DEBATEDORES DISCUSSANTS
Enfrentando a globalização: construindo o novo, muito além dos protestos
Challenging globalization: building the new era beyond protests
Lilian Vieira Magalhães
Pontifícia Universidade Católica de Campinas. lilianvm@terra.com.br
A gestação do novo, na história, dá-se, freqüentemente, de modo quase imperceptível para os contemporâneos, já que suas sementes começam a se impor quando ainda o velho é quantitativamente dominante. É exatamente por isso que a "qualidade" do novo pode passar despercebida (Milton Santos, 2000).
A análise proposta pelos autores oferece excelente oportunidade para aprofundar um daqueles temas sobre os quais todos temos, de um jeito ou de outro, uma posição, até porque estamos todos submetidos aos seus efeitos, seja no plano das nossas vidas cotidianas, seja porque o espaço acadêmico tem constituído um espaço privilegiado para a sua legitimação/questionamento.
O artigo propõe uma discussão do impacto da chamada globalização por cima, delineando suas formas de difusão e sublinhando seus impactos perversos. A partir dessa análise, o estudo se propõe a identificar eventuais movimentos de resistência ao referido modelo, buscando alternativas ao aprofundamento das desigualdades geradas nesse processo.
Seguindo o eixo de análise proposto pelos autores, a primeira observação que me parece oportuna diz respeito à necessidade de um maior detalhamento da própria noção de globalização, a partir de sua contextualização histórica.
Conforme nos mostra Arrighi (2003), há pelo menos três outros períodos de globalização política e econômica no último milênio: o Império Mongol no século 13, a expansão militar e comercial européia que ligou o Oceano Índico ao Caribe no século 16, e o impulso imperialista europeu do século 19, que colocou 4/5 dos territórios mundiais sob seu domínio.
No entanto, é forçoso reconhecer que a presente onda contém um elemento inovador que exige reflexão, pois, ao transpor os limites puramente econômicos para se tornar um dogma atemporal, a globalização contemporânea aponta, de fato, para uma economização e monetarização da vida pessoal e social sem precedentes (Santos, 2000).
É justamente a sujeição dos corpos-mentes tornados coisa no "novo" mercado transnacional que me importa enfatizar, dados os persistentes e cruéis desdobramentos que o fenômeno opera, forjando novos paradigmas para a saúde, recriando a própria noção de qualidade de vida e, por fim, reorientando os papéis da ciência e da técnica num esforço de disseminação desse sistema, para ficar só nos estritos domínios do setor saúde.
A vida coisificada, vista exclusivamente em seu aspecto material (econômico), suprime em primeira instância a noção de diversidade e soberania, justificando a necessidade de padronização e controle de cima para baixo. Esta imposição de comportamentos, valores e modelos conduz à intolerância e ao arbítrio, dando suporte a práticas violentas, discriminatórias e regressivas que podem ser identificadas, por exemplo, nas políticas antiimigração atualmente praticadas por diversos países ricos. Ou nos sistemas de opressão que constituem os racismos de várias naturezas ainda presentes na "ordem" internacional contemporânea.
A deterioração dos hábitos alimentares, dos estilos de vida, dos comportamentos e dos modos de trabalhar, aliada às dificuldades de acesso a medicamentos e cuidados de saúde, constitui outra face do acirramento das desigualdades (Buss, 2002; Loewenson, 2001). Mas constitui, sobretudo, um processo de massificação de comportamentos e valores que confronta a idéia de diversidade apesar da aparência mundializante, chegando a ser recebida pelos chamados globalistas (Lucchese, 2003) com extremo otimismo.
Ora, é exatamente nesse contexto aparentemente inexorável que os autores do artigo situam a emergência de sinais de resistência. O texto apresenta então uma ampla gama de frentes de luta nas quais se reconhece a construção de alternativas à globalização corporativa. Isto, segundo os autores, demonstraria a emergência de um novo "superpoder" global que seria a prova de vitalidade de uma agenda democrática e pacifista, indicativa do confronto entre dois grandes blocos de forças.
No entanto, dados os limites de espaço deste comentário, eu me limitarei a destacar apenas uma das contradições emergentes nesta arena, em função da abrangência do tema.
Trata-se do debate exemplarmente desenvolvido por Arrighi (2003), ao descrever a chamada Economia Política dos Sistemas Mundo, segundo o qual estaríamos vivendo um processo de transição entre "as antigas vantagens que sustentam a hegemonia do Ocidente" para "um retorno ao balanço relativo dos centros múltiplos exibidos no sistema mundial do século 12". Isto em resposta ao recente fortalecimento econômico de estados muito distantes dos centros hegemônicos do Ocidente, como o que se observa na Ásia Oriental atualmente. Assim, embora concentrando um inegável poderio militar, os estados ocidentais não contam com recursos humanos ou financeiros para centralizar um poder global. Tensão que pode ser resumida nos seguintes termos: Será que muitos dos problemas enfrentados pelos Estados Unidos não decorrem do fato de que, diferentemente da Grã-Bretanha na onda de globalização do século 19, os EUA não dispõem de um Império Indiano para cobrir seus déficits no balanço de pagamentos e para fornecer a mão-de-obra militar de que necessita para policiar o mundo? (Arrighi, 2003).
Ora, este aspecto, que denota a constante crise e instabilidade no sistema, não deixa de existir, em outras bases, também no interior dos próprios movimentos antiglobalizantes.
Chamo a atenção aqui para a instigante análise sobre a Conferência Mundial sobre o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em 2001, na África do Sul (Blackwell & Naber, 2002). As autoras mostram que aquele encontro reiterou a dependência entre globalização neoliberal e estratificação racial, discriminação sexual e exploração de classe. Entretanto, as autoras assinalam a multiplicidade de arenas e relações de poder no interior do encontro, que ultrapassaram largamente as esferas comerciais e macropolíticas para criar ruídos que perpassaram a própria articulação dos movimentos sociais, porque estes, via de regra, reproduzem a estrutura mesma das sociedades contemporâneas, notadamente no que diz respeito ao confronto ocidente versus oriente.
Assim, os movimentos antiglobalizantes estão, eles próprios, submetidos às tensões culturais, religiosas, filosóficas que têm sido duramente atingidas pela chamada globalização liberal. Fica evidente, então, que o jogo de forças é ainda extremamente duvidoso e intrincado e que a balança penderá, historicamente, para os que forem capazes de agregar respeito à diversidade, tolerância e solidariedade em escala planetária. Em termos históricos trata-se, certamente, de um desafio inteiramente novo.
Referências bibliográficas
Arrighi G 2003. Globalização e macrossociologia histórica. Revista de Sociologia e Política 20:13-23
Blackwell M & Naber N 2002. Interseccionalidade em uma era de globalização. Revista Estudos Feministas 10(1):190
Buss PM 2002. Globalização e doença: num mundo desigual, saúde desigual! Cadernos de Saúde Pública 18(6) nov-dez.
Loewenson R 2001. Globalization and occupational health: a perspective from Southern África. Bulletin of the World Health Organization 79(9):863-868.
Lucchese G 2001. A internacionalização da regulamentação sanitária. Ciência & Saúde Coletiva 8(2):537-555
Santos M 2000. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Record, Rio de Janeiro.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Fev 2004 -
Data do Fascículo
2003