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Quem tem medo de mal-assombro?: religião e infância no semiárido nordestino

RESENHAS

Lilian Alves Gomes

Doutoranda em Antropologia Social – PPGAS/MN

PIRES, Flávia Ferreira. 2011. Quem tem medo de mal-assombro? Religião e infância no semiárido nordestino. Rio de Janeiro: E-papers; João Pessoa: UFPB. 278 pp.

Não são raros os relatos de antropólogos que, ao iniciarem suas empreitadas no campo, foram deixados junto às crianças para que elas dessem respostas às suas perguntas extremamente óbvias e risíveis aos olhos dos adultos. A analogia entre a posição do próprio pesquisador e a das crianças, feita por Flávia Pires logo na introdução de seu livro, torna patente que seu olhar para a infância é levado a cabo com vistas a objetivos bem distintos daqueles das narrações de situações anedóticas pelas quais passam os antropólogos recém-chegados aos seus locais de estudo. Em consonância com os desenvolvimentos de Christina Toren (sua coorientadora na pesquisa de doutorado agora publicada em livro), a autora entende que compreender "como nos tornamos o que somos?" é questão das mais pertinentes em antropologia. E é através desta perspectiva que somos levados à pequena cidade de Catingueira, no interior da Paraíba, onde Pires situa etnograficamente sua inquietação: "como um catingueirense se torna um catingueirense?" (:25).

O cristianismo fornece as bases sobre as quais uma pessoa se constitui catingueirense. Através da ideia de um "fundo comum" cristão, o livro privilegia as semelhanças, em detrimento das diferenças, entre católicos (que são maioria), protestantes e espíritas. Assim, as práticas colocadas em pauta – tais como "pedir a bênção" e, em especial, o medo dos mal-assombros – são as que associam todos os habitantes, independentemente da sua religião (:27).

A apresentação da cidade e de seus habitantes em detalhe é precedida pela discussão sobre os métodos e as técnicas de pesquisa utilizados no estudo das crianças pela antropologia. A reflexão metodológica tem lugar de destaque no livro, e sua elaboração – que também vai permear os demais capítulos – não remete apenas à singularidade dos estudos da criança ou da infância. Aliás, a autora deixa claro que sua análise não se filia "unitariamente aos estudos da antropologia da criança ou da infância. O projeto empreendido pode ser entendido como um esforço intelectual da área de antropologia social, mas com o diferencial de que as ideias das crianças aqui são levadas a sério" (p. 23).

Além de explicitar que sua metodologia não se restringiu à observação participante e abarcou a produção de materiais de pesquisa não convencionais (apesar de já terem sido utilizados anteriormente) na disciplina, tais como desenhos, redações, filmagem, diários, fotografias, cartas, entrevistas com crianças e programas de rádio, a pesquisadora reflete sobre a especificidade de seu lugar no encontro com as crianças. Desse modo, são descritos os contextos de interação vivenciados e os eventos observados, como missas, cultos, reuniões espíritas e serviços religiosos destinados especialmente às crianças.

A análise da empreitada de tornar os mundos da criança, como nativo, e do pesquisador, como um adulto, "comunicáveis" (:42) ganha monta quando a autora problematiza a necessidade que teve de se deslocar da sua própria posição enquanto adulta, pois, de modo geral, a partir de um lugar hierarquicamente superior, adultos ensinam, e o seu objetivo era, ao contrário, aprender com as crianças. Para tanto, crianças de 3 a 13 anos de idade foram solicitadas a desenhar e a escrever redações a partir e dois temas específicos: o "mal-assombro" e a "minha religião". A utilização de tais recursos se mostra oportuna e necessária em face das particularidades do objeto trabalhado, sem deixar de ser enfatizado, por outro lado, que eles se mostraram eficazes porque foram conjugados com "o método por excelência da antropologia" (:61), a observação participante.

No segundo capítulo, Catingueira é apresentada, assim como seus habitantes, incluindo os pequenos catingueirenses. O panorama geral da cidade, que contempla aspectos econômicos, políticos, geográficos etc., torna-se mais interessante à medida que Pires fala das ideias infantis sobre a vida cotidiana e relaciona as aspirações de seus interlocutores ao estatuto da criança pequena na configuração familiar e sua inserção na organização doméstica.

É no terceiro capítulo, homônimo do título do livro, que os "mal-assombros" são analisados em toda a sua plasticidade. Para os adultos e os idosos, tais entidades são almas de pessoas falecidas. Já as crianças concebem um número muito mais variado deles, que podem ser diversos seres ou eventos: bruxas, fantasmas, vampiros, personagens de TV, animais, acontecimentos inexplicáveis etc. Ao perceber o quanto os mal-assombros das crianças são absurdos e irreais para os adultos, os quais não deixam de temer entes do outro mundo, a autora endossa a hipótese que já tinha aventado ao analisar os desenhos e as redações: "[...] com o passar dos anos, as crianças cristianizam os próprios mal-assombros por meio da restrição dos mesmos à alma dos mortos. Nos desenhos produzidos, vimos que, até por volta dos sete anos de idade, mal-assombro não é necessariamente alma, nem fantasma. Por volta dessa idade, a criança ainda parece não dialogar com o conceito de alma versus corpo. [...] A ideia de existência da alma e da sua sobrevida após a morte do corpo é um conceito que leva algum tempo para ser assimilado – assim como os conceitos de bem e mal, Deus e demônio" (:128).

Desta forma, à medida que se envelhece em Catingueira, os mal-assombros passam a ser divinizados ou demonizados, sendo os demais seres entendidos como produtos da imaginação fantasiosa das crianças. Assim, há um "desbastamento" implicado no crescimento etário, no qual a gama de seres vai sendo reduzida, evidenciando que o passar dos anos não culmina em secularização, mas sim numa espécie de processo de "conversão" ao cristianismo, através do qual elementos antes tidos como ordinários passam a ser explicados por meio da moral religiosa. Outra conclusão que surpreende é a de que os adultos têm mais temor dos mal-assombros do que as crianças, pois eles podem ser a consubstanciação da agência do Diabo, com quem não se brinca, ao passo que as crianças têm consciência de que o mundo das assombrações assusta, mas também depende delas para existir: "o medo infantil é real, embora possa ser fabricado e desfeito a qualquer momento" (:146). A mesma imaginação fértil na criação de tantos seres é igualmente potente para desinventá-los, como diria Guimarães Rosa.

O fôlego da discussão é mantido no quarto capítulo, dedicado à compreensão de "como os catingueirenses chegam a ser o que são em termos religiosos, isto é, gente que se define como religiosa" (:152). Os dados apresentados corroboram a afirmação de que as crianças menores parecem não dialogar com a "religião" (:154), pois não a concebem de modo isolado das práticas cotidianas, mesmo que estas sejam vistas como relacionadas ao sagrado pelos adultos, como o ato de "pedir bênção", de rezar antes de dormir ou de ir à igreja. Isto porque, diferentemente dos adultos, "para as crianças, o que está por trás, ou seja, o conteúdo simbólico das religiões, não está em jogo" (:173), o que significa que certas atividades do dia a dia só serão definidas como pertencentes a um reino sagrado, em oposição ao profano, na medida em que ocorrer o já aludido "desbastamento" concernente ao tornar-se adulto.

Trata-se do argumento que perpassa toda a análise em pauta, mas sua sustentação reiterada não impede que a distinção entre crianças e adultos seja relativizada no final do capítulo. Parodiando o famoso enunciado de Bruno Latour, a autora pondera quanto à hipótese de que "jamais tenhamos sido adultos" (:181). Nesse sentido, de modo oportuno, somos lembrados que, assim como os mal-assombros, adultos e crianças não possuem estatuto ontológico estanque, o que coloca dificuldades para o pesquisador que se debruça sobre esse "real facetado" (:184), como explicita Pires: "se às vezes dei a impressão de estar congelando a infância ou a idade adulta, ou a distinção profano e sagrado, é porque me faltaram ferramentas retóricas para transpor para o discurso científico uma realidade intrinsecamente antinômica" (:184).

O quinto e último capítulo relaciona a cristianização dos mal-assombros com outro processo depreendido, sobretudo, através dos desenhos: "o deslocamento da ênfase religiosa, que em princípio estava colocada na igreja (templo), em direção às entidades religiosas (Deus/Jesus, Nossa Senhora, santos) e a igreja entendida como ecclesia, a comunidade de irmãos" (:185-186) Quando têm em torno de 12 anos, as crianças vão se aproximando de uma noção de igreja menos concreta, ou seja, ela não é mais apenas o prédio no meio da praça; e ser religioso, a essa altura, demanda mais do que a mera frequência ao templo. Essa é a direção do aprendizado social dos catingueirenses que, como fica claro ao longo do livro, não se trata apenas de um processo de "incorporação de uma cultura" (:214) ou de acumulação de informações sobre a religião (:221). Notadamente, as crianças de Catingueira não são entendidas como seres incompletos em relação aos adultos (:228). A religiosidade delas não constitui a prévia de uma forma mais elaborada de relação com o sagrado, como poderia sugerir uma perspectiva "adultocêntrica".

Ao perguntar "Quem tem medo de mal-assombro?" Flávia Pires não nos fala de um mundo fantasioso e só acessível às crianças, mas de toda a complexidade envolvida na pesquisa que diz respeito – mas não se restringe – àqueles que, assim como os antropólogos, não entendem o mundo como uma realidade dada. Nesta perspectiva, a abordagem que inter-relaciona crianças, adultos, vivos e mortos de modo preciso e original merece atenção não só dos estudiosos da infância ou da religião. Trata-se de uma contribuição relevante para todos os que refletem sobre a construção do pensamento antropológico a partir de certas experiências e sua potencialidade em iluminar outras através dos problemas que elas colocam em movimento.

Por fim, cabe observar que a riqueza dos dados apresentados parece derivar diretamente de profícuas técnicas de pesquisa que, conjugadas à precisão da observação participante levada a cabo com clara empatia e sagacidade, evidenciam que o aliado do pesquisador no momento da etnografia não precisa ser apenas o caderno de campo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
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