Open-access Língua e poder: transcrevendo a questão nacional

Resumos

O objeto de análise deste artigo é o debate no seio de um grupo de intelectuais cabo-verdianos em torno da situação lingüística em Cabo Verde. Suscitado pelo problema da criação da imagem de um Estado único e indivisível em um contexto marcado pela pluralidade linguística, esse debate revela como a questão da língua pode constituir um obstáculo à adequação dos países periféricos ao modelo de organização social, política, econômica e cultural representado pelo Estado-nação. As propostas de padronização e oficialização da língua crioula são abordadas a fim de revelar os interesses de grupo que orientam tal perspectiva e as possíveis conseqüências desta política lingüística que, apesar de seu impacto na sociedade cabo-verdiana, permanecem silenciadas nos discursos analisados.

Cabo Verde; Estado-Nação; Língua; Poder; Crioulo; Cabo-Verdiano


This article aims to analyze the debate taking place among a group of Cape Verdean intellectuals concerning the linguistic situation in Cape Verde. Motivated by the problem of creating the image of a single and indivisible State in a context marked by linguistic plurality, this debate reveals how the question of language can act as an obstacle for developing countries in terms of attaining the social, political, economic and cultural organization represented by the Nation-State. Proposals to make Creole a standard and official language are examined in order to expose the interests of the group promoting this standpoint, as well as the possible consequences of this kind of linguistic politics, which despite its impact on Cape Verdean society, remain silenced in the analyzed discourses.

Cape Verde; Nation-State; Language; Power; Cape Verdean Creole


LÍNGUA E PODER: TRANSCREVENDO A QUESTÃO NACIONAL*

Juliana Braz Dias

A diversidade de experiências históricas na tentativa de adoção do modelo ocidental de Estado-nação pelo mundo não-europeu tornou-se tema recorrente no campo das ciências sociais. O que nem sempre tem recebido a devida atenção é a complexidade dos efeitos desse processo de construção nacional no domínio lingüístico. Ainda que a língua tenha sido considerada um dos principais atributos de definição da nação, pouco se tem discutido sobre sua condição enquanto produto de um processo político que implica escolhas e reelaborações diversas de grande impacto sociocultural. O dilema lingüístico vivenciado recentemente em Cabo Verde, os discursos sobre ele elaborados e as propostas que os acompanham, bem como sua repercussão na sociedade cabo-verdiana, conformam o objeto deste artigo. A análise dessas questões, além de lançar um novo olhar sobre o processo de construção nacional em Cabo Verde, busca contribuir para a discussão mais ampla sobre a interação dos domínios da língua e do poder.

Cabo Verde entre o português e o crioulo

Antes de sua descoberta e agregação como parte do Império Colonial Português, o arquipélago de Cabo Verde parece ter se mantido como um território desabitado. A chegada dos portugueses, na segunda metade do século XV, proporcionou a ocupação das ilhas, com um contingente populacional engrossado pelos africanos trazidos do continente como escravos. Juntamente com os colonizadores portugueses, alcançava o arquipélago também a língua portuguesa, que viria a desempenhar um papel de destaque na constituição dessa sociedade nascente.

O português, porém, logo teve que disputar espaço com outra língua que crescia em importância no contexto singular de formação da sociedade cabo-verdiana. Em uma situação de contato estreito e prolongado entre populações de origens diversas, com línguas ininteligíveis entre si, teve início em Cabo Verde um processo de crioulização lingüística. Como não existiam línguas nativas no arquipélago, o crioulo cabo-verdiano teria surgido a partir do português, que lhe forneceria a base lexical, e das línguas dos africanos que entraram em contato com os colonizadores. É impossível fornecer hoje uma explicação precisa sobre a gênese do crioulo cabo-verdiano, bem como de todos os crioulos conhecidos, cuja origem tem sido alvo de infindáveis debates. Segundo o cabo-verdiano António Carreira (1972:344), a língua crioula teria surgido no próprio arquipélago no século XVI, menos de cinqüenta anos após o início de seu povoamento. Esta hipótese tem sido contestada por outros pesquisadores, os quais acreditam ter o crioulo nascido ainda no continente africano, só então seguindo para Cabo Verde na rota do tráfico negro (cf. Rougé 1986). O fato é que, uma vez ali consolidado, encontrou um importante espaço de desenvolvimento, mesmo que sufocado por uma luta desigual com a língua portuguesa, fortalecida pelo poder colonial.

Ainda hoje, 26 anos após alcançar a independência em relação a Portugal, a população cabo-verdiana continua vivenciando no seu cotidiano essa interação, por vezes conflituosa, entre as línguas crioula e portuguesa. Como pude constatar diversas vezes durante minha pesquisa de campo em Cabo Verde, entre 1998 e 1999, a utilização dessas duas línguas está freqüentemente permeada por questões de autoridade e resistência, identidade e distância social. Apesar da presença constante do crioulo nas atividades que se desenrolam no dia-a-dia dessa população, o português permanece ocupando lugar de destaque como língua oficial da República de Cabo Verde. O evento abaixo, narrado em crioulo por T. V. da Silva, revela alguns traços da tensão que marca a interação dessas duas línguas.

"Duranti apresiason di ata di un di kes seson pasadu, un diputadu (ki é onrozu iseson na uzu sistemátiku di língua nasional la na Asenbleia) fla ma traduson pa purtages di si intervensons fase ki, el própi, e ka éra kapas di ntende si própis intervenson. Anton, e purgunta pamódi ki ka ta transkrebedu pa ata si intervensons, sen traduzi-s pa purtuges.

Prizidenti di Asenbleia rasponde-l ku es infilisidadi (pa N'ka fla barbaridadi): 'Língua ofisial é purtuges. Na kusas ofisial [ki, li, debe siginifika: na dokumentus ofisial] ta uzadu língua ofisial'" (Silva 1998:111).

"Durante a apreciação da ata de uma daquelas sessões passadas, um deputado (que é honrosa exceção no uso sistemático da língua nacional lá na Assembléia) falou que a tradução para o português de suas intervenções fez com que ele próprio não fosse capaz de entender suas próprias intervenções. Então, ele perguntou por que não se transcreve para a ata suas intervenções sem traduzi-las para o português.

O presidente da Assembléia respondeu-lhe com essa infelicidade (para eu não dizer barbaridade): 'A língua oficial é o português. Nas coisas oficiais [que, aqui, deve significar: nos documentos oficiais] usa-se a língua oficial'" (ênfases minhas).

A situação descrita indica a constituição de dois campos em conflito: o da língua nacional (isto é, o crioulo) e o da língua oficial (o português). A demanda do deputado em questão para que suas intervenções fossem transcritas para a ata em crioulo colocou em evidência a tensão presente na delimitação desses dois campos. Embora fosse uma prática um tanto incomum, como ressalta T. V. da Silva, o deputado ainda encontrava espaço para utilizar o crioulo em suas intervenções na Assembléia Nacional. Mesmo que se tratasse de uma atividade "oficial", a predominância da oralidade nessas sessões permitia-lhe fazer tal uso. Contudo, ao passar para o plano do documento escrito ¾ a ata, importante símbolo desse universo oficial ¾, não havia mais lugar para o crioulo. A "língua nacional" passava, então, a ser identificada com um outro universo, construído em oposição ao mundo das "coisas oficiais".

É em torno desse dilema levantado pela questão lingüística em Cabo Verde que se desenvolve o presente ensaio. A discussão parte da análise de um conjunto de artigos escritos por intelectuais cabo-verdianos (entre os quais está o de T. V. da Silva, de onde foi retirada a narrativa supracitada) e que integram uma seção da revista Cultura (no 2, julho de 1998), intitulada "Dossier: O Bilingüismo". Trata-se de cinco artigos voltados, de maneira geral, para uma discussão a respeito da situação lingüística vivenciada pelos cabo-verdianos e, mais precisamente, para o debate em torno do projeto de oficialização da língua crioula. Apenas o último dos cinco artigos, escrito por Wladimir Brito (1998), está direcionado exclusivamente para a questão da lusofonia, sem abordar a situação do crioulo no arquipélago.

A análise não tem por objetivo um julgamento acerca da política de padronização e oficialização do crioulo em Cabo Verde. Pretende apenas revelar as questões que se mantêm implícitas no debate realizado pelos autores aqui abordados, além de ressaltar aspectos que, embora de importância crucial, são continuamente silenciados, o que favorece uma visão parcial das conseqüências de tal política lingüística. Por meio dessa abordagem, procuro demonstrar como um discurso que se apresenta em conformidade com os interesses da nação cabo-verdiana como um todo está, de fato, estreitamente relacionado aos interesses de grupos específicos no interior dessa sociedade.

O debate sobre a padronização e a oficialização do crioulo aqui abordado de modo algum pode ser tomado como neutro e imparcial. A língua é um locus privilegiado do processo político, de tal forma que a discussão em torno do crioulo envolve complexas relações de poder e jogos de interesse, especialmente quando seus interlocutores são eles próprios falantes do crioulo. Para integrar na análise aqui empreendida os campos da política e da língua, procuro utilizar como ferramenta analítica o conceito de "ideologias da língua", conforme elaborado na coletânea organizada por Kroskrity (2000a). Este conceito se fundamenta em quatro idéias centrais. Primeiro, as ideologias da língua representam uma percepção sobre a língua e o discurso que é construída conforme os interesses de um grupo sociocultural específico (Kroskrity 2000b:8). Segundo, as ideologias da língua são múltiplas, uma vez que são múltiplas as divisões sociais significativas e as perspectivas associadas a cada grupo (Kroskrity 2000b:12). É preciso uma atenção especial ao conflito em potencial entre essas diversas ideologias da língua. Terceiro, os membros de determinada sociedade detêm diferentes graus de consciência sobre as ideologias locais da língua (Kroskrity 2000b:18). Por fim, as ideologias da língua são mediadoras entre as estruturas sociais e os tipos de fala, ou seja, elas indicam a ligação entre a multiplicidade de formas lingüísticas e discursivas e as diversas experiências socioculturais (Kroskrity 2000b:21). É a partir desse conceito e seus desdobramentos que pretendo abordar o discurso sobre o bilingüismo cabo-verdiano elaborado por Manuel Veiga, Mário Fonseca, Tomé V. da Silva, José Luís H. Almada e Wladimir Brito.

A construção da nação e a oficialização do crioulo

O processo de oficialização do crioulo em Cabo Verde é parte de uma resposta singular a um problema comum colocado a diversos outros países: a tentativa de adoção do projeto ocidental de Estado-nação. A forma de organização social, política, econômica e cultural conhecida como Estado-nação, fruto dos esforços de construção nacional dos países da Europa Ocidental nos séculos XVIII e XIX, foi progressivamente se firmando no cenário mundial, a ponto de se tornar a categoria central de referência para o exercício pleno da soberania. Dos países periféricos, a situação demandava uma rápida adequação ao novo modelo. Contudo, a importação de tal modelo, em um contexto bastante diverso daquele vivenciado na Europa Ocidental, tem exigido a adoção de estratégias e negociações singulares no processo de construção nacional. Embora o projeto ocidental de Estado-nação se imponha com força a essas sociedades, não se observa nesse processo uma apropriação passiva da ideologia européia. Há sempre uma releitura desses projetos, uma articulação original de interesses, adaptada a cada contexto particular.

Dentre os problemas enfrentados no curso de adoção do modelo de Estado-nação ganha destaque a questão lingüística. A homogeneidade lingüística não é, como fazem crer as ideologias nacionais, uma característica natural das nações que remete a tempos imemoriais. A unidade sob uma só língua é construída através de um complexo processo. E assim como as próprias nações da Europa Ocidental precisaram passar por esse processo de criação e naturalização da homogeneidade lingüística, também os países que importam esse modelo precisam resolver seus dilemas lingüísticos internos. Que língua utilizar na educação e na administração? Como criar, por meio da língua, a imagem de um Estado único e indivisível?

Na construção da unidade lingüística, é preciso ainda que o Estado-nação em formação desfrute de uma língua escrita devidamente padronizada. Seria certamente uma falácia afirmarmos que a escrita é essencial para o desenvolvimento de uma forma de governo relativamente complexa. Contudo, para um tipo particular de Estado, o Estado burocrático, ela se mostra de importância crucial. O sistema burocrático moderno é altamente dependente da escrita para a realização das atividades administrativas, seja para comunicar-se à distância, arquivar informações ou mesmo para despersonalizar interações (cf. Goody 1996:89-92).

É certo que Cabo Verde já usufrui do português, de escrita devidamente padronizada. Tanto, que é essa a língua que tem sido utilizada no país como língua oficial, cuidando, como vimos no evento narrado acima, das "coisas oficiais". O português tem, até então, possibilitado o desenvolvimento de uma burocracia em larga escala no país. No entanto, a nação cabo-verdiana esbarra aí em outra questão: sua identidade. A memória de séculos de dominação portuguesa impede a adoção passiva do português como língua nacional na ex-colônia. Não só o português tem uma relação demasiado estreita com o passado colonial, mas também permanece, ainda hoje, como um fator de desigualdade em uma sociedade onde muitos de seus membros não dominam a língua oficial. Com isso, a construção de Cabo Verde como nação independente tem levado, no decorrer de sua história, a diversos movimentos e tentativas de padronização da escrita do crioulo de forma a possibilitar sua adoção como língua oficial do país.

Os primeiros passos na tentativa de escrever em crioulo, segundo T. V. da Silva (1998:117), dão-se ainda na segunda metade do século XIX, sendo a primeira proposta de alfabeto para a escrita do crioulo datada de 1888. Desde então, surgiram algumas outras, embora nenhuma delas tenha se imposto definitivamente. É somente em 1994 que surge, como parte de uma política oficial, o Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-Verdiano (ALUPEC). Este alfabeto é proposto por uma comissão criada exclusivamente para este fim pelo Departamento de Lingüística de Cabo Verde, a chamada "Comissão de Padronização"1.

Os autores aqui analisados (à exceção de Wladimir Brito que, como já foi ressaltado, não aborda a questão do crioulo) se mostram de pleno acordo com a implementação do ALUPEC e seus artigos conformam, em larga medida, manifestos em prol da adoção do mesmo. Esta seria uma etapa fundamental de um longo processo que culminaria, por fim, na oficialização do crioulo. Parafraseando T. V. da Silva (1998:116), só assim o príncipe será coroado rei.

Da diglossia ao bilingüismo

Os textos que compõem a seção "Dossier: O Bilingüismo" revelam de maneira contundente algumas percepções sobre o status do crioulo e do português no arquipélago e apresentam algumas sugestões para a solução dos conflitos que surgem da interação das duas línguas. Uma das principais idéias expostas nos artigos ¾ e que se repete entre os diversos autores ¾ é justamente a descrição da situação lingüística em Cabo Verde como uma situação de coexistência de dois campos lingüísticos em oposição. Conforme foi observado no debate que teve lugar na Assembléia Nacional de Cabo Verde, há a conformação de dois campos distintos e conflituosos: o da "língua oficial" (o português) e o da "língua nacional" (o crioulo). Ambas as categorias ressurgem continuamente nos discursos aqui analisados, dando origem a uma dicotomia que vai progressivamente se tornando mais complexa com a adição de novos termos na caracterização desses dois campos.

A comunicação de Manuel Veiga, a primeira desse conjunto de artigos, explicita, logo de início, alguns elementos dessa dicotomia:

"A situação lingüística em Cabo Verde caracteriza-se pela existência de duas línguas com estatutos e funções diferenciados: o português é língua oficial e internacional e o crioulo é língua nacional e materna. Ao primeiro estão reservadas as funções de comunicação formal: administração, ensino, literatura, justiça, mass-média. Ao segundo, pelo seu lado, estão reservadas as funções de comunicação informal, particularmente o domínio da oralidade" (Veiga 1998:95, ênfases minhas).

Se o português ganha força no domínio das "coisas oficiais", atuando como canal privilegiado na comunicação formal, dentro e fora do país, o crioulo encontra seu espaço de desenvolvimento no domínio da comunicação informal. Associada às atividades que se desenrolam no dia-a-dia desse povo, a língua crioula se fortalece como símbolo da nação cabo-verdiana.

A associação entre o crioulo e o espírito nacional em Cabo Verde é ainda mais incisiva no discurso de T. V. da Silva. Para o autor, a língua crioula está intimamente relacionada à formação da nação cabo-verdiana: "Kauberdianu, inkuantu língua papiadu, e ta izisti désdi ki na txon di nos ilhas toma korpu nason kauberdianu"2 (Silva 1998:116). É preciso notar que a "nação" aqui é pensada não como um novo Estado-nação que vem sendo progressivamente construído após a independência de Cabo Verde, mas como uma unidade cultural singular fundamentada no uso comum da língua crioula. Percebemos aqui a força do crioulo enquanto justificativa para a idéia da existência de uma nação muito antiga e muito anterior a qualquer projeto de construção de um Estado moderno. O crioulo surge não só como uma característica atribuída à nação cabo-verdiana, mas como o fator capaz de sustentar a idéia da existência dessa nação. Já o português aparece no discurso de T. V. da Silva como um elemento exógeno a essa nação. Segundo o autor, para grande parcela da população cabo-verdiana o português é sentido e aprendido como uma língua estrangeira (Silva 1998:120). E enquanto o português vai sendo construído como um símbolo da dominação cultural estrangeira, o crioulo consolida-se como um importante fator de resistência cultural.

É curioso observar que, em termos estritamente histórico-lingüísticos, a associação rígida entre o crioulo e o surgimento da nação cabo-verdiana assume uma fragilidade notória. Como já foi apontado anteriormente, não há na crioulística um consenso quanto à explicação da gênese das línguas crioulas. Uma das hipóteses levantadas propõe a possibilidade de todos os crioulos provirem de uma única fonte, tendo em vista que os primeiros estudos comparativos sobre as línguas crioulas revelaram muita semelhança entre elas. Tal "hipótese monogenética" sugere que todos os crioulos formados no contexto da expansão colonial européia derivariam, direta ou indiretamente, de uma língua de contato de base portuguesa. Este protopídgin português teria sido fruto do pioneirismo de Portugal na descoberta e exploração da África, Ásia e América. Ainda, os portugueses foram também os maiores fornecedores de escravos para as colônias das outras potências européias, o que teria contribuído para a disseminação de uma espécie de língua franca portuguesa pelo mundo, tornando-se o modelo para todos os crioulos conhecidos. Outra curiosa tentativa de explicar as semelhanças entre os crioulos remete à existência de um jargão náutico usado nos navios para a comunicação entre marinheiros de diferentes nacionalidades (ingleses, franceses, portugueses, espanhóis e holandeses). Como quase todos os crioulos conhecidos surgiram no contexto das Grandes Navegações, esse jargão náutico teria sido a base sobre a qual se formaram as línguas crioulas e pídgins3. Percebemos com isso quão questionável pode ser a afirmação do potencial do crioulo como raiz de um protonacionalismo cabo-verdiano, bem como todas as outras tentativas, em contextos diversos, de nacionalizar as línguas crioulas. Partindo exclusivamente das evidências históricas comparativas, o crioulo seria mais um "meio de aproximação" do que uma "evidência de separação". Por outro lado, esta observação revela a força da associação entre o crioulo e o espírito nacional cabo-verdiano como um argumento puramente ideológico, sem a necessidade de fundamentação em evidências históricas ¾ como, aliás, tem sido o tratamento da questão lingüística em todos os contextos de construção nacional.

José Luís H. Almada, outro participante do debate em questão, expõe de maneira explícita os elementos da dicotomia que, segundo ele, conforma a situação lingüística no arquipélago. O autor sugere que, em Cabo Verde, há dois espaços literários distintos: o primeiro é o da literatura escrita, transmitida em português; o segundo é o da literatura oral, transmitida em crioulo e praticada entre a maioria da população (Almada 1998:127). Portanto, o português e o crioulo não só representam o confronto entre a escrita e a oralidade, mas também entre a elite e uma massa populacional engrossada por um grande número de analfabetos e semi-analfabetos. E a essa dicotomia se acrescenta ainda a oposição entre a modernidade, representada pela escrita do português, e a tradição, simbolizada pela língua nacional cabo-verdiana.

Do que foi exposto até o momento, é possível elaborarmos um quadro geral que sintetiza a dicotomia construída pelos autores:

É preciso notar que a delimitação desses dois campos rigidamente construídos e em oposição é parte da ideologia da língua que informa os artigos aqui analisados. Se observada pela óptica da lingüística, a relação entre o crioulo e o português em Cabo Verde conforma um quadro bem distinto. Em primeiro lugar, o crioulo cabo-verdiano exibe uma grande variação geográfica, o que problematiza o tratamento a ele conferido pelos autores citados, que o apresentam como um campo estático, cujas variações internas são praticamente anuladas por uma aparente uniformidade. Em segundo lugar, a própria idéia de oposição entre o crioulo e o português vê-se confrontada por uma relação de continuidade entre as duas línguas. A situação lingüística em Cabo Verde pode ser descrita por meio de um continuum que vai do crioulo basiletal, a variedade lingüística mais distante da língua portuguesa, até o crioulo acroletal, já muito semelhante ao português (Couto 1996:73). Diante desse quadro, não poderíamos tratar com propriedade de uma oposição entre o crioulo e o português. Quero deixar claro, no entanto, que não pretendo aqui fazer um exercício de análise lingüística, mas sim sugerir uma abordagem não-lingüística de fenômenos no âmbito da língua. É sobre as percepções construídas acerca da situação lingüística em Cabo Verde e as questões sociais, políticas e identitárias aí envolvidas que recai nosso enfoque.

A imagem construída pelos autores citados não é a de uma simples oposição, mas de uma oposição hierárquica. O crioulo, embora conclamado símbolo da nação cabo-verdiana, é apresentado como uma língua que vivencia uma situação marcada por sua fragilidade e subalternidade em relação ao português. Essa situação, denominada por Mário Fonseca (1998) de "diglossia", e caracterizada pela coexistência desigual entre duas línguas, permeadas por uma complexa relação de poder, exige, conforme os autores mencionados, uma política urgente de proteção à língua crioula. E a solução parece vir através de uma política lingüística visando o "bilingüismo", como podemos observar no discurso de Mário Fonseca:

"A normalização lingüística, neste país, passa pela liquidação a prazo da actual situação de diglossia, pela utilização gradual do Crioulo no ensino, pela sua imediata utilização nos meios de comunicação escritos e audio-visuais, por uma progressiva interiorização da Língua Portuguesa (que também faz parte da nossa herança cultural, ao fim e ao cabo) pelas massas Caboverdianas, o que só acontecerá, crêmos nós, quando o Crioulo ocupar o lugar que é o seu na nossa sociedade, e pela efectivação de um bilinguismo e/ou de um multilinguismo sãos porque descomplexados [...]" (Fonseca 1998:101-102).

A adoção do "bilingüismo", conforme exposto acima, implica a anulação da rígida dicotomia construída entre os campos do português e do crioulo. Em vez de uma relação de oposição e hierarquia, teríamos duas línguas coexistindo em igualdade nos mais diversos domínios da sociedade cabo-verdiana. A ambas as línguas seriam estendidos novos campos de atuação. E para atingir tal situação, torna-se imprescindível a padronização da escrita do crioulo e sua oficialização, de tal forma que o crioulo alcance, enfim, privilégios até então restritos ao português. A partir dessa reconfiguração do contexto lingüístico teria origem um novo crioulo, escrito, moderno e atuante (Almada 1998:130).

Por trás dessa proposta, percebe-se uma ideologia que sugere a relação de igualdade entre o crioulo e o português como símbolo, por fim, da cabo-verdianidade. A preservação de ambas as línguas é vista como a preservação da história nacional cabo-verdiana.

"Foi certamente preciso, para quantos de nós, que cedo tivemos um contacto assíduo e íntimo com a língua portuguesa, algum esforço e alguma reflexão, para, assumindo plenamente as diversas coordenadas da nossa personalidade e do nosso devir coletivos, chegarmos hoje às conclusões aqui avançadas [...] que emanam de um querer assumir, de uma vez por todas, a totalidade da nossa herança, libertando-nos do preconceito maniqueista gerador do falso dilema: guardar o crioulo e perder o português ou guardar o português e assassinar o crioulo, contrariando o lento e longo caminhar da caboverdianidade" (Fonseca 1998:99).

De um lado, a oficialização do crioulo, de outro, a democratização do português: dois passos importantes no processo de construção nacional. A luta pela adoção do bilingüismo representa, conforme a perspectiva dos autores aqui analisados, a urgência em construir e assumir a identidade cabo-verdiana em sua totalidade. É interessante notar que, partindo de autores pertencentes à elite cabo-verdiana e, portanto, já em relação estreita com o português, é muito maior a ênfase na oficialização do crioulo. Para um grupo que já tem o português bastante presente no seu dia-a-dia, em suas atividades profissionais e por vezes até mesmo no cotidiano doméstico, a luta pela construção da singularidade cabo-verdiana ganha mais impacto através da proposta de assumir e orgulhar-se da "língua nacional". Tal tomada de posição fica ainda mais clara na escolha de dois dos autores ¾ Silva e Almada ¾ pela escrita dos seus artigos em crioulo, reforçando sua luta nessa direção. Apenas Wladimir Brito (1998), no último artigo da seção, vem reforçar a necessidade de extensão do português a todos os cidadãos cabo-verdianos. Assim, eles poderão participar da comunidade lusófona, outra importante totalidade que é espelho de um passado engrandecido, o Império Cultural Português. O bilingüismo é a única maneira de o povo cabo-verdiano atingir esse duplo pertencimento.

A oposição entre o crioulo e o português, seguida pela busca de dissolução dessa dicotomia, pode também ser interpretada como um produto das dificuldades encontradas no processo de construção do Estado-nação cabo-verdiano, conforme o modelo elaborado no oeste europeu. A ruptura construída entre a língua oficial e a língua nacional, entre o universo das "coisas oficiais" e o universo nacional cabo-verdiano, revela um curioso distanciamento entre o Estado burocrático e a nação. A oposição entre o português e o crioulo simboliza, em última instância, a oposição entre o Estado e a nação, que se apresenta como uma espécie de aberração em face do modelo importado do mundo ocidental. Segundo o modelo de organização social, política, econômica e cultural dos países da Europa Ocidental, o Estado e a nação devem necessariamente andar juntos. O processo de construção nacional é a etapa final de um longo processo de constituição do Estado (cf. Elias 1972:C), no qual, Estado e nação devem compor uma espécie de simbiose, traço distintivo da comunidade política moderna. Mas em Cabo Verde, em lugar de um Estado-nação, os discursos aqui analisados parecem revelar a constituição de um Estado x nação. A proposta de uma política de oficialização do crioulo reflete, assim, a luta pela construção do Estado-nação, com suas partes constituintes não mais dissociadas. O crioulo, que teria nascido junto com a nação cabo-verdiana e permanecido afastado no processo de formação do Estado em Cabo Verde, poderia finalmente participar também desse domínio. E uma grande parcela da população, falante de crioulo e sem acesso à atual língua oficial, poderia enfim usufruir de uma cidadania plena.

Em busca de um crioulo-padrão

A sugestão apresentada no "Dossier: O Bilinguismo" para a reconfiguração da situação lingüística em Cabo Verde tem como condição fundamental para a sua efetivação a padronização do alfabeto e da escrita da língua crioula, objetivo este a ser alcançado com a implementação do ALUPEC. O ideal de uma língua cabo-verdiana padrão, que perpassa a elaboração de tal política lingüística, implica, portanto, duas transformações essenciais na língua crioula. Primeiro, ela deve deixar de ser uma língua exclusivamente oral, passando a atuar também no domínio da escrita. Segundo, esse novo crioulo-padrão deverá se sobrepor à multiplicidade de variantes da língua hoje encontradas por todo o arquipélago, constituindo-se como um novo símbolo de unidade no país. E não apenas a unificação e a capacidade de escrita estariam contempladas na língua-padrão; valores como a eficiência, a funcionalidade e a racionalidade também seriam critérios cuidadosamente observados na criação do novo crioulo (Veiga 1998:96).

A ênfase em um projeto que prioriza a padronização, a homogeneização e a sistematicidade na escrita do crioulo é justificada pelos autores através de uma série de argumentos. Fonseca (1998:106-107), por exemplo, destaca vários planos em que se manifesta a necessidade de padronização do crioulo: 1) no plano prático, a língua-padrão evitaria uma situação extremamente complicada e onerosa que seria criada caso se optasse pela adoção de um alfabeto para cada variante do crioulo; 2) no plano político, a padronização seria um importante fator na preservação da unidade nacional; 3) nos planos financeiro, técnico, pedagógico e organizacional, a adoção de um língua única implicaria custos significativamente menores. Tais argumentos não esgotam, porém, a explicação para a adoção de uma política lingüística de padronização do crioulo. É possível observar por trás dessa discussão outras importantes questões que conformam, em última instância, as ideologias da língua que fundamentam os discursos em prol de um crioulo escrito e devidamente padronizado.

Em primeiro lugar, vale relembrar que a homogeneidade lingüística enquanto condição para a construção da unidade nacional é uma idéia que deriva diretamente de um modelo ocidental de Estado-nação. Assim como, no contexto original de surgimento desse modelo de organização sociopolítica, a unidade pela língua precisou ser cuidadosamente construída, também no caso cabo-verdiano ¾ inspirado pelo primeiro ¾ essa construção se apresenta como uma meta fundamental a ser alcançada.

Outra importante questão a ser considerada é que, embora o discurso elaborado pelos autores aqui analisados preconize a redução da heterogeneidade lingüística e social, preservando a unidade nacional, ele acaba por produzir e reproduzir importantes fatores de desigualdade social. A primazia concedida à escrita padronizada e a todos os valores a ela associados tem conseqüências significativas para a configuração das relações de poder no interior da sociedade cabo-verdiana.

Se nos ativermos às proposições da semiótica de C. S. Peirce, podemos atingir um novo olhar sobre o contraste estabelecido entre a oralidade e a escrita e sobre as conseqüências de uma valorização desta última em relação à primeira. A terminologia semiótica de Peirce distingue três categorias fenomenológicas. De maneira um tanto sucinta, o argumento do autor é que qualquer coisa que seja capaz de se apresentar à contemplação tem três aspectos: a "Primeiridade" (Firstness), a "Secundidade" (Secondness) e a "Terceiridade" (Thirdness) (cf. Daniel 1996:81). A Primeiridade é associada à potencialidade, a Secundidade é associada à existência real e a Terceiridade à generalidade. Concentremo-nos aqui nos dois últimos. Os "Segundos" fenomenológicos são caracterizados pela realidade, o aqui e agora e o contexto. Já os "Terceiros" fenomenológicos são caracterizados pela racionalidade, a convenção, a precisão, a universalidade, a padronização, a autoridade e a eficiência. Passando agora para a questão lingüística, podemos observar que a escrita tende a ser um Terceiro fenomenológico, enquanto a oralidade tende a ser um Segundo fenomenológico. É certo que tais distinções só podem ser pensadas em termos de diferentes ênfases. Não há possibilidade alguma de existência de uma língua oral sem que haja convenção e padronização; da mesma forma, não há uma língua escrita que não partilhe de alguma maneira de uma relação com o contexto, o aqui e agora. Porém, o caráter convencional, com sua constância, invariabilidade, estabilidade, fixidez e regularidade, é muito mais enfatizado na escrita do que na oralidade; da mesma forma, a fluidez, a variabilidade, a flexibilidade e a contingência que caracterizam a Secundidade mostram-se mais presentes no domínio da oralidade.

Faço essas associações a fim de demonstrar como a ênfase na escrita padronizada encontrada no discurso dos autores aqui analisados pode ser percebida, em primeiro lugar, como a ênfase em valores associados ao mundo ocidental e, em segundo, como a afirmação de valores associados à própria elite cabo-verdiana, à qual pertencem os referidos autores. A convenção e a padronização, embora construídas com aparência de neutralidade, estão, de fato, carregadas de valores, como a racionalidade, a universalidade, a igualdade e a justiça. São valores que remetem diretamente à hegemonia do modelo ocidental de organização social e que, portanto, se mostram com especial importância em um discurso que promove a adoção do projeto ocidental de Estado-nação. Da mesma forma, a ênfase na Terceiridade pode ser vista como a retomada da força hegemônica do próprio grupo ao qual pertencem os autores, ou seja, o grupo que detém o controle sobre a escrita e que está associado aos valores de racionalidade, precisão, eficiência e universalidade.

A passagem do crioulo para o domínio da escrita é uma transformação de grande influência na perpetuação do poder exercido pela elite cabo-verdiana. A escrita não é uma tecnologia neutra; ela é um fator essencial na criação de hierarquias. O controle da tecnologia de escrita por apenas uma parcela da população influi sensivelmente na distribuição do poder entre os vários elementos de uma sociedade particular, privilegiando os grupos que têm acesso a essa tecnologia em detrimento dos demais.

Observa-se, assim, que a criação de um crioulo-padrão, ao invés de favorecer a homogeneidade, a neutralidade e a democratização da língua nacional, perpetua antigas desigualdades sociais4. O domínio que a elite cabo-verdiana já exerce sobre a língua portuguesa passa a se estender também à língua crioula escrita. A própria idéia de formar uma "Comissão de Padronização", com o objetivo de criar um alfabeto unificado para a escrita do crioulo, é fundamental nesse processo. A língua crioula, que já é uma realidade em séculos de história do povo cabo-verdiano, é então reconstruída e reordenada segundo os critérios dessa comissão. Com sua fixação na escrita, o novo crioulo, recriado por um aparato estatal, passa a ser um crioulo "domesticado". Através dessa reapropriação da língua crioula pelo Estado, efetua-se uma profunda mudança: o crioulo, antes associado às "massas cabo-verdianas", é agora assimilado e subordinado pelas instituições do Estado e pelas ideologias da elite cabo-verdiana. O monopólio da elite sobre o símbolo do Estado (o português) vem somar-se ao monopólio sobre o símbolo da nação (o crioulo).

Igual, mas separado

Uma outra questão que perpassa o projeto de construção da paridade entre o crioulo e o português (e, de forma implícita, a subordinação de ambas as línguas ao domínio da elite cabo-verdiana) é a luta por uma igualdade apenas de status, com a fronteira entre as duas línguas bem demarcada. Mário Fonseca expõe tal preocupação nos seguintes termos:

"Para muitos nacionais que, no fundo, se contentariam de um estatuto de vassalagem política para Cabo Verde, um alfabeto do Crioulo que não seja uma cópia decalcómana do alfabeto português é uma pura aberração tecnocrática e uma ruptura com a 'nossa' tradição. Ora, é sabido que na relação Crioulo/Português é o primeiro que se deve (dado o parentesco) defender para não perecer. Isso significa que o alfabeto a ser adoptado deve permitir uma DIFERENCIAÇÃO VISUAL imediata, não podendo pois por essa razão e por diversas outras que têm a ver com a estrutura profunda do Crioulo, ser uma cópia do alfabeto da Língua Portuguesa [...]" (Fonseca 1998:102).

O cuidado com a escolha da lógica ortográfica que orientará a padronização da escrita do crioulo envolve muito mais do que uma preocupação com a preservação da língua crioula e com a sua oficialização, em pé de igualdade com o português. O debate em torno da questão lingüística envolve diretamente questões relacionadas à identidade social. Se a construção da identidade cabo-verdiana se dá por um processo de oposição a um Outro ¾ seja ele o português, o africano ou ambos ¾, o mesmo se dá com a construção da língua crioula. Nos termos de Fonseca, é preciso estabelecer uma "diferenciação visual imediata" entre o português e o crioulo, de forma a colocar em evidência a fronteira entre as duas línguas e, paralelamente, entre as duas comunidades políticas ¾ Portugal e Cabo Verde.

A sugestão dos autores para alcançar essa diferenciação imediata é a adoção de uma ortografia de base fonológica na padronização da escrita do crioulo. Conforme esse modelo, a cada fonema se associa um grafema e vice-versa. O critério fundamental na determinação de uma letra não é sua base etimológica, mas sobretudo sua função lingüística. Tal modelo ortográfico não seria apenas mais "funcional" e "econômico", como argumenta Veiga (1998:97), seria também de importância crucial para singularizar a língua crioula, uma vez que promove uma ruptura com suas raízes na língua portuguesa. É através desse distanciamento em relação ao português que o crioulo poderá se consolidar enquanto língua original. E como podemos observar no discurso de Fonseca citado acima, não apenas a língua crioula está em jogo nesse processo, mas a própria afirmação da soberania do Estado-nação cabo-verdiano.

Onde os discursos constroem o silêncio

Em todo o debate em torno da padronização e oficialização do crioulo, algumas questões de importância crucial permanecem silenciadas. Em primeiro lugar, nenhuma reflexão é desenvolvida a respeito das questões políticas envolvidas na escolha de um modelo único de crioulo. Conforme a sugestão dos autores, a nova língua-padrão deve ser capaz de representar todas as variantes do crioulo que se encontram dispersas pelo arquipélago, contribuindo assim não apenas para a unificação dessas variantes, mas também para a unificação nacional. Essa ideologia da unificação, fundamentada na homogeneidade lingüística, vem de encontro a uma realidade caracteristicamente marcada pela pluralidade, como é o caso do contexto cabo-verdiano. E além de favorecer o aniquilamento dessa pluralidade, a adoção de uma língua única, padronizada, implica ainda a escolha de um modelo que deverá se sobrepor a todos os outros, promovendo a hierarquização das variedades lingüísticas.

Uma série de questões logo se coloca diante dessa situação: qual variante do crioulo tomar como base na construção da língua-padrão? qual variante seria mais representativa? quais critérios utilizar na escolha desse modelo lingüístico? Nenhuma das possíveis respostas a estas questões é totalmente neutra. A eleição de qualquer das alternativas estará certamente fundamentada em um jogo de interesses e resultará sempre em uma reconfiguração das relações de poder. A opção por determinado modelo implica a valorização de uma variante lingüística em detrimento das outras, e o padrão hegemônico apoiado pelo Estado sempre beneficiará algum grupo social em particular. O grupo com maior proximidade em relação à variante do crioulo eleita como modelo terá seguramente maiores privilégios. Para o restante da população, a língua-padrão se distanciará de sua língua nativa, o que pode se tornar uma desvantagem significativa, especialmente na educação escolar.

Outra questão importante que não aparece na discussão desenvolvida pelos autores aqui analisados refere-se à possibilidade de descaracterização do crioulo como língua oral. A passagem do crioulo do domínio da oralidade para o da escrita pode implicar uma transformação profunda nesta língua. A luta dos autores pela padronização da escrita do crioulo, definida como uma luta a favor da preservação da "língua nacional", pode ter como resultado a descaracterização de seus traços mais fortes: a dinâmica, a variabilidade, a flexibilidade, a inventividade, o caráter contextual ¾ todas estas tendências associadas à oralidade (cf. Goody 1996; 2000). Na passagem para a escrita, novos valores são priorizados: a fixidez, a regularidade, a rigidez, a estabilidade, a uniformidade, o distanciamento em relação ao contexto ¾ enfim, novamente o Terceiro fenomenológico de Peirce. E mesmo que não haja no momento evidências empíricas dessa transformação, ela deve permanecer como uma hipótese cuidadosamente considerada na implementação de tal política lingüística.

A passagem da oralidade para a escrita implica ainda outro dilema, também silenciado pelos autores. Trata-se da questão da autoridade. A implementação da escrita do crioulo pode resultar na imposição de um modelo "univocal" em um contexto originalmente "plurivocal" no que se refere às narrativas sobre a história e a identidade cabo-verdianas. A variabilidade e a dinâmica características das culturas orais possibilitam a preservação de um contexto rico em sua diversidade. A oralidade tende a favorecer a coexistência de uma multiplicidade de narrativas na construção da memória, da identidade e da própria nação. A adoção da escrita vem modificar profundamente este quadro. Com ela, é introduzido também um novo critério de autoridade e instituída uma visão única, monolítica, exclusivista. O poder de controlar a verdade torna-se estreitamente associado ao acesso à tecnologia da escrita. O documento escrito substitui a memória e transforma-se em fonte de evidência e legitimidade. Tudo o que se desvia do texto escrito tende a ser visto como não autêntico e, portanto, a ser silenciado. Dessa forma, o texto escrito redefine a história, a identidade e a verdade (cf. Trajano Filho 1993; Trouillot 1995).

Não podemos esquecer que a população cabo-verdiana já vivencia uma realidade semelhante no que diz respeito ao uso da língua portuguesa. Prevalecendo no domínio da escrita o português, os grupos com acesso a essa língua já exercem um controle significativo no que se refere à produção de narrativas históricas. A história da "nação crioula" é contada, em larga medida, em língua portuguesa. Mas a coexistência do crioulo enquanto língua oral possibilita a formação de um outro campo, paralelo, onde a autoridade se vê sujeita a questionamentos, abrindo espaço para uma maior dinâmica na discussão sobre a formação da memória, da identidade e, em última instância, da nação cabo-verdiana. Com a efetivação do projeto de fixação do crioulo na escrita, possibilita-se, por um lado, a existência de uma história cabo-verdiana produzida e registrada em crioulo; por outro, tende a haver também uma dissolução desse campo alternativo e dinâmico da oralidade e a consolidação de um modelo univocal na construção da cabo-verdianidade.

Por fim, um outro ponto que nunca é explicitado na discussão do "Dossier: O Bilingüismo" é a impossibilidade de a língua crioula desfrutar dos mesmos privilégios de que desfruta o português nas relações externas. É curioso que, em um discurso direcionado para a adoção de uma política de bilingüismo, com as duas línguas tendo o mesmo status, a incapacidade diplomática do crioulo seja simplesmente silenciada. Devemos observar, porém, que os artigos analisados se fundamentam, em última instância, em um discurso de construção da nação cabo-verdiana. Nesse sentido, as desvantagens do crioulo devem ser cuidadosamente encobertas, ressaltando-se apenas sua grandiosidade e importância para a formação do Estado-nação cabo-verdiano.

Considerações finais

As questões abordadas neste ensaio não se pretendem, de maneira alguma, afirmações fechadas. Trata-se apenas de reflexões que, partindo da análise de artigos produzidos por autores cabo-verdianos, apontam para uma série de possibilidades em relação à situação lingüística vivenciada em Cabo Verde.

Contudo, dois pontos de importância mais geral merecem ser destacados. Em primeiro lugar, as discussões que constituem o presente artigo reforçam a necessidade de se desenvolver um novo olhar sobre a questão lingüística, de forma a confrontar os campos da língua, da política e da identidade. A relação profunda entre esses três domínios, como pôde ser observado na análise do caso cabo-verdiano, exige uma abordagem totalizante, sem a exclusão de qualquer desses campos.

Por fim, as discussões também apontam para a necessidade de abordar os processos de construção nacional como produtos de complexas disputas de interesses. É preciso ressaltar que a apropriação do modelo ocidental de Estado-nação não se faz de forma passiva, exigindo amplas negociações e adaptações a cada contexto particular. E esses contextos não podem ser vistos como blocos relativamente homogêneos, agindo em prol de um objetivo comum. Devem, sim, ser encarados como configurações singulares de tensões internas, originadas na interação entre uma diversidade de grupos, com interesses divergentes e concorrentes. É somente através da disputa entre esses diferentes grupos e da reconfiguração das relações de poder que o projeto ocidental de Estado-nação vai sendo apropriado. O Estado-nação não se ergue sobre uma totalidade homogênea, mas é construído sobre hierarquias estabelecidas ao longo de um complexo processo de formação nacional.

Recebido em 1o de junho de 2001

Aprovado em 3 de dezembro de 2001

Juliana Braz Dias é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília.

Notas

Resumo

O objeto de análise deste artigo é o debate no seio de um grupo de intelectuais cabo-verdianos em torno da situação lingüística em Cabo Verde. Suscitado pelo problema da criação da imagem de um Estado único e indivisível em um contexto marcado pela pluralidade linguística, esse debate revela como a questão da língua pode constituir um obstáculo à adequação dos países periféricos ao modelo de organização social, política, econômica e cultural representado pelo Estado-nação. As propostas de padronização e oficialização da língua crioula são abordadas a fim de revelar os interesses de grupo que orientam tal perspectiva e as possíveis conseqüências desta política lingüística que, apesar de seu impacto na sociedade cabo-verdiana, permanecem silenciadas nos discursos analisados.

Palavras-chave Cabo Verde, Estado-Nação, Língua, Poder, Crioulo, Cabo-Verdiano.

Abstract

This article aims to analyze the debate taking place among a group of Cape Verdean intellectuals concerning the linguistic situation in Cape Verde. Motivated by the problem of creating the image of a single and indivisible State in a context marked by linguistic plurality, this debate reveals how the question of language can act as an obstacle for developing countries in terms of attaining the social, political, economic and cultural organization represented by the Nation-State. Proposals to make Creole a standard and official language are examined in order to expose the interests of the group promoting this standpoint, as well as the possible consequences of this kind of linguistic politics, which despite its impact on Cape Verdean society, remain silenced in the analyzed discourses.

Key words Cape Verde, Nation-State, Language, Power, Cape Verdean Creole

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  • *
    Agradeço à professora Mariza Peirano e aos pareceristas anônimos de
    Mana pelas leituras e sugestões a este artigo.
  • 1
    Até o momento de publicação dos artigos analisados neste ensaio, o ALUPEC ainda não havia sido institucionalizado. Infelizmente, não disponho de dados sobre a situação atual.
  • 2
    "O cabo-verdiano, enquanto língua falada, existe desde que no chão de nossas ilhas tomou corpo a nação cabo-verdiana."
  • 3
    Para maiores informações a respeito destas e ainda outras hipóteses sobre a gênese dos pídgins e crioulos, ver Couto (1996).
  • 4
    A análise de Errington (2000) sobre a criação da língua indonésia padrão também revela um processo em que o desenvolvimento de uma nova língua reproduz velhos marcadores de distância social.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jul 2002
    • Data do Fascículo
      Abr 2002
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