Open-access Síndrome antifosfolípide primária e infecções por hepatites B e C

Resumos

OBJETIVO: Avaliar a prevalência de sorologia positiva para hepatites B e C em pacientes com síndrome antifosfolípide (SAF) primária. PACIENTES E MÉTODOS: Estudo transversal de 47 pacientes com SAF primária (critérios de Sapporo). Foram avaliados os dados demográficos, clínicos, medicações e sorologias para hepatites B e C e PCR nos resultados positivos. RESULTADOS: A média de idade da população estudada foi de 38 ± 11 anos, sendo 80,8% do sexo feminino e 68% da cor branca. A média de duração da doença foi de 67 ± 61 meses (variando de 1 - 240 meses). Os eventos arteriais foram vistos em 61,7% dos casos, os venosos em 51% e os obstétricos em 38,3%. Cinco (10,6%) pacientes com SAF primária apresentaram sorologia positiva para hepatite B ou C. Desses, três pacientes foram positivos para anti-HBs, com anti-HBc positivo em apenas um deles, e os outros dois foram positivos para hepatite C. A análise da PCR qualitativa não detectou RNA do vírus C em nenhum desses dois pacientes positivos. CONCLUSÃO: Uma pequena percentagem de pacientes com SAF primária apresenta sorologia positiva para hepatites B e C, sendo em todos os casos pós-vacinal ou cicatriz sorológica.

síndrome antifosfolípide; síndrome antifosfolípide primária; soroprevalência; hepatites; hepatite B; hepatite C


OBJECTIVE: The objective of the present study was to evaluate the prevalence of hepatitis B and C serology in patients with primary antiphospholipid syndrome (APS). METHODS: This is a transversal study with 47 patients with primary APS (Sapporo's criteria). Demographic and clinical data, medications, and hepatitis B and C serologies, with PCR in positive cases, were evaluated. RESULTS: The study population had a mean age of 38±11 years, 80.8% were females, and 68% Caucasian. The mean duration of the disease was 67 ± 61 months (ranging from 1 to 240 months). Arterial events were seen in 61.7% of the patients, venous events in 51%, and obstetric events in 38.3%. Five (10.6%) patients with primary APS had positive serologies for hepatitis B or C. Three of them were positive for anti-HBs, and only one was anti-HBc positive; the other two patients were positive for hepatitis C. Qualitative PCR did not detect hepatitis C viral RNA in neither of the positive patients. CONCLUSION: A small percentage of patients with primary APS had positive serology for hepatitis B and C, and all represented cases post-vaccine or serology scar.

antiphospholipid syndrome; primary antiphospholipid syndrome; seroprevalence; hepatitis; hepatitis B; hepatitis C


ARTIGO ORIGINAL

Síndrome antifosfolípide primária e infecções por hepatites B e C

Jozélio Freire de Carvalho

Professor Colaborador da Disciplina de Reumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e Chefe do Ambulatório de Síndrome Antifosfolípíde do Serviço de Reumatologia do Hospital das Clínicas da FMUSP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Jozélio Freire de Carvalho Disciplina de Reumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Av. Dr. Arnaldo, 455 - 3º andar, sala 3.190 Cerqueira César, 01246-903. São Paulo, SP Tel./Fax: (11) 3061-7490 E-mail: jotafc@gmail.com

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar a prevalência de sorologia positiva para hepatites B e C em pacientes com síndrome antifosfolípide (SAF) primária.

PACIENTES E MÉTODOS: Estudo transversal de 47 pacientes com SAF primária (critérios de Sapporo). Foram avaliados os dados demográficos, clínicos, medicações e sorologias para hepatites B e C e PCR nos resultados positivos.

RESULTADOS: A média de idade da população estudada foi de 38 ± 11 anos, sendo 80,8% do sexo feminino e 68% da cor branca. A média de duração da doença foi de 67 ± 61 meses (variando de 1 - 240 meses). Os eventos arteriais foram vistos em 61,7% dos casos, os venosos em 51% e os obstétricos em 38,3%. Cinco (10,6%) pacientes com SAF primária apresentaram sorologia positiva para hepatite B ou C. Desses, três pacientes foram positivos para anti-HBs, com anti-HBc positivo em apenas um deles, e os outros dois foram positivos para hepatite C. A análise da PCR qualitativa não detectou RNA do vírus C em nenhum desses dois pacientes positivos.

CONCLUSÃO: Uma pequena percentagem de pacientes com SAF primária apresenta sorologia positiva para hepatites B e C, sendo em todos os casos pós-vacinal ou cicatriz sorológica.

Palavras-chave: síndrome antifosfolípide, síndrome antifosfolípide primária, soroprevalência, hepatites, hepatite B, hepatite C.

INTRODUÇÃO

A síndrome antifosfolípide (SAF) é uma trombofilia autoimune adquirida caracterizada pela presença de tromboses vasculares e/ou eventos obstétricos, acompanhada ou não de plaquetopenia na vigência de níveis moderados e persistentes de anticorpos antifosfolipídios.1

Os anticorpos antifosfolipídios têm sido detectados em pacientes com doenças infecciosas, bem como relacionado ao uso de diversas medicações.2 Agentes infecciosos têm sido implicados na fisiopatologia da SAF, particularmente na sua forma catastrófica.3 Embora o papel dos vírus das hepatites B e C tenha sido pouco estudado na SAF, diversos estudos mostraram a associação desses agentes virais em diversas doenças autoimunes, como a síndrome de Sjögren,4 artrite reumatoide5 e o lúpus eritematoso sistêmico.6 Por outro lado, ainda que a presença de anticorpos antifosfolipídios nas infecções virais crônicas por hepatite C seja um evento comum, essa associação raramente encontra-se relacionada com fenômenos trombóticos.

Na literatura, só existe um estudo que descreve a presença de hepatite C em pacientes com SAF.7 Nesse sentido, o presente trabalho teve por objetivo avaliar a frequência de soropositividade das hepatites B e C em pacientes com SAF primária.

PACIENTES E MÉTODOS

Neste estudo, foram incluídos consecutivamente 47 pacientes, de ambos os sexos, com idade de pelo menos de 18 anos, com diagnóstico de SAF segundo os critérios de Sapporo.8 Todos os pacientes apresentavam SAF primária, ou seja, não associada a outras doenças autoimunes. Esses pacientes são acompanhados no ambulatório de SAF do Serviço de Reumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Na consulta de avaliação, foram coletados os dados utilizados neste trabalho, bem como procedida à revisão dos prontuários médicos. Os eventos clínicos arteriais e venosos foram todos confirmados por métodos de imagens, como ultrassonografia Doppler, cintilografia pulmonar de ventilação-perfusão, tomografia computadorizada, ressonância nuclear magnética (RNM), arteriografia, angiotomografia e angio-RNM. A presença dos anticorpos anticardiolipina (aCL) e anticoagulante lúpico (AL) foi confirmada na ocasião do diagnóstico clínico da síndrome. Uma amostra de sangue venoso foi obtida para a realização dos exames laboratoriais. As amostras utilizadas no presente trabalho foram obtidas a partir de uma soroteca de um trabalho prévio, conforme aprovação de trabalho anterior pelo Comitê de Ética em pesquisa sob número 240/07.

Testes diagnósticos: todos os testes sorológicos foram realizados por conjuntos comerciais para pesquisa de anticorpos para o vírus da hepatite C (Vitros, EUA) por meio do método de quimioluminescência amplificada. A detecção qualitativa do RNA do vírus da hepatite C, naqueles casos positivos, foi realizada por reação em cadeia da polimerase (PCR) (Roche). A sorologia para o vírus da hepatite B (Anti-HBc total, AgHBs, Anti-HBs, AgHBe, Anti-HBe e Anti-HBc IgM) foi realizada pelo método de ensaio imunoenzimático em micropartículas (MEIA, AxSym, Illinois, EUA). A triagem inicial foi feita com anti-HBc total e anti-HBs, este último para detectar os pacientes previamente vacinados.

Análise estatística: os dados foram apresentados em médias, desvios-padrão ou percentagem. Foi utilizada estatística descritiva para a apresentação dos dados.

RESULTADOS

Os pacientes incluídos neste estudo apresentaram média de idade de 38,0 ± 11 anos, sendo 68% da cor branca e 80,8% do sexo feminino. A média de duração de doença foi de 67 ± 61 meses (Tabela 1).

Os eventos trombóticos arteriais foram vistos em 61,7% dos casos, os venosos em 51% e os obstétricos em 38,3%. O acidente vascular encefálico foi observado em 42,5% dos pacientes, a isquemia de extremidades em 12,7%, trombose venosa profunda em 60%.

Com relação aos anticorpos antifosfolipídios, 59,6% apresentaram aCL IgG positivos com mediana de 20 (variação de 20 a 120) GPL, 53,1% aCL IgM positivos com valores médios de 20 (variação de 20-120) MPL. Trinta e oito (80,8%) indivíduos foram positivos para o AL.

Cerca de 80% dos pacientes estavam em uso de anticoagulante oral e 34% em uso de ácido acetilsalicílico. Dez (21,2%) pacientes estavam em uso de difosfato de cloroquina.

Cinco pacientes apresentaram teste positivo para hepatite B ou C. Dois pacientes (4,2%) apresentaram anticorpo para o vírus da hepatite C, sendo que suas PCR foram negativas em três ocasiões. Ambos eram assintomáticos do ponto de vista gastroenterológico e as enzimas hepáticas eram normais. Esses pacientes apresentaram a pesquisa de crioglobulinas negativa. Interessantemente, ambos os pacientes eram do sexo feminino e uma delas havia apresentado trombose porto-esplênica e varizes de esôfago secundárias, com função hepática normal (Tabela 2).

A soropositividade para anti-HBs total foi de 6,4% (3/47). Um deles foi positivo também para o anti-HBc total, confirmando exposição prévia ao vírus e nos outros dois foi pós-vacinal (Tabela 2).

DISCUSSÃO

O presente trabalho demonstrou que pacientes com SAF apresentam baixa frequência de soropositividade para hepatites B e C.

As vantagens deste trabalho foram a inclusão de um grupo restrito de pacientes com SAF primária, sendo que todos preencheram os critérios internacionais de classificação dessa trombofilia8 e foram excluídas condições de SAF secundária, pois já demonstrada a associação entre pacientes com lúpus eritematoso sistêmico e artrite reumatoide com hepatite C.5

A hepatite C é considerada uma das maiores infecções virais epidêmicas de todo o mundo nas últimas duas décadas, com uma tendência crescente de descrição de fenômenos autoimunes associados a essa doença. Nesse sentido, diversos estudos revelaram que anticorpos anticardiolipina podem estar presentes em uma frequência de 3,3% a 46% dos pacientes com infecção pelo vírus C.9-11 No estudo de Zachou et al., que avaliou 174 pacientes com hepatite C, 50 com hepatite B e 267 controles saudáveis, os autores detectaram 21,3% de aCL IgG nos pacientes com vírus C e 14% naqueles com vírus B. Em nenhum dos pacientes havia manifestações clínicas da síndrome antifosfolípide.12 A presença desses anticorpos antifosfolipídios em infecções por vírus B e C traz a possibilidade de um mecanismo comum levando à sua produção. Uma hipótese aventada é a indução de neoantígenos pela hepatite crônica, por meio do rompimento das membranas dos hepatócitos. A presença dos anticorpos aCL poderia ser a consequência do reconhecimento desses neoantígenos pelo sistema imunológico. Outra possibilidade aventada é a de que os vírus hepatotrópicos induzem apoptose, o que levaria a uma redistribuição dos fosfolipídeos de membrana e a sua expressão aumentada na superfície das células apoptóticas e, como mecanismo final, a produção de anticorpos antifosfolipídios.11,13,14

Em um estudo interessante, os autores avaliaram um banco de dados hispano-americano de manifestações autoimunes em doenças virais crônicas (HISPAMEC) e foram hábeis em descrever 45 pacientes com infecção crônica pelo vírus da hepatite C e que apresentaram um espectro de manifestações clínicas de SAF, bem como a presença de anticorpos antifosfolipídios.15

Em um estudo de 40 pacientes com infecção pelo vírus da hepatite B, 17 (42%) deles apresentaram aCL positivos, sendo os isotipos IgM e IgA os mais frequentes.16 Tem sido proposto que os mecanismos de mimetismo molecular entre agentes infecciosos e a molécula de beta-2-glicoproteína I, um cofator dos anticorpos antifosfolipídios, são capazes de induzir a formação de anti-beta-2-glicoproteína I.17 Além disso, os receptores celulares para os componentes lipídicos do envelope do vírus B incluem a anexina V e a beta-2-glicoproteína I, que poderiam ser os antígenos para a produção de antifosfolipídios.16

Prieto et al., em um estudo clássico investigaram a presença de anticorpos aCL em 100 pacientes com hepatite C crônica e compararam com 52 controles saudáveis e 73 pacientes com doenças trombóticas (36 com aCL positivos). Os autores verificaram maior presença de positividade para anticorpos aCL no grupo de hepatite C (22%) do que na população saudável e, mais interessante, encontraram por meio de regressão logística que a presença de plaquetopenia, hipertensão portal e trombose prévia nos pacientes com o vírus da hepatite C (HCV) esteve relacionada com a presença de anticorpos aCL.18 Um dos nossos pacientes com sorologia positiva para o HCV apresentou também hipertensão portal, embora a doença hepatite C não foi confirmada em nenhum dos nossos pacientes, esse achado parece implicar em mecanismos fisiopatológicos comuns.

Por outro lado, o estudo da frequência de infecção pelo vírus da hepatite C em pacientes com SAF já é uma situação menos comum. Em uma descrição de 100 pacientes com SAF, sendo 68 desses SAF primária e o restante associado a outras doenças autoimunes, Cervera et al. descreveram 13% de infecção por hepatite C.7 No entanto, esse estudo não discriminou se estes 13 indivíduos eram apenas SAF primária ou associados a outra doença.

Em resumo, o presente trabalho revelou que pacientes com SAF primária apresentam uma baixa frequência de soropositividade para hepatites B e C, e em todos os casos aqui estudados, essa positividade imunológica foi secundária a cicatriz sorológica ou vacinal.

Recebido em 14/04/2009

Aprovado, após revisão, em 7/08/2009

O autor declara ter recebido auxílio da Fundo de Auxílio à Pesquisa e Ensino em Reumatologia, da SBR.

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  • Endereço para correspondência:
    Jozélio Freire de Carvalho
    Disciplina de Reumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
    Av. Dr. Arnaldo, 455 - 3º andar, sala 3.190
    Cerqueira César, 01246-903. São Paulo, SP
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    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Nov 2009
    • Data do Fascículo
      Out 2009

    Histórico

    • Aceito
      07 Ago 2009
    • Recebido
      14 Abr 2009
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