Resumos
O recobrimento de ligas metálicas com cerâmicas bioativas visa acelerar a formação óssea ao redor do implante, contribuindo para a sua estabilização. Neste trabalho estudou-se a fase cerâmica de hidroxiapatita depositada pelo processo sol-gel em chapas da liga metálica Ti-6Al-4V. A camada de recobrimento foi caracterizada por microscopia eletrônica de varredura, por difração de raios X e sua adesão ao substrato foi avaliada pelo teste de cisalhamento O teste de citocompatibilidade mostrou que o processo de recobrimento por sol-gel não promoveu morte celular significativamente maior que o controle (p > 0,05). Além disso, hastes femorais removidas de pacientes (explantes) foram adequadamente recobertas utilizando-se o processo sol-gel.
cerâmica; hidroxiapatita; sol-gel; biomateriais; testes "in vitro"; citotoxicidade
The coating of metallic alloys with bioactive ceramics aims to accelerate bone formation around the implant, contributing to its fixation. In this paper, the deposition of hydroxyapatite ceramic on Ti-6Al-4V alloy sheets by the sol-gel method was studied. The coating layer was characterized by scanning electron microscopy, X-ray diffraction and its adhesion to substrate was evaluated by shear testing. The citocompatibility test shows that the sol-gel coating did not provoke the cell death significantly higher than the control (p > 0.05). Moreover, femoral stems removed from patient (explants) were adequately coated using the sol-gel process.
ceramics; hydroxyapatite; sol-gel; biomaterials; "in vitro" tests; cytotoxicity
Recobrimento da liga Ti-6Al-4V com hidroxiapatita pelo método sol-gel e sua aplicação a hastes femorais não-cimentadas
Coating of Ti-6Al-4V alloy with hydroxyapatite by using sol-gel method and its application to non-cemented femoral stem
E. P. AvésI; J. C. GalvánII; I. R. LimaIII; J. M. GranjeiroIII; I. N. BastosIV; G. D. SoaresV
IUniversidade de Havana, Cuba
IIMetallurgical Research Center, CSIC, CP 28040, Madrid, Espanha
IIIUniversidade Federal Fluminense, Niterói, RJ 24020-150
IVUniversidade do Estado do Rio de Janeiro, Rua Alberto Rangel s/n, Nova Friburgo, RJ 28630-050
VUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Ilha do Fundão, Rio de Janeiro, RJ 21941-972 gloria@metalmat.ufrj.br
RESUMO
O recobrimento de ligas metálicas com cerâmicas bioativas visa acelerar a formação óssea ao redor do implante, contribuindo para a sua estabilização. Neste trabalho estudou-se a fase cerâmica de hidroxiapatita depositada pelo processo sol-gel em chapas da liga metálica Ti-6Al-4V. A camada de recobrimento foi caracterizada por microscopia eletrônica de varredura, por difração de raios X e sua adesão ao substrato foi avaliada pelo teste de cisalhamento O teste de citocompatibilidade mostrou que o processo de recobrimento por sol-gel não promoveu morte celular significativamente maior que o controle (p > 0,05). Além disso, hastes femorais removidas de pacientes (explantes) foram adequadamente recobertas utilizando-se o processo sol-gel.
Palavras-chave: cerâmica, hidroxiapatita, sol-gel, biomateriais, testes "in vitro", citotoxicidade.
ABSTRACT
The coating of metallic alloys with bioactive ceramics aims to accelerate bone formation around the implant, contributing to its fixation. In this paper, the deposition of hydroxyapatite ceramic on Ti-6Al-4V alloy sheets by the sol-gel method was studied. The coating layer was characterized by scanning electron microscopy, X-ray diffraction and its adhesion to substrate was evaluated by shear testing. The citocompatibility test shows that the sol-gel coating did not provoke the cell death significantly higher than the control (p > 0.05). Moreover, femoral stems removed from patient (explants) were adequately coated using the sol-gel process.
Keywords: ceramics, hydroxyapatite, sol-gel, biomaterials, "in vitro" tests, cytotoxicity.
INTRODUÇÃO
Com o aumento da esperança de vida, estima-se um aumento do número de fraturas de quadril que passariam de 1,3 milhões em 1990 para cerca de 2,6 milhões em 2025. A fratura costuma ser conseqüência de quedas, acidentes e doenças crônico-degenerativas, como a osteoporose. Em 2005, os gastos do Sistema Único de Saúde - SUS com órteses e próteses ortopédicas ultrapassaram R$ 120 milhões [1]. Somente o procedimento de artroplastia do quadril foi responsável por mais de 16 mil internações e um gasto total de cerca de R$ 26,5 milhões com a compra de próteses. Somado a isso, houve, somente em 2006, cerca de 1.200 cirurgias de revisão de artroplastia, responsáveis por um gasto adicional de quase R$ 2,9 milhões para a realização deste procedimento [1]. Estes números não refletem a demanda real por estes serviços, pois o SUS ainda não garante a universalidade de atendimento.
A prótese do tipo Charnley, desenvolvida na década de 60, cimentada com haste femoral em aço inoxidável e acetábulo em polietileno ainda é, atualmente, bastante empregada e apresenta de bons a excelentes resultados clínicos em longo prazo, apesar do potencial desgaste do polietileno e problemas com a corrosão do aço inoxidável [2].
Há uma tendência de aumento de uso de próteses não-cimentadas ou híbridas (haste não-cimentada e acetábulo cimentado), especialmente em pacientes jovens [2, 3]. Neste caso, a haste femoral (ou parte dela) recebe um tratamento de superfície que visa otimizar a fixação biológica, integrando a liga metálica ao osso pelo processo conhecido como osteointegração. A principal vantagem do uso de hastes osteointegráveis é evitar o uso de cimentos como o poli(metacrilato de metila) que tende a degradar com o tempo, afrouxando a prótese e exigindo, com isso, cirurgias de revisão.
Dentre os tratamentos aplicados às hastes e acetábulos, destaca-se o recobrimento cerâmico com fosfatos de cálcio (genericamente chamados de hidroxiapatita - HA) que dada a sua similaridade com a parte mineral do osso, tende a acelerar o processo de osteointegração [4]. Comercialmente é empregado recobrimento por aspersão a plasma, mas este processo depende de equipamento caro e a escala mínima de produção econômica requerida é muitas vezes superior à necessária. Também são comentadas na literatura, as possíveis desvantagens, tais como a possibilidade de descolamento do recobrimento devido à sua elevada espessura [5], a natureza física da união, e a criação de tensões residuais na interface metal-cerâmica [6]. Por isto, diversos processos como o biomimético [7], eletroforese [8] e sol-gel [9] têm sido utilizados para recobrir metais e suas ligas com as cerâmicas de fosfatos de cálcio.
De acordo com o Órgão Internacional de Padronização (International Standard Organization - ISO), o ensaio de citotoxicidade in vitro é o primeiro teste para avaliar a biocompatibilidade de qualquer material para uso em dispositivos biomédicos [10] e, depois de comprovada a sua não-toxicidade, é que o estudo da biocompatibilidade do produto pode ter continuidade realizando-se os ensaios necessários em animais de experimentação [11]. Assim, os materiais de implantes devem também ser aprovados neste teste.
O presente trabalho teve como objetivo otimizar os parâmetros de processo para recobrimento de uma liga Ti-6Al-4V, sendo que nesta etapa foram utilizadas amostras planas. Após a caracterização do recobrimento e os testes "in vitro", o recobrimento foi aplicado a hastes femorais comerciais, removidas de pacientes (explantes).
MATERIAIS E MÉTODOS
Uma chapa da liga Ti-6Al-4V com 1 mm de espessura (ASTM F-136) foi jateada com partículas de alumina, seguida de ataque químico com uma solução contendo H2O2 e HF. Essa combinação de tratamentos resulta numa superfície rugosa e com topografia favorável à adesão e à interação química do recobrimento com o substrato [12].
O recobrimento seguiu o procedimento [13] que consiste na hidrolização por 24 h de trietil fosfito em água sob vigorosa agitação. Uma solução 4M de nitrato de cálcio em quantidade estequiométrica é então adicionada, agitada por mais 30 min e deixada agir por 24 h. O recobrimento sobre amostras com seção quadrada (10 mm x 10 mm) foi produzido por spin-coating durante 9 min e sob velocidade de 4.200 rpm. A superfície metálica com o recobrimento cerâmico foi então tratada termicamente a 450 °C (com aquecimento lento) por 2 h para densificar a camada de fosfato de cálcio e melhorar a adesão com o substrato. A temperatura escolhida foi baixa para que não resultasse em redução da dureza da liga metálica.
O recobrimento foi caracterizado morfologicamente por microscopia eletrônica de varredura (MEV, JEOL JSM-6460LV) e físico-quimicamente por difração de raios X (DRX). Para a análise por DRX em um difratômetro Rigaku (Miniflex) com radiação Cukα, a camada de recobrimento foi removida do substrato e triturada em almofariz de ágata.
Testes de adesão da camada de hidroxiapatita sobre o substrato foram realizados segundo a norma ASTM F 1044-05. Esta norma define as condições do teste de cisalhamento para avaliação de recobrimentos metálicos e de fosfatos de cálcio sobre substratos metálicos densos e indica, de forma comparativa, o grau de adesão do recobrimento ao substrato. O corpo-de-prova consiste de duas placas, uma recoberta e a outra não, unidas por um filme adesivo que deve apresentar resistência ao cisalhamento superior a 34,5 MPa. Os testes foram feitos em quintuplicata na máquina de ensaio universal Instron.
A citocompatibilidade das amostras recobertas foi avaliada por contato indireto como descrito na norma ISO 10993-5. Em resumo, placas recobertas por sol-gel foram incubadas em DMEM (6 cm2/mL) sem soro fetal bovino (SFB) por 24 h a 37 ºC. O sobrenadante desta mistura foi denominado extrato puro (100%), sendo posteriormente submetido a diluições seriadas (50 e 10%).
Fibroblastos Balb/c clone A31 obtidas da American Type Culture Colletion (ATCC) foram semeadas em placas de 24 poços e cultivadas em DMEM acrescido de antibiótico e complementado com 10% de SFB a 37 ºC e 5% de CO2 até atingirem a subconfluência (48 h após o plaqueamento). Em seguida, o meio de cultura foi substituído pelas diferentes concentrações do extrato do material acrescido de SFB 10% e, após 24 h, procedeu-se à tripsinização e fixação das células em formaldeído 3,7% para posterior contagem em câmera de Neubauer. O número de células cultivadas apenas em DMEM contendo 10% de SFB foi considerado como controle negativo (correspondendo a diluição 0% do extrato). O experimento foi executado em sextuplicadas, sendo as médias e os desvios-padrão submetidos à análise de variância, considerando-se significativas diferenças se p < 0,05. Adicionalmente, foram semeadas 30.000 células da linhagem de pré-osteoblastos de fêmur de Balb/c 3T3 (FOST) sobre placas de 10 mm x 10 mm das amostras recobertas por sol-gel e mantidas em cultura em DMEM suplementado com 10% de SFB a 37 ºC e 5% de CO2 por 4 e 24 h. Ao final desse período, as placas foram removidas, as células fixadas em solução de 2,5% glutaraldeído tamponado com cacodilato 0,1M, pH 7,3 por 24 h. Após esta etapa as células foram lavadas duas vezes em solução tampão de cacodilato 0,1M, desidratadas em concentrações crescentes de álcool (de 50 a 100%) e imersas em solução de hexiametilsilazana-etanol absoluto (50%:50%) seguida de hexametilsilazana (100%), secagem por 24 h e metalização com liga de ouro-paládio para observação em microscópio eletrônico de varredura - MEV a 15 kV.
Para testar a efetividade de recobrimento da biocerâmica uma prótese removida de um paciente (explante) foi então recoberta pelo processo sol-gel. Devido ao seu tamanho não foi possível realizar o recobrimento por spin-coating. Optou-se, então, pelo recobrimento por imersão (dip coating) em várias etapas. O tratamento térmico adotado foi idêntico ao usado nas amostras planas.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A imagem obtida por MEV da superfície da liga de titânio recoberta mostra a formação de uma camada razoavelmente uniforme, Fig. 1a. Podem ser observadas algumas regiões porosas e algumas trincas decorrentes provavelmente da contração diferencial do recobrimento em relação à liga metálica. Essa contração parece existir somente nas camadas mais externas, mantendo uma fina camada cerâmica em contato com a superfície da liga metálica (Fig. 1b).
O difratograma de raios X (Fig. 2) indica uma estrutura com elevada cristalinidade composta de hidroxiapatita (JCPDS 09-0432) e carbonato de cálcio (JCPDS 81-2027). Apesar de que alguns autores consideram o carbonato de cálcio tóxico, foram obtidos [14] cimentos de fosfatos de cálcio contendo, no mínimo, carbonato de cálcio que aumenta a reabsorção do material, embora alguns autores considerem o carbonato de cálcio como citotóxico, cimentos de fosfato de cálcio com, no mínimo 40% em massa de carbonato de cálcio com elevada reabsorção e excelente citocompatibilidade. No caso de implantes, a reabsorção parcial da camada de recobrimento pode ser um aspecto positivo no sentido de acelerar a neo-formação óssea [4].
A resistência ao cisalhamento dos corpos-de-prova ensaiados foi igual a 29,0 ± 3,6 MPa. Testes interlaboratoriais da liga de Ti-6Al-4V recoberta por aspersão térmica com pó da mesma liga apresentaram uma resistência ao cisalhamento igual a 29,6 MPa [10]. Também o desvio padrão encontrado (3,6 MPa) foi inferior ao máximo admitido pela norma, que é 4,81 MPa. Dessa forma, é possível concluir que o recobrimento de hidroxiapatita pelo processo de sol-gel apresenta boa adesão ao substrato metálico. Um trabalho recente sobre desgaste de filmes produzidos por sol-gel sobre liga Ti-6Al-4V mostrou que recobrimentos com HA são menos propensos ao desgaste do que recobrimentos de TiO2 e SiO2, provavelmente pela maior deformação plástica da camada de hidroxiapatita [15].
A Fig. 3 mostra, em relação ao grupo de controle, que não há diferença significativa (p > 0,05) no número de células expostas às diferentes concentrações do extrato das placas recobertas por sol-gel, indicando sua citocompatibilidade. Fotomicrografias eletrônicas de varredura das células semeadas sobre a placa recoberta por sol-gel podem ser vistas na Fig. 4 onde se constata a adesão e espraiamento das células com emissão de filipodia e pseudópodos, bem como algumas figuras sugestivas de mitose.
A partir da confirmação da citocompatibilidade, da resistência ao cisalhamento e das fases cerâmicas formadas, foi recoberta uma peça de implante real para identificar se o recobrimento era uniforme mesmo numa peça com geometria complexa. A Fig. 5 mostra parte da haste explantada com recobrimento uniforme e, qualitativamente, com a mesma adesão ao substrato metálico, indicando sucesso do recobrimento pelo método sol-gel.
CONCLUSÕES
Os resultados de resistência ao cisalhamento indicam que a deposição por sol-gel apresenta uma adesão adequada na interface metal-cerâmica e no ensaio de citoxicidade, segundo a norma ISO 10993-5, o sistema foi considerado atóxico. Também foi possível recobrir hastes comerciais pelo processo de sol-gel, que pode ser uma alternativa viável para a produção de hastes femorais não-cimentadas.
AGRADECIMENTOS
Ao CNPq (Proc. 491512/2004-0) e também à FAPERJ e à CAPES pelo suporte financeiro. Ao ortopedista M. Nascimento, do INTO, pela cessão de explantes para serem recobertos.
(Rec. 30/04/2008, Ac. 13/06/2008)
- [1] DATASUS, 2007.
- [2] C. V. M. Rodrigues, Tese de Doutorado, COPPE/UFRJ, Rio de Janeiro, RJ (2006).
- [3] Baumer - disponível em: http://www.baumer.com.br/Ortopedia/Portugues /detModelo.php?codproduto=135 Acesso em 10/03/2007.
- [4] R. Z. LeGeros, Clin. Orthop. Rel. Res. 395 (2002) 81-98.
- [5] A. K. Lynn, D. L. DuQuesnay, Biomaterials 23 (2002) 1937-1946.
- [6] Y.-C. Yang, Surf. Coat. Technol. 201 (2007) 7187-7193.
- [7] T. Kokubo, T. Takadama, Biomaterials 27 (2006)2907-2915.
- [8] L. A. Sena, M. C. Andrade, A. M. Rossi, G. A. Soares, J. Biomed. Mater. Res. 60 (2002) 1-7
- [9] D.-M. Liu, Q. Yang, T. Troczynski, Biomaterials 23 (2002) 691- 698.
- [10] International Standard Organization, ISO 10993.
- [11] S. O. Rogero, A. B. Lugão, T. I. Ikeda, A. S. Cruz, Mater. Res. 6, 3 (2003) 317.
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- [13] D.-M. Liu, T. Troczynski, W. J. Tseng, Biomaterials/ 22 (2001) 1721-1730.
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- [15] S. O. Rogero, C. Santos, J. K. M. F. Daguano, Matéria 12 (2007) 134-139.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Fev 2009 -
Data do Fascículo
Dez 2008
Histórico
-
Recebido
30 Abr 2008 -
Aceito
13 Jun 2008