SÍNDROME EM QUESTÃO
Você conhece esta síndrome?* * Trabalho realizado no Departamento de Dermatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP), Brasil.
Juliana Marcondes MacéaI; Zilda Najjar Prado de OliveiraII; Maria Cecília da Mata Rivitti MachadoIII
IMédica Dermatologista e Colaboradora do Ambulatório de Dermatologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP - São Paulo (SP), Brasil
IIProfessora Doutora do Departamento de Dermatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP. Chefe do Ambulatório de Dermatologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP - São Paulo (SP), Brasil
IIIMédica Dermatologista e Assistente do Ambulatório de Dermatologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP - São Paulo (SP), Brasil
Endereço para correspondência Endereço para correspondência Juliana Marcondes Macéa Av. Angélica 916 - cj 708 - Higienópolis São Paulo - SP - 01228-000 Tel.: (11) 3251-4069 Fax: (11) 3666-0610 E-mail: julianamacea@dermatologista.net
RELATO DOS CASOS
Caso 1 - Paciente do sexo feminino, com seis meses de idade, apresentando lesões cutâneas e deformidades ósseas desde o nascimento. Ao exame observou-se lesão eritêmato-descamativa com escamas branco-amareladas, aderentes, acometendo extensa área do hemicorpo direito e respeitando nitidamente a linha média. Apresentava hipoplasia do pé e de quirodáctilos à direita (Figura 1). A biópsia da lesão cutânea revelou epiderme com hiperqueratose paraqueratósica, acantose e abscessos neutrofílicos intracórneos. Na derme, discreto infiltrado linfo-histiocitário perivascular (Figuras 2 e 3). A radiografia dos membros confirmou a hipoplasia de segmentos ósseos na mão e no pé direitos.
Caso 2 - Paciente do sexo feminino; iniciou acompanhamento aos 12 anos de idade, apresentando discreta lesão eritêmato-descamativa no hemicorpo esquerdo, respeitando a linha média, e, na região axilar esquerda, placa bem delimitada de aspecto ictiosiforme (Figura 4). O exame anatomopatológico dessa lesão foi semelhante ao descrito no caso 1. Associava-se ao quadro cutâneo hipoplasia óssea do membro superior e do membro inferior esquerdos.
Caso 3 - Paciente do sexo feminino, de três anos de idade, apresentando extensa lesão eritêmato-descamativa no hemicorpo direito associada à agenesia do membro superior direito e hipoplasia do pé direito (Figura 5). A biópsia da lesão revelou dermatite psoriasiforme, coincidindo com os achados histológicos dos casos 1 e 2.
QUE SÍNDROME É ESTA?
Síndrome CHILD
A expressão síndrome CHILD foi proposta em 1980 por Happle e cols.1 como acrônimo para as três principais alterações presentes nos doentes acometidos. São elas: hemidisplasia congênita (Congenital Hemidysplasia), eritrodermia ictiosiforme (Icthyosiform erythroderma) e defeitos nos membros (Limb Defects). Em 1987 o mesmo autor reconheceu que as lesões unilaterais e de padrão ictiosiforme observadas na síndrome seriam mais adequadamente classificadas como nevus e substituiu eritrodermia ictiosiforme por nevo ictiosiforme (nevo de CHILD).2 Assim, a síndrome CHILD representa fenótipo extremamente particular dentro do heterogêneo grupo das síndromes de nevus epidérmicos.3
Trata-se de doença rara, havendo cerca de 30 casos descritos na literatura, sendo apenas um em indivíduo do sexo masculino.4 Admite-se que seja transmitida por herança dominante ligada ao X, sendo letal para meninos hetemizigotos.1,5 A relação de mulheres afetadas para homens afetados de 28:1, a relação de irmãs não afetadas para irmãos não afetados de 11:3 e a observação de cinco abortos e um natimorto em afetados do sexo masculino dão suporte a esse padrão de herança.
Atualmente sabe-se que a síndrome CHILD faz parte de grupo de doenças causadas por defeitos enzimáticos na biossíntese do colesterol.6 Em 1992, Emami e cols.7 pesquisaram alterações morfológicas e funcionais em peroxissomos de fibroblastos de pele normal e de pele afetada em doentes com síndrome CHILD. Constataram que, nos fibroblastos de pele afetada, havia diminuição do número de peroxissomos e da atividade de duas enzimas (catalase e diidroxiacetona-fosfato-aciltransferase), levando ao acúmulo de estruturas vacuolares nessas organelas.
Em 2000, Grange e cols.8 analisaram os esteróides plasmáticos em pacientes com síndrome CHILD e verificaram aumento nos níveis de 8-deidrocolesterol e 8(9)-colestenol, e sugeriram que o defeito metabólico da síndrome CHILD corresponderia à deficiência de 3-beta hidroxiesteróide deidrogenase (NSDHL).8
Konig et al. identificaram que mutações no gene NSDHL no lócus Xq28 são as responsáveis pela síndrome.9
Clinicamente, a principal característica da síndrome CHILD é o nevo de CHILD, lesão ictiosiforme unilateral, bem demarcada e que respeita a linha média.1,2 Pode estar presente ao nascimento ou desenvolver-se nos primeiros anos de vida, acometer toda a pele de um hemicorpo, ser segmentar ou, ainda, alternar-se com bandas de pele normal num padrão de linhas de Blaschko. As regiões mais afetadas pelo nevo de CHILD são vulva, axila e sulco interglúteo. Raramente ocorre comprometimento mínimo contralateral.10 Revisão da síndrome verificou a tendência de as lesões cutâneas localizarem-se de forma mais pronunciada e persistente em áreas de dobras, caracterizando o chamado pticotropismo.11 O pticotropismo é característica exclusiva do nevo de CHILD entre todos os outros nevus. Histopatologicamente apresenta características semelhantes à psoríase e ao xantoma: alternância de áreas de paraqueratose e ortoqueratose, acantose, neutrófilos formando microabscessos na camada córnea, mas também alargamento das papilas dérmicas pela presença de histiócitos com acúmulos citoplasmático de lípides.12
Ainda entre as alterações cutâneas da síndrome, pode ocorrer padrão em mosaico de diminuição ou ausência de cabelos.
Os defeitos dos membros são ipsilaterais à ictiose e variam desde hipoplasia digital até agenesia completa do membro.
A hemidisplasia congênita pode afetar os sistemas esquelético, nervoso central, cardiovascular, geniturinário, endócrino e respiratório. As alterações neurológicas mais comuns são hipoplasia ipsilateral de um hemisfério cerebral e/ou de nervos cranianos, alterações de EEG e diminuição da sensibilidade ao toque e calor. Vale destacar que as pacientes afetadas geralmente têm inteligência normal. Defeitos cardiovasculares podem ser letais, necessitando intervenção cirúrgica.13 Outras anomalias viscerais incluem ausência ipsilateral do rim, hidronefrose e hipoplasia de um pulmão.
A característica lateralização de todos os defeitos associados à síndrome CHILD tem sido objeto de discussão por representar fenótipo específico de mosaicismo.14 Mosaico genético é organismo composto de duas ou mais populações celulares geneticamente distintas originadas de um zigoto geneticamente homogêneo. O específico padrão de lateralização está provavelmente relacionado ao fato de a origem de um clone de células organizadoras coincidir com a inativação do cromossomo X (lyonization) e nela interferir. Esse clone de células organizadoras controlaria grande campo morfogenético, incluindo o cérebro, um rim, metade do coração e ossos de um lado do corpo, o que explicaria o acometimento ipsilateral desses órgãos.
Na presença do quadro clínico completo, o diagnóstico da síndrome CHILD não costuma oferecer dificuldades. Quando presente apenas a lesão cutânea, o nevo de CHILD deve ser diferenciado do Nevil, nevo epidérmico verrucoso inflamatório linear, que é mais freqüente no sexo masculino, disposto em arranjo linear, com ausência de pticotropismo, e tem características histopatológicas distintas.
Com relação ao tratamento dessa síndrome, há relato de paciente que apresentou grande melhora da lesão cutânea após uso de acitretin.4
REFERÊNCIAS
1. Happle R, Koch H, Lenz W. The CHILD syndrome: Congenital hemidysplasia with ichtyosiform erythroderma and limd defects. Eur J Pediatr. 1980; 134: 27-33.
2. Happle R. CHILD naevus is not ilven. J Med Genet. 1991; 28: 214.
3. Happle R, Effendy I, Megahed M, Orlow SJ, Kuster W. CHILD syndrome in a boy. Am J Med Genet. 1996: 62: 192-4.
4. Happle R. Epidermal nevus syndromes. Semin Dermatol. 1995; 14: 111- 21.
5. Wettke-Schafer R, Kantner G. X-linked dominant inherited diseases with lethality in hemizygous males. Hum Genet. 1983; 64: 1-23.
6. Herman GE. Disorders of cholesterol biosynthesis: prototypic metabolic malformation syndromes. Hum Mol Genet. 2003: 12: 75-88.
7. Emani S, Rizzo WB, Hanley KP, Taylor JM, Goldyne ME, Willians ML. Peroxisomal abnormality in fibroblasts from involved shin of CHILD syndrome: Case study and review of peroxisomal disorders in relation to skin disease. Arch Dermatol. 1992; 128: 1213- 22.
8. Grange DK, Kratz LE, Braverman NE, Kelley RI. CHILD syndrome caused by deficiency of 3-beta-hydroxysteroid-delta-8, delta-7-isomerase. Am J Med Genet. 2000; 90: 328-35.
9. Konig A, Happle R, Bornholdt D, Engel H, Grzeschik KH. Mutations in the NSDHL gene, encoding a 3-beta-hydroxysteroid dehydrogenase, cause Child syndrome. Am J Med Genet. 2000; 90: 339-46.
10. Konig A, Happle R, Fink-Puches R, Soyer HP, Bornholdt D, Engel H, et al. A novel missense mutation of NSDHL in an unusual case of CHILD syndrome showing bilateral, almost symmetric involvement. J Am Acad Dermatol. 2002; 46: 594-6.
11. Happle R. Ptycotropism as a cutaneous feature of the Child syndrome. J Am Acad Dermatol. 1990; 23: 763-6.
12. Hebert AA, Esterly NB, Holbrook KA, Hall JC. The CHILD syndrome: histologic and ultrastructural studies. Arch Dermatol. 1987; 123: 503-9.
13. Falek A, Heath CW, Ebbin AJ, McLean WR. Unilateral limb and skin deformities with congenital heart disease in two siblings: A lethal syndrome. J Pediatr. 1968; 73: 910-3.
14. Happle R. Mosaicism in human skin: Understanding the patterns and mechanisms. Arch Dermatol. 1993; 129: 1460-70.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Dez 2006 -
Data do Fascículo
Ago 2005