Resumos
O presente artigo tem como objetivo demonstrar que a implementação de um processo contínuo e bem estruturado de avaliação das políticas públicas pode significar uma importante estratégia de prevenção e combate à violência estrutural. Neste sentido, o texto busca englobar como aspectos relevantes: a) a discussão do caráter ideológico da concepção do senso comum sobre a violência; b) a conceituação da violência estrutural, distinguindo-a de outras manifestações de violência e situando-a na realidade brasileira; c) a definição da abrangência e do papel das políticas públicas, ressaltando as responsabilidades políticas e sociais do Estado em seus diferentes níveis administrativos; d) a comprovação de que a ineficácia ou precariedade das políticas públicas repercute de forma negativa nas condições de vida dos cidadãos, principalmente nas dos mais pobres, demonstrando a existência de uma articulação direta entre a avaliação de políticas públicas e a prevenção da violência estrutural, favorecendo a defesa e a melhoria de sua qualidade de vida.
Avaliação; Políticas Públicas; Prevenção e Violência Estrutural
This paper aims at showing that the continuous and well-structured evaluation of public policies may represent an important strategy for preventing and fighting against structural violence. In this sense, it attempts at: a) discussing the ideological nature of the common sense concept of violence; b) defining structural violence, differentiating it from other manifestations of violence and relating it to the Brazilian reality; c) determining the scope and the role of public policies, emphasizing the political and social responsibilities of the state at its various administrative levels; d) proving that the inefficacy or insufficiency of public policies has a negative impact on the quality of life of individuals, mainly the poor, proving the existence of a direct articulation of evaluation of public policies with the prevention of structural violence, thus contributing to protect and promote the population's quality of life.
Evaluation; Public Policies; Structural Violence and Prevention
ARTIGO
ARTICLE
Otávio Cruz Neto 1
Marcelo Rasga Moreira 2
A concretização de políticas públicas em direção à prevenção da violência estrutural
The materialization of public policies towards the prevention of structural violence
1 Centro Latino Americano de Estudos de Violência e Saúde "Jorge Careli", Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Av. Brasil 4365, 21045-900 Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
2 Mestrando em Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz.
Abstract This paper aims at showing that the continuous and well-structured evaluation of public policies may represent an important strategy for preventing and fighting against structural violence. In this sense, it attempts at: a) discussing the ideological nature of the common sense concept of violence; b) defining structural violence, differentiating it from other manifestations of violence and relating it to the Brazilian reality; c) determining the scope and the role of public policies, emphasizing the political and social responsibilities of the state at its various administrative levels; d) proving that the inefficacy or insufficiency of public policies has a negative impact on the quality of life of individuals, mainly the poor, proving the existence of a direct articulation of evaluation of public policies with the prevention of structural violence, thus contributing to protect and promote the population's quality of life.
Key words Evaluation; Public Policies; Structural Violence and Prevention
Resumo O presente artigo tem como objetivo demonstrar que a implementação de um processo contínuo e bem estruturado de avaliação das políticas públicas pode significar uma importante estratégia de prevenção e combate à violência estrutural. Neste sentido, o texto busca englobar como aspectos relevantes: a) a discussão do caráter ideológico da concepção do senso comum sobre a violência; b) a conceituação da violência estrutural, distinguindo-a de outras manifestações de violência e situando-a na realidade brasileira; c) a definição da abrangência e do papel das políticas públicas, ressaltando as responsabilidades políticas e sociais do Estado em seus diferentes níveis administrativos; d) a comprovação de que a ineficácia ou precariedade das políticas públicas repercute de forma negativa nas condições de vida dos cidadãos, principalmente nas dos mais pobres, demonstrando a existência de uma articulação direta entre a avaliação de políticas públicas e a prevenção da violência estrutural, favorecendo a defesa e a melhoria de sua qualidade de vida.
Palavras-chave Avaliação; Políticas Públicas; Prevenção e Violência Estrutural
Introdução
A escalada da violência é uma questão premente em nossa sociedade. Apontada pela população das grandes metrópoles como sua principal preocupação, inserida em conteúdos programáticos de partidos políticos das mais díspares tendências, objeto de atuação de diferentes organizações não governamentais (ONGs), este fenômeno torna-se um assunto do quotidiano, sem que se tenha encontrado uma linha de atuação que contemple mais adequadamente os meios de prevenção e as formas de assistência.
Oriunda de relações sociais que perpassam diferentes épocas e sociedades, é a partir da década de 80 que, no Brasil, a violência se fixa na visão popular de forma drástica, como um perigo que a ronda permanentemente. "Suas facetas tornam-se objetos de apreensão do quotidiano, representados pelo desencadeamento de um temor generalizado aos assaltos, seqüestros e assassinatos" (Minayo, 1990).
Esta repercussão encontra respaldo também na saúde pública, que englobando as mortes ocasionadas pelos homicídios, suicídios, acidentes de trânsito... nas chamadas "causas externas", constatou que, em 1996, a taxa de mortalidade por homicídios entre jovens de 15 a 29 anos foi de 44,8/100.000, o que representa 80% dos óbitos ocorridos neste segmento, consolidando-se como a segunda causa de óbitos do país, abaixo apenas das doenças cardiovasculares. Traçando-se um breve perfil de sua incidência, constatar-se-á que a grande maioria de suas vítimas é composta por negros e/ou mulatos, oriundo das classes mais pauperizadas e que foram assassinados ainda jovens, na faixa etária entre 20-29 anos.
No entanto, elevados índices de criminalidade não são problemas desconhecidos da sociedade brasileira. A criação, na década de 50, do "Esquadrão da Morte" tipifica bem esta situação: "...o General Amaury Kruel, à frente da polícia carioca, cria o grupo de Diligências Especiais... a missão do grupo era reservada, mas os jornais informavam que a ordem era matar bandidos considerados de alta periculosidade" (Barbosa, 1971). Apesar disso, não há registro na história do país, nem na memória popular, de que os anos 50 e 60, os "anos dourados", tenham sido marcados, ou pelo menos caracterizados, pela violência.
É sintomático que a preocupação com a violência tenha atingido níveis tão elevados justamente a partir da década de 80, época em que o país começa a atravessar uma crise sócio/político/econômica sem precedentes em sua história. A conjunção entre crime e crise social, ao mesmo tempo em que é funesta para a população em geral, torna-se também uma real ameaça para as pretensões hegemônicas da elite econômica do país. Necessitando obscurecer sua vinculação histórica com aqueles problemas, ela instrumentaliza o senso comum (com amplo apoio da mídia), divulgando a ideologizada visão de que a delinqüência é a violência em si e não uma de suas manifestações. Os objetivos são inequívocos: mimetizando delinqüência e violência restringem seu combate e prevenção a uma mera questão de segurança pública e repressão policial. Além de representar uma visão reducionista e preconceituosa, associa, intempestivamente, a delinqüência ao ataque à propriedade privada, afirmando que os delinqüentes (os "agentes portadores da violência") são, obviamente, aqueles que não a possuem e que atendem por um tipo ideal: jovens negros e/ou mulatos do sexo masculino, oriundos das classes pauperizadas.
Para refutar esta lógica é preciso reforçar a perspectiva de que a violência não é um fenômeno uniforme, monolítico, que se abate sobre a sociedade como algo que lhe é exterior e pode ser explicado através de relações do tipo causa/efeito como "pobreza gera violência" ou "o aumento do aparato repressivo acabará com a violência". Pelo contrário: ela é polifórmica, multifacetada, encontrando-se diluída na sociedade sob o signo das mais diversas manifestações, que interligam-se, interagem, (re)alimentam-se e se fortalecem.
Na tentativa de "desvendar máscaras sociais" há de se denunciar que esta "concepção delinqüencial", ao postular a individualização máxima e a responsabilização absoluta do criminoso, pretende subsumir todas as suas vinculações com a realidade social-genérica (Motta & Misse1971) e, conseqüentemente, ignorar a existência de uma outra manifestação da violência, infligida por instituições clássicas da sociedade e que expressa, sobretudo, os esquemas de dominação de classe, grupos e do Estado: a violência estrutural.
Exatamente por ser exercitada nas ações diárias de instituições consagradas por sua tradição e poder, esta forma de violência costuma ser considerada como algo natural que, na maioria das vezes, não é contestada, sob o pretexto da desestabilização da ordem social. O senso comum nem chega a compreendê-la como uma manifestação de violência, mas sim como pura e simples incompetência de governantes e responsáveis, ou até mesmo como uma maneira de gerenciar os conflitos sociais.
Instância onipresente na vida de todos os cidadãos de um país, o Estado, em suas diferentes estruturas e poderes, torna-se responsável direto pelo estabelecimento e desenvolvimento das condições de vida de uma população. Direitos básicos dos indivíduos como o acesso à alimentação, educação e saúde são por ele influenciados, definidos e implementados. Seu instrumento de atuação são as políticas públicas que desenvolve. Na concepção contratualista de Estado, que na sociedade brasileira não vem sendo contestada nem pelos partidos de tendências socialistas, as políticas públicas deveriam ser orientadas para arbitrar de forma justa as tensões sociais, promovendo a igualdade entre os cidadãos e a elevação de sua qualidade de vida. Na prática vêm favorecendo a inserção do país na economia mundial e na divisão internacional do trabalho, privilegiando o mercado em detrimento da sociedade civil.
Raciocinando-se com este intuito e recorrendo a uma breve retrospectiva histórica, perceber-se-á que os governos brasileiros - democráticos ou ditatoriais - que se sucederam durante o período 1930-1989 orientaram suas políticas econômicas e sociais para o desenvolvimento, fortalecimento e reprodução de um processo de industrialização fixado na Região Sudeste, principalmente nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. A conseqüência mais perceptível e direta desse processo cristaliza-se no brutal inchamento populacional ocorrido naquelas metrópoles, proporcionado pela deterioração das condições de vida (desemprego, fome, efeitos da seca, negação do acesso à saúde e educação...) da população da zona rural, principalmente a nordestina. Ávida de mão-de-obra abundante e barata, a emergente burguesia industrial reservou, para si e para as classes médias que gravitam em seu redor, os bairros e logradouros mais bem atendidos pelo poder público, expelindo os pauperizados indivíduos que movimentavam suas máquinas para os morros e periferias, onde a única política pública que atuava constantemente era a da repressão policial e do clientelismo.
Com o fortalecimento mundial do neoliberalismo, os pré-requisitos para adentrar ao mundo globalizado modificam-se, criando uma situação que foi aceita sem contestações pelos presidentes da década de 90, que mobilizaram suas políticas públicas para a privatização, flexibilização das leis trabalhistas, valorização do capital especulativo, estabilidade monetária, contenção do orçamento, concessões fiscais aos detentores do capital e o abandono do ideal do pleno emprego (Anderson, 1995).
Gastando bilhões de reais em políticas que privilegiam grupos restritos (o caso do Proer é apenas um dos inúmeros exemplos citáveis), o Estado vitimiza o resto da população, infligindo-lhe violências como a fome, a miséria e a exclusão social, que guardam intrínsecas relações com a delinqüência. No entanto, este complexo processo não foi estabelecido de forma unívoca, ditado pela elite e aceito de bom grado por todos! Nestes quase 70 anos vários setores da sociedade brasileira não pouparam esforços no sentido de organizarem-se em partidos políticos, associações, sindicatos e ONGs que contestaram de forma veemente a pseudo-naturalidade dos fatos e lutaram sempre contra a deterioração das condições de vida.
Graças a essa perseverança, que representa o exercício de diferentes meios de resistência, a sociedade organizada conquistou força política, conseguindo recentes e importantes vitórias: a descentralização político-administrativa, que ampliou largamente o escopo de atuação do poder público municipal; o incremento dos poderes e atribuições do Ministério Público; a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA); a criação dos Conselhos Municipais dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes - CMDCAs (instância paritária e deliberativa do Poder Executivo que detém a prerrogativa de elaborar as políticas públicas voltadas para o segmento infanto-juvenil) e do Conselho Tutelar - CT (responsável por assegurar o cumprimento do ECA); a criação e reforço a órgãos de defesa do consumidor e a realização de parcerias com órgãos da sociedade civil, entre outras.
Uma das principais armas destas instâncias na defesa dos interesses dos cidadãos é o fato de que elas possuem, no rol de suas atribuições, a possibilidade de desencadear, em suas respectivas esferas de atuação, a avaliação das políticas públicas, corrigindo-lhes possíveis distorções e propondo-lhes novos rumos. A concreta utilização desse expediente é um desafio político, na linha do controle social, que estas instituições devem enfrentar, procurando legitimar-se enquanto defensoras dos interesses coletivos.
Ao denunciar a "concepção delinqüencial da violência", o presente artigo pretende não apenas descerrar os véus que obnubilam a percepção da violência estrutural, mas também fornecer subsídios para sua prevenção, focalizando a avaliação das políticas públicas desenvolvidas na esfera municipal e voltadas para o segmento infanto-juvenil, enquanto uma das estratégias que possibilitam a melhoria da qualidade de vida e a garantia de seus direitos.
A violência estrutural
Qualquer reflexão teórico-metodológica sobre a violência pressupõe o reconhecimento de sua complexidade, polissemia e controvérsia (Minayo & Souza, 1998), tornando-se premente compreender que, ao ser perpetrada por indivíduos, grupos e/ou instituições, ela pode se manifestar de múltiplas maneiras, inclusive as dissimuladas e ideologizadas, assumindo diferentes papéis sociais, sendo desigualmente distribuída, culturalmente delimitada e reveladora das contradições e formas de dominação.
Agindo com este intuito, Boulding (1981) afirma que o "conceito de violência estrutural que oferece um marco à violência do comportamento, se aplica tanto às estruturas organizadas e institucionalizadas da família como aos sistemas econômicos, culturais e políticos que conduzem à opressão de determinadas pessoas a quem se negam vantagens da sociedade, tornando-as mais vulneráveis ao sofrimento e à morte. Essas estruturas determinam igualmente as práticas de socialização que levam os indivíduos a aceitar ou a infligir sofrimentos, de acordo com o papel que desempenham."
Compreender a violência estrutural no contexto social abordado por este artigo significa elucidar, a partir da ampliação e desenvolvimento deste raciocínio, os mecanismos pelos quais o Estado, em seus diferentes níveis e poderes, restringe o acesso da grande maioria da população aos direitos básicos que lhe proporcionariam uma vida digna, gerando assim um grave quadro de exclusão social.
Neste sentido, o primeiro aspecto a ser abordado refere-se à definição do significado social destes "direitos", distinguindo-os de conceitos como "interesse" ou "necessidade", que embora digam respeito às mesmas temáticas e lutas, não devem com eles ser confundidos sob pena de se tomar aspirações particulares por universais, o que significaria admitir uma ideologia.
Mesmo nas situações em que despontam como justas postulações de indivíduos, grupos ou classes sociais, os "interesses" e as "necessidades" constroem-se e ganham conformação nas esferas privadas e específicas da existência humana, podendo, inclusive, ser conflitantes entre si e per si. Um exemplo bastante elucidativo é o dos sem-terra, que têm "necessidade" de plantar para sobreviver e "interesse" num determinado tipo de reforma agrária, embora não tenham acordado qual a melhor maneira de fazê-la. Contra eles levantam-se os "interesses" dos latifundiários, que desejam manter a base fundiária e "necessitam" dos subsídios do governo para produzir, o que, segundo eles, é importante para o país por gerar divisas.
Estas caraterísticas particularizadas não são pertinentes a um "direito" que, de acordo com Chauí (1994), é "geral e universal, válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais. Assim, por exemplo, a carência de água e comida manifesta algo mais profundo: o direito à vida... o interesse dos sem-terra o direito ao trabalho... dizemos que uma sociedade - e não um simples regime de governo - é democrática quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da República, respeito à vontade das maiorias e das minorias, institui algo mais profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos".
Constata-se então que o locus da violência estrutural é exatamente uma sociedade de democracia aparente (no caso, a democracia liberal), que apesar de conjugar participação e institucionalização e advogar a liberdade e igualdade dos cidadãos, não garante a todos o pleno acesso a seus direitos, pois o Estado volta suas atenções para atender aos interesses de uma determinada e privilegiada classe.
Para que este raciocínio ganhe a abrangência que necessita a fim de ser corretamente desenvolvido, faz-se imprescindível compreender que uma ditadura não é o regime oposto, ou mesmo simétrico, à democracia liberal. Há de se evitar esta formulação, pois uma lógica mecanicista poderia logo inferir que naquela não há violência estrutural.
A ditadura é, em verdade, uma forma de governar a sociedade na qual a classe dominante não mais se contenta em deter e/ou manter a direção hegemônica do Estado, dominando-o pelo uso da força. Nela, as liberdades, principalmente de expressão e política, são ainda mais restringidas e seus opositores são perseguidos pelas formas mais atrozes. No entanto, subsiste, pelo menos, a promessa de igualdade no acesso aos direitos, sendo que, da mesma maneira que ocorre na democracia liberal, em determinados momentos, certos interesses das classes exploradas são satisfeitos com a intenção de fazê-las crer que estão atingindo seus direitos e, conseqüentemente, arrefecendo os ânimos exaltados. O "milagre brasileiro" dos militares e tecnocratas pós-64 é o melhor exemplo desta situação, com suas ufanistas campanhas do "Ame-o ou Deixe-o", "90 Milhões em Ação" e "Vamos Construir Juntos".
Apesar de pareceren bastante óbvias, as situações e condições sócio-econômicas que inspiram a violência estrutural devem ser perscrutadas na própria estrutura da sociedade. Este corolário, simples na formulação, torna-se complexo em sua execução, exigindo que se recorra à análise histórica.
Segundo Marx (1983), na produção social de sua vida os homens estabelecem determinadas relações de produção que correspondem a uma determinada fase do desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue o Estado, e a superestrutura jurídica e política à qual correspondem determinadas formas de consciência social.
No desenrolar do processo histórico ocidental o modo de produção feudal foi responsável pelo surgimento e desenvolvimento de uma sociedade fechada, imóvel e hierarquizada em castas, na qual as relações entre os indivíduos tinham seu papel e espaço delimitados pela origem biológica de cada um, sendo impraticável a consecução de projetos que almejassem mobilidade e ascensão social. Nesta forma determinada de sociedade, e somente nela, as condições materiais de existência tornaram possível a utilização, em larga escala, de uma força de trabalho servil e/ou escrava, formada por pessoas sem quaisquer direitos, que tinham suas vidas condicionadas pelo arbítrio de seu "senhores": nobres e clérigos que incorporavam o governo do Estado à sua herança.
Falar de qualidade de vida para essa imensa massa humana seria uma cruel metáfora que não faria jus ao sofrimento que passou e suavizaria as atrocidades contra elas cometidas. No entanto, da mesma forma que não se pode afirmar que era mão-de-obra explorada, já que não era subjugada pelo trabalho alienado e não produzia mais-valia, não é possível caracterizar a perpetração de um violência estrutural, pois nunca os governantes dirigiram-lhe seus discursos e muito menos fazia parte das preocupações do Estado a simples discussão acerca de políticas públicas que lhe concedessem algum direito. Pior ainda, todos sabiam quão trágica e sofrida seriam suas vidas e mesmo quando se revoltavam (quilombos, Spartacus) nunca almejavam a tomada do aparelho de Estado, mas simplesmente a fuga de seus verdugos.
As revoluções burguesas insurgiram-se contra esta estática e monopolizada sociedade, superando-a historicamente e implantando, gradualmente, um novo modo de produção, ao qual o trabalho escravo não mais interessava. O avanço tecnológico propiciava o aparecimento de instrumentos e máquinas que só podiam ser operadas por indivíduos com um certo "saber", que não seria adquirido no cativeiro. Aos poucos a escravidão foi extinguindo-se, cedendo lugar à mão-de-obra assalariada.
Essa nova sociedade, cingida em classes e baseada no uso da propriedade privada para a obtenção de lucro, passa a incentivar a adesão do "indivíduo livre" (aquele que não é proprietário dos meios de produção e não tem de onde extrair sua subsistência) ao trabalho assalariado, exaltando as possibilidades de enriquecimento, ascensão social e, conseqüentemente, a melhoria de suas condições de vida. Tocqueville (1987) ressalta de forma clara as dissemelhanças entre a sociedade que ruía e a que se levantava: "situados à imensa distância do povo, os nobres podiam ter, todavia, pela sorte do povo, aquela espécie de interesse benevolente e tranqüilo que sente o pastor por seu rebanho; e, não vendo no pobre um igual, velavam pelo seu destino como se fosse um depósito entregue às suas mãos pela providência. O povo, jamais tendo concebido a idéia de outro estado social senão o seu, sem imaginar que viesse um dia a poder igualar-se aos seus chefes, recebia os seus benefícios e nunca discutia os seus direitos (...) nos Estados Unidos me impressionou mais vivamente a igualdade de condições... a influência prodigiosa que essa realidade primária exerce sobre a marcha da sociedade; ela dá à opinião pública uma direção definida, uma tendência certa às leis, máximas novas aos governos e hábitos peculiares aos governados".
Ao incorporar os trabalhadores, mesmo que de forma obtusa, às relações de produção e apropriação de capital, a sociedade capitalista amplia consideravelmente as atribuições conferidas aos governos, sob a forma de Estado, que vão sendo obrigados a incluir em seu rol de preocupações, políticas públicas que assegurem as condições mínimas de existência e reprodução de seus trabalhadores, incluindo participação política e garantia de direitos. Obviamente esta melhoria só existe quando comparada à realidade do Ancién Régime, não atingindo a todos, ficando bem aquém dos padrões de dignidade e desmesuradamente inferior às condições de vida dos burgueses.
A necessidade de estender os níveis de participação e acesso assume assim a condição de um pressuposto estrutural para o desenvolvimento da sociedade capitalista, o qual as classes dominantes administram de acordo com seus interesses, ora acelerando seu ritmo, ora diminuindo, ou mesmo contendo-o. Por sua vez, as classes exploradas apreendem as mudanças sócio-econômicas, saindo do estado de prostração divina e aceitação natural de seu problemas, fomentando movimentos reinvindicadores que redundam em revoltas e revoluções. Durante a marcha do processo histórico a luta entre essas classes terá como pano de fundo a questão dos direitos do cidadão. Nesta sociedade, e somente nela, é possível constatar a violência estrutural, sendo que a partir dela, mais especificamente de sua superação, é que se pode pensar e lutar pela plena instituição dos direitos. Isto posto, há de se investigar as relações que produzem e originam esta manifestação da violência.
No capitalismo estas relações são representadas pelo mercado e pela oposição dialética entre capital e trabalho, que tendem a ser reproduzidas no aparelho de Estado, que as reorganiza de acordo com suas prioridades conjunturais e as executa através de suas políticas públicas. Estas, por sua vez, espraiam-se pela sociedade, condicionando a vida dos cidadãos, revigorando e fortalecendo o modo de produção.
Através de suas políticas públicas o Estado abre um canal de comunicação, na maioria das vezes unívoco, com a sociedade, demonstrando e praticando sua ideologia, metas e diretrizes, num movimento que interfere e regula o fluxo da vida cotidiana. No desenrolar deste processo, que engloba desde a elaboração até a implementação destas políticas, há um choque entre os interesses que postulam ser contemplados, capitaneado pelo embate entre mercado e sociedade civil.
Ao adentrar a seara da política, há de se perceber seus múltiplos significados, que são ressaltados por Chauí (1994) e explicitados por Abranches (1987): "se a política fosse apenas contrato, a política social seria cláusula inarredável do capítulo das obrigações coletivas, a cargo do Estado. Política, porém, é conflito, oposição e contradição de interesses. Conflito negociado, regulado por instituições políticas de natureza vária, condicionado por mediações que tornam possível reduzir ao antagonismo e projetá-los em um movimento positivo. Política é, também, poder, transformando-se, freqüentemente, em um jogo desequilibrado, que exponencia os meios dos mais poderosos e reduz as chances dos mais fracos. Quem detém instrumentos eficazes de pressão tem maior probabilidade de obter mais da ação do Estado do que aqueles dependentes dessa própria ação para conseguir o mínimo indispensável à sua sobrevivência".
Num Estado em que os governantes organizam as políticas públicas a fim de atender aos interesses do capital financeiro, a alocação de recursos para atender às demandas da sociedade civil fica gravemente prejudicada e restringida. O reflexo direto desta escolha é a queda de qualidade dos serviços públicos, que passam a prestar um atendimento insuficiente e de má qualidade, não sendo capaz de dar conta das necessidades e anseios da parcela da população que os procura. A persistência deste quadro afeta de forma mais grave às classes de mais baixa renda, que não possuem recursos para procurar instituições privadas que supram a rarefação pública: educação, saúde, lazer, habitação, renda, condições de salubridade... o acesso a estes bens públicos é cerceado, e até mesmo negado, a um grande contigente de cidadãos que assistem à dramática redução de suas oportunidades de ascensão social, sendo obrigados a viver em condições indignas.
Este esquema engendra e propicia todas as características de uma prática de violência estrutural: não é natural, mas sim histórica e socialmente produzida; possui raízes profundas nas relações de poder; apresenta resquício de autoritarismo social; é política e geograficamente demarcada; tem objetivos determinados; define propositadamente seus destinatários; afeta principalmente cidadãos com reduzida capacidade de defesa; alimenta a ostentação de poucos com o sofrimento de muitos; amplia as disparidades sociais; cerceia oportunidades e legítimos projetos de vida; inibe a escolha racional, favorecendo a escolha constrangida: mendicância, tráfico, delinqüência, por exemplo; fomenta preconceitos e causa danos morais, psicológicos, físicos e a morte.
Exatamente por ser cometida por instituições consagradas por sua tradição e poder, costuma ser considerada como algo natural, que não se pode contestar sob o pretexto da desestabilização da ordem. Sob o efeito desta ideologia, e mesmo com a atribuição de propagá-la, os meios de comunicação dispensam-lhe um espaço muito menor que o dedicado à criminalidade e delinqüência, sem nunca vinculá-la como uma manifestação de violência. A própria população que é atingida a atribui à simples inapetência ou desonestidade governamental. Este "duplo silêncio" representa a reificação da violência estrutural, que dissolvendo a revolta contra a ineficiência das políticas públicas em um sentimento mais forte e marcante como a dor de um desempregado ao ver o filho passar fome, ou a morte de um ente querido por falta de atendimento médico, assume, diante do senso comum, uma aparência de fatalidade ("morreu porque chegou a hora"), naturalidade ("meu filho saiu da escola porque não 'dava' para o estudo") e neutralidade ("se você não trabalhar não vai ser o governo que vai pagar suas contas").
O aspecto mais cruel da violência estrutural, para o qual confluem todas as características aqui apresentadas, é o de ser responsável pela instauração de um processo seletivo que tem o poder de decidir quais os cidadãos que desfrutarão do bem-estar social (comprando-o se necessário) e aqueles que se incorporarão à grande massa de excluídos mas, sem poder, para desgosto de alguns, isolar uns dos outros, colocando-os frente a frente diariamente. Este encontro de desiguais engendra relações bastante peculiares, que não são necessariamente belicosas. No entanto, o agravamento dos problemas sociais e o aumento dos índices de delinqüência vão, pouco a pouco, potencializando rancores que se expressam no preconceito, na intolerância e no medo.
Atendendo ao clamor de seus "eleitos", o Estado intensifica a repressão, mobilizando seu corpo jurídico e policial, liberados de limites legais e humanistas, contra aqueles que anteriormente já tinha alijado: os violentados passam a ser encarados como os violentos. "Reverter este processo é começar a andar na mão contrária do caminho sem saída da negação do conflito, do isolamento, da vingança, da repressão. Nessa direção cabe buscar um caminho de reconstrução da dignidade da vida, da tolerância à diferença e da intolerância à iniquidade. Valores que se instauram através da comunicação, da democracia real, do cumprimento de responsabilidades... na micropolítica das relações do cotidiano, onde essa ordem violenta se manifesta e vai, gradativamente permeando todo o corpo social" (Boghossian, 1999).
Nesse cenário, a adoção de um processo contínuo e bem estruturado de avaliação das políticas públicas surge como uma estratégia de prevenção à violência estrutural, que deve ser utilizada não apenas por aqueles que ao assumirem a direção do Estado compreendem sua abrangência e poder, dispondo-se a utilizá-lo como um instrumento de desenvolvimento e justiça social, mas pela própria sociedade civil organizada como forma legítima de pressão e luta social. Se sua capacidade de definir os motivos que acarretam a ineficiência das ações e programas existentes, de revelar os problemas públicos que permanecem inatacados e de apontar meios para superá-los não é suficiente para modificar a estrutura do Estado, apresenta-se como perfeitamente capaz de criar possibilidades de alterar o equilíbrio da relação mercado/sociedade civil, favorecendo esta última.
O papel do Estado e o dilema das políticas públicas
Não seria factível proceder a uma discussão sobre as políticas públicas desenvolvidas em uma determinada sociedade sem, pelo menos, aludir-se ao caráter histórico do Estado responsável por sua criação, implementação e concretização.
Em uma época na qual repete-se à exaustão, conforme Goebbels, o discurso do "fim da história e das ideologias", pode parecer ultrapassada, para muitos, a retomada de uma perspectiva histórica que (re)afirma que desde a década de 30 (marco cronológico do início efetivo de um processo de industrialização) o Brasil desponta como um país capitalista no qual o Estado procurou orientar suas políticas públicas no sentido de fomentar as condições necessárias para sua inserção na economia mundial, acatando - com exceção dos períodos nacionais-trabalhistas de Vargas e Jango - o papel que lhe foi atribuído pela divisão internacional do trabalho: por um lado exportador, a baixo custo, de matéria-prima, produtos agrícolas e capital; por outro importador, a alto custo, de produtos industrializados (essenciais ou supérfluos), tecnologia obsoleta, teorias econômicas e empréstimos a juros extorsivos e flutuantes.
"Terceiro Mundo", "Subdesenvolvido", "Em Desenvolvimento" e "Emergente"; o sistema capitalista mundial sempre foi bastante hábil em tipificar países como o Brasil sob a égide de uma perspectiva evolucionista, que supostamente os levaria a atingir o mesmo grau de desenvolvimento e riqueza verificado nas autoproclamadas grandes potências.
Por décadas vêm-se embalando nações com o canto da sereia de uma prosperidade que logicamente nunca chega, pois, conforme afirma Furtado (1996) "se tal acontecesse, a pressão sobre os recursos não renováveis e a poluição do meio-ambiente seriam de tal ordem (ou, alternativamente, o custo sobre o controle da poluição seria elevado) que o sistema econômico mundial entraria em colapso". O próprio autor explica que estes países devem quebrar a seqüência destrutiva do capitalismo, abdicando de sua posição passiva e submissa e adotando novos rumos econômicos dos quais o desenvolvimento auto-sustentado surge como a principal alternativa.
Fazer este preâmbulo torna-se de suma importância, sobretudo diante da conjuntura sócio/econômica/política do país, na qual a hegemonia neoliberal globalizante convenceu, durante os anos 90, os governos brasileiros a concentrar seus esforços no sentido de implementar um "Estado Mínimo", pré-requisito para a modernidade que, ao abdicar de seu poder de intervenção no mercado acabaria com a inflação, reduziria seu déficit financeiro e poderia investir em setores sociais essenciais como trabalho, saúde e educação.
Estas diretrizes economicistas, formalizadas em 1989 no Consenso de Washington, suscitam, de imediato, três aparentes paradoxos: 1) nenhum país do auto-proclamado "mundo desenvolvido" adotou a total desregulamentação do mercado. Ao contrário, a mantiveram e/ou acentuaram tarifas protecionistas e salvaguardas a fim de evitar a submissão de sua economia. Calçados, soja, laranja e informática são exemplos de produtos brasileiros sobretaxados; 2) os "países emergentes" que abriram suas economias foram varridos por crises sócio-econômicas de grandes proporções: México, Bolívia, Tigres Asiáticos e Rússia; 3) as políticas públicas implementadas pelo Estado brasileiro com o objetivo de desregulamentar a economia, quadruplicaram a dívida interna em cinco anos, o que gerou uma avassaladora elevação do déficit público e a privatização, a preços vis, de empresas lucrativas financiadas pelo BNDES com o dinheiro do próprio cidadão-contribuinte! Enquanto isso, continua a "saúde em estado de choque" (Minayo, 1986), a educação fecha as portas das salas de aula e o emprego escasseia.
Seja realizada através de uma perspectiva contratualista (que engloba desde os Welfare States até o Estado Mínimo) ou pelo viés da luta de classes (que o concebe como um instrumento de dominação/opressão da classe dominante) a análise do papel do Estado convergirá sempre para o enorme poder de influência que ele exerce sobre a vida dos indivíduos que vivem sob suas normas (Balibar, 1981).
Dirigido por reis, príncipes ou presidentes - déspotas, ditadores golpistas, eleitos ou revolucionários - o Estado construiu, ao longo do processo histórico, uma notável capacidade de capilarizar-se por todos os setores da sociedade, dos mais comezinhos aos mais complexos, conquistando onipresença econômica, físico/repressiva e ideológica, além de imprimir-lhes características e diretrizes das quais discordar torna-se sempre um ato de ousadia e coragem, mesmo nas modernas poliarquias (Dahl, 1997) que garantem uma ampla participação política em suas consagradas instituições.
Este "poder do Estado", em torno do qual travam-se as lutas políticas (Althusser, 1985) é, ao mesmo tempo, conquistado e assegurado pelas políticas públicas que são, em última instância, instrumentos de mediação responsáveis pela organização de uma determinada sociedade, moldando, elevando, modificando, cristalizando, e/ou desvirtuando a trajetória e as condições de vida de sua população.
Aos olhos do senso comum elas materializam-se apenas nas atitudes grandiloqüentes que impingem novo rumo a seu dia-a-dia: planos econômicos, pomposos projetos urbanísticos-obreiros, reformas nas redes públicas de ensino e saúde e flexibilização das leis trabalhistas.
Esta visão mitigada não corresponde ao elevado grau de complexidade da situação. Mesmo os mais insuspeitos movimentos estatais devem ser vislumbrados como integrantes velados, mas não menos fundamentais, das políticas públicas governamentais sem os quais elas dificilmente atingiriam seus objetivos. Um bom exemplo é a nomeação para cargos nos escalões inferiores do governo, vitais para a política de alianças que asseguram a governabilidade, mas que a maioria da população desconhece a existência.
Segundo Lemieux (1994, apud Viana 1995) as políticas públicas podem ser definidas como "tentativas de regular situações que apresentam problemas públicos - aqueles que interferem na repartição de meios entre os atores sociais - situações essas afloradas no interior de uma coletividade ou entre coletividades". Usualmente classificadas de acordo com o setor/segmento da sociedade no qual intervêm diretamente (educação, saúde, criança e adolescente, cambial, monetária, anti-inflacionária) elas podem ser alocadas em duas "linhas-macro": sociais (aquelas que têm como objetivo organizar a sociedade civil e a política) e econômicas (as que visam o funcionamento do mercado). Aprioristicamente esta tipologia teria um efeito basicamente didático, pois não seria possível decantar em movimentos estanques os aspectos econômicos de uma sociedade das condições de vida de sua população ou, inversamente, reordenar os direitos dos cidadãos sem gerar reflexos monetários-financeiros. Na realidade, tanto as políticas públicas econômicas quanto as sociais estão intrinsecamente ligadas por serem dimensões diversas de uma mesma totalidade.
No entanto, o Estado capitalista, que tem como característica fundante e distintiva (e portanto estrutural) o modo de produção baseado na utilização da propriedade privada para obtenção de lucro, ainda valoriza sobremaneira um único aspecto da complexa subjetividade do ser humano: o de consumidor. A dimensão da cidadania é atrofiada, já que todos os desejos e aspirações individuais, bem como os direitos sociais, podem ser adquiridos comercialmente, desde que se disponha de capital suficiente.
Num país com esta conformação social, quanto maior for o grau de clivagem entre mercado e sociedade civil mais as políticas públicas econômicas tornar-se-ão prioritárias, submetendo-se e até mesmo opondo-se às políticas sociais, que exatamente por isso assumem um papel emancipatório, fomentador da cidadania (Demo, 1994).
Os efeitos da antinomia mercado/sociedade civil são sentidos de forma mais contundente pelos setores mais pauperizados da população. A prioridade destinada às políticas econômicas, que intervêm direta ou indiretamente na base produtiva do país, exige grandes esforços de adaptação às novas situações que dela emergem: inflação, recessão, hiperinflação. Estes movimentos são mais facilmente assimilados por aqueles que detêm o capital e os meios de produção e que por isso têm a possibilidade de transferir suas dificuldades, demitindo trabalhadores, realocando seus recursos financeiros em investimentos especulativos, diversificando sua carteira de ativos ou qualquer outro mecanismo economicista que esteja à disposição.
Com o cidadão comum ocorre justamente o inverso. Na absoluta maioria das vezes ele nem sequer espera ou compreende a mudança da situação. Além disso não tem como transferir suas dificuldades, podendo, no máximo, compartilhá-las com sua família, o que lhes causa sérios transtornos, sendo o mais perverso, por seu efeito tautômero, a entrada precoce de seus filhos no mercado de trabalho.
Constatando que entre 1990 (Censo do IBGE) e 1996 (levantamento do Unicef) o número de crianças e adolescentes trabalhando no país cresceu cerca de 24%, atingindo o impressionante índice de 9,3 milhões, Cruz Neto e Moreira (1998a) assinalam que "este crescimento está diretamente ligado à perpetração de políticas públicas de cunho economicista que subordinam a sociedade civil ao mercado (...) o trabalho destas vítimas do capital não é voluntário nem prazeiroso (...) no entanto o pouco dinheiro que arrecadam é de vital importância para suas famílias (...) sua manutenção interessa ao mercado, uma vez que esta atividade envolve gastos reduzidos e gera expressivos lucros (...) em contrapartida, passando sua infância e adolescência longe da escola, dos cuidados médicos e do acesso a seus direitos, transformam-se em adultos sem perspectivas, cidadãos virtuais fadados a vagar pelas mais diversas atividades subalternas e/ou viver nas ruas". Não há caso mais emblemático de violência estrutural.
Apesar de sua pujança e do já ressaltado poder organizacional, as políticas públicas não se distribuem pela sociedade de forma equânime e livre, pois possuem um fator de planejamento financeiro limitante, o orçamento público.
O orçamento nada mais é do que a tábua rasa na qual, anualmente, são dispostas as previsões de arrecadação e gastos. Sua elaboração possui uma lógica estritamente contábil que persegue, se não o superávit, o menor déficit possível. Assumindo tal importância é objeto de cruentas lutas travadas no âmbito do executivo e do legislativo, motivadas por interesses nem sempre probos e/ou legítimos.
Analisadas por este viés, as políticas públicas conformam-se em distributivas, que "não excluem a alocação do mesmo tipo de recursos um número infindável de vezes" e redistributivas, que são do tipo "soma zero, isto é, sua implementação deixa imediatamente a nu que outras políticas não poderão ser executadas e, ainda mais, que nem mesmo políticas semelhantes podem ser repetidas" (Santos, 1993).
No primeiro caso incluem-se, dentre outras, obras urbanas e de saneamento, campanhas de vacinação e fixação das taxas de juros, enquanto no outro vislumbram-se experiências como a criação de sistemas de saúde e previdência, a definição das metas de privatização e a taxação do salário de profissionais da ativa e pensionistas.
Há de se ressaltar que não há política exclusivamente distributiva. Na maioria das vezes as medidas por elas definidas realmente podem ser sempre repetidas, mas ao custo de que outras sejam inviabilizadas. Entretanto, elas serão consideradas "universalmente gratuitas" na medida em que não subtraiam o mesmo tipo de oportunidade a ninguém. Como demandam uma quantidade menor de recursos, podem ser inseridas em grande número no orçamento público, o que lhes propicia um trâmite relativamente tranqüilo, que encontra como principal obstáculo a sua utilização como instrumentos de barganha.
As políticas redistributivas apresentam um panorama radicalmente diverso. Necessitando de vultosas somas, que geralmente extrapolam o ano fiscal expandindo-se para os seguintes, desperta uma ampla gama de interesses (inclusive os escusos) que, obviamente, não podem ser contemplados em sua totalidade. Com o objetivo de evitar o caos nas contas públicas, estabelecem-se severas restrições à sua inserção no orçamento, o que reduz sensivelmente a quantidade de medidas passíveis de serem implementadas.
Os grandes embates partidários são travados em torno dessas políticas. Neles degladiam-se os representantes da sociedade civil (geralmente de seus setores mais organizados) contra os próceres do mercado, procurando assegurar a supremacia no orçamento público das políticas redistributivas que respectivamente defendem: sociais x econômicas. Glamourosamente inserido na aldeia global, o Estado brasileiro tem privilegiado historicamente (exceções já assinaladas) a inclusão no orçamento público e a conseqüente implementação de políticas públicas que visam ao desenvolvimento das relações de mercado em detrimento das condições de vida da população.
Publicado em órgãos oficiais da imprensa nacional, o Orçamento Geral da União para 1999 ilustra de forma contundente esta situação. Nele, as três maiores dotações são alocadas nas rubricas "Refinanciamento da Dívida" (R$ 284,2 bilhões), "Encargos Financeiros da União" (R$ 91,9 bilhões) e "Transferências Constitucionais" (R$ 31,2 bilhões). Isto significa que o Brasil irá pagar aos banqueiros e ao sistema financeiro nacional e internacional, entre juros, amortização e rolagem das dívidas interna e externa R$ 376,10 bilhões. Os investimentos sociais, por sua vez, aparecem em desprezáveis quarto e quinto lugares, sendo, respectivamente, R$ 19,5 bilhões para a saúde e R$ 11,1 bilhões para educação, o que representa dez vezes menos que o dispendido na ciranda financeira.
Frente a esse descalabro, responsabilizar apenas a incompetência e má-fé dos governantes torna-se, também, uma atitude simplista e reducionista. A raiz do problema encontra-se exatamente na dinâmica da sociedade brasileira, forjada por um capitalismo que nos últimos 70 anos utilizou-se de todos os recursos possíveis, inclusive a força, para garantir que um Estado caracterizado pela centralização decisória e fragmentação institucional implementasse as políticas públicas que fossem convenientes às classes detentoras do capital e dos meios de produção. Essa compreensão do agir do Estado em detrimento dos interesses da maioria, permite vislumbrar que as grandes mazelas sociais do Brasil não são, portanto, indutoras mecânicas da violência, mas sim produtos de uma violência estrutural que materializa-se na perpetuação da hegemonia do capital que, ávido de lucros, reclama para si a propriedade privada das políticas públicas.
Claro está que esta hegemonia não foi obtida pela adesão popular às classes dominantes. As lutas travadas pelos partidos políticos progressistas, sindicatos, associações, ligas camponesas, sem-terras, ONGs de defesa dos direitos do cidadão e pela própria população, que sempre que mobilizada respondeu com vigor e firmeza, lograram vitórias expressivas que, se não foram suficientes para modificar o caráter do Estado, conquistaram posições importantes em sua estrutura.
Na história recente do Brasil, a Assembléia Nacional Constituinte de 1986/1988 foi a arena privilegiada destas lutas. Embora com uma correlação de forças bastante desigual, na qual as classes dominantes eram amplamente majoritárias, resultando em mais uma constituição orientada por seus interesses, os partidos de esquerda e centro-esquerda, com o apoio da sociedade civil organizada, conseguiram transformar em lei antigas e justas reivindicações.
A descentralização do Estado garantiu maior autonomia político-financeira às unidades da federação e, principalmente, aos municípios, que passaram a assumir responsabilidades governamentais que até então flutuavam no âmbito federal. Este novo pacto federativo gera imediata repercussão no quadro das políticas públicas, pois suscita novos "problemas públicos" que devem ser objetos de propostas de regulação e organização. No campo das políticas públicas sociais surgem novas "situações problemas" para os Municípios: a efetivação e operacionalização do Sistema Único de Saúde (SUS), a responsabilidade pela educação infantil e parte do ensino fundamental, além da criação e implantação dos CMDCAs e do CT.
Na esfera das políticas econômicas, os municípios passaram a receber 25% do antigo Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM), que teve ampliada a sua base de incidência passando a se chamar Imposto sobre Operações Relativas à Circulação e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS). O impacto destes ganhos se faz sentir de modo mais intenso nos municípios de grande porte demográfico com população superior a 50 mil habitantes (Breamaeker, 1995).
Por sua vez, a ampliação dos poderes do Ministério Público eleva este órgão do Judiciário à condição de representante direto da sociedade civil devido, principalmente, a atribuição de fiscalizar a gestão de prefeitos, governadores e presidente.
Neste novo cenário político, em que a distância entre poder público e sociedade tende a diminuir, surge a possibilidade de um controle maior sobre as políticas públicas, pelo menos nas esferas municipais. No Rio de Janeiro, a parceria entre o Ministério Público Estadual e pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública (DCS/Claves), da Fundação Oswaldo Cruz, abre perspectivas para uma análise mais atenta das políticas públicas voltadas para o segmento infanto-juvenil. Trata-se de uma pesquisa estratégica, que vem sendo realizada nos municípios do estado do Rio de Janeiro com o objetivo de produzir um diagnóstico técnico-operacional de cunho avaliativo das políticas públicas voltadas para crianças e adolescentes, propiciando subsídios para um ajustamento de conduta do Executivo local. Conjugando dados e informações provenientes desta pesquisa com situações existentes na sociedade brasileira, o capítulo a seguir procura demonstrar como a avaliação das políticas públicas pode configurar-se em uma estratégia de prevenção à violência estrutural.
Avaliação das políticas públicas como forma de reconhecimento e prevenção da violência estrutural
As condições de vida de uma população e, conseqüentemente, de um de seus segmentos, mantêm intrínseca e indelével ligação com as políticas públicas implementadas pelo Estado em seus diferentes níveis administrativos. Esta relação torna-se mais crítica quando focaliza-se o segmento infanto-juvenil que, por suas condições sociais e psicobiológicas (Oliveira & Mendes, 1995), são extremamente dependentes de pais, irmãos, professores, médicos, condições de habitação e saneamento, ou seja, um vasto rol de pessoas, situações e instituições que já têm sua vida e existência diretamente afetadas pelas políticas públicas.
De forma mais incisiva: a análise das condições de vida de uma determinada população configura-se, antes de tudo, em um processo de avaliação das políticas públicas, na maneira pela qual elas intervêm na vida dos cidadãos e as reações que provocam. Neste contexto, a mera quantificação de dados em índices que se pretendem "aferidores da qualidade de vida" sempre representará, por mais apurada que seja sua técnica, uma constatação voltada apenas para aspectos mensuráveis, não contemplando as complexas e abrangentes relações sócio-econômico-políticas que continuamente interpenetram-se e moldam a vida.
Assim, um diagnóstico estratégico sobre as condições de vida e atendimento à população infanto-juvenil, na esfera municipal, deve ser capaz de compreender e elucidar os aspectos qualitativos das situações ensejadas - o que não significa desprezar os dados quantificados - favorecendo o reconhecimento da realidade, com suas carências e ausências, além de apontar para a reorganização da gestão e o controle social sobre as políticas públicas.
Se a estrutura de uma sociedade está organizada de maneira que as políticas públicas tornam-se instrumentos que privilegiam determinados segmentos em detrimento das condições de vida do restante da população, isto é, se elas são instâncias de mediação da perpetração da violência estrutural, o processo de avaliação destas políticas assume um caráter intrinsecamente preventivo, já que não se propõe a promover mudanças no caráter histórico do Estado, mas sim reduzir a freqüência e intensidade dos problemas públicos (Maldonado, 1997).
O flagrante e contínuo desrespeito aos direitos de crianças e adolescentes, que obtiveram status legal com a criação do ECA, vem sendo constatado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) e Federal (MPF), que responderam ao agravamento da situação com a instauração de um inquérito civil público, cujo objetivo é apurar as responsabilidades da União, estados e municípios na elaboração, implantação e desenvolvimento das políticas públicas voltadas para o segmento infanto-juvenil. Tendo como pano de fundo os tristes episódios das chacinas de Acari e da Candelária, estes órgãos determinaram que a partir de 1993 desencadear-se-ia um processo contínuo e expansivo no qual seriam avaliadas as políticas públicas sociais de educação, saúde, trabalho, habitação, saneamento e combate à violência desenvolvidas em cada um dos 93 municípios do estado do Rio de Janeiro. Além disso seriam analisadas também a atuação dos CMDCAs, dos CTs e das instituições não-governamentais de atendimento a este segmento da população.
Desde então vem sendo desenvolvido o "Estudo Sobre as Condições de Vida e Atendimento a Crianças e Adolescentes do Rio de Janeiro" (Cruz Neto, 1993), uma pesquisa técnico-operacional que visa não apenas à configuração da realidade local, mas também à definição de propostas e ações voltadas para a formulação de políticas públicas de atenção a esse público-alvo, posto que são pessoas em desenvolvimento, sujeitos de direitos e cidadãos deste país.
O estudo tem como foco de interesse a realidade específica de cada município, que é analisada pelo exame do conjunto das ações sociais públicas existentes e não através de um estudo por amostragem. Esta opção deve-se às peculiaridades metodológicas do diagnóstico técnico-operacional que o tornam um instrumento capaz de apontar os problemas públicos a serem enfrentados, fornecendo às instâncias competentes, subsídios e diretrizes para a correção, formulação e implementação das políticas públicas voltadas para crianças e jovens.
Neste processo, o ajustamento de conduta aparece como um procedimento jurídico, proposto e conduzido pelo MPRJ, que permite ao Executivo local reconhecer a extensão de suas políticas públicas comprometendo-se a expandi-las, solucionando gradativamente as dificuldades encontradas.
O detalhamento e complexidade deste trabalho revelaram a extrema necessidade da realização de um apurado trabalho de campo, envolvendo entrevistas com os principais atores sociais, governamentais e não governamentais, ligados à implantação e gerenciamento de programas e ações significativas para a qualidade de vida de crianças e adolescentes. Além disso, o correto uso desta técnica de pesquisa propicia a articulação necessária entre as informações recebidas e a observação direta da realidade em seu cotidiano.
Assim, o diagnóstico técnico-operacional deve ser compreendido em sua própria dinâmica de realização e finalidade, uma vez que atende a uma demanda específica; é preparado por uma equipe de especialistas oriundos de diversas áreas do conhecimento; necessita de um processo articulado para obtenção e sistematização dos dados locais com as autoridades e técnicos dos respectivos municípios estudados; valoriza o trabalho de campo como forma de conhecer os espaços, os responsáveis e as políticas implantadas; gera um debate com os diferentes sujeitos das ações empreendidas, permitindo mudanças já no decorrer da pesquisa; deve ser concretizado num prazo de 60 a 90 dias; é datado e localizado, necessitando acompanhamento, monitoramento e atualização constantes; reforça a prioridade e a responsabilidade das diferentes instâncias de poder ao focalizar criticamente a situação da população infanto-juvenil.
Já foram pesquisados 16 municípios e a constatação que surge como relevante e orienta este artigo é que a falta de políticas públicas voltadas para a maioria da população contribui para o declínio da qualidade de vida, podendo ser apontada como expressão fundamental da violência estrutural que, ao gerar e aprofundar a exclusão social, produz situações que propiciam o surgimento de outras formas de violência. No ano de 1998 foi produzida uma análise comparada entre os municípios de Angra dos Reis, Paraty, Resende, Barra Mansa e Rio Claro (Cruz Neto & Moreira, 1998b). Mesmo estando localizados na mesoregião sul-fluminense e sendo de pequeno e médio porte, os resultados confluíram para o descompasso entre as reais necessidades da população e a carência efetiva de ações públicas.
A seguir serão ressaltados alguns aspectos deste estudo relacionados à educação e saúde que, por suas características peculiares, despontam como as necessidades mais vitais para a existência e reprodução do ser humano, seja enquanto indivíduo ou mesmo como espécie. Por articularem os processos biológicos e cognitivos indispensáveis não apenas à preservação da vida, mas à elevação de sua qualidade, consagram-se como direitos básicos do cidadão e, por conseqüência, deveres do Estado, conforme estabelecem os artigos 196, 205 e 206 da Constituição Federal (Lopes, 1996). Ao restringi-los e/ou negá-los à maioria da população, não resolvendo os problemas coletivos, o poder público, além de infringir a legislação, diminui-lhe consideravelmente o número de oportunidades e opções, marginalizando-a do cerne da sociedade, num processo que caracteriza a perpetração da violência estrutural.
O papel da educação no mundo de hoje é indiscutível e as evidências científicas sobre suas contribuições para o desenvolvimento econômico e social do mundo moderno têm sido constantemente apontadas (Sabóia, 1998). O alto grau de desenvolvimento atingido pelos meios de produção da sociedade capitalista deste fim de século exige daqueles que aspiram adentrar e/ou permanecer no mercado de trabalho um leque cada vez mais diversificado de conhecimentos básicos, que inclui até mesmo noções de informática. Diante desta conjuntura, a "teoria do capital humano" (Schultz, 1993) ganhou força - principalmente entre os economistas - e propalou-se ao preconizar que este "saber" só pode ser obtido por meio da educação. Assim ela deve ser compreendida como o veículo primordial para que o indivíduo não seja excluído da competitiva sociedade globalizada e, por conseguinte, orientado de forma técnica para atender às demandas da força de trabalho.
É importante ressaltar que no presente estudo a educação também aparece como fator preponderante na formação do trabalhador, embutindo a perspectiva da redução dos elevados índices de desemprego que assolam o país. No entanto, esta visão não assume, em momento algum, um caráter restritivo, como advoga o Prêmio Nobel de Economia Gary Becker (1997), para o qual o "grande desafio é dar aos alunos habilidades básicas em termos de saber escrever razoavelmente bem, ter certo conhecimento de matemática e computação".
Tratá-la desta maneira "tecnoburocrática" (Gadotti, 1983) significa simplesmente perpetuar o abismo existente entre capital e força de trabalho, atendendo às necessidades de uma elite voraz, que deseja usufruir das "benesses" da globalização. Tal movimento se dá às custas de uma população já tão sofrida, que vê seus anseios serem preteridos por políticas econômicas monetaristas privilegiando o sistema financeiro e procurando criar uma falsa consciência de que a sociedade a ele estaria subordinada. Agindo desta maneira, seus idealizadores encontram "argumentos científicos" e levantam pressupostos técnicos que justificam a redução dos investimentos em educação e saúde.
A educação não deve objetivar apenas uma suposta qualificação do trabalhador. Seu principal papel é constituir-se numa ferramenta que contribua para a formação de uma consciência crítica, capaz de dotar o cidadão de um "saber" que lhe permita ultrapassar as ideologias, conhecer e lutar por seus direitos e superar seus problemas. "Não basta que o cidadão seja visto como credor dos direitos fundamentais apenas por observadores privilegiados. É imprescindível que o próprio destinatário das políticas públicas adquira consciência de suas prerrogativas diante do Estado e da própria sociedade" (Pereira, 1996).
No momento em que as redes públicas de ensino (rede municipal + rede estadual) assumirem este compromisso educacional com a população estarão dando um passo altamente significativo na preparação de indivíduos não apenas para exercer uma atividade laboral, mas para conviver com as distintas manifestações existentes na esfera do trabalho e na sociedade como um todo.
Perseguindo esta perspectiva direciona-se o foco de atenção para os municípios de Angra dos Reis, Paraty, Resende, Rio Claro e Barra Mansa, onde constata-se que, com exceção deste último, as crianças e adolescentes em idade escolar representam mais de 40% da população local, o que indica, de antemão, a necessidade de redes públicas de ensino aptas e estruturadas para atender a demandas desta magnitude. No entanto, o número de alunos por elas atendidos gira em torno de 70% dos componentes do segmento infanto-juvenil, não atingindo a 60% em Barra Mansa e chegando, no máximo, a 78% em Rio Claro. Levando-se em conta que esses municípios possuem uma reduzida rede privada de ensino, que não dispõe de vagas suficientes para atender aos demais jovens e mesmo que isso fosse possível, o baixo poder aquisitivo da maioria da população dificilmente o permitiria, depreende-se que uma considerável parcela de crianças e jovens encontra-se fora da escola.
Esse panorama agrava-se bastante quando o atendimento em creches é enfocado em separado: o número de alunos não atinge sequer a 4% da população de zero a três anos, exceção feita para o município de Rio Claro que mesmo assim conta com parcos 7,5%. A inexistência de uma rede pública de creches atinge de forma mais contundente à população de baixa renda, que não possui recursos para matricular seus filhos em jardins de infância particulares ou simplesmente contratar tutores, babás e empregadas que cuidem deles. As creches não podem mais ser encaradas como apenas uma instituição assistencial, onde os pais e/ou responsáveis que trabalham deixam suas crianças, mas sim como a primeira etapa da educação básica, que tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até os três anos de idade, em seus aspectos físicos, psicológicos, intelectuais e sociais, complementando a ação da família e da comunidade, e que deve ser oferecida, obrigatoriamente, pelo poder público municipal, conforme consagram os artigos 11 e 29 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
Um olhar mais atento nos revela os graves problemas que envolvem a implementação das políticas educacionais nos municípios pesquisados:
os estabelecimentos de ensino são pequenos, a maioria possui apenas uma ou duas salas, contam somente com um ou dois professores e encontram-se em mau estado de conservação e manutenção, sendo que considerável parcela sequer possui esgotamento sanitário. Agravando a situação, eles são mal localizados e concentrados nos distritos sedes dos municípios, o que os torna de difícil acesso para a população que reside nas periferias, não apenas pela distância, mas também por tornar caro o deslocamento até eles, já que o "passe escolar" atende a uma reduzida quantidade de alunos;
raros são os estabelecimentos que dispõem, ao mesmo tempo, de biblioteca, laboratório de ciências, física e informática, televisão, vídeo e antena parabólica; alguns poucos contam com um ou outro de forma isolada e mesmo assim os subutilizam;
as redes de ensino não sabem qual o número de crianças e adolescentes em idade escolar existente em seus respectivos municípios e, por conseguinte, a quantos deixam de atender. O censo escolar, que por seu caráter domiciliar é o instrumento adequado para a obtenção desta informação, ainda não foi realizado;
o ensino especial, que segundo o Artigo 208 III da Constituição Federal (Lopes, 1996) é direito do cidadão portador de deficiência e dever do Estado, atende a um número ínfimo de alunos, sendo que alguns municípios nem sequer o prestam;
o número de funcionários de apoio é reduzidíssimo e mal remunerado. O mesmo verifica-se nos cargos administrativos com o agravante que muitos professores deixam a sala de aula para exercê-los;
o corpo docente é mal remunerado, possui um nível de formação insuficiente e, na maioria das vezes, não é obrigado a se capacitar, especializar e/ou aprimorar. Ao contrário, é incentivado a demitir-se como forma de aliviar os gastos públicos, o que acarreta carência de professores e, inclusive, a suspensão de aulas;
a cultura da repetência é praxe nesses municípios que contam com elevados índices de reprovação, principalmente na 1a, 5a e 6a séries do ensino fundamental, criando grandes disparidades na relação idade/série;
conseqüência direta dos altos índices de reprovação, os índices de evasão assumem patamares elevados no ensino fundamental e também no ensino médio.
Este panorama nada alentador transforma a educação, que deveria ser um direito universal e irrestrito que o Estado tem a obrigação de prover, em um mecanismo restritivo e selecionador, excluindo das salas de aula um contigente de jovens que, quando podem, ingressam de forma precoce, desqualificada e barata no mercado de trabalho. Para muitos nem isso é possível, o que os impele a perambular sem perspectivas pelas ruas, tornando-se alvo preferencial do tráfico de drogas que procura aliciá-los com a promessa de uma vida diferente e perigosa, mas que lhe propiciaria dinheiro, posição social e aventura. De uma forma ou de outra, a qualidade de vida decai, sonhos e aspirações são arquivados e os problemas crescem tão drasticamente que interferem diretamente em sua saúde.
Há de se deixar bem claro que esse raciocínio não é infectado pelo vírus do mecanicismo, nem postula o estabelecimento de uma relação causal entre exclusão social e delinqüência. Agir desta maneira significaria discriminar ainda mais uma parcela já tão estigmatizada da população. O que se pretende demonstrar é que a violência estrutural, neste caso representada pela negação do direito à educação, gera situações de marginalização extremamente perigosas para os cidadãos por ela afetados que, diante de determinados acontecimentos, podem reagir, manifestando novas formas de violência.
Recentes estudos corroboram a interpretação de que ao negar aos cidadãos o direito básico da educação, o Estado intervém negativamente em suas trajetórias, depreciando a qualidade de sua vida:
Garotinho (1997), fundamentado em pesquisas de cunho sociológico e epidemiológico, afirma que os infratores jovens e adultos possuem "baixa, baixíssima escolaridade, pobreza, ausência de perspectiva de mobilidade ascendente, um horizonte sombrio, uma carreira desde cedo comprometida com o mundo da delinqüência, provavelmente sob os olhares estigmatizantes da sociedade, antes mesmo que os atos justificassem a reprovação";
o Levantamento do Primeiro Semestre de 1998, da 2a Vara de Infância e Juventude do Rio de Janeiro (1998) aponta que dos 1.778 adolescentes infratores que por ela passaram, cerca de 58% não tinha completado a 5a série do ensino fundamental;
a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (IBGE, 1995) realizada no Rio de Janeiro, demonstra que das 5.727.638 pessoas de dez anos ou mais que exerciam atividade laboral, apenas 19,16% possui até três anos de estudo, ou seja, não tinham completado nem o 1o grau, sendo que destes últimos, 33,71% ganham até um salário mínimo e somente 5,6% recebiam mais de cinco salários mínimos. No outro extremo da situação, 32% do total de trabalhadores possuía onze anos ou mais de estudo, dos quais 4,03% com renda de até um salário mínimo e 50,22% com mais de cinco salários mínimos;
dados do CIDE (1996) mostram que no Rio de Janeiro o setor ocupacional que mais absorve trabalhadores que estudaram somente até a 4a série é a construção civil. Os que possuíam 2o grau completo, a administração pública, enquanto os que haviam terminado o ensino superior distribuíam-se principalmente pela administração pública, serviços sociais e instituições financeiras;
Cruz Neto e Moreira (1998s), em seu estudo sobre trabalho infanto-juvenil, destacaram que na região da Serrinha, Bahia, a colheita de sisal, do qual o Brasil é o maior exportador do mundo, utiliza em larga escala a mão-de-obra de crianças e adolescentes, que trabalham cerca de dez horas por dia sem qualquer remuneração, ingressando na atividade para aumentar a remuneração do pai que recebe cerca de R$ 35,00 por semana. Enquanto isso a rede pública de ensino registra altíssimos índices de evasão, principalmente no ensino fundamental;
dos 292.141 domicílios sem rede instalada de água do estado do Rio de Janeiro, 56,29% são chefiados por pessoas com no máximo três anos de estudo, enquanto dentre os 81.181 que não possuem instalações sanitárias 62,46% encontra-se na mesma situação (IBGE, 1994).
Apesar de todos os problemas enfrentados, as redes públicas de ensino não devem ser tipificadas meramente como instâncias falidas, pois corre-se o sério risco de que determinados setores das elites econômicas, notadamente os que lucram com a proliferação de creches, colégios e escolas particulares, apoderem-se desta lógica maniqueísta e advoguem o fim das obrigações do Estado para com a educação, deixando-a, também, à mercê do mercado. Esta assertiva não é despropositada e pode ser constatada pela potencialização de um movimento que se volta contra a universidade pública, afirmando que não há sentido na sua gratuidade já que a maioria de seus alunos seria composta por pessoas que poderiam pagar por ela.
Mesmo diante das dificuldades uma considerável parcela dos alunos da rede pública de ensino consegue tirar proveito de sua trajetória escolar. Além disso, determinadas iniciativas compensatórias, levadas a cabo por governantes mais preocupados com seus compromissos com a população, ou pressionados pela sociedade civil organizada, têm demonstrado que se o Estado (em suas diferentes esferas administrativas) investir num processo concreto e contínuo de elaboração, implantação e avaliação das políticas públicas estará desenvolvendo uma importante estratégia de reconhecimento e prevenção à violência estrutural e contribuindo para a melhoria das condições de vida da população.
No que diz respeito aos municípios estudados, pode-se citar como exemplo destas ações o trabalho realizado pelo poder executivo de Angra dos Reis, que vem desenvolvendo o Projeto Mova Angra de alfabetização de jovens e adultos, seguindo o método Paulo Freire; a recuperação paralela como forma de reduzir os índices de reprovação; a implementação do regimento interno das escolas municipais que prevê a eleição direta para diretor de escola, além de uma política de valorização do corpo docente, pagando-lhe salários mais dignos e realizando, duas vezes ao ano, cursos e oficinas de capacitação e aperfeiçoamento. O conjunto destas ações tem gerado resultados positivos que materializam-se na elevação em 106,3% do número de alunos matriculados no período 1989-1996, sendo que no ensino fundamental, este índice atingiu a 495,87%, na redução paulatina das taxas de repetência e evasão e na democratização das relações escola-aluno.
Ampliando a discussão, o outro contraponto a ser focalizado são as políticas públicas de saúde implementadas nos municípios estudados, que também são abordadas enquanto um componente essencial da qualidade de vida. Neste sentido afirma-se logo de início que o poder público deve assumir a proteção, sobrevivência e desenvolvimento das crianças e jovens, tendo por referência os objetivos estabelecidos pela Conferência Internacional Sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994: "promover ao máximo a saúde, o bem-estar e o potencial de todas as crianças, adolescentes e jovens, os quais constituem os futuros recursos humanos do mundo, em consonância com os compromissos assumidos na cúpula mundial para crianças, e de acordo com a convenção sobre os direitos da criança".
Atendo-se aos municípios, cabe ressaltar que um dos principais aspectos a ser explicitado deveria ser o que diz respeito à morbidade e, em especial, àquela ocasionada por violências e acidentes. Entretanto tais informações são difíceis de ser apreendidas, "seja pela escassez de dados, seja pela imprecisão das informações geradas através dos boletins de ocorrências policias, seja pela pouca visibilidade que têm determinados tipos de agravos, ou ainda pela multiplicidade de fatores que envolvem os atos violentos" (Minayo & Souza, 1998).
Dentro desta perspectiva, o presente artigo caminhará para a análise do comportamento de alguns indicadores clássicos da saúde pública, que em sua construção procuram conjugar o levantamento de dados epidemiológicos às condições de vida do segmento populacional pesquisado.
A Taxa de Mortalidade Infantil (TMI) estima o risco de vida que um recém-nascido tem de morrer antes de completar um ano de vida. "Sabe-se que as causas subjacentes desses óbitos estão intimamente vinculados às condições de saúde e nutrição, nível de escolaridade e de vida da mulher e da família, assim como ao processo de atendimento durante a gestação, parto, pós-parto e cuidados imediatos ao recém-nascido. Por essa razão é de vital importância a promoção de intervenções multi-setoriais, dirigidas à melhoria das condições de vida e de saúde das mulheres" (Maranhão et al., 1999).
Investigando a TMI dos cinco municípios estudados a fim de rastrear os problemas públicos que devem ser atacados, constata-se que ela se mantém em patamares elevados, principalmente se comparados a dos chamados "países desenvolvidos". Em todos a primeira causa de óbitos em menores de um ano são as "afecções perinatais", que constituem-se em agravos à saúde em grande parte evitáveis, estando diretamente ligadas à adequada assistência ao pré-natal, parto e neonatal.
Outro importante indicador é a Taxa de Mortalidade Materna (TMM), que mede as mortes ocorridas durante a gravidez, parto e puerpério, por complicações desses estados ou devido a doenças preexistentes e agravadas por eles. Os determinantes deste óbitos são classificados como diretos (os que surgem como complicação do ciclo gravídico-puerperal) e indiretos (doenças preexistentes ou que surgiram durante o ciclo e que são por ele agravadas). No Brasil, a grande maioria das mortes é causada pelas causas diretas que "são, de maneira geral, preveníveis por uma boa assistência pré-natal, ao parto e ao puerpério... estas causas estão na dependência de determinantes... podem ser citados: a condição da mulher na família e na comunidade; condições da família na comunidade e a própria situação da comunidade; o estado de saúde e padrão reprodutivo da mulher... tipos de serviços disponíveis, acessibilidade e usos" (Laurenti, 1995).
Nos municípios pesquisados a TMM enquadra-se na classificação "alta" e "muito alta", que assemelha-se a de países africanos que possuem uma grande quantidade de indivíduos vivendo em situações de extrema pobreza. Note-se que a implantação do Comitê de Mortalidade Materna, que vem sendo apontada pelo Ministério da Saúde como estratégia de redução deste índice só foi constatada em Angra dos Reis.
Permanecendo no campo da mortalidade, torna-se imperioso ressaltar que em todos os municípios as violências e acidentes são as principais causas de óbitos em crianças e adolescentes de 5 a 19 anos, o que retrata como a população infanto-juvenil está sujeita às delinqüências e outros atos violentos.
Todos estes índices são frutos de uma série de problemas ligados à gestão e à estrutura dos serviços, os quais as políticas públicas de saúde destes municípios não vêm sendo capazes de eliminar ou, pelo menos, reduzir. Entre eles os mais patentes são: número insuficiente de pediatras e gineco-obstetras lotados na rede pública; a assistência inadequada ao pré-natal; preenchimento precário do cartão da criança; ausência de prevenção e controle das mortes violentas; inexistência de uma política de recursos humanos; dificuldades para o pleno funcionamento do Conselho Municipal de Saúde; falta de avaliação dos serviços prestados; alto índice de parto cesáreo; desenvolvimento precário das ações de atenção à saúde da criança, da mulher e do adolescente; baixa cobertura vacinal e a falta de aprimoramento do sistema de informação; alto percentual de óbitos em menores de um ano; alto percentual de infecções respiratórias agudas e inexistência do Comitê de Mortalidade Materna.
Situações como as citadas depreciam consideravelmente a qualidade de vida dos cidadãos, em especial daqueles que não têm recursos para pagar caros planos privados, restringindo-lhes um de seus direitos primordiais: "mesmo sem pretender a utopia de um completo bem-estar(...) a mera "ausência de doenças" permanece um sonho distante para a maioria da população brasileira" (Duchiade, 1995).
Esses problemas, aliados à persistência de outros tão ou mais graves, ocasionam inacreditáveis prejuízos às condições de vida dos que por eles são afetados. São eles: descaso das autoridades; cortes no orçamento da saúde; investimentos predominando na medicina curativa em detrimento da preventiva; não implantação ou implementação do SUS; reduzido número de profissionais de saúde ante as demandas da população; baixos salários; profissionais com pouca motivação e formação inadequada; dificuldade de acesso aos serviços, seja por burocracia, localização, falta de material e profissionais; não implementação de programas específicos de atenção à saúde da mulher, da criança e do adolescente; a falta de informação sistematizada e a não implantação dos conselhos municipais de saúde dentro da real perspectiva de controle social.
Apesar da importância, os fatos referidos só ganham notoriedade e se tornam objeto de prioridade dos governantes quando assumem dimensões trágicas e desproporcionais tais como o escândalo dos bancos de sangue, o fechamento do Hospital da Posse e as recentes mortes no Hospital Pedro II. Ao contrário, fatos que ocorrem diariamente como pacientes espalhados pelos corredores; o verdadeiro périplo de adoentados e acidentados a fim de encontrar um hospital que os atenda; aparelhos quebrados; falta de médicos e até mesmo o não atendimento, são banalizados não sendo notícia na mídia e saindo das preocupações dos que dirigem o poder público.
O encaminhamento de formulações de políticas no campo da saúde deve obedecer o princípio de que não se pode desenvolvê-las sem se pensar na sua inserção em políticas sociais mais amplas. Com base neste ideário, a saúde pública, no campo da produção de conhecimentos e da promoção das práticas, dentro de uma abordagem interdisciplinar e multi-setorial, precisa não só incluir na sua agenda as questões centrais aqui discutidas mas, também, se engajar em ações que expressem compromisso com as transformações sociais.
É nesse agir comprometido que a saúde vai estar inserida no contexto das relações entre violência, pobreza e exclusão social, sem ficar na simples medicalização dos corpos e, até mesmo, dos sonhos. A saúde deve ir além. Deve imiscuir-se, juntamente com outros setores, no conjunto das determinações do triste quadro aqui apresentando para que os corpos e sonhos não mais sejam destruídos (Cruz Neto, 1995).
As situações aqui relatadas enquadram-se num contexto em que o poder público negligencia, de forma proposital, o papel social de suas políticas, implementando-as de forma descontínua e aleatória, pensadas de forma improvisada, quase sempre sobre pressão da imprensa e de grupos organizados, não sendo planejadas ou avaliadas. "O caráter assistencialista que preside a lógica de sua aplicação, sendo essencialmente pragmático, não dispensa qualquer valor à produção teórica...o insucesso parcial ou total que tem marcado, entre nós, as políticas sociais demanda uma reflexão que busque o entendimento de suas causas e, principalmente, evite a repetição dos seus efeitos perversos" (Bezerra, 1992).
Frente a esse quadro, a adoção de um processo contínuo e concreto de avaliação das políticas públicas configura-se em um instrumento que se coloca à disposição dos governantes que mantenham um compromisso real com a melhoria das condições de vida da população. Sua capacidade de revelar os motivos que acarretam a ineficiência das ações e programas existentes, bem como os problemas públicos que permanecem inatacados e de apontar estratégias para superá-los, confere-lhe um caráter preventivo no campo da violência estrutural e que pode modificar a qualidade de vida e alterar de forma positiva a relação cidadão-Estado.
Imbuído deste intuito, o diagnóstico técnico-operacional permitiu elencar, de forma avaliativa, as ações do Executivo local frente às carências do segmento infanto-juvenil dos municípios estudados, proporcionando: a) a articulação das diferentes instâncias de poder local envolvidas com crianças e jovens; b) a realização de um debate interno sobre as políticas até então desenvolvidas no contexto municipal; c) decisões do Executivo e da sociedade civil organizada frente a questões que poderiam ser sanadas de forma imediata ainda durante o processo de estudo; d) a visibilidade das políticas orientadas para o segmento infanto-juvenil, destacando as práticas necessárias e as experiências inovadoras; e) a realização do ajustamento de conduta, contemplando as pendências detectadas a fim de serem paulatinamente solucionadas.
Um projeto de sociedade associando desenvolvimento, crescimento da democracia e da justiça social implicaria, de imediato, no deslocamento da reflexão segmentada sobre as distintas áreas setoriais no âmbito das políticas públicas de corte social - saúde, educação - e do cálculo custo-benefício em termos meramente contábeis, para uma formulação mais geral, em que pensar o planejamento social significa pensá-lo no interior daquele projeto. Caso contrário, essas políticas sociais seguiriam condenadas a se traduzirem em ações aleatórias, de baixa eficiência quanto aos seus objetivos definidos, subordinadas à disponibilidade eventual de recursos e sob o império da dicotomia investimento produtivo/investimento improdutivo; público/privado; Estado/mercado (Cohn, 1997).
Conclusão
O estudo das relações entre violência, pobreza e exclusão social demanda necessariamente um olhar sobre o campo das políticas públicas sociais. Neste artigo procuramos demonstrar que a sua ineficiência ou inexistência não está vinculada apenas à incompetência dos governantes, enquadrando-se num contexto muito mais amplo, que envolve uma acirrada disputa de interesses, na qual, via de regra, sobressaem e prevalecem os da elite dominante. Seguindo esta linha de pensamento afirma-se que, ao cercear propositalmente o acesso da maioria da população a seus direitos, o Estado infligi-lhes a violência estrutural, responsável direta pela deterioração e queda das condições de vida, em especial das classes mais pauperizadas.
Há de se ressaltar que as situações, problemas públicos e alternativas de superação apresentadas para os municípios que foram objetos do "Estudo Sobre as Condições de Vida e Atendimento a Crianças e Adolescentes do Estado do Rio de Janeiro" só puderam ser detectados, constatados e analisados a partir de um processo efetivo de avaliação das políticas públicas que, paradoxalmente, não faz parte das preocupações de seus governantes.
Esta prática, negligente e nada salutar para a população, parece estar arraigada à tradição política do país, consagrando uma clivagem entre a formulação das políticas públicas por um lado e sua implementação e avaliação por outro, na qual a ênfase recai sobre a primeira, encarando-se as demais como um conjunto de tarefas de baixa complexidade, acerca das quais as decisões já foram tomadas (Diniz, 1998). Na maioria das vezes esse procedimento possui causas bastante pragmáticas, pois sendo a avaliação uma estratégia de prevenção à violência, sua execução afetará sobremaneira os interesses dos setores sociais privilegiados e, principalmente, daqueles que se locupletam com as benesses do Estado.
Exatamente por isso, a formulação e execução das políticas sociais geralmente estão carregadas de vícios e omissões, envolvidas por uma rede burocrática e federalmente centralizada, que apresenta uma indefinição de responsabilidades e distanciamento da participação popular. A própria definição da problemática social a ser solucionada e os meios a serem utilizados, por si só, suscitam confrontos. Na área da criança e do adolescente, por exemplo, o ECA representa uma grande conquista, no entanto, conquista maior é o seu cumprimento pela sociedade (Cruz Neto, 1995).
É preciso ter claro, a partir da realidade brasileira, que pobreza, miséria e desigualdade não explicam a delinqüência, mas sendo produtos de um determinado tipo de violência - a estrutural - constituem espaço privilegiado ao desenvolvimento de outras manifestações correlatas.
O conjunto de elementos que configura a violência estrutural das desigualdades legitimadas é o patamar básico a partir do qual se estabelecem os mecanismos de dominação: expressão relacional da violência aberta e simbólica. Na medida em que os grupos dominantes legitimam as desigualdades, através de coerções físicas e psicológicas, instituem um não lugar social, onde os não cidadãos disputam fragmentos de um espaço de expressão, inclusive através da delinqüência. Não se deve admirar, portanto, que os pobres-negros-jovens (e mais fortemente uma pessoa articulando os três atributos) sejam escolhidos como "criminosos preferenciais". Quando se olha, porém, o "avesso da coisa", são, antes de tudo, "vítimas preferenciais" de uma sociedade onde a ordem de progresso é a concentração de rendas e a exclusão de grupos.
Diante das massas de excluídos, mesmo considerando a banalização das diferentes formas de violência, as questões sociais demandam reflexão e ação frente às suas diferentes necessidades. Evitar o acirramento das questões sociais é tarefa e desafio de todos os setores da sociedade envolvidos na construção da democracia como um valor humano de garantia universal de direitos sociais, políticos e jurídicos. Tal empreitada, no entanto, necessita rever as práticas do passado e do presente, que estão impregnadas do assistencialismo e do clientelismo que têm como pressuposto a manutenção do status quo.
Fala-se muito sobre o "social" e sobre os desamparados da complexa vida de poder da sociedade, mas as ações que visam a melhoria da qualidade de vida, quando existem, são isoladas e, no máximo, paliativas. Torna-se urgente a adoção de um conjunto de ações concretas e reais para atacar as raízes da desigualdade, da exclusão e dos conflitos sociais, que sejam submetidas a um intermitente processo de avaliação capaz de fornecer os subsídios e indicadores necessários para a sua continuidade, revisão crítica e revigoração.
A realização dessas políticas deve atingir os problemas públicos mais expressivos da sociedade, tanto nos níveis macro como micro econômicos. A ênfase deve recair nas chamadas políticas preventivas e redistibutivas, sem perder de vista as políticas compensatórias, sobretudo para grupos e situações particulares ou às vezes emergenciais. Como enfatiza o Relatório Nacional Brasileiro para Cúpula Mundial para o Desenvolvimento (Brasil, 1995): "promover uma política social significa retirar 42 milhões de pessoas da pobreza e 16 milhões da indigência."
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Ago 2006 -
Data do Fascículo
1999