Open-access Les guerres de la vierge: une anthropologie des apparitions

RESENHAS

Emerson Giumbelli

Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia / IFCS / UFRJ

CLAVERIE, Élisabeth. 2003. Les guerres de la vierge. Une anthropologie des apparitions. Paris: Gallimard. 452pp.

Medjugorje, no começo da década de 1980, era um vilarejo situado em território iugoslavo, e os parcos rendimentos de sua economia rural não eram páreo para outras fontes de renda em países ao ocidente, para onde iam muitos dos homens da região. Ao final do mesmo século, Medjugorje passara a se localizar na Bósnia-Herzegovina e já juntava todos os recursos que se espera da vida urbana, compartilhados por seus habitantes e também por peregrinos vindos de muitos lugares do mundo e soldados de forças militares internacionais. No ínterim, uma guerra e uma virgem. Pois é exatamente a aparição de Maria, ocorrida pela primeira vez em junho de 1981 para uma meia dúzia de videntes, quase todos adolescentes, em uma Medjugorje sacudida por transformações, que constitui o objeto imediato do livro da antropóloga francesa Elisabeth Claverie.

Antes de acompanharmos os passos de Claverie, é importante mencionar que as últimas três décadas têm registrado um enorme número de aparições marianas pelo mundo — e não apenas em regiões tradicionalmente católicas. O Brasil não é exceção, e já temos pelo menos um livro dedicado a compilar diferentes casos (Maria entre os Vivos: reflexões teóricas e etnografias sobre aparições marianas no Brasil, organizado por C. Steil, C. Mariz e M. Reesink, Editora da UFRGS, 2003). Mas Medjugorje não é apenas mais um caso, e sim aquele que atrai as maiores atenções e que foi se tornando, com sua difusão, uma espécie de modelo para muitas outras aparições. Por sua repercussão, amplifica o que há de interessante no tema em si das aparições: os embates que ocorrem no universo do catolicismo (Medjugorje, como todos os demais casos contemporâneos, não goza de reconhecimento oficial, e no entanto se reproduz por conta de cosmologias, instituições e agentes ligados ao catolicismo), as relações entre religião e ciência (em torno da autenticidade do fenômeno), as articulações entre dimensões espirituais, políticas e econômicas (dadas as transformações no contexto em que ocorrem).

O livro de Claverie desenvolve-se em três partes bem distintas. Na primeira delas, as diversas estações de uma peregrinação são reconstituídas com base em observações que se iniciaram em 1987. A narradora nos faz acompanhar grupos de devotos franceses, desde seu encontro em um aeroporto de Paris até a despedida de Medjugorje. Ficamos assim conhecendo o percurso de um peregrino por meio de uma descrição que não se atém apenas aos pontos religiosos, mas também aos translados, acomodações, refeições e compras. No que tange aos primeiros, as referências carismáticas e o protagonismo assumido pelos franciscanos ganham o maior destaque. O trajeto compreende a visita à casa de uma das videntes, a subida ao monte onde ocorreram as primeiras visões, a ida a um monastério franciscano nas imediações. O ponto alto é a missa, sempre rezada em croata, com pregação em estilo pentecostal e bênção de objetos e de doentes, mesma ocasião na qual continuam a ocorrer as aparições. Ou seja, todos os dias, entre 18:30h e 19:00h, Maria aparece a todos ou a alguns dos mesmos videntes; as mensagens são repassadas a um padre franciscano, traduzidas em diversas línguas e rapidamente difundidas mundo afora.

Nessa parte do trabalho, Claverie assinala a articulação entre os pedidos dos devotos (curas, consolo, êxito em empreendimentos, etc.) e os vários mediadores que se encontram no percurso (desde os organizadores e acompanhantes que, sem deixar de serem devotos especiais, se organizam em agências turísticas; passando pelos dirigentes carismáticos, padres franciscanos e videntes; até a própria Virgem Maria, capaz de intervir junto a Deus). O encontro com esses mediadores ocorre em meio a dispositivos, que articulam situações, objetos, lugares de culto em uma seqüência determinada. São os mediadores que garantem a satisfação das demandas, que são por conta disso reformuladas e filtradas no percurso. E são mediadores e dispositivos que propiciam a experiência pelos devotos de estados que certificam o êxito da peregrinação, estados que se anunciam desde a partida e que precisarão ser recuperados quando do retorno.

Na segunda parte, a autora acompanha as disputas que cercam a Virgem de Medjugorje - sua autenticidade, seu estatuto, seu significado. A princípio, as disputas que terminam em uma espécie de ajuste entre os videntes e certos padres franciscanos e que sela a sua aliança em apoio à autenticidade das aparições. Esse ajuste, analisado tendo como base os registros de interrogatórios dos videntes pelos padres, teve como pivôs duas questões: o lugar das aparições, que se desloca de um monte para o templo; o estatuto das mensagens, que ganham caráter coletivo, adotando a forma de mensagens dirigidas a enormes públicos (no limite, o mundo inteiro). Essas definições ocorrem nos dois primeiros meses após o início das aparições e envolvem não apenas os videntes e padres franciscanos, mas também familiares, vizinhos, autoridades civis e religiosas. A intervenção dessas autoridades é então seguida da repercussão do evento para audiências cada vez mais amplas: imprensa e funcionários nacionais, o Vaticano e a imprensa católica de vários lugares, a imprensa internacional. Claverie observa nessa extensão uma controvérsia dominada por outro tipo de argumento, que desloca o foco da relação vidente-aparição para fatores sempre mais gerais: "complô franciscano", "manipulação religiosa", enfim, algum tipo de "uso político da religião".

Um outro terreno de disputas envolve a Virgem com a guerra que assolou a região entre 1992 e 1995. Medjugorje está situada em uma área cuja população é predominantemente croata; durante a guerra, havia reivindicações para que passasse a fazer parte da Croácia, cujas fronteiras não ficam muito longe dali; mas afinal ficou pertencendo à Bósnia, país onde os croatas estão entre as minorias. Claverie procura mostrar como a Virgem de Medjugorje ficou associada às causas croatas. Sua principal peça de demons-tração é o livro, espécie de diário de guerra, de um padre franciscano, partidário das aparições. Nele, forja-se, segundo a autora, uma configuração escatológica que situa a Virgem na história recente e remota da região. Maria torna-se aí a mediadora do reencontro dos croatas com seu passado e da promessa da conquista de um futuro de autonomia. Celebra-se, assim, não apenas o fim do comunismo, mas também as causas dos nacionalistas croatas e suas ações políticas e militares.

Na última parte, a autora regressa aos primórdios do cristianismo, para acompanhar alguns debates que definiram a Virgem Maria como Mãe de Deus. Além dos evangelhos, são analisados textos produzidos por polemistas cristãos dos primeiros cinco séculos. Claverie procura mostrar como um certo entendimento sobre Maria foi crucial para a definição da identidade de Jesus Cristo. Assim, as posições vencedoras, do ponto de vista de decisões conciliares, consa-gram dois princípios teológicos cruciais. De um lado, a humanidade de Maria serviu como uma das provas da corporeidade efetiva de Jesus Cristo; de outro, a unidade de substância entre Deus e Cristo, afirmada por aqueles que defendiam a divindade plena de Jesus, inter-feriu no estatuto de Maria, que passa a representar uma humanidade regenerada pelo contato com a divindade. Anúncio de um novo início atrelado a uma promessa de resgate final. Em debates que articulam questões ginecológicas e metafísicas, Maria emerge como Mãe de Deus, mas também como a Senhora do Apocalipse, pelo papel que lhe coube na obra de salvação dos homens.

Percebe-se como cada uma das três partes possui objetos próprios e trabalha sobre materiais específicos: etnografia da peregrinação, análise das disputas e história de debates. Além disso, com a terceira parte, o livro extrapola Medju-gorge e deixa claro que se pode vê-lo como um caso entre outros. No entanto, uma articulação entre essas partes e Medjugorge jamais sai de questão. Assim, Claverie pretende mostrar que a aceitação das aparições não se faz sem suspeitas, e essas suspeitas são compartilhadas por peregrinos que vão ao local e pelos padres que interrogam os videntes. A incursão aos primórdios do cristianismo revelaria uma gramática das aparições e, de fato, a análise encontra no passado remoto temas (como os da escatologia e da reversibilidade) já assinalados entre peregrinos e religiosos. De certa forma, o percurso do livro explora referências que surgem nos relatos dos devotos, que vão em busca das personagens da aparição e realizam constantemente articulações entre as suas vidas e a biografia da Virgem. Enfim, e sobretudo, as três partes exploram cada uma a seu modo o tema que é verdadeiramente o objeto mais geral do livro: "a questão das modalidades de presença" (:40).

Nessa questão, religião e política se imbricam constantemente. Ora essa imbricação se manifesta consideradas aquelas categorias na acepção que lhes conferem os agentes estudados. Por exemplo, nas referências dos devotos ao "comunismo" ou nos motivos políticos da prisão de um franciscano ainda em 1981. Mas Claverie insiste na idéia de que nas aparições marianas religião e política mantêm uma articulação necessária e que impede que se reduza uma categoria à outra: experiências íntimas dialogam com o mundo e os efeitos políticos dependem sempre de cosmologias religiosas. Os sentidos atribuídos a tais categorias são (mas nem sempre, como veremos) relativizados, de modo que o livro de Claverie não se assenta nem sobre uma socioantropologia da religião, nem sobre uma socioantropologia política. De fato, a inspiração mais geral vem da lingüística.

Recuperando debates do positivismo lógico, a autora se coloca ao lado de uma perspectiva a um só tempo pragmática e jurídica: "Para os peregrinos, o primeiro acesso à 'Virgem' é sobretudo uma provação lingüística" (:34). Invocar a Virgem é participar de um dispositivo em que sua evocação ganha sentido, aceitando colocar-se sob constantes provas, que devem resistir tanto ao retorno para casa, quanto às suspeitas de insensatez. Ao optar por uma abordagem que enfatiza os usos da linguagem (em seus jogos de enunciação), Claverie não pretende abandonar a dimensão referencial ou proposicional, pois o que está em fabricação é exatamente um objeto capaz de cumprir o papel de sujeito. Assim, se a aparição se cria na asserção da existência da Virgem em um ato de linguagem protagonizado por um vidente, este, por outro lado, não existe sem a aparição. Mais um exemplo: o discurso nacionalista que martiriza padres franciscanos croatas assassinados durante a II Guerra não se livra dos fantasmas que são os mortos massacrados por outros croatas e depositados em uma vala situada bem próxima ao local das aparições.

Adotando essa perspectiva, não deixa de ser curioso perceber como aqui e ali religião e política aparecem em acepções algo limitadas. Ao comentar o que diagnostica como um processo de vitimização generalizada e como certas devoções em torno de Medjugorje participam dele, Claverie lamenta que os sucessivos crimes durante os conflitos da década de 90, justificados por outros do período da II Guerra, não sejam considerados no âmbito de "instituições propícias" (:264). Pelas referências positivas aos julgamentos de tribunais internacionais, deduzimos que o que torna propícias tais instituições é sua natureza "política" por oposição à "religiosa". De modo semelhante, a autora parece reificar a religião ao opor dois regimes enunciativos, entre os quais os peregrinos estão constantemente oscilando: um regime "devocional" e um regime "ordinário". Numa evocação a J. Cortázar, pode-se perguntar se o cotidiano e o ordinário precisam do "religioso" para conviver com o fantástico.

Mas nada disso abala as virtudes de um grande livro. Ao enfatizar "as dificuldades e as incertezas de um ato cultual de devoção" (:45), Claverie discute a dimensão das crenças considerando tanto as situações concretas em que são enunciadas, quanto as provas às quais estão necessariamente sujeitas. Inscrita na disputa entre vários jogos de enunciação e convertida em sujeito, a Virgem pode ser tão real quanto são fantasmáticos os corpos depositados nas imediações de Medjugorje.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Set 2005
  • Data do Fascículo
    Abr 2005
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