Resumos
No segundo semestre de 2000, acompanhei a etapa final de um processo de mobilização para uma ocupação de terras no estado do Rio de Janeiro. Esse processo, organizado pelo MST/RJ, envolveu a realização de reuniões preparatórias, as chamadas reuniões de frente de massa. Por meio da descrição e da análise de algumas dessas reuniões, examino neste artigo como foi o processo de mobilização. Focalizando o ponto de vista dos organizadores, apresento as estratégias adotadas e discuto seus limites, possibilidades e contradições. De um ponto de vista mais amplo, o texto insere-se na discussão sobre a constituição dos movimentos sociais no Brasil. Nesse sentido, aponto para os limites de dois tipos de abordagens: aquelas que reivindicam um caráter espontâneo para a formação dos movimentos sociais, e aquelas que percebem esses processos como novas formas de se reproduzirem antigos modelos da relação patrão-empregados.
Mobilizações Camponesas; Ocupações de Terra; Movimentos Sociais; Acampamentos de Trabalhadores Sem-Terra; Reforma Agrária
In the second half of 2000, I accompanied the final phase of a land occupation campaign in Rio de Janeiro state. Organized by the Rio de Janeiro Landless Workers Movement (MST/RJ), this campaign involved a series of preparatory meetings, called mass front meetings. Starting with a description and analysis of some of these meetings, I examine how the campaign process unfolded. Focusing on the viewpoint of the organizers, I present the adopted strategies and discuss their limitations, possibilities and contradictions. From a wider viewpoint, the text looks to contribute to the current debate concerning the formation of social movements in Brazil. To this end, I point out the limitations of two kinds of approach: those which claim social movements form more or less spontaneously, and those which perceive these processes as new forms of reproducing old models of the boss-employee relationship.
Rural Workers Campaigns; Land Occupations; Social Movements; Landless Workers Camps; Agrarian Reform
ARTIGOS
Entre a "violência" e a "espontaneidade" reflexões sobre os processos de mobilização para ocupações de terra no Rio de Janeiro*
Marcelo Ernandez Macedo
Marcelo Ernandez Macedo é professor adjunto da UERJ e pesquisador associado ao PPGAS/ Museu Nacional/ UFRJ. E-mail: <marcelo.ernandez@terra.com.br>
RESUMO
No segundo semestre de 2000, acompanhei a etapa final de um processo de mobilização para uma ocupação de terras no estado do Rio de Janeiro. Esse processo, organizado pelo MST/RJ, envolveu a realização de reuniões preparatórias, as chamadas reuniões de frente de massa. Por meio da descrição e da análise de algumas dessas reuniões, examino neste artigo como foi o processo de mobilização. Focalizando o ponto de vista dos organizadores, apresento as estratégias adotadas e discuto seus limites, possibilidades e contradições. De um ponto de vista mais amplo, o texto insere-se na discussão sobre a constituição dos movimentos sociais no Brasil. Nesse sentido, aponto para os limites de dois tipos de abordagens: aquelas que reivindicam um caráter espontâneo para a formação dos movimentos sociais, e aquelas que percebem esses processos como novas formas de se reproduzirem antigos modelos da relação patrão-empregados.
Palavras-chave: Mobilizações Camponesas, Ocupações de Terra, Movimentos Sociais, Acampamentos de Trabalhadores Sem-Terra, Reforma Agrária
ABSTRACT
In the second half of 2000, I accompanied the final phase of a land occupation campaign in Rio de Janeiro state. Organized by the Rio de Janeiro Landless Workers Movement (MST/RJ), this campaign involved a series of preparatory meetings, called mass front meetings. Starting with a description and analysis of some of these meetings, I examine how the campaign process unfolded. Focusing on the viewpoint of the organizers, I present the adopted strategies and discuss their limitations, possibilities and contradictions. From a wider viewpoint, the text looks to contribute to the current debate concerning the formation of social movements in Brazil. To this end, I point out the limitations of two kinds of approach: those which claim social movements form more or less spontaneously, and those which perceive these processes as new forms of reproducing old models of the boss-employee relationship.
Key words: Rural Workers Campaigns, Land Occupations, Social Movements, Landless Workers Camps, Agrarian Reform
Introdução
Alguns estudos recentes, tais como os de Fernandes (2000), Sigaud (2000), Alentejano (2003) e Medeiros et alii (2004), vêm mostrando a existência de uma relação direta entre as ações de ocupação de terra e a efetivação de assentamentos rurais. Estes últimos, quase todos implantados no Brasil após o período da abertura democrática, foram precedidos de ocupações e acampamentos organizados pelos chamados movimentos sociais. Em outras palavras, a experiência recente evidencia que as ocupações tornaram-se a forma apropriada para reivindicar terras, sendo relevante a realização de estudos sobre essas ações sociais.
Na segunda metade da década de 1990, as pesquisas de campo nos acampamentos da Zona da Mata Sul pernambucana, coordenadas pela Professora Lygia Sigaud, reunindo pesquisadores do Museu Nacional/UFRJ, da École Normale Supérieure e da École des Hautes Études (Paris), constituem referências teóricas fundamentais para o estudo dos acampamentos. Em um primeiro texto, publicado no final de 2000, Sigaud, ao verificar a eficácia dos acampamentos como "uma linguagem pela qual os indivíduos fazem afirmações simbólicas", definiu-os como uma forma social específica: a "forma acampamento" (Sigaud 2000:85-86). Eles constituem uma linguagem social na medida em que veiculam a reivindicação da desapropriação da fazenda ocupada para distribuição de parcelas entre as famílias acampadas1.
Essa linguagem ou forma social tem seus próprios processos de constituição, com uma tecnologia de mobilização das famílias e realização das ocupações que comporta variações de acordo com as conjunturas específicas; possui as lonas (para cobrirem as barracas) e bandeiras (que indicam a instituição que organiza o acampamento) como principais símbolos e um modelo de organização social próprio, que vem se transformando ao longo do tempo, também com variações caso a caso. Sigaud sugere que somente explorando a diversidade dessa forma social será possível formular hipóteses a respeito das condições sociais que têm contribuído para a sua constituição e reprodução ampliada (Sigaud 2000:85-86).
Os dados etnográficos reunidos, entre 1997 e 1999, por esse grupo de pesquisadores deram origem a alguns outros textos que exploraram a diversidade de casos específicos encontrados no contexto pernambucano. Entre esses textos, podem ser destacados os de Smircic (2000), Fajolles (2000) e L'Estoile (2001)2. Mais recentemente, utilizando outros referenciais teóricos, autores como Lopes (2002) e Brenneisen (2003) vieram contribuir para o estudo dos acampamentos.
Se os acampamentos ainda são pouco estudados, os processos de mobilização que deram origem a eles o são menos ainda. Dentre os poucos autores que analisam o período do acampamento, parte não examina o processo de sua constituição e, mais especificamente, como os participantes foram mobilizados para participar das ocupações. Constituem exceções os trabalhos que oferecem descrições detalhadas sobre esses procedimentos, entre os quais se destacam os de Lima Jr. (1988), Menezes (1991), Rosa (2000), Smircic (2000) e Brenneisen (2003).
Lima Jr. (1988) descobre o processo de ocupação da Fazenda Anoni, no Rio Grande do Sul, evidenciando o propósito dos ocupantes em recriarem as relações que seus antepassados tiveram com a terra. O ator destaca a importância das redes religiosas, de amizade, de vizinhança e as relações de parentesco nas ações de mobilização para a ocupação.
Menezes (1991), por meio de um estudo sobre identidade social na Baixada Fluminense, descreve e analisa o processo de formação dos "mutirões" nome dado aos acampamentos do Rio de Janeiro nos anos 1980 partindo da análise de um caso específico em Nova Iguaçu. O trabalho aponta para o viés urbano dos acampados na Baixada Fluminense no que diz respeito às suas motivações e à origem social. Outro estudo sobre as mobilizações no campo no Rio de Janeiro é a dissertação de mestrado de Mário Grynszpan (1987). Referido ao período pré-64, o trabalho enfatiza a disputa pela representação dos trabalhadores rurais e fornece algumas informações sobre como os lavradores eram mobilizados para os conflitos agrários. Assim como Lima Jr., aponta para a influência das relações de parentesco nos processos de mobilização3.
Rosa (2000), ao realizar pesquisa sobre o acesso às políticas públicas municipais por parte de um grupo de assentados de um município próximo a Porto Alegre, reconstituiu o decurso de formação do acampamento que precedeu o assentamento. Utilizando como referenciais teóricos principais o conceito de "figuração" e as dinâmicas entre "estabelecidos" e "outsiders", presentes na obra de Norbert Elias, o autor aponta para a relação entre a origem social do assentado e o acesso às políticas públicas municipais. Fica também evidente nesse estudo a grande amplitude dos processos de mobilização levados a cabo pelo MST no Rio Grande do Sul, onde o Movimento tem uma base social bastante ampla (foram contabilizadas na amostra pesquisada, famílias oriundas de 26 municípios diferentes).
Smircic (2000) realizou uma etnografia da ocupação de terras em um engenho na Zona da Mata Sul do estado de Pernambuco. Assim como Lima Jr. (1988) e Grynszpan (1987), o autor aponta para as relações de amizade e parentesco como base para a mobilização das famílias, visando à ocupação e ao posterior ingresso no acampamento.
Brenneisen (2003) analisa um caso em que posseiros solicitaram a intervenção do MST para se manterem em uma área que já ocupavam havia muitos anos. O acampamento foi inicialmente composto pelos próprios posseiros, ganhando adesões ao longo do tempo. Este estudo revela a possibilidade de inversão no sentido da mobilização de agentes mobilizadores, os militantes do MST passaram a ser os agentes mobilizados o que coloca a centralidade dos movimentos sociais nos processos de assentamento, fenômeno ressaltado por Rosa (2004) em sua tese de doutorado e denominado pelo autor de "forma movimento".
Mesmo com essas importantes contribuições, pode-se dizer que as maneiras de mobilização de famílias que tomam parte nas ocupações de terra no Brasil ainda são pouco conhecidas, até porque, mesmo entre os estudos citados, nenhum deles tem como foco a mobilização para a participação. Talvez um dos motivos da ausência de trabalhos que visem a esta questão seja a suposição implícita na literatura mais recente sobre movimentos sociais da espontaneidade da atuação dos sujeitos neles envolvidos.
De maneira especial, a literatura que qualifica como "novos" os movimentos sociais pós-70, tem a tendência de naturalizar os processos de iniciativa para a participação, parecendo confundi-los com o estilo de gestão adotado nesses movimentos. Em tal naturalização, esses autores pulam etapas dos procedimentos para a sua constituição, parecendo acreditar que o caráter democrático ou participativo de gestão que suas lideranças possam vir a adotar elimina o problema da mobilização para a participação. Fica a impressão de que os movimentos surgiram de repente, como em um passo de mágica. De uma hora para outra estariam todos ali reunidos, comungando demandas de modo democrático, fazendo reivindicações e organizando manifestações para que estas venham a ser atendidas.
Se, por um lado, a mobilização é encarada por alguns como algo espontâneo, é vista como ato de violência por outros. Alguns autores acreditam que aqueles que participam de ações de ocupação de terras o fazem por algum tipo de constrangimento. Navarro (2002:229), por exemplo, afirma que as famílias mobilizadas "desconheceriam os objetivos do MST", o qual, por meio dos seus militantes, exerceria as "formas de mando usuais no meio rural brasileiro, antes exercidas pelos grandes proprietários de terra e seus prepostos, hoje materializados sob outras formas e acobertados pelo discurso progressista". Martins (2003:47), por sua vez, enfatiza as descontinuidades vivenciadas a partir da entrada nos acampamentos e, em relação à mobilização, afirma:
Tudo isso indica que o assentado não é uma pessoa aberta para o inesperado nem aberta para o repentino. No fundo, há uma grande violência envolvida na mobilização e na indução para saltar por cima da lei e das regras que ordenam as relações sociais responsáveis pelas injustiças de que é vitima.
Balizado por essas duas posições sobre os processos de mobilização para ocupações de terra no Brasil ("espontaneidade" x "violência"), procurarei por meio deste artigo oferecer a minha contribuição para o problema. Nesse sentido, descreverei e analisarei uma ação recente (2000) de mobilização para ocupação de terra organizada pelo MST/RJ4. Mais especificamente, estarei tentando responder às seguintes questões: Quais eram as propriedades sociais daqueles que conduziram o processo de mobilização? Quais foram as principais estratégias adotadas? Quais os limites e as possibilidades das estratégias adotadas? Em última instância: como as pessoas foram mobilizadas para participar da ocupação e do acampamento? Vale ressaltar que as respostas a essas questões restringem-se ao universo estudado, a saber, a região norte-fluminense. Não obstante, o artigo pretende lançar luzes sobre as diferentes maneiras de mobilização desenvolvidas em outros lugares do país, até mesmo porque, como veremos, existe um modelo hegemônico que vem sendo adotado para esse fim.
O processo de mobilização que tive a oportunidade de acompanhar envolveu a realização de reuniões preparatórias para a ocupação e a formação do acampamento. O trabalho de organização dessas reuniões era chamado pelos militantes5do MST/RJ de trabalho de base e as reuniões eram denominadas reuniões de frente de massa. Segundo informaram os organizadores das reuniões, estas constituem a atividade principal de um modelo de mobilização que vem sendo adotado pelo MST em diversos estados do país. Foram realizadas reuniões de frente de massa em quatro municípios: Itaboraí, Conceição de Macabu, Macaé e Santa Maria Madalena6. Em Carapebus, apesar da tentativa de se organizarem as reuniões, estas nunca chegavam a acontecer. As reuniões ocorreram durante cerca de sete meses, de abril a novembro de 2000.
As descrições e as análises que realizarei estão baseadas no acompanhamento de cinco reuniões promovidas por militantes do MST/RJ, acontecidasnos dois meses que antecederam a ocupação em diferentes bairros de Conceição de Macabu (Porto, Vila São José e Piteira), em Santa Maria Madalena e em Itaboraí. Estive também em Carapebus e Macaé, mas os eventos programados não se deram por falta de quorum. Além de acompanhar os encontros, tive algumas conversas informais com militantes e entrevistei sobre o assunto pessoas que cederam suas casas para a realização de reuniões, além de um militante do MST/RJ. Na entrevista feita com ele (em novembro de 2002), tentamos reconstituir todo o processo de mobilização que será descrito e analisado neste trabalho7.
As reuniões de frente de massa
Em Conceição de Macabu foram realizadas reuniões em quatro bairros: Piteira, Porto, Rhodia e Vila São José. No bairro da Piteira, os encontros aconteciam no quintal da casa de um morador, em um espaço destinado às rinhas de galos. Os interessados ouviam os discursos dos militantes sentados em uma pequena arquibancada que, durante as rinhas, servia para abrigar as torcidas. Na Vila São José, as reuniões ocorreram na Secretaria do MST/RJ, instalada no segundo andar da casa que o presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Conceição de Macabu estava construindo. Durante as obras, o local serviu temporariamente como secretaria e espaço para a realização de encontros. No bairro do Porto, as primeiras reuniões se deram em uma casa vazia cedida por um dos participantes. O local foi mudado quando apareceu uma proposta para o aluguel dessa casa. Kalil8, outro participante das reuniões e morador do bairro, com experiência anterior de acampamento organizado pelo MST, cedeu o quintal de sua casa para que os eventos não fossem paralisados. O bairro da Rhodia foi o único no qual não tive a oportunidade de comparecer às reuniões, que aconteceram na casa do então presidente da associação de um assentamento no mesmo município. Em Itaboraí, houve encontros no quintal da casa de Alberto, assentado em Capelinha9.
A divulgação das reuniões acontecia por meio das redes de amizade, de vizinhança e de parentesco dos militantes do MST/RJ e das famílias participantes. Nelas, os militantes solicitavam aos presentes que convocassem outras pessoas conhecidas para as seguintes. Dessa forma, a cada reunião crescia o número de participantes. Realizou-se também o que os militantes chamavam de trabalho de formiguinha, que consistia em percorrer todas as moradias de determinadas localidades convocando pessoas para os encontros.
O responsável por iniciar o trabalho de base em Conceição de Macabu foi Kleberson, então coordenador estadual e que estava morando no município. Ele teve o apoio de conhecidos dos assentamentos Capelinha e São Domingos no mesmo município para a divulgação das reuniões em cada um dos bairros. Nos meses finais, os eventos passaram a ser coordenados por Zé Brito, Capadócia, Rodolfo e Damião, outros militantes. Aos dois primeiros coube a coordenação dos encontros; aos dois últimos, por serem militantes recém-ingressos, coube o trabalho de formiguinha, realizado em Conceição de Macabu e Carapebus. Em Itaboraí, o trabalho de base foi articulado por Alberto, assentado que cedeu sua casa como sede dos eventos.
Participavam das reuniões de frente de massa os militantes responsáveis pelo trabalho de base e as famílias convocadas. Eventualmente, algum assentado ou simpatizante do MST comparecia para contar suas experiências como acampado e/ou auxiliar no trabalho de mobilização. Nos primeiros meses, a participação nas reuniões de Conceição de Macabu foi instável, pois alguns daqueles que compareciam a elas acreditavam que o ato de ocupação deveria ser imediato, não sendo necessária a realização de mais reuniões. Em Itaboraí, os encontros na casa de Alberto reuniram até 80 famílias. As redes de Alberto permitiram a execução de um amplo trabalho de divulgação, que resultou na presença de famílias de diversas localidades e de municípios próximos, como Tanguá, São Gonçalo e até Rio de Janeiro. Em Santa Maria Madalena e Macaé, o trabalho de divulgação foi mais pontual, reunindo poucas famílias.
Descreverei a seguir como foi o acompanhamento do último mês de mobilização das famílias para a ocupação. Os fatos narrados ocorreram entre outubro e novembro de 2000. A descrição mais detalhada será a de uma reunião em Itaboraí, pois esta, quando comparada às outras, foi a que forneceu mais elementos para a compreensão dos processos de mobilização das famílias.
A primeira viagem,com o objetivo de acompanhar reuniões de frente de massa, foi a de Conceição de Macabu e Carapebus e ocorreu em um sábado, dia 21 de outubro de 2000. Os militantes que estariam esperando por mim em uma secretaria do MST em Conceição de Macabu Zé Brito e Eleutério não estavam lá. Fomos recebidos por três outros jovens militantes: Damião, Rodolfo e Krishina. Damião nasceu na cidade do Rio de Janeiro, era militante do Movimento dos Trabalhadores Sem-teto (MTST) antes de passar a integrar o MST. Rodolfo nasceu em Campos e cresceu em Nova Iguaçu, onde parentes seus participaram de disputas agrárias na década de 1980. Krishina militava em Campos e estava visitando a secretaria de Conceição de Macabu. Após uma conversa em que cada um falou um pouco sobre a sua trajetória, almoçamos e partimos para uma reunião de frente de massa em Carapebus. Ela não aconteceu porque os moradores locais que haviam sido convidados não apareceram. Já era a segunda tentativa frustrada do MST de realizar uma reunião na localidade. Damião justificou a dificuldade do trabalho de base no município em função de um assassinato ali cometido e atribuído, de modo equivocado, a um representante do MST10.
No sábado, dia 29 de outubro de 2000, no final de semana seguinte, parti para Macaé, onde me encontrei com o militante Zé Brito na rodoviária local. Já era noite quando fomos para uma reunião de frente de massa em um bairro da periferia do município. Esse evento também não se deu, nem o dono da casa estava no local. Estive apenas com sua esposa, que não soube precisar o paradeiro do marido.
Após tentativas frustradas de acompanhar reuniões em Macaé e Carapebus, encontrei-me com o militante Itamar11próximo à Rodoviária de Itaboraí, para acompanhar uma reunião de frente de massa nesse município. Cada um em seu carro, partimos para lá. Ele deu algumas voltas de carro para certificar-se de que não estávamos sendo seguidos. Quando chegamos ao local, o sítio de Alberto, um assentado em Capelinha, já havia alguns trabalhadores que ouviam os lamentos do dono da casa sobre a possibilidade de emancipação do seu assentamento.
Havia cerca de 25 pessoas quando a reunião começou com apresentações pessoais de Alberto e Itamar, realizadas pelo primeiro. Em seguida, Alberto passou a palavra a Itamar, que em seu depoimento falou sobre o objetivo dos encontros ("estamos nos preparando para entrar na terra"; "temos que construir uma organização, uma união entre nós que nos garanta sermos vitoriosos na conquista da terra") e a importância da ocupação de terras no contexto das disputas agrárias ("o governo não faria a reforma agrária sem a pressão das ocupações de terra"). Itamar prosseguiu criticando as ações do governo Fernando Henrique Cardoso relacionadas às disputas agrárias. Argumentou que a reforma agrária que este governo disse ter realizado não se concretizara pois, ao mesmo tempo em que teriam sido assentadas 280.000 famílias, 400.000 outras teriam perdido suas propriedades por dificuldades de crédito, produção e comercialização dos produtos agrícolas essas informações foram atribuídas ao então Secretário de Políticas Agrícolas do governo Fernando Henrique Cardoso. Itamar concluiu seu argumento apontando para o sentido da formação do MST no Brasil. Explicou que há 16 anos "trabalhadores iguais a vocês" (os ouvintes) criaram o Movimento para corrigir essas "injustiças" e "mudar a sociedade brasileira". Itamar falava com bastante serenidade. Os participantes o ouviam com atenção. De tempos em tempos, seu discurso era ligeiramente interrompido pela chegada de novas pessoas. A essa altura, já havia cerca de 40 presentes no quintal de Alberto. Itamar continuou sua fala explicando o processo de formação do acampamento:
Pois bem, a gente vai acampar; em um primeiro momento a gente não vai dividir a terra, cada um no seu sítio, senão vai ficar difícil a gente resistir à possibilidade de um despejo. A gente vai ficar em acampamentos agrupados e vai dar um jeito de colocar esse acampamento para funcionar. Então, nesse acampamento, a gente vai ter que cuidar da nossa vida, como a nossa vida vai acontecer. E nesse acampamento vai ter que ter uma comissão para cuidar da água, para abrir o poço, vai ter que ter uma pessoa para cuidar da higiene para que as pessoas não adoeçam... e o primeiro opositor que nós vamos encontrar é o dono da terra. A gente entra na terra, aí no dia seguinte ele vai bater na porta do juiz...
Ao longo da descrição da formação do acampamento e dos seus possíveis efeitos, Itamar indicou que "essa luta tem diversos inimigos": o próprio governo (criticou o projeto do governo FHC de compra de lotes rurais financiados pelo Banco da Terra), os fazendeiros e os juízes ("às vezes parentes dos fazendeiros"). Itamar enfatizou a importância de haver "solidariedade entre as famílias" na disputa com os "inimigos". Nessa parte, ocorreu a segunda intervenção de Alberto, que reforçou os argumentos do seu colega ao falar sobre a importância das barracas ficarem próximas umas às outras. Com as barracas próximas, seria mais fácil zelar pela integridade física das famílias, "porque existe um ditado antigo: caititu fora da manada é comida de onça".
Após a exposição sobre os possíveis percalços no acampamento, Itamar e Alberto relembraram o que cada participante precisaria levar no dia da ocupação. Além da lona, solicitaram aos futuros acampados que levassem suprimentos alimentares não-perecíveis capazes de sustentarem suas famílias por 15 dias, seus instrumentos de trabalho em roçados e utensílios básicos de higiene e saúde. Os participantes não sabiam o local nem a data exata do evento, mas diversos deles afirmavam que já estava tudo pronto. A ansiedade em realizar a ocupação era visível por parte de alguns, provavelmente aqueles que freqüentaram as reuniões desde o início. Os discursos de Itamar e Alberto passaram a ser constantemente sobrepostos ao burburinho dos comentários paralelos. Fazendo piadas e brincadeiras, os presentes demonstravam uma impaciência amistosa com a repetição de recomendações que já tinham ouvido várias vezes.
Ao longo dessa discussão sobre a preparação para a ocupação, um homem de cerca de 50 anos, chamado Claudelino, que se identificou como ex-lavrador de café do Espírito Santo, começou a formular questões sobre como seria a vida no acampamento. Uma de suas dúvidas foi a respeito de quem se responsabilizaria pelo sustento de sua família enquanto ele estivesse acampado. Alberto respondeu que não havia como o MST se responsabilizar por sua família, que cada acampado responderia pela sua. Recomendou, então, que levasse a mulher e os filhos, pois assim não precisaria ficar dividido entre o acampamento e o local de origem, e garantiu que lá ninguém passaria fome. Outra de suas dúvidas abordava a possibilidade de violência policial. Itamar procurou tranqüilizar todos, afirmando que a polícia "não poderia chegar batendo" e explicou o papel do oficial de justiça como mediador nos processos de despejo. As persistentes perguntas e as preocupações de Claudelino criaram um clima de animosidade entre ele e os outros participantes da reunião, que passaram a comentar jocosamente as suas intervenções. Sua insatisfação com a proposta de acampar parecia aumentar a cada resposta dos militantes. Seu discurso misturava-se com os comentários paralelos. Seguem alguns trechos das suas intervenções:
Eu não tenho condição de deixar minha família bem aqui, eu mal tô fazendo pra comer, então, como é que eu vou fazer?
Eu estou interessadíssimo, me interessa demais, eu sou nascido e criado em lavoura de café, eu sou lá do Espírito Santo, mas meus filhos jamais pegaram numa enxada, minha mulher é nascida e criada no Rio de Janeiro, jamais ela vai querer enfrentar uma dificuldade, ela já quer encontrar facilidade, então ela não vai, não vai mesmo. Eu, pelo amor de Deus, o meu interesse é demais, porque eu gosto de trabalhar, gosto mesmo.
Arriscar a passar fome eu tô arriscando aqui, mas eu tô perto da minha casa, mas uma distância dessa?! Eu sou uma pessoa evangélica, eu não gosto de trabalhar com nada errado, eu gosto da coisa certa, da coisa certa, coisa em dúvida não é pra mim não. Por causa de mim eu vou prejudicar minha família? Não, eu vou sozinho, se eu me der bem, aí eu vou levar minha família. Agora, eu caio no buraco e vou levar minha família pro buraco também? Não, isso eu não faço, não.
Claudelino perguntou sobre a possibilidade de levar suas cabeças de gado para o acampamento. Alberto respondeu que não havia problema que cada família tivesse duas ou três vacas para auxiliarem no sustento doméstico, mas que a prioridade não deveria ser a de criar gado no futuro assentamento, pois os assentados, dessa forma, poderiam tornar-se os grandes fazendeiros que o Movimento procurava combater. Após essa resposta, Claudelino levantou-se e disse: "Então não serve pra mim". Despediu-se do grupo com um aceno não correspondido e foi embora. Não me pareceu que o problema específico do gado tenha sido a única causa da desistência, mas apenas o ápice das discordâncias e do clima desagradável com o grupo, que já o questionava diretamente. "Mas se você tem cabeças de gado, por que está preocupado com o sustento da sua família?" perguntou-lhe um dos presentes.
Após a saída de Claudelino, intensificaram-se as conversas paralelas que condenavam sua atitude. Alberto explicou que as reuniões serviam exatamente para selecionar aqueles que estão de fato "preparados para ir para a terra". Depois de marcada a reunião da semana seguinte, aquela foi dada como encerrada. Aos poucos, os participantes retiraram-se. Após o seu final, fiquei mais um tempo para conversar com alguns trabalhadores que permaneceram no local e que se dispuseram a contar um pouco de suas trajetórias12.
No final de semana seguinte, acompanhei uma reunião de frente de massa em Conceição de Macabu, no bairro do Porto. A reunião, coordenada por Zé Brito, foi realizada na casa de um dos participantes e contou com cerca de 25 pessoas. Ele falou um pouco sobre o Movimento e os preparativos para a partida em um discurso semelhante ao de Itamar no encontro de Itaboraí, porém muito menos elaborado, tornando perceptível sua inexperiência quando comparado a Itamar.
Após o encontro, entrevistei alguns participantes, perguntando seus nomes, locais de procedência e como souberam das reuniões. Vejamos alguns desses depoimentos:
Adelino: Meu nome é Adelino, moro na Vila da Ponte, tenho 55 anos de idade e pretendo adquirir um sítio pra trabalhar, adquirir alguma coisa. Porque eu estou aqui em Conceição [de Macabu] há 20 anos e sempre procurei emprego com prefeito, vereador, com tudo; e é sempre uma conversa. Já acompanhei aquele acampamento em Capelinha por nove meses, não tive sorte, pois tive problema de saúde na família e não pude continuar. Mas o meu objetivo é trabalhar, lutar pela vida, né?
Marcelo: O que falta para o senhor?
Adelino: Só falta um sítio, né, um lugar pra mim trabalhar, pra mim poder avançar, dar um pinote mais à frente, né?
Carlos Alberto: Meu nome é Carlos Alberto, moro em Vila Catarina, tenho 26 anos, e cheguei aqui [na reunião] por informação de meus amigos, e pretendo ir pras terra pra poder trabalhar, pra poder sobreviver. Sou casado, ajudo meu pai, que ele tem umas vaquinha e paga arrendamento, paga um salário e meio de arrendamento. Aí eu pretendo lutar pra poder ajudar ele, porque ele já tem mais da idade de trabalhar, não pode trabalhar, aí eu tenho que ajudar ele.
Marcelo: Você já está pronto?
Carlos Alberto: A hora que marcar, eu tô pronto. Já comprei os plástico, já fiz compras, já tenho tudo pronto...
José Carlos: Meu nome é José Carlos, tenho 43 anos de idade, sou morador de Sonho Rico e estou aqui a revés de uma terra pra trabalhar. Eu cheguei através dos companheiros, que eu tava dando um passeio na rua, aí me deram a informação.
Esses depoimentos revelaram que a participação nas reuniões ocorreu a partir do funcionamento de redes baseadas em relações de amizade, parentesco e vizinhança, as quais informaram sobre a existência dos encontros e criaram espaços de discussão sobre as ocupações e os acampamentos. Alguns, como Adelino, já haviam tido experiências anteriores em acampamentos.
No final da semana seguinte, acompanhei mais duas reuniões de frente de massa, uma em Conceição de Macabu (Vila São José) e outra em Santa Maria Madalena, ambas com dinâmicas idênticas às narradas acima, porém com um número menor de participantes (dez na Vila São José e cinco em Santa Maria Madalena).
Após a reunião em Santa Maria Madalena, coordenada por Capadócia, conversei com algumas pessoas todas com idade acima dos 40 anos que se organizavam para a ocupação. Fiz uma longa entrevista com Teobaldo, dono da casa, um senhor bastante idoso que, mesmo com problemas de saúde mal conseguia falar insistia em acampar, para desespero de sua esposa que argumentava sobre a inviabilidade disso, já que seu marido não suportaria os esforços físicos previstos. Conheci Adaílton, Cristino e Neves; suas esposas também apresentavam resistências à idéia de acampar. Após essas visitas, Capadócia levou-me até Piteira, outro bairro de Conceição de Macabu, onde também eram realizadas reuniões de frente de massa. Conversei com Célio, dono da casa onde havia uma arena para rinhas de galo e que funcionava como local dos encontros. Ele apresentou uma justificativa para a ocupação, a qual aparece também em outros discursos: a busca de uma vida mais "tranqüila" oferecida pelo meio rural. Apesar de sediar reuniões e dizer que iria acampar, Célio não o fez naquela oportunidade.
A descrição dessas reuniões permite-nos compreender alguns aspectos relacionados à mobilização das famílias que participam das ocupações de terras para formar acampamentos no norte fluminense.
O interesse das pessoas em participar das reuniões parece condicionado, em um primeiro momento, às imagens formuladas sobre os organizadores, em geral associadas à legitimidade do ato de ocupar terras. Em contextos como a zona canavieira ao redor de Campos, onde as relações de produção foram historicamente marcadas pelo dever de os empregados protegerem o espaço produtivo como base para a obtenção de sua própria proteção social, a percepção sobre a ilegalidade ou a falta de legitimidade das ocupações tende a ser arraigada13. Qualquer tipo de aproximação com os organizadores das ocupações tende a ser difícil em tais contextos. É mais provável que sejam percebidos como desordeiros, rebeldes, aqueles que, ao não aceitarem a ordem social vigente, adotam práticas ilegais e/ou violentas. A dificuldade de realizar o trabalho de base no município de Carapebus, cuja economia esteve ligada no último século ao funcionamento de uma usina de cana-de-açúcar e onde o MST foi associado a um crime ocorrido na região, aparece como um exemplo para esse argumento. Assim, o modo como as pessoas vêem os organizadores, ao restringirem em diversos graus os processos de mobilização, aparece como um dos primeiros aspectos condicionantes à sua participação nas reuniões e, portanto, nos acampamentos.
A partir desse argumento, pode-se compreender o esforço de Itamar para legitimar a presença das famílias nas reuniões e nas ocupações. O militante utilizou como estratégia uma retórica que identificava os fundadores do MST com os participantes dos encontros ("Em 1984, trabalhadores iguais a vocês..."), procurando associar os resultados positivos das mobilizações ao aumento do número de ocupações e de assentamentos e tentando tranqüilizar os presentes diante da possibilidade de violência policial, já que, a partir de sua experiência no Rio de Janeiro, isso dificilmente ocorreria.
Também foi possível constatar que estar nas reuniões de frente de massa não implicava necessariamente a participação nas ocupações, como ficou evidente nos casos de Claudelino e Célio. Conforme indicou Alberto durante as discussões em Itaboraí, as reuniões constituíram um processo de reconhecimento mútuo entre organizadores e participantes. De acordo com o modo como estes passaram a ver os organizadores e com as situações sociais específicas de cada família, a decisão de fazer parte da ocupação e do acampamento pôde ser amadurecida, rejeitada ou adiada.
Além de permitir a aproximação entre os organizadores e as famílias participantes, as reuniões propiciaram um espaço de socialização entre essas famílias. Como se pôde perceber, muitos já se conheciam, pois eram parentes, amigos ou vizinhos reunidos a partir do processo de divulgação; mas para aqueles que viviam em condições sociais semelhantes, embora não se conhecessem, os encontros surgiram como um espaço para isso. Comerford (1999) ressalta que uma das dimensões das reuniões de trabalhadores rurais está relacionada ao desenvolvimento de laços de sociabilidade entre seus participantes:
É comum ouvir trabalhadores que participam desse tipo de evento observarem que reuniões são um momento de encontro de amigos, uma oportunidade de conhecer pessoas, de sair da rotina e conhecer novos lugares (quando envolvem deslocamento) (Comerford 1999:50).
Portanto, ao mesmo tempo em que o processo de mobilização das famílias para a ocupação dependeu das redes de amizade, parentesco e vizinhança fenômeno já identificado por Lima Jr. (1988), Grynszpan (1987) e Smircic (2000) um dos seus resultados foi o fortalecimento de tais redes sociais. Assim, minha pesquisa confirma uma das teses de Tilly (1978) sobre a mobilização para a ação coletiva, segundo a qual esta dependeria do grau de organização prévia do grupo em questão14.
Vale também ressaltar a semelhança entre os modos de mobilização utilizados atualmente para ocupações de terra e aqueles desenvolvidos nos anos 1960. Em sua dissertação de mestrado, na qual analisa os processos de mobilização camponesa no Rio de Janeiro no período 1950-1964, Grynszpan (1987:172) aponta para isso:
A FALERJ15 e as associações de lavradores eram encarregadas de espalhar a notícia das ocupações e de juntar as pessoas. A divulgação podia ser feita em reuniões daquelas organizações, encarregando-se os próprios associados daquelas organizações de difusão, ou em praça pública. As praças e estações, de ônibus e de trens, pareciam ser locais privilegiados para a arregimentação, principalmente no período em que as ocupações ainda não eram reconhecidas enquanto tal.
Analisando o trabalho de Menezes (1991) que aborda processos de mobilização para as ocupações de terra do início da década de 1980 no Rio de Janeiro, os chamados "mutirões", também baseados em reuniões preparatórias e na utilização de redes de amizade, vizinhança e trabalho para divulgação dos encontros podemos perceber que essa forma de mobilizar foi sendo forjada ao longo da história da luta organizada pela terra no Rio de Janeiro, de modo algum podendo ser considerada uma novidade ou a criação de um movimento específico.
Do ponto de vista dos organizadores, interessa compreender como o caso analisado insere-se na dinâmica das mobilizações para as disputas agrárias no norte fluminense. Em sua estrutura organizacional, que prevê a divisão social do trabalho segundo as funções a serem executadas, o MST dispõe de um setor dedicado às tarefas relacionadas à organização das ocupações: o setor de frente de massa. Estas tarefas envolvem a identificação de áreas improdutivas e de suas situações jurídicas, a decisão sobre as próximas áreas a serem ocupadas, a mobilização das famílias que participarão das ocupações e a organização do ato da ocupação. Por meio do caso analisado, pôde-se perceber que o trabalho de mobilização das famílias, reconhecido como trabalho de base, ultrapassa os limites do setor de frente de massa, sendo realizado também por pessoas de outros setores. Vejamos a trajetória de Alberto como exemplo.
Oriundo de Itaboraí, Alberto participou, em 1996, da ocupação que resultou no Assentamento Capelinha. Desde então, sentiu-se compromissado com a idéia de contribuir para que mais famílias obtivessem o mesmo êxito que o seu. Por isso, quando soube do processo de mobilização que estava sendo iniciado em Conceição de Macabu, colocou-se, por iniciativa própria, à disposição para realizar um trabalho de base em Itaboraí, onde ainda mantinha residência. Por meio das amizades que cativou ao longo dos muitos anos ali vividos, o número de famílias nas reuniões coordenadas por Alberto cresceu rapidamente, chegando a agregar, no quintal de sua casa, 80 representantes de diferentes famílias.
A partir do exame do caso de Alberto e das descrições realizadas até aqui, pode-se afirmar que o trabalho de base efetuado pelo MST no norte fluminense vem dependendo tanto das atribuições funcionais de cada militante do setor de frente de massa, quanto da disposição e da capacidade de assentados e militantes de outros setores empenhados nas tarefas de criar e de expandir redes sociais. Parte das reuniões foi coordenada e/ou apoiada por pessoas que não eram do setor de frente de massa, como são os casos de Alberto, Itamar e do presidente da Associação de Assentados em Capelinha (que promoveu reuniões no bairro da Rhodia).
Outra conclusão a que se pode chegar é a de que confirmando para o Rio de Janeiro o que Fernandes (2000:294) indica em âmbito nacional as famílias assentadas são fundamentais no trabalho de divulgação do processo de mobilização, no fortalecimento das redes sociais, na logística para as reuniões e para as ocupações e no apoio à subsistência das famílias acampadas. Os assentamentos Capelinha e São Domingos, localizados no mesmo município onde ocorreu a ocupação, contribuíram em todos os aspectos acima citados. Pelo que pude observar no caso estudado, as famílias que passam por acampamentos são estimuladas, após assentadas, a colaborarem com os futuros acampados, o que renova e alimenta o poder de ação do MST como instituição e movimento social.
Estratégias alternativas
A estratégia de mobilização das famílias para as ocupações, por meio da realização de reuniões de frente de massa por vários meses, é muitas vezes substituída por outras estratégias. A adoção de formas alternativas pode ocorrer em função da urgência em realizar uma ocupação, da falta de recursos para o trabalho de base, do local escolhido para a ocupação ou da situação jurídica da propriedade a ser ocupada.
Diante da urgência em realizar uma ocupação e/ou da ausência de recursos para o trabalho de base, a estratégia que costuma ser adotada é aumentar o número de pessoas que costumam apoiar a ocupação. Nesse caso, ela é realizada com um grupo formado essencialmente de militantes, assentados, simpatizantes16 e acampados de outros locais. O acampamento iniciado por esse grupo cumpre a função de chamariz para a chegada de famílias. Quando as condições sociais daqueles que residem nas imediações do acampamento favorecem a entrada de novas famílias, a estratégia obtém o resultado esperado. Aos poucos, as famílias que entram substituem o grupo que realizou a ocupação, já que aqueles que a apoiaram retornam para seus locais de origem.
Essa estratégia foi adotada na formação do acampamento Dandara dos Palmares, em Campos. Como havia urgência para o deslocamento de 15 famílias oriundas do acampamento "Zé Pureza", e o trabalho de base para uma nova ocupação no estado ainda estava em um estágio pouco avançado, a ação foi realizada por estas famílias e um grande número de militantes e simpatizantes. Em poucos dias, com a circulação de informações sobre a existência do acampamento na região, obteve-se um contingente de cerca de 300 famílias acampadas17.
Quando a fazenda a ser ocupada já foi desapropriada ou a tramitação do processo encontra-se em estágio avançado, em geral limita-se o trabalho de base aos bairros mais próximos de onde será instalado o acampamento. Como o interesse em participar desse acampamento tende a ser maior em função da possibilidade de um desfecho jurídico favorável e mais rápido, o esforço de mobilização é menor. Um exemplo desse tipo de situação foi o acampamento Antônio de Farias, também em Campos. Composto inicialmente por cerca de 20 famílias que realizaram a ocupação, diante da notícia de que as terras já haviam sido desapropriadas, o acampamento teve seu contingente aumentado por diversas famílias que moravam na vila em frente à fazenda18.
Percebi que a ausência ou a precariedade do trabalho preparatório para a ocupação oferece outros contornos para a socialização dos acampados em relação ao modelo das reuniões de frente de massa por vários meses. A socialização entre as famílias, que ocorre nesses encontros, contribui para a integração entre os acampados e destes com os organizadores. No caso estudado, percebi uma relação direta entre o tempo de permanência no acampamento e o número de reuniões preparatórias freqüentadas pelos acampados. Quanto maior foi o número de reuniões freqüentadas, maior tendeu a ser o tempo de permanência no acampamento. No acampamento Antônio Farias, onde não ocorreram reuniões preparatórias, notei que, quando comparado a outros acampamentos, havia um cenário de mais isolamento entre as famílias e divergências com os organizadores. Portanto, pode-se lançar a hipótese de que a utilização dessas estratégias alternativas aumenta a probabilidade de desagregação entre as famílias e os conflitos entre acampados e organizadores.
No caso da ocupação de terras de usinas falidas ou em processo de falência, o trabalho de base costuma ocorrer principalmente entre os próprios trabalhadores ou ex-trabalhadores das mesmas. Segundo a legislação em vigor, aqueles que prestaram serviços para as usinas e residiram na propriedade são os primeiros a serem assentados nessas terras. Em seguida, são chamados trabalhadores com carteira assinada que não residem nas terras da usina e, depois, os trabalhadores sem carteira assinada19. Assim ocorreu na formação do acampamento Oziel Alves. A princípio, pode parecer estranho, mas o primeiro a ser contatado para a realização das reuniões preparatórias foi um ex-jagunço do usineiro que morava há muitos anos nas terras da usina. Consultado pelo empregado sobre a possibilidade de realizar os encontros, o patrão, interessado na demissão dos funcionários para diminuir suas obrigações trabalhistas e imaginando que a propriedade a ser ocupada seria outra, concedeu a autorização. Depois, percebendo que a fazenda ocupada seria a sua, tentou desautorizar as reuniões que estavam sendo realizadas na casa do ex-jagunço, que não concordou com o fato e, ao continuar a promover os eventos, passou a sofrer ameaças de morte. Após um descuido da vigilância, em uma madrugada, a fazenda foi ocupada pelos trabalhadores da usina falida.
Considerações finais
Ter acompanhado parte do processo de mobilização das famílias foi fundamental para a compreensão sobre como são formados os acampamentos no norte fluminense e, de forma mais ampla, como são atualmente constituídos os movimentos sociais rurais nessa região. Como se observou no caso do acampamento Zé Pureza, foi adotado um modelo de mobilização que vem sendo utilizado em diversos lugares do país. Tal modelo está baseado na realização de reuniões preparatórias (reuniões de frente de massa) durante alguns meses, por meio das quais ocorre um processo de reconhecimento mútuo entre as famílias e entre elas e a organização que está promovendo a ocupação. Nessas reuniões, são discutidos não só os procedimentos a serem adotados na ocupação e no acampamento, mas também os princípios e os objetivos políticos, econômicos e sociais da organização responsável pela ocupação, assim como os obstáculos que serão encontrados ao longo do período de acampamento (trabalho reconhecido pelos militantes como formação política).
Para a convocação das famílias que participaram dessas reuniões, foram fundamentais esforços individuais, independente da vinculação que essas pessoas tivessem com o setor de frente de massa. Na convocação, a divulgação boca a boca mostrou-se mais importante que o trabalho de formiguinha.
Observei que as reuniões de frente de massa foram extremamente relevantes para uma maior integração entre os acampados e para a superação das dificuldades enfrentadas no acampamento. Aqueles que participaram por mais tempo das reuniões tenderam a ficar um maior período acampados, pois tiveram a possibilidade de se prepararem melhor para enfrentar as dificuldades que encontraram ao longo de sua trajetória.
Portanto, os dados etnográficos coletados nas reuniões de frente de massa permitem questionar tanto as afirmações de Navarro (2002:229), de que as famílias mobilizadas "desconheceriam os objetivos do MST", o qual exerceria, por meio dos seus militantes, as "formas de mando usuais no meio rural brasileiro", como as de Martins (2003:47), segundo as quais "há uma grande violência envolvida na mobilização dos acampados". Parece sensato reconhecer que a decisão de acampar não é simples, pois é marcada pelas representações tradicionais sobre a propriedade privada, como Martins parece reconhecer no texto citado. No entanto, creio ser exagero qualificar o processo de mobilização como uma "grande violência". Através dos casos de Claudelino e Célio, percebi que a decisão de acampar foi uma escolha amadurecida, adiada ou abandonada durante as reuniões de frente de massa. Ninguém foi coagido a acampar ou submetido a qualquer violência ao longo do processo de mobilização. Alguns até o fizeram de modo impulsivo, mas estes foram os primeiros a sair do acampamento.
Em vez de perceber as reuniões de frente de massa como uma "violência", ou uma espécie de lavagem cerebral, tentei compreender as contradições que elas carregam em si. Talvez a maior delas seja a necessidade de os militantes estimularem as famílias que freqüentam as reuniões a participarem das ocupações, sem esconderem as dificuldades a serem enfrentadas no acampamento. Esse equilíbrio mostrou-se extremamente difícil de ser alcançado. Muitos acampados, diante dos problemas vivenciados no acampamento e, principalmente, da demora para uma resolução favorável, passados alguns meses acusaram os militantes de terem subestimado, durante as reuniões de frente de massa, os obstáculos que teriam que ser superados. Nesse sentido, a propagação da "ética do sofrimento" (Sigaud 2000; Weber 1996) pareceu-me uma tentativa de lidar com tal contradição. Afirmar que só os que sofrem merecem a recompensa funcionou ao mesmo tempo como incentivo e como forma de legitimar as dificuldades.
O exame do processo de mobilização para a entrada no acampamento Zé Pureza permite-nos também questionar a "espontaneidade" creditada por alguns autores à constituição dos chamados "novos movimentos sociais". Vimos que o processo de mobilização das famílias para as ocupações de terra é acionado por militantes de movimentos previamente constituídos, os quais não pertencem a priori, na maioria das vezes, aos grupos sociais mobilizados; e que a mobilização em si, realizada por meio de reuniões, caracteriza-se como um processo de reconhecimento entre as partes (militantes e participantes), no qual os primeiros realizam esforços para convencer e preparar os segundos para as ações de ocupação. Vale lembrar que esse modelo de mobilização é resultado de uma trajetória histórica de lutas, pois alguns procedimentos adotados remetem às ocupações realizadas desde o final da década de 1950 no estado do Rio de Janeiro, passando pelos "mutirões" da década de 1980 (Grynszpan 1987; Menezes 1991). Portanto, nossa pesquisa indica que a classificação, "novo/velho", não faz sentido para os movimentos sociais no norte fluminense, já que se percebem, ao longo do tempo, muito mais continuidades do que descontinuidades entre os padrões de mobilização adotados. Conforme já apontava Doimo (1995:45):
Apesar de fazer parte do vocabulário comum dos cientistas sociais, é preciso, pois, certo cuidado com a utilização da noção de novos movimentos sociais. Embora já se tenha consolidado uma quase unanimidade em torno do caráter diverso, fragmentário e localizado das novas experiências participativas no mundo contemporâneo, não é rara a projeção, sobre este novo universo, de certa reelaboração mítica do velho desejo de unidade; aquele que, cunhado ainda no século XIX para designar a entrada da classe trabalhadora no cenário público, presumia o grande sujeito da transformação social.
Assim, se por um lado essa pesquisa indica a impossibilidade de qualificarmos o modelo hegemônico de mobilização para ocupações de terra no Brasil como "violento", no sentido de serem acionados métodos autoritários, semelhantes aos tradicionalmente utilizados pelos fazendeiros para recrutarem trabalhadores, por outro, não podemos também acreditar no seu caráter "espontâneo", segundo o qual a mobilização ocorreria a partir de uma suposta conscientização dos lavradores sobre os seus direitos, conforme apontam aqueles que utilizam a categoria "novos movimentos sociais". Desde a década de 1950 até hoje, mesmo considerando o surgimento de uma nova geração de líderes no estado, formada a partir da década de 1980, a mobilização para ocupações de terra no Rio de Janeiro vem dependendo do estímulo de lideranças que a princípio não estiveram diretamente ligadas aos meios rurais fluminenses.
Notas
Recebido em 02 de setembro de 2004
Aprovado em 06 de outubro de 2005
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Out 2011 -
Data do Fascículo
Out 2005
Histórico
-
Aceito
06 Out 2005 -
Recebido
02 Set 2004