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DIREITOS INDÍGENAS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL: PASSIVO SOCIAL OU “NINGUENDADE”?

INDIGENOUS RIGHTS AND PUBLIC HEALTH POLICIES IN BRAZIL: SOCIAL LIABILITIES OR “NOBODY-NESS”?

DERECHOS INDÍGENAS Y POLÍTICAS DE SALUD PÚBLICA EN BRASIL: ¿RESPONSABILIDADES SOCIALES O “NADIEDAD”?

RESUMO

Neste artigo, pretendemos demonstrar o (des)compromisso do Estado com a conquista dos direitos indígenas à saúde a partir de cortes transversais ao longo dos séculos XX e XXI; e da análise grupal das organizações da saúde indígena em três contextos históricos: i) Serviço de Proteção ao Índio - SPI, em 1910, após a Proclamação da República; ii) Fundação Nacional do Índio - FUNAI, em 1968, após o Golpe Militar; e iii) Secretaria de Saúde Indígena - SESAI, em 2010, após a Constituição Federal Brasileira. Numa reflexão sobre o pensamento social de “ninguendade”, de Darcy Ribeiro, constatamos a não participação indígena na construção da nacionalidade brasileira sob a influência das ideias positivistas de assimilação presentes na criação do SPI e de integração da FUNAI, ainda embutidas na consciência dos brasileiros. Os direitos constitucionais emancipatórios na recomendação da interculturalidade na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas apresentou avanços e recuos nas últimas décadas na SESAI, sob gestão federal do Ministério da Saúde desde 2002.

Palavras-Chaves:
Política Pública de Saúde Indígena; “Ninguendade”; Pensamento Social Brasileiro; Darcy Ribeiro.

In this article we intend to demonstrate the commitment of the State to the conquest of indigenous rights to health from cross-cutting scans throughout the 20th and 21st centuries and from the group analysis of indigenous health organizations in three historical contexts: i) Indian Protection Service - SPI in 1910, after the Proclamation of the Republic; ii) National Indian Foundation - Funai in 1968, after the Military Coup; and, iii) Department of Indigenous Health - Sesai in 2010, after the Brazilian Federal Constitution. In a reflection on the social thinking of Darcy Ribeiro's “nobody”, we found the non-indigenous participation in the construction of Brazilian nationality under the influence of positivist ideas of assimilation present in the creation of the SPI and integration of FUNAI, still embedded in the conscience of Brazilians. Emancipatory constitutional rights in the recommendation of interculturality in the National Health Care Policy of Indigenous Peoples presented advances and setbacks in recent decades in SESAI, under federal management of the Ministry of Health since 2002.

Keywords:
Indigenous Health Public Policy; “Nobody”; Brazilian Social Thinking; Darcy Ribeiro.


En este artículo pretendemos demostrar el compromiso del Estado con la conquista de los derechos indígenas a la salud a partir de exploraciones transversales a lo largo de los siglos 20 y 21 y desde el análisis grupal de las organizaciones indígenas de salud en tres contextos históricos: i) Servicio de Protección al Indio - SPI en 1910, después de la Proclamación de la República; ii) Fundación Nacional del Indio - Funai en 1968, después del golpe militar; y, iii) Departamento de Salud Indígena - Sesai en 2010, después de la Constitución Federal de Brasil. En una reflexión sobre el pensamiento social del “nadie” de Darcy Ribeiro, encontramos la participación no indígena en la construcción de la nacionalidad brasileña bajo la influencia de ideas positivistas de asimilación presentes en la creación del SPI y la integración de FUNAI, aún incrustadas en la conciencia de los brasileños. Derechos constitucionales emancipadores en la recomendación de interculturalidad en la Política Nacional de Atención de Salud de los Pueblos Indígenas presentó avances y retrocesos en las últimas décadas en la SESAI, bajo gestión federal del Ministerio de Salud desde 2002.

Palabras clave:
Política Pública de Salud Indígena; “Ninguendade”; (“Nadiedad”); Pensamiento Social Brasileño; Darcy Ribeiro.


INTRODUÇÃO

Darcy Ribeiro (1922-1997) teve importante participação na defesa dos direitos indígenas e na sua institucionalização através da criação do Serviço de Proteção ao Índio - SPI, do Museu do Índio e do Parque Indígena do Xingu; assim como na Organização Internacional do Trabalho - OIT, em 1954, e no debate internacional na UNESCO sobre a soberania e autonomia dos povos indígenas, em 1992. Da sua vasta produção literária destacamos as relacionadas à temática antropológica; ao processo civilizatório no Brasil e nas Américas; e à política indigenista, na perspectiva de reconhecimento das peculiaridades e direitos à sobrevivência física e cultural dos povos indígenas, que contribuíram para a formação da política de saúde indígena e a democratização no país nas últimas décadas.

Em quase meio século, a sua produção intelectual apresenta importantes aspectos críticos sobre a situação da diversidade sociocultural no país, do sistema institucional, da propriedade privada e do regime de trabalho (MISOCZKY; FLORES, 2009MISOCZKY, M. C. e FLORES, R. K. A práxis-crítica na tradição do pensamento social brasileiro. Cadernos EBAPE>BR. v. 7. n.º 3. artigo 9. Rio de Janeiro, set. 2009.). O seu pensamento social influenciou a organização da assistência à saúde indígena no início do século passado; o avanço nos princípios da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (BRASIL, 2002BRASIL. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Aprovada pela Portaria do Ministério da Saúde n.º 254, de 31 de janeiro de 2002. (DOU n.º 26 - Seção 1, p. 46 a 49, de 6 de fevereiro de 2002). Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/funasa/politica_saude_indigena.pdf. Acesso em: 17 nov 2021.
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); e o enfrentamento das dificuldades na garantia dos direitos constitucionais de autonomia e autodeterminação dos povos indígenas. (BRASIL, 2003BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Coleção Saraiva de Legislação. 32ª edição. São Paulo: Saraiva, 2003.).

Para Cardoso (2012)CARDOSO, A. M.; SANTOS; R. V.; GARNELO, L.; and CHAVES, M. B. G. Políticas públicas de saúde para os povos indígenas. In: GIOVANELLA, L.; ESCOREL, S.; LOBATO; L. V. C., NORONHA, J. C., and CARVALHO; A. I., eds. Políticas e sistemas de saúde no Brasil [online]. 2nd ed. rev. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2012, pp. 911-932. ISBN: 978-85-7541-349-4. https://doi.org/10.7476/9788575413494.0033
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, as últimas décadas marcaram um crescente movimento de reivindicação e de conquista dos direitos indígenas à saúde; incorporando ideais de cidadania, liberdade, direitos civis, democracia e redução das desigualdades sociais. As políticas de saúde indígena, apoiadas no paradigma da especificidade, da diferença, da interculturalidade e da valorização da diversidade, sinalizaram para avanços, mas, também, para a permanência e até mesmo para o agravamento de muitos problemas. Assim, questionamos: que contextos históricos e políticos influenciaram essas transformações, ao longo dos séculos XX e XXI, no Brasil?

1 A “NINGUENDADE” NO PENSAMENTO SOCIAL DE DARCY RIBEIRO

A ideia de “ninguendade” de Darcy Ribeiro consiste numa reflexão sobre a não participação do povo brasileiro na construção da nossa nacionalidade desde o Brasil Colônia. Para o autor, numa perspectiva antropológica dialética, o processo civilizatório do Brasilimpede uma verdadeira revolução industrial e tecnológica no país, dado que retira sua autonomia, reforçando a dependência e a “ninguendade” (MIGLIEVCH, 2012MIGLIEVCH, A. Da ninguendade do povo brasileiro: um ensaio sobre a antropologia dialética de Darcy Ribeiro. In: MARTINS, P. E. e MUNTEAL, O. (Orgs). O Brasil em evidência: a utopia do desenvolvimento. Rio de Janeiro:PUC.FGV Editora. 2012.).

Para o autor, a formação do povo brasileiro se deu pelo entrechoque de seu contingente de indígenas, negros e brancos num processo altamente conflituoso de dominação europeia. Nos conflitos interétnicos, os povos indígenas não tinham possibilidade de impor a sua hegemonia sobre as outras, configurando-se o dominador europeu como uma macroetnia expansionista no território ocupado (RIBEIRO, 2009RIBEIRO, D.. O Povo Brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.).

No período colonial (1500-1822), o “cunhadismo” foi uma instituição indígena, uma prática tribal para tratar com pessoas estranhas e estabelecer relações mais extensas com todo o povo, em que o estranho branco recebia uma moça como esposa e passava a ter dezenas de cunhados, sogros, genros e outros parentes ao seu serviço e pedindo bugigangas. A miscigenação se deu de imediato com o nascimento de filhos de mulher indígena e pai europeu, que não se identificavam com o gentio materno e eram tratados com desprezo pelos europeus. Etnicamente os “ninguéns”, denominados mamelucos3 3 Denominação dada pelos árabes a uma casta de guerreiros que criavam meninos não muçulmanos escravizados e treinados, assim como os cavalos, extraindo a capacidade que tinham, especialmente, lealdade ao seu dono. Se pudesse, voltava ao seu povo com a cara daquele povo, mas com a alma mudada, porque fora reumanizado na casa-criatório e iria servir como mameluke ou mamluk. pelos jesuítas, dominavam a cultura indígena e herdavam sua sabedoria milenar, dotados de extrema capacidade destrutiva compuseram as bandeiras4 4 Os bandeirantes foram os grandes percussores da história do Brasil, utilizados pelos portugueses para capturar e lutar contra indígenas e escravos foragidos, diferentemente das entradas que eram empreitadas e financiadas pelo governo, ou seja, oficiais; as particulares, denominadas Bandeiras eram pagas por senhores de engenhos e comerciantes. , que devassaram o interior do Brasil nos séculos XVI e XVII, exterminando populações indígenas substituídas por milhões de mestiços (RIBEIRO, 1995RIBEIRO, D. O Brasil como problema. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.).

Nesse processo de miscigenação, os indígenas considerados inúteis, por não produzirem mercadorias, passaram a ser mão de obra no sistema europeu de mercado. Porém, não se incorporavam a uma economia mercantil, apenas uma incrustação do mundo microetnico da reciprocidade solidária, fundadas na obrigação do parentesco - o “cunhadismo” (RIBEIRO, 1995RIBEIRO, D. O Brasil como problema. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995., p. 99).

No pensamento social de Darcy Ribeiro, além do processo econômico, se deu um processo biológico profundo no Brasil Colônia, com a mestiçagem indígena e negra por mais de 300 anos. No caso do mestiço negro, já não era africano e queria se identificar com o pai branco, mas era um “ninguém”, alforriado no plano étnico, porém discriminado ou escravo do próprio pai. O brasileiro surge tardiamente, desses ‘ninguéns’ - mestiços indígenas e negros, à procura do próprio ser em uma identidade étnica, historicamente surgiu como povo e nação na Insurreição Mineira em 1789, deixando de se designar como quem explora o pau-brasil. O povo brasileiro custou a vida e a felicidade de milhares de índios, caçados nas matas; de negros, trazidos da África; enquanto os mestiços indígenas e negros caíram na ‘ninguendade’”. (RIBEIRO, 1995RIBEIRO, D. O Brasil como problema. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.)

Para Arruda (2015)ARRUDA, T. América e os Guardiões das Culturas Autóctones. Defanti. Cuiabá, 2015., o processo independentista do Brasil em 1822 se fundamentou principalmente no pensamento das oligarquias nacionais, não mudando a estrutura social baseada no pensamento da elite dominante, inclusive, monárquica e escravocrata do período colonial. O pensamento calcado na influência dos positivistas orientou a agenda nacional integracionista nas décadas seguintes, já anunciada pelo jovem Marx sobre possuir e não possuir, em 1843: “nós defendemos que não ter nada não é uma categoria abstrata, é uma realidade terrível. Hoje em dia, quem não tem nada é ninguém, é o dinheiro que lhe dá valor”. (ARRUDA, 2015ARRUDA, T. América e os Guardiões das Culturas Autóctones. Defanti. Cuiabá, 2015., p. 126, grifo nosso).

Para Madrigal (2017)MADRIGAL, A. O positivismo na construção do Brasil República. 2017. Disponível em:. https://alexismadrigal.jusbrasil.com.br/artigos/453982923/o-positivismo-na-construcao-do-brasil-republica. Acessado em: nov 2018.
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, a linha positivista veio para agregar os fundamentos da Proclamação da República, em 1889, demonstrando a não participação de um movimento popular na queda do modelo imperial e a incorporação do governo republicano, que significaria para algumas correntes tanto base libertária (governo popular) quanto governo da lei e da ordem, conseguindo manipular a classe popular até os nossos dias, ainda que alguns tabus caíssem ao longo dos anos através de estudos e análises dos fatos que buscavam ligar essa identidade com a construção republicana no Brasil. A “ninguendade” citada por Darcy Ribeiro consiste na não participação do povo brasileiro, em particular os povos indígenas, na construção da nossa nacionalidade, fundamentada nos ideais assimilacionistas e integracionistas desde o Brasil Colônia.

Na concepção da República, houve uma preocupação em montar alguns aspectos que ligasse a classe popular e elitista com os fatos decorrentes daqueles dias de queda do modelo imperial, mas ao longo da história fica clara a contradição de ideais que os membros da organização teriam ao fundamentar esse modelo político no Brasil. Na busca da identidade com os fatos decorrentes no imaginário das pessoas, o sentimento nacionalista mitifica e constrói uma perspectiva linear, reflexões esporádicas e errôneas de algo que seria comum a alguns. “A questão é que o positivismo está tão presente em nosso cotidiano que qualquer tentativa de derrubar esses mitos, a sociedade brasileira perderia algo com que se identificasse que nesta questão, essas ideologias ainda ficam embutidas na consciência do brasileiro.” (MADRIGAL, 2017MADRIGAL, A. O positivismo na construção do Brasil República. 2017. Disponível em:. https://alexismadrigal.jusbrasil.com.br/artigos/453982923/o-positivismo-na-construcao-do-brasil-republica. Acessado em: nov 2018.
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p. 5).

2 PERSPECTIVA HISTÓRICA DA ORGANIZAÇÃO DE ATENÇÃO À SAÚDE DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL

Na reflexão sobre a não participação dos povos indígenas na construção da nossa nacionalidade e o passivo social, nas condições precárias de vida e saúde, que perdura há décadas apesar dos direitos constitucionais conquistados em 1988, Santos (2002)SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, p. 237-280, outubro 2002. refere que as “ausências” são formas sociais de inexistência, porque as suas realidades estão apenas presentes como obstáculos às realidades que contam como importantes, sejam elas científicas, avançadas, superiores, globais ou produtivas da modernidade ocidental, como partes desqualificadas de totalidades homogêneas, apenas confirmam o que existe e tal como existe. Numa perspectiva emancipatória, o autor propõe o trabalho de tradução, um trabalho de imaginação epistemológica e de imaginação democrática, com o objetivo de construir novas e plurais concepções sobre as ruínas da emancipação social automática do projeto moderno, sem perder o foco nas relações sociais de produção que o estabelece. Para tanto, procedemos a um corte transversal da organização da atenção à saúde indígena nos séculos XX e XXI, numa análise no nível grupal da organização da saúde dos povos indígenas no Brasil (VIEIRA; ZOUAIN, 2007VIEIRA, M. M; F. e ZOUAIN, D. M.. Pesquisa Qualitativa em Administração. 2 ed. Rio de Janeiro:FGV Editora, 2007.).

Martins (2012)MARTINS, P. E. M. O espaço-dinâmica organizacional em perspectiva histórica. In: VIEIRA, H. C. et al (orgs). Brasil Holandês: História, Memória e Patrimônio Compartilhado. São Paulo: Alameda, 2012, p. 323 - 338. propõe uma análise do Espaço-Dinâmica Organizacional - EDO, como resultado das sinergias de suas dimensões constitutivas em perspectiva histórica. Para o autor, ponderando o processo de decisão pública, bem como a definição de suas políticas, estratégias de implementação, programas de governo e a organização de sua infraestrutura operacional, devemos considerar o efeito sinérgico das dimensões básicas de análise (física ou material, tecnológica ou de processos, humana, política e simbólica) desse espaço-dinâmica, suas representações sociais e o significado que estas estabelecem ao longo do tempo:

“[…] o espaço-dinâmica [organizacional] se (re)constrói historicamente e, para melhor compreendê-lo, é imperioso historicizá-lo, fugindo, assim, do reducionismo de tornar estático o que é dinâmico, de universalizar o que é singular, de anistorizar o que tem passado e de utilizar um modelo estrutural-funcionalista-universalista menos complexo do que a realidade em análise” (MARTINS, 2012MARTINS, P. E. M. O espaço-dinâmica organizacional em perspectiva histórica. In: VIEIRA, H. C. et al (orgs). Brasil Holandês: História, Memória e Patrimônio Compartilhado. São Paulo: Alameda, 2012, p. 323 - 338., p. 332).

Considerando os diferentes contextos históricos no país, identificamos três períodos na institucionalização e organização da atenção à saúde indígena no Brasil: i) Serviço de Proteção ao Índio - SPI, no Ministério da Agricultura, Indústria e Comercio - MAIC, após a Proclamação da República, de 1910 a 1968; ii) Fundação Nacional do Índio - FUNAI, no Ministério da Justiça - MJ, criada em 1968 no regime militar, em 1968 até 2001; e iii) Secretaria de Saúde Indígena - SESAI, no Ministério da Saúde - MS, criada em 2010. Primeiramente, foi criado um departamento na Fundação Nacional de Saúde - FUNASA, em 1991, como demanda dos direitos indígenas constitucionais em 1988.

Quadro 1
Organização da Atenção à Saúde Indígena em diferentes contextos históricos no Brasil

3 ASSISTÊNCIA AOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL NO SÉCULO XX - SPI E FUNAI

No Brasil Colônia e no Império, os serviços de educação, saúde e civilização eram prestados por missionários de diferentes ordens religiosas, implicavam na conversão ao cristianismo e no abandono da cultura indígena, e resultavam em inúmeras doenças infecciosas e parasitárias, dizimando grande parte dos povos indígenas.

Somente na Constituição de 1891, após a Proclamação da República, os serviços de atenção aos povos indígenas foram atribuídos ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores “tudo que for concernente ao desenvolvimento das sciencias, lettras e artes, á instrucção e á educação e seus respectivos institutos nos limites da competencia do Governo Federal, e inclusive a catechese dos índios.” (BRASIL, 1891BRASIL. Lei N.º 23, de 30 de Outubro de 1891. Reorganiza os serviços da Administração Federal. Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1824-1899/lei-23-30-outubro-1891-507888-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: 10 out 2018.
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/...
, p. 1). Em 1906, numa perspectiva de modernização capitalista e ideologia de segurança nacional, foi planejada a integração e assimilação dos índios à sociedade nacional com a criação do Ministério de Agricultura, Indústria e Comércio - MAIC.

A rejeição da ideia de extinção dos índios como solução do problema de modernização, como se deu na Argentina, impôs o seu aproveitamento e incorporação na sociedade brasileira, instituindo-se o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais - SPILTN. A concepção autoritária da construção da nacionalidade sob o paradigma republicano, o Positivismo, impunha uma pedagogia que alterava o sistema produtivo indígena e os incorporava sob a tutela e hegemonia das sociedades modernas, enquanto não “assimilados” (LIMA, 1987LIMA, A. C. de S.. Sobre Indigenismo, Autoritarismo e nacionalidade: considerações sobre a constituição do discurso e da prática da Proteção Fraternal no Brasil. In: OLIVEIRA, J. P. (Org.) Sociedades Indígenas e Indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro:UFRJ/Marco Zero, 1987. p.149-204.).

A política indigenista, como dever do Estado, foi formulada na experiência do tenente-coronel Cândido Mariano da Silva Rondon, no contato pacífico com os índios na construção das linhas telegráficas e nas obras de construção pelo Exército. Na ocasião, largas faixas do território nacional estavam interditadas para atividades econômicas, devido às lutas sangrentas e extermínio de tribos indígenas.

Neste contexto, o debate sobre a problemática indígena definiu duas correntes opostas, uma religiosa e outra leiga, que defendia que cabia ao Estado à assistência ao Índio. O malogro das missões religiosas levou a adoção da assistência leiga, superando a violência da proteção religiosa e sua conversão e, em muitos casos, a apropriação de suas terras e sujeição ao trabalho indicado pelos missionários (RIBEIRO, 1995RIBEIRO, D. O Brasil como problema. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.).

Criado em 1910, o Serviço de Proteção ao Índio - SPI foi uma importante inovação no campo do Direito, ainda que marcado por contradições básicas, pois objetivava respeitar as terras e a cultura indígena, mas agia sedentarizando os índios e liberando seus territórios para a colonização.

A política de administração dos índios pela União foi formalizada no Código Civil de 1916 e na lei n.º 5.484 de 27 de junho de 1928, que estabeleceram sua relativa incapacidade jurídica e o poder de tutela ao SPI equiparado ao pródigo, ao menor de idade e à mulher casada (RIBEIRO, 1995RIBEIRO, D. O Brasil como problema. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.); os dispositivos referentes à gestão dos bens dos índios foram revogados pelo Decreto n.º 24.700, de 12 de julho de 1934 que determinou a melhor adaptação do Serviço aos interesses da “nacionalização e defesa das fronteiras”5 5 VASCONCELLOS, V. de P. O Índio. In: DEPARTAMENTO DE IMPRENSA E PROPAGANDA. Os Grandes Problemas Brasileiros. Olimpica Miguel Couto: Rio de Janeiro. 1942. . O Decreto n.º 736, de 6 de abril de 1936 consagrou a proteção e assistência; o amparo a vida; a liberdade; e a propriedade dos aborígines (sic), além da nacionalização e educação, com o objetivo de incorporação na sociedade brasileira, seguindo uma ideologia explicitamente integracionista como grande linha da política indigenista internacional, discutidas em importantes debates no México e no Peru, no final da década de 306 6 VIII Conferência Internacional Americana de Lima, realizada em 21 de dezembro de 1938 e I Congresso Indigenista Interamericano, realizado no México, em 1940, marco importante na história do indigenismo. .

Após duas décadas de uma política integracionista internacional, Ribeiro (1956)RIBEIRO, D. Kadiúeu. Serviço de Proteção ao Índio. 1956. relatou o drama da destribalização e todos os desajustamentos dos índios, acarretados da submissão ao branco dominador. Inclusive, influenciando as mudanças na visão mítica dos Kadiwéu, como a perda da soberba do seu criador, a prática do aborto e do infanticídio, que também ameaçavam a extinção do grupo e o abandono dos filhos, em que o criador os condena por não saber criá-los; entretanto, no contato com os “neobrasileiros” e seus métodos de educação rígida, tomam consciência e grande orgulho do tratamento afetuoso que davam aos seus filhos. Esses mitos estão relacionados à depopulação e, posteriormente, à autodeterminação para o aumento populacional deste povo, que recorda a participação na Guerra do Paraguai com orgulho e desempenho heroico, recompensados com o território que habitam, mas sempre ameaçados e sofrendo as penúrias da pobreza, da fome e da desnutrição. (ISA, 2021ISA. Instituto Sócio-Ambiental. Kadiwéu - Povos Indígenas no Brasil. Disponível em https://pib.socioambiental.org/ . Acesso em: 19 de out de 2021.
https://pib.socioambiental.org/...
)

É importante citar a criação, em 1956, do Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas - SUSA, por Noel Nutels, com o objetivo de controle da tuberculose entre os povos indígenas e as populações que habitavam o interior do país, suas ações esporádicas e restritas ao combate à tuberculose não representaram a existência de uma política de saúde indígena no país. O trabalho se iniciou a partir da participação de Nutels como médico na Expedição Roncador-Xingu, ligada administrativamente à Fundação Brasil Central, que nunca pertenceu ao SPI, o SUSA estava diretamente subordinada à Presidência da República, entretanto, foi influenciado pela filosofia positivista de Rondon (COSTA, 1987COSTA, D. C.. Política Indigenista e Assistência à Saúde Noel Nutels e o Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas. Cadernos de Saúde Pública. vol.3. n.º 4. Rio de Janeiro. Oct.Dec. 1987.).

Para Costa (1987)COSTA, D. C.. Política Indigenista e Assistência à Saúde Noel Nutels e o Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas. Cadernos de Saúde Pública. vol.3. n.º 4. Rio de Janeiro. Oct.Dec. 1987., o que chama a atenção na trajetória do SPI e do SUSA é o que parece estar presente em todos os mecanismos de intervenção estatal da questão indígena, a contradição entre a atuação de indivíduos profundamente motivados pela vontade de proteger as populações, e a dinâmica estrutural que produz a miséria e a degradação física. Esse talvez tenha sido o dilema básico da trajetória e da ação de Noel Nutels e seus companheiros, que dedicaram grandes esforços na criação do primeiro serviço público de assistência à saúde das populações indígenas no país. Como previsto, na política indigenista oficial, em 1954, o Relatório de Atividades do SPI revelou uma realidade indígena marcada pela apropriação de suas terras e a transformação de sua força de trabalho em mão de obra para as grandes indústrias.

Diante das apurações das violências contra os índios, foi criada a Fundação Nacional do Índio - FUNAI, em 1968, como órgão indigenista oficial e tutelar no Ministério da Justiça, em substituição ao SPI. Desde então, esta Fundação estabelece e executa a política indigenista no Brasil.

Em 1973, o Estatuto do Índio instituído pela Lei n.º 6.001, foi uma resposta às cobranças internacionais de efetiva proteção às populações indígenas, atingidas pela política desenvolvimentista do Estado e ações de grupos particulares. Oliveira (2009)OLIVEIRA, P.H. Direito indígena à saúde: Proteção Constitucional e Internacional. Dissertação de mestrado em Direito do Estado. São Paulo:PUC, 2009. destaca a influência preponderante da doutrina de Darcy Ribeiro como parâmetro para o legislador do Estatuto do Índio, instituindo regras legais para a proteção dos índios tutelados.

No ditatorial Governo Geisel (1974-1978), sob a influência do pensamento positivista, foi desencadeado um movimento de “emancipação dos índios” às avessas, decretando que as tribos indígenas reduzidas e sobreviventes ao contato fossem consideradas comunidades brasileiras. Essa emancipação compulsória implicava, para os índios, na perda de suas terras e de qualquer direito ao amparo compensatório; portanto, sua dizimação diante do poder opressivo de um Estado moderno deliberado a destruí-los (RIBEIRO, 1995RIBEIRO, D. O Brasil como problema. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.), e que ainda hoje influenciam setores da sociedade nacional em graves ataques aos direitos constitucionais, que só seriam conquistados no final da década de 1980.

Em 2012, o Relatório FigueiredoRELATÓRIO FIGUEIREDO. Disponível em https://pt.scribd.com/doc/142787746/Relatorio-Figueiredo. Acesso em: 01 nov 2018.
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, realizado em 1967, supostamente eliminado em um incêndio, desapareceu por 45 anos e foi encontrado quase intacto no Museu do Índio, com mais de 7 mil páginas preservadas, contendo 29 dos 30 tomos originais. Neste relatório, o Procurador Jader de Figueiredo Correa, a pedido do Ministro do Interior, apurou a matança de tribos inteiras, torturas e toda sorte de crueldades praticadas contra indígenas no país, principalmente por latifundiários e funcionários do extinto Serviço de Proteção ao Índio - SPI, demonstrando os conflitos existentes no processo de ocupação do território nacional, que perduram no reconhecimento de seus territórios imemoriais.

Para Ribeiro (1995)RIBEIRO, D. O Brasil como problema. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995., as comunidades étnicas resistiram às políticas integracionistas da FUNAI, ao SPI e ao contato com pressão econômica, social e religiosa em suas formas mais perversas, há séculos. Os índios continuam sendo índios, persistindo como determinada etnia, mas, para isto, a única condição é criarem os filhos conforme a sua tradição, mesmo que transfigurada pela mestiçagem.

A partir da carência de identificação surgimos como um produto inesperado e indesejado do empreendimento colonial e, ainda somos um proletariado externo para servir o mercado mundial, a história ainda está a exigir de nós o desafio de “reformar nossa institucionalidade para criar uma sociedade de economia nacional, e socialmente responsável, a fim de alcançarmos uma prosperidade generalizada a todos os brasileiros” (RIBEIRO, 2010RIBEIRO, D. O Brasil como problema. Coleção Darcy no Bolso. V. 2. Petrópolis: Vozes, 2010., p. 51).

4 A POLÍTICA NACIONAL DE ATENÇÃO À SAÚDE DOS POVOS INDÍGENAS - PNASPI

A noção de cidadania, tutela e nação só foi questionada a partir da promulgação da Constituição Brasileira, em 1988, considerada um avanço e uma aspiração dos povos indígenas na América Latina para garantia da diversidade cultural riquíssima, de diferentes culturas e de visão de mundo no continente. Daí, em 2001 a implantação de um subsistema de saúde indígena e as discussões para elaboração de uma política nacional de atenção à saúde destes povos, a PNASPI, promulgada em 2002.

Na Constituição Brasileira, no seu capítulo VIII - Dos Índios, no Art. 231: “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo a União demarca-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”; e no Art. 232: “Os índios, suas comunidades e suas organizações, são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo” (BRASIL, 2003BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Coleção Saraiva de Legislação. 32ª edição. São Paulo: Saraiva, 2003.).

A população indígena estimada em torno de 150.000, há meio século, teve aumento significativo para aproximadamente 818.000, no final do século XX, devido aos movimentos na luta pela garantia dos direitos humanos universais reconhecidos pela Organização das Nações Unidas - ONU, em 1948, e certo apoio das cidades metropolitanas, inclusive da imprensa em defesa dos valores humanos e preservação dos povos do planeta, que sobreviveram à avassaladora expansão europeia guardando sua própria identidade (RIBEIRO, 1995RIBEIRO, D. O Brasil como problema. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.).

No que compete à legislação, a Constituição Federal atribui a União legislar sobre os povos indígenas, porém não mais com o propósito de integração à sociedade nacional, cabe à Justiça Federal o julgamento de todos os casos que os envolvam, garantindo seu direito à autonomia e à autodeterminação. Este reconhecimento determinou mudanças radicais nos padrões de relacionamento dos povos indígenas com o Estado, trazendo a questão referente à identificação dos indígenas a áreas de conhecimento, como a Antropologia e a Sociologia, pois delas derivam a inclusão ou a exclusão dos direitos constitucionais (OLIVEIRA, 2009OLIVEIRA, P.H. Direito indígena à saúde: Proteção Constitucional e Internacional. Dissertação de mestrado em Direito do Estado. São Paulo:PUC, 2009.).

Segundo o Censo IBGE 2010, a população indígena brasileira representa aproximadamente 0,47% da população nacional; entretanto, fazem com que o Brasil tenha uma das maiores e mais ricas diversidades socioculturais do planeta. São mais de 305 povos diferentes; somando 896.917 pessoas; com 160 línguas distintas; localizados em 725 terras indígenas, das quais 60,4 % são regularizadas, ocupando 13,8% do território brasileiro (ISA, 2021ISA. Instituto Sócio-Ambiental. Kadiwéu - Povos Indígenas no Brasil. Disponível em https://pib.socioambiental.org/ . Acesso em: 19 de out de 2021.
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).

A Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, em 2007, adotada por diversos países, avançou no reconhecimento formal destes povos; entretanto, continuam a enfrentar discriminação, marginalização e grandes desafios na garantia de seus direitos básicos. Os Estados-Membros da ONU têm a obrigação de fazer consultas prévias para consentimento de medidas legislativas e administrativas, reconhecendo o seu direito à subsistência, às terras, aos territórios e aos recursos naturais, mantendo a identidade cultural e decisões quanto às maneiras de viver e reproduzir.

O direito constitucional à autodeterminação está relacionado ao autogoverno e à autonomia, no que diz respeito aos seus assuntos internos e locais, promovendo a tolerância, a compreensão e as boas relações entre os povos indígenas e os demais segmentos da sociedade. Assim, o modelo de atenção à saúde indígena como um subsistema do Sistema Único de Saúde - SUS, deve garantir o acesso e a participação dos povos indígenas aos cuidados à saúde em todos os níveis de complexidade.

Entretanto, a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas - PNASPI (BRASIL, 2002BRASIL. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Aprovada pela Portaria do Ministério da Saúde n.º 254, de 31 de janeiro de 2002. (DOU n.º 26 - Seção 1, p. 46 a 49, de 6 de fevereiro de 2002). Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/funasa/politica_saude_indigena.pdf. Acesso em: 17 nov 2021.
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), voltada à diversidade sociocultural étnica, não tem garantido os princípios e as diretrizes constitucionais do SUS no acesso aos serviços de saúde no contexto local (WEISS; BORDIN, 2013WEISS, M. C. V. e BORDIN, R.. Estratégias de atenção à saúde no DSEI Cuiabá. Porto Alegre:DaCasa, 2013.); e vêm desafiando o engajamento científico e social de antropólogos e profissionais de saúde na sua implementação (LANGDON; GARNELO, 2004LANGDON, E. J. e GARNELO, L. (Orgs). Saúde dos Povos Indígenas. Reflexões sobre a Antropologia Participativa. Rio de Janeiro:Contra Capa. 2004.). A garantia dos princípios e direitos constitucionais é gravemente ameaçada no contexto das políticas neoliberais fortemente investidas nos últimos anos.

A BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Especial de Saúde Indígena. Disponível em https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/sesai. Acesso em: nov de 2021.
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Secretaria Especial de Saúde Indígena - SESAI, criada em 2010, é responsável por coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas - PNASPI, e todo o processo de gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena no SUS. Sua missão é implementar um novo modelo de gestão e de atenção no âmbito do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, articulado com o SUS, descentralizado, com autonomia administrativa, orçamentária, financeira e responsabilidade sanitária dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas - DSEIs, como preconizado nas 6 conferências nacionais de saúde indígena, realizadas em 1986, 1993, 2001, 2006, 2013 e 2022.

Nas atribuições da SESAI destacam-se: desenvolver ações de atenção integral à saúde indígena e educação em saúde, em consonância com as políticas e os programas do SUS, observando as práticas de saúde tradicionais indígenas; e realizar ações de saneamento e edificações de saúde indígena (BRASIL, 2002BRASIL. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Aprovada pela Portaria do Ministério da Saúde n.º 254, de 31 de janeiro de 2002. (DOU n.º 26 - Seção 1, p. 46 a 49, de 6 de fevereiro de 2002). Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/funasa/politica_saude_indigena.pdf. Acesso em: 17 nov 2021.
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).

O Controle Social, através dos Conselhos Locais de Saúde, que deveria ser exercido pelos Conselheiros Locais, os quais representam mais de 5 mil aldeias e 305 etnias indígenas; os 34 Conselhos Distritais de Saúde Indígena (CONDISI); e o Fórum de Presidentes de Condisi - FPCondisi, foram prejudicados pela recente decisão presidencial de extinção dos conselhos, em 2019. A participação indígena a ser garantida nos órgãos colegiados de formulação, acompanhamento e avaliação das políticas públicas de saúde indígena é fundamental para amenizar as dificuldades envolvendo a saúde dos povos indígenas (BRASIL, 2002BRASIL. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Aprovada pela Portaria do Ministério da Saúde n.º 254, de 31 de janeiro de 2002. (DOU n.º 26 - Seção 1, p. 46 a 49, de 6 de fevereiro de 2002). Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/funasa/politica_saude_indigena.pdf. Acesso em: 17 nov 2021.
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).

A participação indígena nas tomadas de decisão visa promover o diálogo intercultural, importante no reconhecimento e no respeito à existência das diversas formas de se relacionar com as diferentes territorialidades. A coexistência das territorialidades jamais inviabilizará o modo de vida dos não índios e dos povos indígenas, que receberam o reconhecimento de suas terras, ao menos em parte, de ocupação tradicional, para usufruir do modo de vida que compreendem como ideal. Entretanto, a interculturalidade crítica não pode ser descolada de uma atitude descolonial, a cidadania indígena deve ser de fato reconhecida pelo Estado brasileiro como um projeto político anti-hegemônico, com práticas educacionais libertadoras (CAVALCANTE, 2018CAVALCANTE, T. L. V.. A Interculturalidade Crítica como possibilidade para um diálogo sobre as territorialidades no Brasil. Disponível em http://www.tellus.ucdb.br/index.php/tellus/article/viewFile/434/400.. Acesso em: 01 nov 2018.
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).

Para os antropólogos “as práticas de saúde precisam ser entendidas através das noções de autonomia, coletividade, agência e práxis numa perspectiva emancipatória, em oposição à perspectiva biomédica caracterizada como universalista, biologista, individualista, além de a-histórica” na América latina (LANGDON, 2014LANGDON, E. J.. Os diálogos da antropologia com a saúde: contribuições para as políticas públicas. Revista Ciência e Saúde Coletiva [online], vol.19, n.4, 2014 pp.1019-1029 Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232014000401019&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em 12 out 2018.
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).

O desejo de ser “reconhecido”, em consequência, ter reconhecido seus direitos, dentre eles o de possuir uma identidade indígena, é uma realidade que se impõe no mundo, na vida e é assegurado pela Constituição Federal Brasileira, de 1988, superando práticas integracionistas que nos remetem ao conceito de “ninguendade” de que trata Darcy Ribeiro.

Apesar do reconhecimento, pelo poder público, da necessidade de se concretizar uma política específica de saúde para os povos indígenas, fundamental para ampliar o acesso dos indígenas ao SUS, o modelo ainda remete à dificuldades de várias ordens, incluindo a gerência, os recursos humanos, a articulação com os demais níveis do SUS, a integralidade da assistência e a provisão de atenção culturalmente diferenciada (CARDOSO, 2012CARDOSO, A. M.; SANTOS; R. V.; GARNELO, L.; and CHAVES, M. B. G. Políticas públicas de saúde para os povos indígenas. In: GIOVANELLA, L.; ESCOREL, S.; LOBATO; L. V. C., NORONHA, J. C., and CARVALHO; A. I., eds. Políticas e sistemas de saúde no Brasil [online]. 2nd ed. rev. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2012, pp. 911-932. ISBN: 978-85-7541-349-4. https://doi.org/10.7476/9788575413494.0033
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), agravada pelos contingenciamentos e o desmonte do controle social do setor de saúde nos últimos anos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O pensamento crítico e emancipatório de Darcy Ribeiro evidenciando a não participação indígena na construção da nossa nacionalidade, influenciou significativamente a agenda indígena no século passado e a defesa de seus direitos constitucionais nas décadas seguintes à promulgação da Constituição Brasileira, em 1988.

A interculturalidade proposta na política de atenção à saúde dos povos indígenas, de 2002, pretende garantir o diálogo na apropriação de novas práticas mais adequadas às condições de saúde e bem viver nos seus territórios imemoriais. Entretanto, no projeto político moderno, temos a adoção de práticas econômicas contraditórias à cultura indígena tradicional, influenciada pela modernização intensa do sistema econômico nacional, como a mineração e o agronegócio, comprometendo as políticas voltadas para um desenvolvimento sustentável no país (BRASIL, 2022BRASIL. 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena. Brasília, 2022. Disponível em http://conselho.saude.gov.br/6cnsi. Acesso em: 16 jan 2023.
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).

Assim, como ocorreu na desagregação do mundo colonial, na decadência do poder absoluto dos reis, nas ideias republicanas, na ditadura militar, na democratização e no neoliberalismo, os povos indígenas resistem às mudanças políticas ao longo do tempo. Hoje, o movimento indígena aliado a setores mais progressistas da sociedade brasileira se organizam no reconhecimento de “continuar a ser índio”, assumindo importante protagonismo na agenda nacional.

  • 3
    Denominação dada pelos árabes a uma casta de guerreiros que criavam meninos não muçulmanos escravizados e treinados, assim como os cavalos, extraindo a capacidade que tinham, especialmente, lealdade ao seu dono. Se pudesse, voltava ao seu povo com a cara daquele povo, mas com a alma mudada, porque fora reumanizado na casa-criatório e iria servir como mameluke ou mamluk.
  • 4
    Os bandeirantes foram os grandes percussores da história do Brasil, utilizados pelos portugueses para capturar e lutar contra indígenas e escravos foragidos, diferentemente das entradas que eram empreitadas e financiadas pelo governo, ou seja, oficiais; as particulares, denominadas Bandeiras eram pagas por senhores de engenhos e comerciantes.
  • 5
    VASCONCELLOS, V. de P. O Índio. In: DEPARTAMENTO DE IMPRENSA E PROPAGANDA. Os Grandes Problemas Brasileiros. Olimpica Miguel Couto: Rio de Janeiro. 1942.
  • 6
    VIII Conferência Internacional Americana de Lima, realizada em 21 de dezembro de 1938 e I Congresso Indigenista Interamericano, realizado no México, em 1940, marco importante na história do indigenismo.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2021
  • Aceito
    18 Out 2022
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