia. Em seguida, irei descrever o contexto e as principais características da minha pesquisa em três prisões femininas na Espanha como uma introdução à terceira seção, na qual irei analisar diferentes momentos e aspectos do meu trabalho de campo que influenciaram o desenvolvimento da pesquisa, minha posicionalidade no campo e as condições e especificidades dos dados coletados. Por fim, apresento algumas considerações como conclusão.

Reflexividade e criminologia feminista

Um dos subcampos da criminologia nos quais a reflexividade surgiu como questão central é a criminologia feminista. A partir dos anos 1970, um grupo de pesquisadores começou a apontar vieses de gênero em teorias criminológicas (particularmente aquelas relacionadas a mulheres infratoras) e a ausência de mulheres e meninas no estudo do crime e do sistema de justiça penal. Em 1990, Gelsthorpe resumiu os principais problemas e armadilhas das perspectivas feministas na criminologia, que ainda estão presentes hoje em dia. O primeiro é a escolha de tópico, desde abordagens mais focadas em tornar mulheres e meninas visíveis nas contribuições teóricas e de pesquisa até desenvolvimentos mais recentes que chamam atenção para críticas feministas e queer da identidade que afetam a compreensão da punição ( Bosworth; Kaufman, 2012 ). O processo de pesquisa surge como o segundo tópico de interesse, ressaltando o debate entre pesquisa quantitativa ou qualitativa (ver também Renzetti, 2013 ), bem como o modo específico de conduzir o trabalho de campo e usar técnicas de pesquisa. A terceira questão é o papel específico que poder e controle desempenham e a importância de se identificar formas de se reduzir a distância entre pesquisador e pesquisado. Finalmente, a reflexividade, como previamente discutido, nos leva a considerar como pesquisadoras feministas se situam no processo de pesquisa e envolve uma reflexão sobre as decisões e ações tomadas durante a pesquisa. De acordo com McCorkel e Myers (2003) ,

teóricos da vertente feminista argumentam que a posicionalidade do pesquisador afeta todos os aspectos do processo de pesquisa – desde a articulação de uma pergunta de pesquisa até a análise e apresentação dos dados (McCorkel; Myers, 2004:199).

Em discussões anteriores, a necessidade de se considerar o papel de sentimentos e emoções no processo científico é refletida explícita ou implicitamente. Como produtos sociais ( Lutz; Abu-Lugod, 1990 ), sentimentos e emoções têm efeitos sociais fundamentais e são modos de poder ( Haraway, 1989 ). Essa abordagem das emoções emprega o conceito foucaultiano de discurso como ponto de partida. Assim, a produção de conhecimento por meio de discursos científicos na pesquisa em prisões reflete práticas sociais situadas que estabelecem, afirmam, desafiam ou reforçam diferenças de poder ou status ( Lutz; Abu-Lugod, 1990 ); nossas reflexões sobre o processo científico e nossa posicionalidade encontram-se entrelaçados pelos mesmos elementos. Adicionalmente, na pesquisa em prisões, sentimentos e emoções são socialmente produzidos em um ambiente em que dinâmicas de controle e uma forte hierarquia moldam todas as relações dentro da instituição. Esse processo é também mediado por outras variáveis que constituem uma matriz de opressão ( Collins, 2000 ), como gênero, classe, raça, etnia, nacionalidade e outras ( Bosworth, 1999 ; Burgess, 2006 ; Chesney-Lind; Morash, 2013 ; Flavin, 2001 ; McCorkel; Myers, 2003 ; Gelsthorpe, 1990 , 2002 ; Heidensohn; Gelsthorpe 2007 ; Phillips; Earle, 2010 ). Como resultado, as diferentes formas por meio das quais o Estado e gênero (e outras variáveis) são mutuamente constituídos surgem como aspectos-chave a serem considerados em nossa reflexão sobre pesquisa em prisões e produção de conhecimento ( McClintock, 1995 ; Corazza, 2017 ; Vianna; Lowenkron, 2017 ). Portanto, na etnografia de prisões, pesquisadores devem considerar sua própria posicionalidade e escrutinar como essas variáveis influenciam sua relação com os participantes e o processo de pesquisa como um todo ( McCorkel; Myers, 2003 ; Phillips; Earle, 2010 ; Piacentini, 2013 ). De acordo com McCorkel e Myers (2003) , a posicionalidade fornece um conjunto de narrativas que pesquisadores empregam para compreender o mundo, e a pesquisa científica é quase exclusivamente feita por membros de grupos dominantes sob formas que refletem e amplificam seus interesses situados. Portanto, as narrativas mestras de pesquisadores tendem a legitimar e naturalizar a ordem das coisas e, assim, afetam de forma sutil e indireta nossa abordagem do campo e todas as partes do processo de pesquisa ( McCorkel; Myers, 2003 ), incluindo o relato interpretativo ( Piacentini, 2013 ). Trazendo nuance a essas considerações, pesquisadores pós-coloniais e feministas alertam quanto ao perigo de se apropriar de “conhecimentos subjugados” (Haraway, 1990), enfatizam a condição de “sujeitos subalternos” (Spivak, 1998), e as dificuldades que têm para falar, porque não são considerados parte do discurso. Esses pesquisadores também expressam suas preocupações quanto a tentativas de “salvar” outros ( Abu-Lughod, 2002 ), enfatizando a necessidade de se considerar nossa responsabilidade nesse processo. Portanto, questões de responsabilidade, accountability e ética da produção de conhecimento devem ocupar uma posição central dentro da pesquisa em prisões ( Alexander; Mohanti, 2010 ).

Há poucos trabalhos acadêmicos que oferecem reflexões e recomendações para lidar com essas questões. Considerando seu estudo em uma instituição correcional masculina de segurança média que envolveu entrevistas com presos, Schlosser (2008) discute aspectos-chave, tais como o acesso à prisão, negociações com comitês de ética em pesquisa, a construção de conceitos e instrumentos de pesquisa, identidade de presos e influência institucional. Jekwes (2011) apresenta algumas formas de minimizar os graus variados de poder e acesso a recursos, tais como recusar a fornecer chaves, usar gíria de prisão e tornar claro aos participantes no começo de cada entrevista que se é um pesquisador universitário sem nenhuma agenda particular, política ou de outra natureza. Outras contribuições interessantes analisam o papel desempenhado pelo espaço na pesquisa em prisões ( Mehta, 2014 ) ou enfocam os participantes de pesquisa, suas aspirações e o impacto emocional de ser parte de um estudo em prisão (Bosworth et alii , 2015).

Contextualização: a pesquisa em prisões na Espanha

Há cerca de 70 prisões no sistema prisional espanhol, apenas quatro das quais são exclusivamente femininas. Dessa forma, a maioria das presas cumprem suas sentenças em espaços carcerários nos quais a vasta maioria de presos são homens. Normalmente, essas instituições compartilham o mesmo design arquitetônico (conhecido como “centro-tipo”, ou macro-prisão), que consiste em 12 a 14 departamentos ou seções, com uma ou duas reservadas para mulheres. Realizei o trabalho de campo de minha pesquisa de doutorado com mulheres em três prisões: duas macro-prisões com um ou dois departamentos femininos e uma prisão exclusivamente feminina. Enquanto as duas macro-prisões compartilham uma arquitetura quase idêntica, a terceira tinha uma organização completamente diferente. Na verdade, o prédio havia originalmente sido uma prisão para infratores jovens e mais tarde foi convertido em uma prisão feminina. A tradição de encarcerar mulheres infratoras em prédios previamente usados para outros fins, tais como conventos ou reformatórios, apresenta mensagens interessantes sobre a construção de sujeitos marcados por gênero em instituições de Estado. Ao lado da terceira instituição feminina, há uma macro-prisão para homens, com a qual compartilha a entrada principal. Em contraposição a uma macro-prisão, essa prisão feminina é divida em várias pequenas casas (departamentos), sem muros altos e com áreas verdes em seu interior. A instituição têm uma sensação maior de abertura e liberdade de movimento e a atmosfera (devido ao espaço e também à organização de atividades diárias) é mais relaxada do que nas outras duas prisões incluídas na pesquisa.

A escolha de casos para o estudo foi baseada em vários critérios, incluindo os objetivos da pesquisa, as particularidades do tema de estudo, e evidências empíricas coletadas em estudos sobre encarceramento feminino. A primeira penitenciária escolhida foi a prisão Júpiter 1 e a escolha foi baseada na importância dessa unidade para compreender o programa que era objeto de meu estudo: Módulos de Respeito (MR).2 A filosofia por trás da intervenção foi originalmente desenvolvida na prisão Júpiter , e é lá que pode ser encontrada a imagem mais “pura” de como o programa funciona. Nessa prisão, há apenas um departamento feminino e outro no qual homens e mulheres convivem.

A segunda prisão selecionada é a prisão feminina Athenea . A despeito do número limitado de prisões exclusivamente femininas, muitas pesquisadoras feministas que estudam encarceramento feminino afirmam que mulheres deveriam cumprir suas penas em prisões desse tipo. Esse é o motivo pelo qual essa unidade foi escolhida. O último local é a terceira unidade penitenciária, a prisão Rei , que possui apenas uma seção feminina, com todas as outras seções designadas como masculinas. Essa é uma característica comum do sistema prisional espanhol, no qual mulheres cumprem suas penas em unidades majoritariamente ocupadas por homens.

Enquanto a prisão Júpiter foi selecionada porque foi onde originou o programa de Módulos de Respeito, a escolha dos outros dois casos permitia alguma flexibilidade. Nesse sentido, considerando minha intenção de visitar as prisões regularmente, em conjunto com meu orçamento limitado e meus compromissos de trabalho, era necessário identificar prisões situadas perto de minha casa. Concluí meu doutorado sem apoio financeiro, o que significa que, durante os anos em que estava no programa de pós-graduação, realizei minha pesquisa e algumas atividades acadêmicas extracurriculares enquanto trabalhava em tempo integral fora da universidade, numa posição não relacionada aos meus interesses de pesquisa. Por esse motivo, escolhi duas prisões situadas a aproximadamente 50 km de minha residência, o que me permitiu visitá-las uma vez por semana após meu horário de trabalho durante 9 a 10 meses. A outra prisão estava situada a 350 km, então passei dois períodos intensos, de cerca de uma semana cada, nessa unidade.

Em relação às regulações quanto à entrada em prisões espanholas, a Secretaria Geral de Instituições Penitenciárias estabelece orientações rígidas (11/2005-SP) que regulam a pesquisa dentro de prisões. Para obter acesso a uma prisão, o pesquisador deve enviar um documento à Secretaria apresentando os objetivos da pesquisa e as principais atividades planejadas. Esse documento é avaliado pelas autoridades prisionais e uma resposta formal é enviada ao pesquisador. Minha autorização incluía informações sobre como contatar cada a administração de cada prisão para que eu pudesse organizar as primeiras visitas. Minha autorização foi enviada a cada prisão, com uma cópia deixada na entrada, que os guardas conferiam cada vez que eu entrava em cada prisão. Para a primeira visita, minha estratégia consistiu em ligar diretamente para o diretor de cada prisão e combinar uma reunião com ele e/ou com um dos seus subordinados responsáveis por diferentes departamentos. Nessa reunião, realizei uma primeira entrevista, apresentei os objetivos da pesquisa e organizei como proceder com minhas visitas regulares. No caso da prisão Júpiter , a primeira visita também incluiu o período formal inicial do trabalho de campo, devido à sua distância de minha residência. Assim, nesse caso particular, os primeiros contatos por telefone com um dos vice-diretores, necessários para organizar a visita, foram mais frequentes e intensos.

Com relação ao plano de trabalho de campo, a metodologia consistiu principalmente em entrevistas semiestruturadas com presas, porém, considerando o objeto do estudo, também realizei entrevistas semiestruturadas com funcionários da prisão para captar sua compreensão do novo programa. Contudo, esse interesse era secundário, e o principal foco foi em conversar com as presas. Além das entrevistas, também participei de várias atividades diárias das prisões, tais como reuniões de equipe, reuniões regulares entre presas e o educador social, e eventos especiais, como o “dia da família”, no qual parentes podem visitar a prisão e as presas organizam um festival de música com comida.

Reflexões sobre o trabalho de campo em três presídios femininos na Espanha

Como Schlosser (2008) aponta, o papel do pesquisador, interações pessoais e a apresentação de si são fatores que contribuem para o desfecho do projeto final de pesquisa. Assim, cabe tentar abordar essas questões de forma precoce no processo. Independentemente da experiência de pesquisa

nenhum indivíduo pode entrar em uma prisão pela primeira vez plenamente preparado para o que acontece lá dentro. A prisão é um ambiente que requer que indivíduos constantemente adaptem e mudem as formas como eles se veem e, subsequentemente, como se apresentam aos outros (Schlosse, 2008:1510).

Esta seção irá navegar o trabalho de campo com mulheres em três prisões na Espanha para analisar de que forma as particularidades de cada estudo de caso afetaram o processo de pesquisa e a forma como a pesquisadora lidou com essas particularidades. A seção também irá explorar como a posicionalidade da pesquisadora influenciou a coleta de dados, a rotina do trabalho de campo e suas próprias reflexões acerca do objeto de estudo.

O início do meu trabalho de campo dentro de prisões

Poder é um elemento onipresente no sistema prisional. Ele é produzido em todos os lugares e por todas as pessoas por meio de diferentes tecnologias. Devido a isso, a pessoa ou pessoas que acompanham a pesquisadora na primeira vez em que entra na prisão são muito relevantes. As formas pelas quais poder e autoridade são incorporadas em anfitriões e emaranhadas na posicionalidade da pesquisadora, bem como com outros, desempenha um papel central no desenvolvimento futuro da pesquisa, ainda que essas relações possam ser posteriormente modificadas dependendo de outras variáveis ( Schlosser 2008 ). Contudo, a pesquisadora, quando realiza um estudo dentro de prisões e outras instituições de reclusão, aceita uma falta de controle sobre as condições de entrada propriamente ditas. Como resultado, dependendo de sua expertise prévia e de suas habilidades, ela será capaz de reverter ou minimizar algumas das consequências adversas que surgem, ou simplesmente tentará navegar o ambiente da melhor forma possível.

Nesse sentido, o começo do meu trabalho de campo foi bastante diferente em cada prisão. Como já mencionado, uma das prisões situa-se a 350 km de minha residência e meu trabalho de campo lá foi dividido em duas visitas curtas. O objetivo da primeira entrada era duplo: visitar a unidade e estabelecer um primeiro contato com os administradores, e entrevistar alguns funcionários e presidiárias. Minha intenção era entrevistar as mulheres presas para usar suas impressões e reações para ajustar alguns aspectos, como o roteiro das entrevistas. Considerando restrições particulares, e para aproveitar ao máximo o curto período que passei na prisão Júpiter , era necessário ter um cronograma bem organizado, com pouco tempo livre. Para tanto, mantive contato estreito com um vice-diretor que preparava o itinerário da semana de forma muito eficiente. É importante notar que, com poucas exceções, todos os administradores e funcionários da prisão verdadeiramente acreditavam no programa Módulos de Respeito lá implementado, que era o foco de minha pesquisa. Essa crença se refletia claramente no tipo de presidiária selecionada para a primeira visita. De forma geral, as poucas participantes entrevistadas (a metade participava do programa analisado, a outra metade, não) apresentaram uma imagem muito positiva da prisão e do programa. Elas eram entusiasmadas com relação à dinâmica cotidiana da unidade e as atividades oferecidas. A adesão às regras e regulações da prisão pode ser interpretada de formas distintas na pesquisa em prisões, até como forma de resistência e de sobrevivência ao ambiente prisional ( Bosworth, 1999 ; Carrabine, 2006 ; Carrabine; Bosworth, 2001; McCorkel, 1998 ; Rowe, 2011 ). Assim, ainda que as presas tenham concordado em participar de uma entrevista e tenham assinado um termo de consentimento livre e esclarecido, a forma pela qual o procedimento prisional as recrutou para participar da pesquisa criou uma certa continuidade entre a pesquisadora e a instituição na produção do poder penal. Como uma tecnologia de poder, o processo de recrutar presas para participar do estudo me tornou um componente desse artifício. Consequentemente, para a organização da minha visita seguinte, lembrei aos administradores da importância de que a participação nas entrevistas fosse voluntária e de se explicar meu objetivo de pesquisa e minha independência em relação à instituição. Repeti essas mensagens durante minha segunda visita e enfatizei que nada que acontecesse ou fosse dito durante as entrevistas seria compartilhado com a instituição e que todas as informações permaneceriam anônimas, ainda que a mudança na pessoa encarregada de organizar a segunda visita, juntamente com a carga de trabalho e outras questões, tenham complicado a superação de algumas dessas dificuldades iniciais.

As dinâmicas de entrada nas duas outras prisões foram diferentes. Durante minha primeira visita à prisão feminina Athenea , o administrador me mostrou a unidade antes que eu o entrevistasse, mas não fui apresentada às pessoas que encontramos, nem pude conversar com elas. Combinamos que o educador social iria informar as mulheres sobre minha pesquisa e convidá-las a participar. No meu primeiro dia na prisão, um guarda tinha uma lista de presidiárias que haviam se voluntariado a participar. Essa lista inicial de voluntárias incluía presidiárias geralmente bastante dedicadas ao módulo, proativas, e que tendiam a participar em qualquer atividade oferecida. Nessas entrevistas, enfatizei o fato de que sua participação era voluntária, anônima e não teria qualquer impacto sobre benefícios potenciais, porque eu era uma acadêmica independente da instituição. O termo de consentimento livre e esclarecido incluía essa informação, porém, durante as entrevistas, repeti essas mensagens várias vezes. Contudo, após minha primeira visita e impressões iniciais, decidi mudar meu comportamento para tentar quebrar a verticalidade da relação, em consonância com minha abordagem feminista ( Gelsthorpe, 1990 ; Flavin, 2001 ; Renzetti, 2013 ). O uso do aparato prisional para selecionar participantes para o estudo, algo que havia sido requisitado para a disseminação de informações básicas sobre a pesquisa, não desempenhou um papel positivo no recrutamento de participantes. Ainda que de forma menos intensa do que no caso da prisão Júpiter , o fato de que a administração da prisão mediou minha relação com as presas me colocou próxima da instituição, projetando atributos similares, o que não foi benéfico para meus objetivos de pesquisa.

A situação no terceiro caso, na prisão Rei , foi similar no sentido de que eu realizei uma primeira reunião com as autoridades para compartilhar meus objetivos e os principais aspectos do meu plano para visitas. Logo depois, a direção me colocou em contato com o educador social e, a partir daí, tudo foi ainda mais flexível do que na prisão Athenea . A primeira vez em que entrei no departamento feminino da prisão Rei , o educador social me apresentou às mulheres presas, explicou de forma bem geral minha pesquisa e me deixou no departamento para começar as entrevistas. Depois disso, não tive mais contato com profissionais ou administradores. Em relação aos guardas, meus contatos foram limitados aos momentos de entrada e saída do departamento feminino. Na primeira visita, entrevistei várias mulheres, mas, ao contrário de minhas percepções das duas outras prisões, senti um menor senso de obrigação de participar das entrevistas por parte delas. Nesse sentido, é importante apontar que a dinâmica dessa unidade diferia consideravelmente das outras duas, especialmente porque, nesse módulo, o status de presidiária era instável. Aproximadamente 25 mulheres eram mantidas permanentemente no departamento, enquanto o resto estava lá por um período curto, aguardando seu julgamento ou sua transferência para outro presídio. Dessa forma, algumas não tinham nem a sensação de pertencimento ao contexto específico nem contato com guardas e funcionários. Adicionalmente, apenas algumas delas me viram no dia em que fui apresentada e mesmo os funcionários da prisão que trabalhavam no departamento feminino me tratavam como uma total estranha. Graças às particularidades da forma como entrei na prisão e à dinâmica desse departamento, a posição que ocupei no contínuo prisão-presos foi a mais distante da instituição, em comparação com as outras prisões.

Atravessando muros de prisões

Desde os anos 1990, as prisões espanholas não só compartilham um desenho arquitetônico, mas também usam sistemas similares de controle e segurança, que consistem em várias localizações com guardas atrás de portões e guichês (ver também Corazza, 2017 ). Duas das três prisões ( Júpiter e Rei ) foram construídas segundo esse modelo. Além disso, pesquisadores recebem um cartão escrito “visitante”, que tem de permanecer visível durante todo o tempo dentro dos muros da prisão. Assim, na entrada principal, eu era obrigada a mostrar minha identidade a um guarda e/ou à polícia militar (Guarda Civil Espanhola) e explicar o propósito de minha visita. Em seguida, eu precisava passar pelos outros guichês e portões para ser novamente identificada e registrada. Todos esses pontos de controle (Jenegathan, 2004, 2018) estabelecem limites e criam uma fronteira que separa grupos perigosos de bons cidadãos, servindo como componentes de aparatos de segurança ( Foucault, 2008 ). A identidade cria a oportunidade de atravessar os diferentes pontos de controle, enquanto o cartão de “visitante” assume a forma de uma proteção que mantém seu detentor no grupo de bons cidadãos, ainda que dentro da prisão.

A partir da minha experiência de adentrar instituições penais na Espanha, preciso diferenciar a prisão Júpiter das demais. A principal particularidade dizia respeito ao fato de que minhas visitas à prisão Júpiter eram intensivas em termos de tempo, o que significa que eu precisava entrar e sair da prisão duas vezes ao dia ao longo de vários dias consecutivos. Devido aos turnos de funcionários na manhã e tarde, o processo de entrada era extremamente estressante e frustrante. A cada dia, eu precisava me identificar várias vezes, justificar a visita, defender meu direito de carregar meu gravador (que havia sido autorizado) e explicar que tinha autorização para visitar o departamento feminino sem supervisão.

Encontrei dificuldades similares na prisão Rei . Durante minha primeira visita, o guarda tinha várias pastas em sua mesa, e minha autorização estava na última, então tive que esperar um longo tempo até que o guarda a localizasse. Desde esse ponto, sempre informei aos funcionários que minha autorização estava em uma das últimas páginas da última pasta. Em quase todas as vezes, eles me ignoraram por completo e verificaram todas as páginas das pastas até chegar à minha autorização. Nesse caso particular, devido a meu cronograma, eu tinha uma semana entre visitas para esquecer minha raiva e frustração, o que era impossível na prisão Júpiter devido ao caráter intensivo das minhas visitas e à falta de tempo para canalizar e processar esses sentimentos perturbadores. Eu não era nem presa nem visitante; ao contrário, em meu papel como pesquisadora independente, me encontrava numa espécie de limbo. Assim, essas expressões de “micropoder” me distanciavam da instituição e me colocavam ao lado dos grupos sem poder. Na prisão Athenea , ao contrário, a atitude dos funcionários nos portões, a implementação de regulações e o nível de controle eram muito mais manejáveis, a despeito da presença de sistemas de segurança, pontos de controle e regras. Além disso, a arquitetura e espaço daquela prisão geravam um ambiente menos opressor, o que me ajudava a lidar mais facilmente com esses obstáculos. O contraste entre essa prisão e as outras duas demonstra claramente como gênero e prisão interagem na construção de subjetividades. Como já dito, Athenea era uma prisão exclusivamente feminina com uma arquitetura distinta, enquanto as outras duas eram macro-prisões com uma maioria de homens. Presidiários são tradicionalmente construídos como perigosos e violentos em comparação a presidiárias, que são mais comumente caracterizadas como vítimas e vulneráveis (Padovani, 2017; Ballesteros-Pena, 2018 ). Assim, os rituais da instituição tendem a reproduzir essas imagens na forma como os aparatos de segurança funcionam quando uma pesquisadora tenta entrar em uma prisão.

Além disso, os diferentes pontos de controle enfrentados no processo de entrada atuam como poderes produtores que simbolizam a posição dominante da instituição em relação à pesquisadora. A produção de gênero demonstrada na forma como o poder prisional (masculino) e a pesquisadora (feminina) interagem ilustra a interação de diferentes varáveis na construção do poder penal.

Contudo, a despeito dessas barreiras, era inevitável que eu também me percebesse como uma visitante privilegiada. Na porta principal, eu às vezes chegava ao mesmo tempo que outros visitantes, parentes e amigos de presidiários, e, em comparação com eles, sentia uma diferença devido ao meu papel como pesquisadora. No fim, esse status, e meu cartão de “visitante”, me permitiam entrar e me deslocar entre diferentes áreas da prisão e evitar revistas invasivas antes de adentrar a unidade. Nesses momentos, eu percebia claramente a distância entre mim e os demais visitantes, notando nuances nas atitudes dos guardas, em seus tons de voz e na forma como falavam. Mais uma vez, mesmo quando o poder não é algo absoluto, a hierarquia nos lembra quem são os grupos dominantes e privilegiados, e quem não o são (McCorkell; Myers, 2003).

Contatos com presas e a realização das entrevistas

Alguns dos aspectos assinalados em relação à primeira visita a cada prisão e aos sistemas de segurança evoluíram ou revelaram seus impactos ao longo das entrevistas. Nesse sentido, minha primeira visita à prisão Júpiter foi um preâmbulo para a segunda parte do trabalho de campo. Em teoria, as presas haviam sido informadas sobre minha pesquisa e haviam concordado em participar de forma voluntária. Mas não tive a oportunidade de conversar com elas de forma mais informal para tentar perceber ou conferir outros elementos não diretamente mencionados em nossas conversas.

Por exemplo, ressaltei a importância de se informar participantes potenciais sobre a natureza voluntária de seu envolvimento. Contudo, durante algumas das entrevistas, descobri que as participantes não estavam cientes nem do propósito de nosso encontro nem de sua liberdade de participação. Quando descobri essas omissões, reiterei cuidadosamente a natureza voluntária de sua participação e a ausência de qualquer impacto, seja negativo, seja positivo. Também apontei que a informação fornecida seria anônima e confidencial ( Jewkes, 2011 ; Calderón, 2018 ). A despeito dessas instruções, algumas entrevistas foram difíceis. Por um lado, quando descobri que as participantes não haviam recebido informações importantes sobre as entrevistas, fiquei chateada e triste. Cada vez que isso acontecia, eu precisava fazer um grande esforço para suprimir essas emoções e continuar a entrevista da melhor forma que podia. Por outro, a atitude de uma participante sentada à minha frente, sendo questionada sobre sua vida cotidiana na prisão, sem que ela soubesse com total certeza as implicações de suas palavras, independentemente de minhas explicações sobre minha independência, também me impactaram. Como resultado, algumas entrevistas foram desconfortáveis, curtas e inúteis, como escrevi na época em meu diário de campo.

Hoje, as duas entrevistas (a segunda e terceira da manhã) foram bastante difíceis. Tive que extrair a informação em doses muito pequenas… Elas foram herméticas. Também porque algumas não sabiam o propósito da entrevista. Elas sentiram desconfiança e medo. Acredito que algumas delas falaram positivamente (ou pelo menos não negativamente) sobre o departamento por medo de retaliações, de uma situação danosa. De qualquer forma, a informação fornecida é útil, porque expressa coisas: silêncios, meios sorrisos… (…).

Para outras presas, uma mudança ocorria à medida que a conversa continuava. A entrevistada começava a se sentir mais confiante, conferia novamente a anonimidade da informação que fornecia e começava a falar mais abertamente sobre sua vida cotidiana, dando uma visão mais matizada de sua experiência.

Em outras instâncias, eu estava ciente de que a pessoa não estava relaxada, a despeito de sua entrevista já ter sido concluída. Algumas presas demonstraram desconfiança em suas respostas, mas, do meu ponto de vista, queriam realizar as entrevistas devido a um senso de obrigação de participar. Quando isso ocorria, eu mudava ligeiramente o conteúdo da entrevista, perguntando sobre questões menos sensíveis, e tendia a reduzir o tempo de entrevista para permitir que as pessoas retornassem a suas atividades. Nessas ocasiões, ainda que eu tivesse sido discursivamente produzida como um componente da prisão, tentava reverter essa imagem, me distanciando da instituição, tentativa que nem sempre era bem-sucedida devido ao ambiente opressor da prisão.

Em contrapartida, o trabalho de campo nas outras duas prisões foi bastante diferente. Na prisão Athenea , na qual as mulheres do departamento foram encorajadas a participar da pesquisa, após minhas primeiras visitas, a situação evoluiu para uma rotina mais natural e informal. Ao invés de depender de apoio institucional para recrutar participantes e explicar minha pesquisa, visitei os departamentos e passei tempo conversando com as mulheres: em algumas ocasiões, elas estavam sentadas em um banco conversando entre si, estavam envolvidas em uma atividade na biblioteca, se deslocando através do módulo para participar de atividades, ou esperando em uma fila para comprar algo no pequeno mercado (“ economato ”). Nesses momentos, eu iniciava conversas informais, me apresentando, explicando a pesquisa e convidando-as a participar. Às vezes, eu concluía entrevistas sugerindo que a presa falasse com outras, de forma a recrutar mais entrevistadas. Aproveitei esses momentos específicos para estabelecer relações mais estáveis com algumas delas e para encontrar aliadas que pudessem me ajudar nesse processo.

De forma geral, a estratégia que segui foi bem-sucedida, apesar de exigir uma constante atitude proativa de me apresentar, explicar a pesquisa e convidá-las a participar. Interromper conversas pessoais entre colegas ou amigas não só é ocasionalmente uma perturbação, mas tentar encorajar sua participação numa atividade que não teria qualquer impacto em suas vidas me fazia questionar suas razões para cooperar comigo. Uma de minhas principais preocupações era encontrar-me sozinha no escritório sem ninguém para entrevistar. Felizmente, isso era raro, e pude conversar com muitas mulheres, tanto por meio de entrevistas formais quanto por meio de conversas mais informais. Assim, a mudança de estratégia, bem como as particularidades de meu trabalho de campo, me ajudaram a transformar a imagem instituída após meus primeiros contatos com a instituição.

Em outras ocasiões, meus próprios preconceitos contra certas pessoas me faziam pensar sobre as interações entre minha posicionalidade e o grupo diverso de mulheres com quem eu estava em contato durante o trabalho de campo. Esse era o caso de uma mulher lésbica cigana que se recusava terminantemente a participar da entrevista depois que me apresentei e descrevi minha pesquisa. Uma semana depois, quando eu estava no escritório esperando alguém com quem conversar, ela veio e me disse que havia decidido participar e que sua atitude anterior resultava de sua própria história, que ela tinha dificuldade de lembrar e explicar. Esse episódio me ajudou a refletir sobre as construções daquilo que tinha em comum com ela (que no início limitava-se à nossa construção social como mulheres), minhas reações iniciais a seu comportamento rude (senti que não queria entrevistá-la) e os sentimentos opostos que surgiram depois da entrevista ( McCorkel; Myers, 2003 ).

O espaço e outras questões práticas de entrevistas

Como Downing, Polzer e Levan (2013) apontam,

é quase incontestável que uma grande força da pesquisa sociológica qualitativa é sua capacidade (…) de captar e compreender o contexto no qual seus achados surgem. Para serem efetivadas, essas forças exigem que o pesquisador preste grande atenção não apenas ao que os entrevistados têm a dizer, mas também onde, quando e em que circunstâncias o dizem ( Downing; Polzer; Levan, 2013: 479).

Assim o espaço é um participante ativo no processo de pesquisa e se torna ainda mais proeminente quando a pesquisa é realizada em uma instituição fechada, como uma prisão ( Mehta, 2014 ). Assim, em conjunto com o diálogo e a relação com participantes, o pesquisador tem de considerar o espaço e tempo, tal como percebidos e construídos por ambos os lados ( Downing; Polzer; Levan, 2013 ).

Em meu trabalho de campo, questões de espaço e outros aspectos práticos foram objeto de consideração e reflexão, ainda que, nesse ponto, tenha encontrado mais similaridades do que diferenças entre as três prisões. Ainda que eu tenha tido conversas informais em diferentes lugares nas prisões Júpiter e Athenea , tais como pátios, salas coletivas e até mesmo celas de presidiárias, as entrevistas formais geralmente foram realizadas em salas de funcionários (do educador social, psicólogo, etc.), e menos frequentemente em uma biblioteca ou sala de aula. Eu estava ciente de que compartilhar o espaço de profissionais da prisão poderia complicar a situação. Mesmo quando reiterava que eu não era psicóloga ou funcionária da prisão, às vezes era impossível evitar completamente um certo nível de confusão. Consequentemente, ainda que tivesse uma lista de tópicos a discutir, de acordo com meus objetivos de pesquisa, algumas conversas se deslocaram para tópicos mais conectados com as preocupações e sentimentos das presas. Como pesquisadora feminista, eu estava decidida a respeitar o processo de conversa, sendo flexível sobre o processo e coletando as informações compartilhadas independentemente de suas conexões com minha pesquisa. As presas estavam me oferecendo seu tempo e energia e eu precisava ao menos demonstrar algum tipo de respeito ou reciprocidade. Para mim, isso significava lhes dar a oportunidade de falar livremente, mesmo que a conversa seguisse rumos diferentes das minhas questões de pesquisa. Contudo, além de contar-lhes quem eu era (e não era), também tentei temporariamente romper as condições do espaço. Assim, ao invés de realizar as entrevistas do outro lado da mesa, uma prática comum entre profissionais, sempre me sentava ao lado da entrevistada. Até certo ponto, essa técnica rompeu a “relação terapêutica” a que estavam acostumadas com outros funcionários.

Conclusão

Partindo de uma abordagem da criminologia feminista e outras perspectivas críticas da etnografia de prisões, é altamente significativo romper com conceitos tradicionais de “neutralidade científica”, nos quais a distância em relação aos participantes, o distanciamento emocional e a objetividade são características-chave. A reflexividade surge como uma ferramenta conceitual que nos ajuda a refletir sobre nossas próprias posições enquanto pesquisadores e a forma como nossa pesquisa é construída com o resto dos participantes e entrelaçada com um amplo conjunto de variáveis e ideias subjetivas. Recentemente, e principalmente em países anglo-saxões, as contribuições acadêmicas que discutem reflexividade, posicionalidade e tópicos similares têm recebido mais atenção de pesquisadores de prisões e outras instituições de reclusão. Ao mesmo tempo, posições feministas e pós-coloniais nas ciências sociais têm ressaltado os desequilíbrios de poder e dificuldades envolvidas na construção de uma abordagem alternativa à objetividade e a dar voz a grupos subjugados.

O objetivo deste artigo é contribuir para esse debate, oferecendo perspectivas de países fora da tradição anglo-saxã, de forma a fornecer mais diversidade ao campo. Analisei a maneira como as particularidades do trabalho de campo em três prisões femininas na Espanha, especificamente condições de acesso, controles de segurança, relações com participantes, arquitetura, tempo e espaço influenciaram o processo de pesquisa. Cada pesquisador ou equipe de pesquisa tem uma diversidade de estratégias, respostas e atitudes quando se depara com restrições e obstáculos à condução da pesquisa em prisões. Soluções mágicas para esses problemas não existem, mas entendo que, ao compartilhar experiências e respostas, podemos aprender uns com os outros e fortalecer as caixas de ferramentas disponíveis para implementar a etnografia em prisões de forma adequada e responsável. Além disso, argumento que precisamos reconhecer o papel das emoções na pesquisa em prisões e o impacto do nosso envolvimento nas realidades complexas que analisamos. Ao fazê-lo, iremos contribuir para a construção da pesquisa social como uma atividade genuinamente humana engajada com a justiça social.

Referências bibliográficas

  • Abu-Lughod, Lila. Do Muslim Women Really Need Saving? Anthropological Reflections on Cultural Relativism and Its Others Do Muslim Women Really Need Saving? Anthropological Reflections on Cultural Relativism and Its Others. American Anthropologist , 104 (3), 2002, pp.783-790.
  • Alexander, M. Jacqui; Talpade Mohanty, Chandra. Cartographies of Knowledge and Power: Transnational Feminism as Radical Praxis. In: Lock Swarr, Amanda; Nagar, Richa (ed.). Critical Transnational Feminist Praxis . Albany, Suny Press, 2010, pp.23-45.
  • Ballesteros Pena, Ana. Redomesticidad y encarcelamiento femenino en el sistema penitenciario español: los Módulos de Respeto. Revista de Sociologia , 102 (2), 2017, pp.261-285.
  • Ballesteros-Pena, Ana. Responsibilization and female imprisonment in contemporary penal policy: Respect Modules (Módulos de Respeto) in Spain. Punishment and Society , 20 (4), 2018, pp.458-476.
  • Bosworth, Mary. Engendering Resistance: Agency and Power in Women’s Prisons. Aldershot, Ashgate, 1999.
  • Bosworth, Mary and Carrabine, Eamonn. Reassessing Resistance: Gender, Race and Sexuality in Prison. Punishment and Society, 3(4), 2001, pp. 501-515.
  • Bosworth, Mary et alii. Doing prison research: Views from inside. Qualitative Inquiry, 11, 2005, pp.249-264.
  • Bosworth, Mary; Kaufman, Emma. Gender and Punishment. In: Simon, Jonathan; Sparks, Richard (ed.). Handbook of Punishment and Society . London, Sage, 2012. Criminal Justice, Borders and Citizenship Research Paper n. 2451066, 2014 [https://ssrn.com/abstract=2451066].
    » https://ssrn.com/abstract=2451066
  • Burgess-Proctor, Amanda. Intersections of Race, Class, Gender, and Crime: Future Directions for Feminist Criminology. Feminist Criminology , 1, 2006, pp.27-47.
  • Calderón, Rodolfo. Consideraciones metodológicas para la investigación con privados de libertad: reflexiones de una experiencia en cárceles de Costa Rica. Acta Sociológica, 75, 2018, pp. 11-35.
  • Carrabine, Eamonn. Power, Discourse and Resistance: A Genealogy of the Strangeways Prison Riot . Aldershot, Ashgate, 2006.
  • Cendón, José Manuel; Belinchón, Esteban; García, Henar. Módulos de respeto. Manual de aplicación . Secretaría General de Instituciones Penitenciarias, Ministerio del Interior, 2011.
  • Chesney-Lind, Meda; Morash, Merry. Transformative Feminist Criminology: A Critical Re-thinking of a Discipline. Critical Criminology , 21 (3), 2013, pp.287-304.
  • Collins, Patricia H. Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics of Empowerment . New York, Routledge, 2000.
  • Corazza Padovanni, Natalia. Tráfico de mulheres nas portarias das prisões ou dispositivos de segurança e gênero nos processos de produção das “classes perigosas. cadernos pagu (51), Campina, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2017 [http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332017000300304&lng=en&nrm=iso&tlng=pt – acesso em 23 out. 2019].
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332017000300304&lng=en&nrm=iso&tlng=pt
  • Crenshaw, Kimberle. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence against Women of Color. In: Fineman, Martha A. and Mykitiuk, Roxanne (eds). The Public Nature of Private Violence . New York, Routledge, 1994, pp.93–108.
  • Cunha, Manuela I. The Ethnography of Prisons and Penal Confinement. Annual Review of Anthropology , 43(1), 2014, pp.217-233.
  • Downing, Steven; Polzer, Katherine; Levan, Kristine. Space, time, and reflexive interviewing: Implications for qualitative research with active, incarcerated, and former criminal offenders. International Journal of Qualitative Methods , 12, 2013, pp.478-497.
  • Duarte, Vera; Gomes, Sílvia (ed.). Espaços de recluçao. Questões teóricas, metodológicas e de investigação . Maia, Edições ISMAI – Centro de Publicações do Instituto Universitário da Maia, 2017.
  • Faraldo, Patricia. Consecuencias imprevistas de la dominación anglófona en las cienciassociales y jurídicas / Unanticipated consequences of the Anglophone dominance in law and social sciences. Revista Española de Sociología (RES), 2018 [doi:10.22325/fes/res.2018.57 online first].
    » https://doi.org/10.22325/fes/res.2018.57
  • Flavin, Jeanne. Feminism for the Mainstream Criminologist: An Invitation. Journal of Criminal Justice , 29, 2001, pp.271-85.
  • Foucault, Michel. Segurança, território e população . Curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo, Martins Fontes, 2008.
  • Gelsthorpe, Loraine. Sexism and the Female Offender . Aldershot, Gower, 1989.
  • Gelsthorpe, Loraine. Feminist Methodologies in Criminology: A New Approach or Old Wine in New Bottles? In: Gelsthorpe, Loraine and Morris, Allison (ed.). Feminist Perspectives in Criminology . Milton Keynes, Open University Press, 1990, pp.89-106.
  • Gelsthorpe, Loraine. Feminism and criminology. In: Maguire, Mike; Morgan, Rod; Reiner, Robert (ed.). The Oxford Handbook of Criminology . 3rd edition, Oxford, Oxford University Press, 2002, pp.112-143.
  • Haraway, Donna Jeanne. Primate Visions: Gender, Race, and Nature in the World of Modern Science . Nueva York, Routledge, 1989.
  • Haraway, Donna Jeanne. Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature . Nueva York, Routledge, 1991.
  • Heidensohn, Frances Gelsthorpe, Loraine. Gender and crime. In: Maguire, Mike, Morgan, Rod y Reiner, Robert (eds.). The Oxford Handbook of Criminology . 4d edition, Oxford, Oxford University Press, 2007, pp.381-420.
  • Jeganathan, Pradeep. Checkpoint: anthropology, identity, and the state. In: Das, Veena; Poole, Deborah (ed.). Anthropology in the margins of the state . Santa Fe, School of American Research Press, 2004, pp.67-80.
  • Jeganathan, Pradeep. Border, checkpoint, bodies. In: Horstmann, Alexander; Saxer, Martin; Rippa, Alessandro (ed.). Routledge Handbook of Asian Borderlands . Abingdon, Routledge, 2018, pp.403-410.
  • Jewkes, Yvonne. Autoethnography and emotion as intellectual resources: Doing prison research differently. Qualitative Inquiry , 18, 2011, pp.63-75 [doi:10.1177/1077800411428942].
    » https://doi.org/10.1177/1077800411428942
  • Jewkes, Yvonne. An Introduction to “Doing Prison Research Differently”. Qualitative Inquiry , vol. 20(4), 2014, pp.387-391.
  • Larrauri, Elena. Questions from the South. European Society of Criminology Newsletter , November 2008, pp.2,18.
  • Liebling, Alison. Whose side are we on? Theory, practice and allegiances in prisons research. British Journal of Criminology , 41, 2001, pp.472-484.
  • Lumsden, Karen, Winter Aaron. Introduction. In: Lumsden, Karen; Winter, Aaron (ed.). Reflexivity in Criminological Research . Londres, Palgrave Macmillan, 2014, pp.1-19.
  • Lutz, Catherine; Abu-Lugod, Lila (ed.). Language and the politics of emotion . Cambridge, Cambridge University Press, 1990.
  • McClintock, Anne. Imperial leather. Race, gender and sexuality in the colonial contest . New York, Routledge, 1995.
  • McCorkel, Jill. Going to the Crackhouse: Critical Space as a form of resistance in total institutions and everyday life. Symbolic interaction , 21, 3, 1998, pp.227-252.
  • McCorkeL, Jill. Embodied surveillance and the gendering of punishment. Journal of Contemporary Ethnography , 32, 1, 2003, pp.41-76.
  • McCorkel, Jill A.; Myers, Kristen. What Difference Does Difference Make? Position and Privilege in the Field. Qualitative Sociology 26(2), 2003, pp.199-231.
  • Medina, Juanjo. Doing criminology in the “semi-periphery” and the “periphery” in search of a post colonial criminology. In: Smith, Cindy; Zhan, Sheldon; Barberet, Rosemary (ed.). Routledge Handbook of International Criminology . Oxon, Routledge, 2011, pp.13-24.
  • Mehta, Rimple. The Mango Tree: Exploring the Prison Space for Research. In: Lumsden, Karen; Winter, Aaron (ed.). Reflexivity in Criminological Research . Londres, Palgrave Macmillan, 2014, pp.47-57.
  • Phillips, Coretta; Earle, Rod. Reading difference differently? Identity, epistemology and prison ethnography. British Journal of Criminology , 50, 2, 2010, pp.360-378.
  • Piacentini, Laura. Handle with Care: New and Established Methodologies in Prison Research, March 28, 2013 [https://ssrn.com/abstract=2240953 ou http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2240953].
    » https://ssrn.com/abstract=2240953» http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2240953
  • Renzetti, Claire. M. Feminist criminology . London, Routledge, 2013.
  • Rowe, Abigail. Narratives of self and identity in women’s prisons: Stigma and the struggle for self-definition in penal regimes. Punishment & Society , 13, 5, 2011, pp.571-591.
  • Schlosser, Jennifer A. Prison research issues in interviewing inmates: Navigating the methodological landmines of prison research. Qualitative Inquiry , 14, 8, 2008, pp.1500-1525.
  • Spivak, Gayatri C. Can the Subaltern Speak? In: Nelson, Cary; Grossberg, Lawrence (ed.). Marxism and the Interpretation of Culture. Macmillan Education, Basingstoke, 1988, pp.271-313.
  • Vianna, Adriana; Lowenkron, Laura. Apresentação. Dossiê gênero e estado: formas de gestão, práticas e representações. cadernos pagu (51), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2017.
  • Weber, Max. Economy and Society: An Outline of Interpretive Sociology . Berkley, CA, U. California Press, 1978. [1922].
  • 1
    Os nomes dos presídios são fictícios.
  • 2
    Para uma descrição dos Módulos de Respeito, ver Cendón, Belinchón e García (2011) e para uma análise, ver Ballesteros-Pena (2017 ; 2018 ). O propósito da pesquisa foi analisar políticas de igualdade de gênero implementadas na Espanha como resultado da aprovação de um Plano de Ação de Igualdade de Gênero nacional. Uma das medidas priorizadas nesse plano foi a implementação do programa de Módulos de Respeito em presídios femininos, pois esse programa foi considerado particularmente benéfico para as presas. A pesquisa, portanto, buscou considerar os diferentes tipos de unidades nas quais mulheres são encarceradas.
  • Tradução: Thaís Camargo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    20 Fev 2019
  • Aceito
    17 Jul 2019
location_on
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Núcleo de Estudos de Gênero - PAGU Rua: Cora Coralina, 100., Cidade Universitária Zeferino Vaz, CEP: 13083-869, Telefone: (55 19) 3521-7873 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: cadpagu@unicamp.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro