Resumos
Neste artigo são discutidas as relações entre o mal-estar que atinge, atualmente, o mundo do trabalho e o Mal-estar na cultura, analisado por Freud (1930/2002) em 1929. Pela suposição que os pacientes relatam hoje muito mais do sofrimento no trabalho do que antes, considera-se que, para escutá-los, é preciso mobilizar referências teóricas específicas em torno das formas de organização do trabalho - como o trabalho prescrito e o efetivo -, considerando as suas implicações para o âmbito da psicodinâmica do trabalho, no que se refere à saúde mental. Assim, discuti-se o que a psicanálise pode, pois, trazer para a interpretação dos dados obtidos no domínio da clínica do trabalho.
Psicodinâmica do trabalho; teoria da sedução generalizada; ambiente de trabalho
Este artículo discute las relaciones entre el malestar que afecta actualmente al mundo del trabajo y el Malestar en la cultura, analizado por Freud (1930/2002) en 1929. Apartir de la suposición de que los pacientes hablan hoy en dia mucho más que antes del sufrimiento en el trabajo, se considera que, para escucharlos, es necessário accionar referencias teóricas sobre las formas de organización del trabajo - tales como el trabajo prescripto y el efectivo-, considerando las repercusiones que tienen para el ámbito de la psicodinámica del trabajo, en ló que se refiere a la salud mental. Asi, discutimos qué es ló que el psicoanálisis puede, pues, traer como contribuición para la interpretación de los datos obtenidos en el domínio de la clínica del trabajo.
Psicodinámica del trabajo; teoria de la seducción generalizada; ambiente de trabajo
What are the relationships between the malaise affecting the world of work today, and the Malaise in culture, analyzed by Freud (1930/2002). Patients apparently talk much more today of suffering at work than before. Is it necessary to mobilize specific theoretical references in order to listen to them? Beyond these issues, what we will take into considerations here is what psychoanalysis can therefore bring to the interpretation of data obtained in the field of clinical work. We discuss the forms of organizations of work - between what is prescribed and what actually takes place - and its implications for the scope of psychodynamics of work and mental health.
Psychodynamics of work; the theory of generalized seduction; environment work environmententada
ARTIGOS
Psicodinâmica do trabalho e teoria da sedução1 1 Traduzido de "Psychodynamique du travail et théorie de la séduction", por Gustavo A. Ramos Mello Neto (Universidade Estadual de Maringá), o presente artigo é uma versão de um trabalho apresentado no I Encontro Brasileiro de Psicanálise e Sedução Generalizada, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR, 2012).
Psychodynamics of work and the seduction theory
Psicodinámica del trabajo y teoria de la seducción
Christophe DejoursI; Gustavo A. Ramos Mello NetoII
I Doutor em Medicina pela Faculdade de Medicina, Paris, França. Professor no Conservatoire National des Artes et de Métiers (CNAM) -Paris
II Tradutor e doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, USP, pós-doutorado em Psicanálise e Psicopatologia fundamental, Université de Paris VII, Professor Associado C, UEM, Paraná, Brasil
Endereço para correspondência Endereço para correspondência Christophe Dejours . 41 rue Gay-Lussac 75005 Paris, France. E-mail: christophe.dejours@cnam.fr
RESUMO
Neste artigo são discutidas as relações entre o mal-estar que atinge, atualmente, o mundo do trabalho e o Mal-estar na cultura, analisado por Freud (1930/2002) em 1929. Pela suposição que os pacientes relatam hoje muito mais do sofrimento no trabalho do que antes, considera-se que, para escutá-los, é preciso mobilizar referências teóricas específicas em torno das formas de organização do trabalho como o trabalho prescrito e o efetivo -, considerando as suas implicações para o âmbito da psicodinâmica do trabalho, no que se refere à saúde mental. Assim, discuti-se o que a psicanálise pode, pois, trazer para a interpretação dos dados obtidos no domínio da clínica do trabalho.
Palavras-chave: Psicodinâmica do trabalho; teoria da sedução generalizada; ambiente de trabalho.
ABSTRACT
What are the relationships between the malaise affecting the world of work today, and the Malaise in culture, analyzed by Freud (1930/2002). Patients apparently talk much more today of suffering at work than before. Is it necessary to mobilize specific theoretical references in order to listen to them? Beyond these issues, what we will take into considerations here is what psychoanalysis can therefore bring to the interpretation of data obtained in the field of clinical work. We discuss the forms of organizations of work between what is prescribed and what actually takes place and its implications for the scope of psychodynamics of work and mental health.
Key words: Psychodynamics of work; the theory of generalized seduction; environment work environmententada
RESUMEN
Este artículo discute las relaciones entre el malestar que afecta actualmente al mundo del trabajo y el Malestar en la cultura, analizado por Freud (1930/2002) en 1929. Apartir de la suposición de que los pacientes hablan hoy en dia mucho más que antes del sufrimiento en el trabajo, se considera que, para escucharlos, es necessário accionar referencias teóricas sobre las formas de organización del trabajo tales como el trabajo prescripto y el efectivo-, considerando las repercusiones que tienen para el ámbito de la psicodinámica del trabajo, en ló que se refiere a la salud mental. Asi, discutimos qué es ló que el psicoanálisis puede, pues, traer como contribuición para la interpretación de los datos obtenidos en el domínio de la clínica del trabajo.
Palabras-clave: Psicodinámica del trabajo; teoria de la seducción generalizada; ambiente de trabajo.
Entre a clínica do trabalho e a psicanálise as relações são estreitas. Elas o são desde a origem da psicopatologia do trabalho, mas muitos psicanalistas o ignoram, uma vez que a clínica do trabalho se desenvolveu essencialmente fora das escolas de psicanálise, no confronto com ergômenos, médicos do trabalho e engenheiros, nos anos 1970-1980; depois, com sociólogos, historiadores e economistas, nos anos 1990-2000; e, enfim, com juristas e filósofos, nos últimos anos. É agora, pois, tempo de retorno à comunidade psicanalítica de questões que, durante 30 anos, foram discutidas sem ela e que, contudo, não poderiam nem ser formuladas e nem ser analisadas sem levá-la em conta.
Não se trata, hoje, de relatar esta história, apesar de seu interesse intrínseco e das implicações epistemológicas subjacentes. Digamos apenas que a clínica do trabalho nasceu nos anos 70 do confronto entre a antropologia psicanalítica e a ergonomia, disciplina esta que se consagra ao estudo científico das condições de trabalho e das relações entre o homem e os objetos técnicos. A tarefa atribuída à clínica do trabalho nessa época consistia em elaborar uma clínica e uma teoria das relações entre o funcionamento psíquico ou, retomando a expressão freudiana, entre a vida psíquica (Seelenleben) e o trabalho. A ideia de tal pesquisa era a de compreender porque o trabalho gerava sofrimento em certos casos e, em outros, prazer. Ademais, tratava-se de elaborar, pelos conhecimentos sobre a clínica do trabalho, princípios capazes de orientar intervenções a favor do aprimoramento das relações entre o trabalho e o funcionamento psíquico (ou anímico).
Do encontro com a ergonomia, o psicanalista reteve algo importante: a evidência de um desnível inevitável entre o trabalho prescrito ao trabalhador e o trabalho efetivo realizado por ele. Os trabalhadores nunca se limitam à execução estrita das prescrições, isto é, ao que em ergonomia define-se como a tarefa; a saber: o objetivo a se atingir e o caminho a percorrer-se para isso de modo operatório. Os trabalhadores reajustam a prescrição, transformam as ordens, cometem infrações, trapaceiam nos procedimentos. Não pelo prazer de transgredir ou por indisciplina, mas para fazer bem o seu trabalho. Mesmo em tarefas elementares que duram menos de 60 segundos, como no trabalho repetitivo sob pressão de tempo (nas linhas de montagem de automóveis ou nas máquinas-ferramentas), os operários sabotam as prescrições. O que eles fazem, em realidade, é o que se denomina trabalho efetivo ou a atividade.
Na verdade, se eles não o fizessem, se eles se limitassem à estrita execução das ordens, a produção entraria em colapso. É o que se observa em certos movimentos sociais, em que os operários entram em acordo para obedecer estritamente às ordens dadas. É o que denominam greve do zelo (operação padrão)2 2 N. do T.: parece ser preferível manter "greve do zelo" (greve du zèle) e não traduzir por "operação padrão" pelo fato de que a palavra "zelo" vai ser várias vezes utilizada e é importante neste texto. .
O que é, então, o zelo. O zelo trata-se de duas coisas:
1. a inteligência que permite inventar soluções com o objetivo de anular a distância que se abre entre a tarefa (o prescrito) e a atividade (o efetivo);
2. a mobilização desta inteligência em situações de trabalho frequentemente difíceis, a despeito dos conflitos que surgem entre os trabalhadores em torno do modo de tratar a distância entre o prescrito e o efetivo.
Desta abordagem do trabalho pela ergonomia e a clínica do trabalho, resulta que o trabalho é o que é preciso inventar e acrescentar de si mesmo às prescrições, para que funcione. Esse zelo de que falamos não é outra coisa senão o trabalho vivo, do qual nenhuma organização pode prescindir.
O trabalho, nessa perspectiva, se apresenta fundamentalmente como um enigma. O que é preciso acrescentar às prescrições para que isso funcione? Nunca sabemos previamente e, além disso, é preciso inventar.
Em que consiste a inteligência convocada aqui? Quais são as suas competências psicológicas? Esse é um segundo enigma.
O sofrimento no trabalho começa quando, apesar de seu zelo, o trabalhador não consegue dar conta da tarefa. O prazer, ao contrário, começa quando, graças a seu zelo, o trabalhador consegue inventar soluções convenientes. Prazer e sofrimento no trabalho não são um suplemento de alma, eles são estritamente indissociáveis do trabalho. E o zelo no trabalho é irredutivelmente associado ao engajamento afetivo da subjetividade em conflito com o real (o real aqui é definido como o que se apresenta, àquele que trabalha, por sua resistência ao domínio).
A análise mais aprofundada do zelo mostra que a habilidade no trabalho passa por um comprometimento de toda a subjetividade. Para tornar-se hábil (no trabalho) é preciso fazer-se habitar pela experiência do real e do fracasso, experienciar o sofrimento até não poder dormir à noite, até envenenar as relações no espaço doméstico, até sonhar com essa experiência. O psicanalista o experiencia na aprendizagem de seu próprio ofício; no entanto, não é a mesma coisa quando se trata de tornar-se hábil na condução de uma usina nuclear e de qualquer outro tipo de trabalho.
É em razão desse comprometimento da subjetividade com o zelo no trabalho que este jamais pode ser neutro diante do eu e diante da saúde mental. Ele pode produzir o que há de melhor, a ponto de, em certos casos, o trabalho se tornar um mediador essencial na construção da saúde; mas também pode produzir o que há de pior e resultar na doença mental.
O SUICÍDIO NO TRABALHO
Hoje em dia, todos sabem: a relação subjetiva no trabalho pode levar a subjetividade por caminhos tão insuportáveis que alguns trabalhadores acabam por se suicidar nos próprios locais de trabalho. Como chegamos a essa explosão de psicopatologias ligadas ao trabalho, como a relação com o trabalho pode levar o sujeito ao suicídio?
Sem o apoio de uma teoria da inteligência no trabalho, do zelo e do trabalho vivo é difícil proceder à análise psicodinâmica do comprometimento subjetivo em face do real.
E sem a psicanálise, seria simplesmente impossível responder a essa questão.
A prudência, contudo, é conveniente a propósito dessa última asserção, pois numerosos colegas analistas, a priori, não creem que um suicídio possa ser imputado ao trabalho. Quando se evoca esta questão, eles têm uma tendência a ver aí uma denúncia sumária, segundo a qual o trabalho poderia ser a causa direta do suicídio e eles recusam essa possibilidade. No máximo, o trabalho, para eles pode ter o papel de circunstância disparadora, mas a etiologia do suicídio teria sempre que ser buscada na vulnerabilidade psicológica própria ao suicida.
Mas, alto lá! A clínica dos suicídios no trabalho é estranha. Esses suicídios, todos, não podem ser agrupados sob uma mesma descrição. Segundo uma classificação simplificada pode-se encontrar três tipos:
1. o suicídio sobrevém num contexto de transtornos psicopatológicos reconhecidos e que começaram a se manifestar muito antes do episódio crítico;
2. o suicídio sobrevém num contexto de franca depressão, mas, na ausência de quaisquer antecedentes psicopatológicos, a depressão parece estreitamente ligada à degradação da situação do trabalho;
3. enfim, certos suicídios são cometidos por trabalhadores que sofrem pela sua relação com o trabalho, mas não apresentam qualquer transtorno psicopatológico. Os suicidas inesperados deixam perplexo seu meio profissional, tanto quanto as famílias e os próximos e constituem um verdadeiro desafio clínico e teórico, na medida em que escapam a toda descrição psicopatológica conhecida. Esses casos não são raros e, hoje, nos incumbe elucidar seu processo. Para isso, é preciso uma análise aprofundada do que consiste o comprometimento subjetivo com a tarefa.
O TRABALHO VIVO
O trabalho vivo, dissemos, é o que o sujeito deve acrescentar às prescrições para atingir seus objetivos. O trabalho, com efeito, é sempre sobrecarregado por incidentes, pelo mau funcionamento dos objetos técnicos (quer se trate de uma usina nuclear ou do avião ou do terminal de computadores), por contraordens vindas da hierarquia, por perturbações causadas por demandas urgentes formuladas por terceiros, pelo não-cumprimento de compromissos por seus colegas, de desistências dos clientes na última hora etc. É o que denominamos de o real do trabalho. O real é o que se dá a conhecer a quem trabalha por sua resistência ao domínio e que engendra o sofrimento ligado à experiência do fracasso.
Trabalhar é, primeiro, fracassar. Mas, é, em seguida, mostrar-se capaz de suportar o fracasso, de tentar outros modos operatórios, de fracassar ainda, de voltar à obra, de não abandoná-la, de pensá-la fora do trabalho, de aceitar certa invasão pela preocupação com o real e com a sua resistência, até mesmo no espaço privado, a ponto de não dormir à noite, de sonhar com isso. Como todos os jovens psicanalistas, que falam incansavelmente e em todas as circunstâncias de psicanálise, das dificuldades práticas e do sucesso que eles encontram, o jovem engenheiro de operações ou de manutenção de uma usina nuclear deve aceitar ser habitado 24h por dia pelos problemas de seu trabalho. Trabalhar não é apenas fracassar, é também experienciar o fracasso tanto tempo quanto seja necessário para encontrar a solução que permita superar o real.
A CORPOPRIAÇÃO
Na verdade, essa resistência ao fracasso é decisiva. É que para encontrar a solução é preciso estabelecer de antemão uma verdadeira intimidade com a resistência do real; é preciso ser-lhe solidário. E pode-se mostrar que o enigma do real que se apresenta em todo trabalho necessita, primeiro, ser apropriado segundo modalidades específicas para ser decifrado. Encontrar a solução conveniente é impossível sem a formação prévia de uma familiaridade subjetiva e afetiva entre o corpo e o real, que o filósofo Michel Henry (1987) teorizou a partir do conceito de "corpopriação do mundo" (p. 82-83). Essa corpopriação não é somente cognitiva. O essencial de sua natureza dá-se no corpo a corpo com o real, seja quando se trata, para o psicanalista, de apalpar a angústia do paciente que ameaça romper com o tratamento, a qual ele se esforça por revelar a forma, os contornos, o conteúdo, ou quando, para o técnico, trata-se de sentir a instalação nuclear que não reage como de costume e ameaça escapar à destreza de seu controle.
No fim das contas, cada nova configuração do real encontrada no trabalho convoca à formação de novas habilidades que o trabalhador não dispunha até então. Dessa forma o trabalho, entendido como trabalho de produção poiesis para ser de qualidade, convoca a subjetividade até as suas bases mais íntimas, a saber: o corpo, lugar da experiência subjetiva. Cada habilidade é, de fato, o resultado de uma elaboração da experiência subjetiva do corpo em luta com o real. É afinal de contas o corpo que confere à inteligência a sua criatividade; isto é, o poder de pôr em funcionamento a regressão formal a serviço da intuição de soluções. Assim, o trabalho de produção poiesis transforma-se, graças à resistência, em exigência de trabalho Arbeitsanforderung imposta ao psiquismo pelas suas relações com o corpo, uma vez que é neste corpo que se experimenta primeiramente a resistência do real. O leitor deve já ter reconhecido aqui a definição que Freud dá de pulsão em seu texto de 1915 (Freud, 1915/2010), Pulsões e destino das pulsões.
Aqui, estamos no ponto de encontro da discussão sobre a Teoria da Sedução Generalizada. A saber, as relações entre o Sexual e o Eros. Em um texto importante, "Entre sedução e inspiração", Laplanche (1999) examina esses dois tempos do trabalho no criador, no pintor, no caso, Giacometti. O que é a inspiração que conduz o pintor em sua obra? O autor mostra que não é uma inspiração vinda da musa, não é uma vocação vinda dos deuses. A inspiração é uma mensagem de sedução dirigida pela mãe à criança e a obra de Giacometti é uma tentativa repetida, e ao longo de sua vida, de traduzir a mensagem enigmática de sua mãe (Laplanche, 1999, nota da p. 286). A inspiração é o que dá à tradução a dimensão de uma obra.
Mas, finalmente, a sublimação, neste e em outros casos, está sempre a serviço da ligação-tradução. É desse modo que Laplanche (1999) dessacraliza a sublimação: a verdade da sublimação é a ligação. A sublimação está do lado de Eros, em que Eros não é outra coisa senão a ligação-sublimação da excitação sexual gerada pela mensagem enigmática. O Eros, aí é tomado como movimento econômico oposto ao do Sexual, no interior da sexualidade humana.
Laplanche, como Freud, não está interessado no trabalho "stricto sensu", mas, o que acabo de dizer sobre o trabalho de produção , que deixa, como marca de sua passagem, a necessidade de outro trabalho, de si sobre si, Arbeit, para tornar-se hábil a sugere que o trabalho comum funciona como mensagem a ser traduzida. A "exigência de trabalho imposta ao psiquismo" (Freud, 1915/2010, p. 169), por sua vez, não é senão uma exigência de tradução que contribui para fazer expandir o eu, para aumentar o eu e a ligação no pré-consciente.
O léxico freudiano está cheio de ocorrências do termo Arbeit. O trabalho poiesis (primeiro tempo) implica em um segundo tempo um trabalho voltado para si mesmo trabalhoArbeit: Erarbeiten, Ducharbeiten do qual depende a aquisição de novas habilidades. O prazer extraído do sucesso do trabalhoArbeit, ocasionado pelo trabalho-poiesis, enquanto experienciado pela vida psíquica está ligado ao crescimento da subjetividade. Trabalhar não é apenas produzir, é também transformar a si mesmo. Há então no trabalho de qualidade uma promessa de aumento dos registros de sensibilidade e de inteligência do corpo, o que é também uma promessa de realização de si mesmo (narcísico).
De tanto trabalhar a madeira, o carpinteiro percebe suas essências com seu olfato e seu tato e desenvolve registros de sensibilidade ignorados pelos profanos. O marinheiro, de tanto manobrar com a maré, experiencia a água, as ondas, as vagas, o oceano com um prazer ignorado por outros. De tanto pelejar com seu instrumento, o violinista ouve, na arte de outro virtuoso, sonoridades que ele não teria ouvido antes de trabalhar seu próprio violino.
O modo com que o trabalho comum convoca a subjetividade do trabalhador hábil constitui a primeira dimensão da sublimação. No entanto, é também a primeira razão pela qual o trabalho representa um risco para a economia psíquica: o de fracassar e tornar-se um incompetente.
O processo aqui evocado ocorre então em uma relação de si para si. Ele compromete o amor por si próprio e por seu corpo e se desdobra fundamentalmente no não-visível, como tudo que se refere à subjetividade.
O RECONHECIMENTO
Muitas pessoas, pessoas comuns, não chegam a aproveitar integralmente os benefícios advindos dessa experiência de si mesmo convocada pelo trabalho, isso porque sua identidade não está bem assentada em seus fundamentos. Estar à altura dos desafios apresentados pelo real não é suficiente para que cessem de duvidar de si mesmas; elas necessitam que a contribuição de suas inteligências à qualidade de seu desempenho seja validada pelos outros. Estão, pois, à espera do reconhecimento do outro. O reconhecimento, por sua vez, é uma reivindicação em geral indissociável do comprometimento subjetivo na tarefa. A análise psicodinâmica do reconhecimento no trabalho foi estabelecida já há uns 20 anos pela psicodinâmica do trabalho; ela se dá conta das provas de julgamento que implicam ao mesmo tempo os pares e a hierarquia. Existem duas formas de julgamento: o julgamento de utilidade e o julgamento de estético.
O julgamento de utilidade recai sobre a utilidade econômica, social ou técnica da contribuição dada pelo sujeito à organização do trabalho. Esse julgamento é proferido essencialmente pelos superiores hierárquicos, que estão em situação de poder aferir a utilidade do trabalho bem feito. Mas essa avaliação também pode ser feita pelos subordinados, cujo julgamento acerca das qualidades do desempenho de um chefe pode ser severo, e não poderia haver cooperação no trabalho sem o reconhecimento recíproco entre os subordinados e seu chefe. O julgamento de utilidade pode também emanar do cliente, do usuário, do paciente, do aluno, ou seja, do beneficiário da qualidade do trabalho. O julgamento de utilidade é importante para o sujeito porque lhe confere um status na organização para a qual ele trabalha e, além disso, um status na sociedade (Castel, 1995). O reconhecimento de sua atividade como um trabalho e não simplesmente como um hobby, um passatempo ou um lazer é a condição para obter não somente um salário, mas também para alcançar direitos sociais. O julgamento de utilidade é condição para afiliação à sociedade e de inscrição na civitas, como o ilustram todas as lutas por um visto de permanência na França, assim como no estrangeiro. Quando, então, na ocasião de um remanejamento nos quadros dirigentes da empresa ou de uma administração, conclui-se que um empregado até então bem considerado e bem visto é inútil, o sofrimento pode ter consequências deletérias. Basta fazer menção aos temidos efeitos do que se conhece como "posto na geladeira", isto é, relegar o sujeito às tarefas subalternas ou inúteis, ou ainda a interdição de trabalhar, mesmo que recebendo salário. Numerosas pessoas "congeladas" são destruídas pela vergonha e pela perda de confiança em si mesmas e mergulham na depressão.
O julgamento estético: o segundo julgamento é proferido pelos pares. Ele não recai apenas sobre a utilidade, mas sobre a beleza do trabalho realizado por um trabalhador. Ele é enunciado sempre em termos estéticos: é um belo trabalho, é uma demonstração elegante, é uma bonita forma de fazer. O julgamento estético conota, primeiro, a conformidade do trabalho realizado às regras da arte, às regras do ofício. Tal julgamento não pode ser emitido senão pelo outro que conhece a partir do interior as regras da arte e do ofício. É julgamento dos pares, mais severo certamente, o mais valorizado. Seu impacto na identidade é considerável. Reconhecido pelos pares, um trabalhador tem acesso ao pertencimento de uma equipe, de um coletivo, de uma comunidade profissional. O pertencimento é aquilo que pelo trabalho permite conjurar a solidão. Dizemos então que ele, o trabalhador, é um piloto de caça como os outros, que é, então, um pesquisador como os outros, que é uma psicanalista como os outros psicanalistas.
Existe um segundo lado no julgamento estético e que recai sobre o reconhecimento, pelos pares, da originalidade ou, mesmo, do estilo do trabalho realizado. Esse julgamento de originalidade é, evidentemente, o mais precioso, é aquele pelo qual se confere a um trabalhador algo que o faz não-idêntico a qualquer outro. Diferentemente do julgamento de conformidade, ele não é acessível senão depois que o julgamento de conformidade já foi proferido.
Convém, contudo, sublinhar que aquilo que é esperado pelo trabalhador desses dois julgamentos, de utilidade e estético, é que ele recaia sobre a qualidade do serviço prestado, sobre a qualidade do trabalho realizado. É somente num segundo tempo que o sujeito pode fazer deslocar esse julgamento do registro do fazer para o registro do ser, da identidade.
O reconhecimento, por essa razão, tem um impacto considerável sobre a identidade. É graças ao reconhecimento que uma parte essencial do sofrimento é transformada em prazer no trabalho. Aqui, estamos longe do masoquismo, ou seja, do prazer obtido da erotização do sofrimento, diretamente. O caminho que passa pelo reconhecimento é muito mais longo e não resulta na coexcitação sexual; ele depende do julgamento do outro. Assim, pode-se compreender o reconhecimento do trabalho como a segunda dimensão da sublimação. Os termos enigmáticos com que Freud qualifica a sublimação tomam, sob a lente da psicodinâmica do trabalho, uma significação precisa: "É uma espécie de modificação da meta e da mudança de objeto, na qual nossa escala de valor social é tomada em conta, que distinguimos sob o nome de sublimação" (Freud, 1933/2010, p. 179). A forma como a escala de valores é tomada em conta na sublimação parece passar pelos julgamentos de reconhecimento pelos outros, de utilidade e estético.
Para inúmeros pacientes, a identidade, no fim da adolescência, é incerta, inacabada, imatura e o risco de crise de identidade, com suas consequências, não é baixo. É por isso que o trabalho, via reconhecimento, constitui, em inúmeros casos, uma segunda chance em relação à construção da identidade e da saúde mental.
RECONHECIMENTO E SERVIDÃO VOLUNTÁRIA
Mas atenção, a psicodinâmica do trabalho pode também tornar-se uma armadilha. É o caso de quando, por uma identidade muito frágil, um trabalhador torna-se cativo dos julgamentos de reconhecimento pelo outro. Tudo se passa então como se os benefícios do reconhecimento não pudessem ser convenientemente apropriados pelo sujeito. Graças a seu trabalho, ele obtém gratificações materiais e narcísicas que lhe conferem robustez psíquica face aos conflitos. Mas, sob esse manto aparente, ele torna-se dependente desse reconhecimento, o qual ele não pode mais dispensar tendo em vista assegurar a sua continuidade identitária. Agora, pois, é de certas configurações dessa armadilha que eu gostaria de falar, de forma a tentar esclarecer a etiologia dos suicídios no trabalho de sujeitos que não apresentam nenhum antecedente e nenhum transtorno psicopatológico atual.
Alguns trabalhadores, se se deixam tomar pela dependência de reconhecimento, acabam por colocar o seu zelo ao serviço de objetivos que seu senso moral reprova. Por exemplo, para atingir o volume de negócios a que se propôs contratualmente, é preciso, de fato, espoliar os clientes. Ou, ainda, para aumentar o rendimento da equipe é preciso que o manager manipule os subordinados alternando promessa e ameaça. Para auxiliar essa prática de enganar os clientes e manipular os subordinados dão-se treinamentos ad hoc; e afixam-se scripts nas telas dos computadores, destinados a auxiliar o operador a desviar-se das questões embaraçosas colocadas pelos clientes ou na escolha das falas mais aptas visando impressionar os subordinados. Em outras palavras, trata-se, então, de, seguindo ordens, mentir aos clientes e aos subordinados e também de manipular estes últimos. Mentiras e manipulações são recomendadas. Quaisquer que sejam, pois, os meios utilizados e as infrações aos regulamentos, a direção fecha os olhos se o volume de negócios é alcançado.
Há algum tempo, os empregados não aceitariam obedecer a essas injunções visto que elas estão em contradição com os valores do serviço ao público e de lealdade ao usuário. Mas hoje, o empregado hesita, pois, todos os outros, dos dirigentes aos colegas, dos executivos aos subordinados, todos consentem em colocar o seu zelo ao serviço de ações que a consciência moral condena. É que nesse entretempo novos métodos de organização do trabalho foram introduzidos na empresa, em particular a avaliação individualizada do desempenho, associada à ameaça de demissão. Em três anos, o objetivo da empresa de que falamos é de se desfazer de 22.000 assalariados, num total de 135.000, ou seja, 16% de seus efetivos.
A avaliação individualizada e quantitativa de desempenho coloca todos os empregados em competição uns com os outros; o sucesso de um colega torna-se ameaça para os outros. Agora é cada um por si e todos os golpes são permitidos. A deslealdade torna-se banal e a desconfiança e o medo se abatem sobre o mundo do trabalho. A generosidade e a ajuda mútua desaparecem, as pessoas já não se falam mais. A solidariedade desapareceu e a solidão, ou, mesmo, a desolação, no sentido de Hannah Arendt (1972), caracterizam agora a condição dos assalariados nessa empresa.
Para beneficiar-se do julgamento de utilidade, bônus e prêmios, é preciso fazer números e pronto. Quanto ao julgamento estético, entre pares, ela já não existe. Cada um sabe que o outro mente ao cliente ou manipula sua equipe, todos já traíram a regras da profissão e do ethos profissional. Para não perder o reconhecimento nesse novo contexto, o preço a pagar é de agora em diante participar de atos que se reprovam. Somente consentir, para não perder o reconhecimento, em trair o ethos do serviço ao público, é também experienciar a traição de si.
O SOFRIMENTO ÉTICO
Abre-se aqui um novo capítulo na clínica do trabalho, o sofrimento ético, isto é, o sofrimento relacionado à experiência de traição de si. O que é grave aí, do ponto de vista da psicopatologia, é que mais um dispositivo suplementar da sublimação é violado. Nossa escala social de valores (Freud, 1923/1991), vimos acima, envia ao reconhecimento. No primeiro aporte que fizemos, a escala social de valores passava pelo julgamento do outro. O novo capítulo sobre sofrimento ético torna mais compreensível uma segunda vertente relativa à como nossa escala social de valores é tomada em consideração, a saber, o julgamento que o sujeito faz de si mesmo, não apenas da qualidade de sua contribuição em relação à produção, mas do seu valor ético. Isso porque, por meio de sua atividade produtiva, o trabalhador compromete, de fato, o destino do outro, em particular do cliente, que se recomenda enganar, ou do subordinado, que se ordena manter sob pressão. Isso quer dizer que o trabalho não se reduz a uma atividade, ele implica dimensões que tem a ver mais propriamente com a ação no sentido que Aristóteles (1992) dá ao conceito de práxis: ação moralmente justa. É por isso que nos importa voltar ao texto freudiano estrito: Freud (1923/1991) fala de escala social de valores e não de reconhecimento social. A nuance é de tamanho. As novas patologias ligadas ao sofrimento ético mostram que atrás do termo valor encontra-se implicitamente designado o fundamento ético da sublimação, que envolve o que, no narcisismo, tem a ver com a autoestima.
Consentindo em desconsiderar as suas próprias convicções para não perder os benefícios do reconhecimento e da estima da direção da empresa ou de seus superiores hierárquicos o sujeito busca claramente manter a sua identidade, mas ao preço de deformar a sua "ipseidade" (Ricoeur, 1987, p. 58).
Consentindo pôr seu zelo ao serviço de ordens e prescrições que desonram a Kultur, no sentido duplo que há em alemão, de cultura e civilização, o trabalhador fragiliza mais ainda as bases intrassubjetivas de sua identidade e torna-se ainda mais dependente do reconhecimento pela empresa para manter a sua identidade. É assim que a armadilha se fecha, pois depois de ter servido com zelo a empresa, depois de haver dado incessantemente sua contribuição ao desempenho de sua equipe, é agora sua vez de cair em desgraça e, como recompensa por seus serviços, ver-se humilhado, sancionado, assediado ou demitido.
A quem ele poderia recorrer para falar de sua angústia e tentar perlaborá-la? Não poderia fazê-lo com seus colegas, pois eles nada podem fazer em relação a isso; também não poderia fazê-lo com seus próximos, pois teria que revelar os sucessivos compromissos a que ele consentiu e que eles ignoram. É nesse contexto, em que até então tudo ia bem para esse trabalhador, que a solidão implacável da desgraça, no contexto da desolação, pode provocar a passagem brutal da angústia para o impulso suicida.
De fato, aqueles que são mais expostos ao suicídio estão entre os trabalhadores que são mais implicados em suas tarefas e que manifestam mais ardor de servir. Os "vagais", os que fazem o mínimo acordado com os sindicados, os folgados, esses não se suicidam quando caem em desgraça.
A clínica do trabalho, ao proceder à investigação dos suicídios no trabalho, sugere que o trabalho empenha a subjetividade e a identidade de todos aqueles que se implicam autenticamente no ethos do trabalho de qualidade. O trabalho pode gerar o que há de melhor quando ele caminha em direção à sublimação e permite que uma atividade socialmente valorizada seja levada até o seu termo. Os que se suicidam no trabalho são de aparição recente, pois seus primeiros aparecimentos registrados estatisticamente remontam, na França, a 1995. Eles marcam uma virada histórica na medida em que sinalizam a aparição do sofrimento ético naqueles que são conduzidos, pelas novas formas de organização do trabalho, a fazer a experiência de traição de si mesmos. Essa virada histórica é uma ameaça para os indivíduos, mas é também uma ameaça para a civilização, na medida em que marca a possibilidade de romper a continuidade entre trabalho ordinário e a cultura. A cultura, com efeito, é o que nas obras humanas se acumula, no decorrer das eras, para honrar a vida. E as obras humanas são e sempre serão o resultado do trabalho, sob a condição de que este não seja apenas um trabalho de produção, uma poiesis, mas também o resultado de um Arbeit, isto é, uma exigência de trabalho de si para si, uma Arbeitsanforderung, que marque a produção ou a obra com selo da subjetividade. Dizendo de outra forma, o trabalho de cultura, o Kulturarbeit de Freud (1933/2010), não consiste somente em obras realizadas pelos grandes homens, isto é, pintores e escultores, compositores e filósofos, pensadores e pesquisadores. A produção de obras da cultura passa também por relações de cooperação e de transmissão e implica, por vezes, a participação de um grande número de pessoas, trate-se de construir pirâmides ou de pontes suspensas, de construir cidades ou instituições, de restaurar monumentos históricos ou de preparar a interpretação de uma ópera. Quando, então, ao invés de reunir as contribuições individuais ordinárias, no entusiasmo de uma obra em comum, uma empresa ou uma instituição desestrutura a convivência necessária à cooperação, quando ela empurra certos indivíduos ao suicídio, o Kulturarbeit não está mais na ordem do dia. O que aí se perfila é antes o espectro da falência dessa empresa ou o afundamento dessa instituição e, se não se consegue frear o desenrolar desse processo, a decadência da Kultur.
De fato, a clínica do trabalho sugere que esse quadro sombrio, mesmo que dê conta da evolução de nosso mundo sob o efeito de transformações da organização do trabalho e de métodos de administração de empresas esse quadro sombrio, portanto , não é uma fatalidade. Vimos, de fato, o sucesso financeiro conseguido pelas empresas contemporâneas, mesmo que gere uma explosão de patologias mentais ligadas ao trabalho, não repousa em um sistema qualquer que evoluiria inexoravelmente segundo um processo endógeno. Nenhuma empresa, nenhuma organização, nenhuma instituição, nenhum sistema funcionaria se os seres humanos que lá trabalham obedecessem a ordens estritamente. Se eles o fizessem, ou seja, fizessem operação padrão, todas essas organizações entrariam em colapso. Assim, elas funcionam porque se beneficiam da mobilização efetiva da inteligência dos trabalhadores, isto é, de seu zelo. Isso sugere que estamos muito implicados uns com os outros no sucesso e na perenidade desse sistema em que o trabalho volta-se contra o ser genérico do homem. E essa é uma terrível constatação, mas, é também uma sorte. É, com efeito, possível retomar as rédeas dessa evolução deletéria.
A AVALIAÇÃO INDIVIDUALIZADA
A análise detalhada do encadeamento da evolução do mundo do trabalho que estamos vendo mostra que o elemento determinante é constituído por uma nova técnica de dominação, a saber: a avaliação individualizada e quantitativa do desempenho. Esse método, que indiquei acima, não somente repousa sobre bases científicas incorretas, fáceis de recusar, mas ela está diretamente implicada na destruição das solidariedades. Sob o abrigo dos contratos objetivos, de normas de qualidade total, e de relações de atividades, o trabalho coletivo se desfaz.
A cooperação, com efeito, é possível demonstrar, é indissociável de uma atividade coletiva bastante complexa que consiste em elaborar coletivamente regras de trabalho assim como regras profissionais. A essa atividade de produção de regras denomina-se de atividade deontológica; e, então, pode-se mostrar que toda regra de trabalho é indissociavelmente uma regra de civilidade, de convívio e de viver juntos.
Trabalhar não é apenas produzir, é também conviver. De fato, não há neutralidade do trabalho diante da convivência; ou o trabalho, por meio da atividade ontológica, funciona como meio possante de criar de transmitir novos laços sociais de cooperação, ou ele destrói os laços sociais e provoca a desolação.
Insisto sobre esse ponto porque ele levanta questões teóricas interessantes. A clínica do trabalho, de fato, sugere que o mais possante motor de formação dos laços sociais é o trabalho. É para poder cooperar nas realizações em comum que os seres humanos buscam vias de liberação coletiva orientadas para o acordo e se esforçam, assim, para conjurar os riscos da violência trazidos pela economia pulsional, a sexualidade e o inconsciente. Freud o havia percebido. Cito-o:
Na ausência de uma predisposição particular prescrevendo imperativamente sua direção nos interesses vitais, o trabalho profissional comum, acessível a cada um, pode tomar o lugar que lhe é assinalado por Voltaire. Não é possível apreciar suficientemente, no quadro de uma visão muito geral, a significação do trabalho para a economia da libido. Nenhuma outra técnica de condução da vida enlaça tão solidamente o indivíduo à realidade quanto à ênfase dada ao trabalho, que o insere seguramente em ao menos uma fatia da realidade, a comunidade humana. A possibilidade de deslocar uma forte proporção de componentes libidinais, componentes narcísicos, agressivos e mesmo eróticos para o trabalho profissional e para as relações humanas, que a ele se ligam, confere-lhe um valor que em nada abre mão de sua indispensabilidade para todos; com a finalidade de justificar sua existência na sociedade, a atividade profissional fornece uma satisfação particular quando ela é escolhida livremente, ela permite, então, tornar utilizáveis pela sublimação tendências existentes, moções pulsionais persistente ou constitucionalmente reforçadas. (Freud, 1930/2002, p. 267).
Efetivamente, as relações entre o trabalho e a sublimação na perspectiva da clínica do trabalho aparecem como estando de fato no princípio do laço social. Freud, por seu lado, é mais reservado. Não somente a passagem que acabo de citar figura apenas numa nota de rodapé, mas também essa nota termina com um comentário dubitativo acerca do trabalho. Cito ainda:
E, contudo, o trabalho, como caminho para a felicidade, é pouco apreciado pelos homens. Eles não se esforçam muito no que lhe diz respeito como o fazem em relação a outras possibilidades de satisfação. A grande maioria não trabalha a não ser pressionada pela necessidade, e dessa aversão natural ao trabalho que os homens têm, decorrem os mais árduos problemas sociais. (Freud, 1930/2002, p. 267).
Entre uma teoria do laço social fundada no trabalho e na cooperação, e a teoria social formulada por Freud (1921/2010), em "Psicologia de massas e análise do eu", a continuidade não é nada óbvia. Em sua análise da crise da cultura, aliás, Freud se refere pouco à sua teoria social de 1921.
O objeto teórico dessa discussão pode ser recapitulado de forma a lapidar: o que está, pois, no princípio do laço social? O amor (e a libido) como o sustenta Freud em "Psicologia de massas e análise do eu" (1921/2010) ou o trabalho (e a sublimação)? Não se trata, aí, de amor e trabalho, mas amor ou trabalho. Não se trata, ainda, de uma afirmação, mas de uma questão que, no decurso da presente exposição permitiu-me dirigir aos psicanalistas interessados pela teoria social a questão fundamental da Kulturarbeit, de forma nova e num contexto de urgência, questão que, me parece, constitui um verdadeiro desafio.
Recebido em 10-08-2012
Aceito em 15-12-2012
- Arendt, H. (1972). Le système totalitaire; les origines du totalitarisme. Paris: Seuil.
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- Castel, H. (1995). Les métamorphoses de la question sociale. Paris: Gallimard.
- Freud S. (2010). Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse. Traduction Française, OCFP. (Tome XIX, pp. 83-268). Publicação original de 1933.
- Freud, S. (1991). Le Moi et le Ça. In S. Freud. uvres complètes vol. XVI, pp. 255-302). Paris: PUF. (Publicação original em 1923).
- Freud, S. (2010) Psychologie de masses et analyse du moi. In S. Freud. OEuvres complètes. (vol. XVI, pp. 1-83). Trad. dirigida por Jean Lapanche. Paris: PUF. Publicação original de 1921.
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- Henry, M. (1987). La barbarie. Paris: Grasset.
- Laplanche, J. (1999). Entre sedution e inspiration: l'homme. Paris: PUF.
- Ricoeur P. (1987). Individu et identité personnelle. In Sur l'individualité. Paris: Editions du Seuil.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Abr 2013 -
Data do Fascículo
Set 2012
Histórico
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Recebido
10 Ago 2012 -
Aceito
15 Dez 2012