Acessibilidade / Reportar erro

A utilização da noção de eqüidade na alocação de recursos em tempos do pensamento (neo)liberal: anotações para o debate

The equity utlilisation for money in (neo)liberal era: notes for discussion

DEBATEDORES DISCUSSANTS

A utilização da noção de eqüidade na alocação de recursos em tempos do pensamento (neo)liberal: anotações para o debate

The equity utlilisation for money in (neo)liberal era: notes for discussion

Paulo Eduardo Elias

Departamento de Medicina Preventiva. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Artigo de interesse por tratar de um tema bastante presente no debate internacional, derivado especialmente dos países do capitalismo central e estimulado pelas agências multilaterais. Ademais, trata de uma discussão sobre situação concreta na qual, à época, o gestor estadual da saúde apresentava-se em disputa política com o gestor federal no debate sobre a condução do SUS, em que se sobressaía justamente os aspectos relacionados ao financiamento da saúde no País, e os critérios para a distribuição do recurso financeiro, matéria esta recorrente pela corrente municipalista da Reforma Sanitária Brasileira.

As autoras têm razão ao apontar a relevância da discussão sobre o tema a partir da excelente e aplicada revisão da literatura internacional, ainda que desprovida de qualquer assinalamento sobre o significado político do debate e das ações implementadas em diversos países. No entanto, contrariamente à situação tratada no artigo, na maioria dos países apontados, o debate se apresenta de modo substantivo por envolver aportes financeiros minimamente adequados aos fins pretendidos, sobressaindo a preocupação com os resultados e não meramente com o processo em si.

O financiamento da saúde requer patamares mínimos de recursos para se conciliar com o objetivo da eficácia social dos serviços prestados. E como apresentado fartamente pela literatura nacional e no mundo da política, o quadro do financiamento, ainda que tenha avançado na última década, configura-se por vários ângulos bastante desfavorável ao SUS. No tocante ao equilíbrio do volume de recursos, a participação de Estados e municípios mostra-se deficitária mesmo considerando-se o grande esforço orçamentário de muitos representantes destes entes federados, uma vez que a União responde por cerca de 60% do financiamento destinado ao SUS. Mesmo com a adoção plena da Ementa Constitucional 29, fato que hoje não ocorre em boa parte dos Estados e em menor escala nos municípios, o montante total de recursos alocados na saúde se mostra insuficiente diante das necessidades derivadas do projeto contemplado pela Constituição, isto é, a construção de um sistema de saúde universal e igualitário num país de grande extensão territorial e porte populacional. Esta tarefa, que por si exige grande competência, trabalho contínuo e persistente, se transforma em enorme desafio ao se considerar o grau de desigualdade social a que a população está submetida e a inserção econômica do País na periferia do capitalismo.

Deste modo, a situação trazida pelo artigo chama a atenção ao não precisar os valores efetivamente transferidos aos municípios, situando-os entre R$186,34 e R$1,60. Não obstante, tomando-se o que seria o valor médio a ser transferido para o conjunto dos municípios se a distribuição fosse igualitária, denota a inexpressividade do valor envolvido na transferência, isto é, apenas R$6,44 per capita/ano ou R$0,54/ mês, muito longe de contribuir para o encaminhamento ou produzir algum impacto duradouro na assistência à saúde da população, mesmo na atenção básica para o conjunto dos gaúchos, como se espera da preocupação da esfera estadual de gestão. Muitos dirão que este valor mesmo extremamente insuficiente é melhor que nada e, à primeira vista, relativamente ao não repasse, não há como discordar dessa asserção. Mas o aspecto central está longe de se configurar como este, ainda que com muita freqüência ele seja argüido como nuclear no discurso de um determinado pensamento dominante na saúde que concebe os meios desvinculados dos fins. Quanto a este aspecto, vale notar que os meios se qualificam por referência às finalidades e não por si mesmos. E justamente quanto aos fins o artigo e o processo nele tratado são silentes, a meu juízo, em parte pela diminuta expressão do repasse realizado, mas não só. Vejamos este aspecto mais detalhadamente a partir das indagações suscitadas por este trabalho.

A questão de fundo no debate apresentado se refere ao surrado, mas ainda não superado, tema da descentralização, este também colocado em pauta no debate internacional em meados da década de 1970, com o mesmo apoio de agências multilaterais e de governos de países industrializados como a Inglaterra, concomitante à ascensão do predomínio do pensamento liberal na formulação das políticas econômicas. Mais recentemente, a ele se agregou o tema da eqüidade que, tomado em certa vertente com propósito de "domesticar" a força do conceito originário, vem ganhando espaço e fôlego a partir dos anos 90, impulsionado pelas mesmas forças e instituições que vem pautando o debate no campo da saúde em escala global. Portanto, do ponto de vista teórico conceitual, trata-se da relação ou articulação entre descentralização e eqüidade que merece ser analisada.

A qualificação da descentralização está vinculada à concretude da sua realização. Nesse sentido, tanto a descentralização como a centralização só ganham substância analítica a partir das condições objetivas em que se implementam. Em conseqüência, os elementos mais relevantes para a análise deixam de ser os princípios e as diretrizes da descentralização, mas sim as condições sociopolíticas dadas para a sua implementação (Bobbio,1993). Assim, a descentralização não adquire concretude simplesmente a partir do enunciado de seu ideário, mas somente vem a obtê-la a partir da interação com as condições políticas e sociais em que se realiza, estas, em última instância, as determinantes da sua configuração. Em outros termos, a descentralização nada molda, antes se amolda à realidade histórica determinante da sua implementação.

O tipo de descentralização fundada exclusivamente na égide da razão financeira tende a focalizar e pulverizar os problemas sociais a serem enfrentados e, deste modo, termina por subordinar a dimensão política à lógica operativa do argumento financeiro num movimento de imposição da hegemonia da dimensão técnica sobre as demais, com o agravante de que dada a própria natureza da racionalidade técnica ela opera através da fragmentação e atomização dos problemas. Ademais disto, a racionalidade técnica enfatiza sobremaneira os resultados a serem alcançados segundo parâmetros de eficácia exclusivamente técnicos, o que nem sempre coincide com a de natureza social, esta última balizada por outros padrões, dentre eles a capacidade de responder adequadamente às expectativas de atendimento geradas na sociedade.

Por outro lado, a descentralização coloca uma maior exigência sobre o poder local em relação ao financiamento dos serviços de saúde e aos modelos de atenção à saúde, requerendo um grau mínimo de competência técnica e política da esfera local como um requisito para que ocorra uma descentralização efetiva. Acontece que nem sempre as autoridades locais têm maior clareza sobre essas questões, e com freqüência o nível local pode estar sob o controle de oligarquias políticas. Assim, há que se indagar sobre a capacitação técnica da esfera local para exercer as atribuições que lhe são conferidas, ao se pretender uma descentralização que preserve um mínimo de eficácia social, isto é, que responda de modo socialmente competente às demandas da população.

Em relação à eqüidade, uma rápida revisão na literatura sobre o termo revela a particularidade como ele vem sendo tomado na área da saúde, muitas vezes recebendo um tratamento econométrico ao se tentar qualificá-lo. No entanto, este termo tomado como conceito não se presta a essas medições. Ao se consultar a produção da área de ciências humanas fica mais notável o contraste entre os dois tipos de abordagem. Há também a se considerar que o conceito de eqüidade não é bem estabelecido e, portanto, torna-se de difícil operacionalização. Vale destacar que conceitos são recursos de difícil operacionalização, pois como tais constituem elementos do mundo das idéias e não do das coisas e, no caso do conceito de eqüidade, há dificuldades adicionais ao se intentar sua operosidade.

Na tradição filosófica, o conceito clássico, tal qual esclarecido por Aristóteles e reconhecido pelos juristas romanos, o sentido indica o apelo à justiça quando voltado à correção da lei em que se exprime a justiça. Diz Aristóteles que a própria natureza da eqüidade é a retificação da Lei onde esta se revela insuficiente pelo seu caráter universal. A lei tem necessariamente caráter geral, por isso revela-se às vezes de aplicação imperfeita ou difícil em casos particulares.

Nestes casos, isto é, nos particulares, a eqüidade intervém para julgar, não na base da lei, mas na base da justiça que a mesma lei deve realizar. Portanto, segundo Aristóteles, o justo e o eqüitativo são a mesma coisa, podendo se inferir que o eqüitativo é superior, não ao justo em si, mas ao justo formulado em uma lei que em virtude da sua universalidade está sujeita ao erro.

Na tradição filosófica moderna, fundamentando-se em conceito análogo ao aristotélico, Kant considerava, todavia, que a eqüidade não se presta a uma autêntica reivindicação jurídica e que, portanto, cabe não aos tribunais, mas ao tribunal da consciência. Nota-se, a gênese da eqüidade como questão jurídica e posteriormente conceituada como uma questão moral.

Numa e em outra situação, os desdobramentos e as repercussões para a área da saúde são de grande monta. Deste modo, são perfeitamente inteligíveis as deficiências em relação aos marcos conceituais da eqüidade referida à área da saúde. Não se pretende justificar pelas deficiências teórico-conceituais o impedimento a que seja adotada como noção orientadora, como norte a ser seguido nas políticas de saúde e na prática dos serviços.

De certo modo, a noção de eqüidade se associa de modo diverso à igualdade e, sobretudo, à justiça, no sentido de propiciar a correção daquilo em que a igualdade agride e, portanto, naquilo que a justiça deve realizar. Tomada neste sentido, a eqüidade requer a igualdade para produzir efeitos, pois se constitui justamente em corretora da situação igualdade, na medida em que a adoção deste recurso se revele imperfeita diante dos objetivos da promoção de justiça. Vale destacar que a descentralização exige, como fundamento, a igualdade entre os entes destinatários da ação descentralizadora.

Por esta linha de pensamento, conclui-se pelo questionamento do uso da noção de eqüidade no presente artigo, por duas ordens de razões mais imediatas, dentre outras. A primeira diz respeito ao requisito da justiça, isto é, a que situação de igualdade se aplica a eqüidade para se obter a justiça. O argumento do porte populacional do município é completamente insuficiente para produzir este efeito e, na linha da melhor tradição dos sistemas universais como se pretende o SUS, caberia recuperar o argumento do acesso igualitário aos serviços e ações de saúde o que está muito além de ser equacionado apenas pela alocação diferenciada de recursos e, muito menos, pelo diferencial per capita a ser transferido aos municípios. A segunda razão, conexa a esta, apela para a inadequação da redução da noção de eqüidade a expressões de base matemática para a alocação de recursos financeiros, por mais engenhosas que elas possam se constituir. Claro está que não se obsta a expressão em si, mas a sua qualificação como expressão de eqüidade; e não apenas por justificativas conceituais, mas sobretudo pelas de ordem política no sentido da banalização da noção da eqüidade e de seu (re)ordenamento no sentido da perda de intensidade da noção original e sua adequação aos marcos do debate pautado pelo interesse ideológico expresso pelo pensamento (neo)liberal dominante desde o final do século 20 e corrente em certos setores do pensamento da saúde.

A mesma linha de argüição se aplica ao famigerado artigo 35 da Lei Orgânica da Saúde. Sobre essa Lei cabe advertir as reações de alguns autores no sentido de identificarem vários de seus dispositivos como constituindo obstáculos para a implementação de um real processo de descentralização na saúde. Segundo Vianna (1991), sob inspiração do projeto encaminhado pelo Poder Executivo, o Congresso legitimou um extenso conjunto de regras, de cunho centralizador em inúmeros pontos, e que violam a autonomia estadual e municipal, e complementa: vários dispositivos da Lei 8.080/90 (e da Lei 8.142/90) restringem o princípio constitucional de descentralização.

No que toca ao artigo 35, a dificuldade em regulamentá-lo se deve às razões de ordem técnica, sobretudo em relação à inclusão de critérios epidemiológicos na condição de discernimento para o cálculo das transferências financeiras. Ocorre que os indicadores epidemiológicos não se prestam para fins de discriminação em situações que exigem decisões políticas prévias, como a que trata o artigo em tela, dado que estes indicadores servem apenas para a caracterização da situação de saúde das populações sem, contudo expressar qualquer juízo de valor sobre a mesma para fins de repartição dos recursos financeiros. Em outras palavras, dadas as suas próprias características, os critérios epidemiológicos (Mendes Gonçalves, 1994) se adéquam estritamente para apontar as necessidades de atenção à saúde segundo parâmetros da morbi-mortalidade populacionais, ou no jargão do Planejamento em Saúde a definição da situação de saúde da população, e não como critério de escolha entre duas ou mais situações para o estabelecimento de prioridades na alocação de recursos. Estas dependem, sobretudo de diretrizes prévias que devem ser estabelecidas por um processo de negociação política que implique a representação dos interesses das distintas esferas de governo.

Por fim, é estimulante perceber o compromisso político e social com a construção de um sistema de saúde fundado no primado da justiça e preocupado com a desigualdade social, ainda que os percalços neste caminhar sejam inúmeros, a apontar os desafios teórico-conceituais e para as práticas colocados para os centros produtores de conhecimentos e os gestores da saúde. A construção de um sistema de saúde como o SUS na periferia do capitalismo e em países com a dimensão e grau de desigualdade como vigente no Brasil, não se constitui em linha reta, mas supõe idas e vindas com inúmeras tentativas como a apresentada neste artigo. No entanto, a consecução final deste escopo exige de um lado uma postura crítica comprometida com os interesses dos socialmente excluídos e a de outro a formulação e implementação de políticas de Estado para cristalizar e ampliar os caminhos para a efetivação da eficácia social do sistema de saúde.

Referências bibliográficas

Mendes Gonçalves RB 1994. Tecnologia e organização social das práticas de saúde. Hucitec-Abrasco, São Paulo-Rio de Janeiro.

Abbagnano N 1970. Dicionário de Filosofia. Editora Mestre Jou, São Paulo.

Berlinguer G 2004. Bioética cotidiana. Editora Universidade de Brasília.

Bobbio N 1993. Dicionário de Política. (5ª ed.). Editora Universidade de Brasília.

Borja J 1987. Descentralización del Estado y democracia local, pp. 21-36. In J Borja J. Manual de Gestión Municipal Democrática. Instituto de Estudos de Administración Local, Madri.

Tobar F 1991. O conceito de descentralização: usos e abusos. Plan. Pol. Pub. 5:31-51.

Vianna SM, Piola SF, Guerra AJ & Camargo SF 1991. O financiamento da descentralização dos serviços de saúde: critérios para transferências de recursos federais para estados e municípios. Ipea, Brasília. (Documento de Política/n. 3).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Abr 2005
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br