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Interfaces entre a gestão do SUS e a regulação de planos privados de saúde

Interfaces between the management of the Unified Health System and the regulation of private health plans

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Interfaces entre a gestão do SUS e a regulação de planos privados de saúde

Interfaces between the management of the Unified Health System and the regulation of private health plans

Silvio Fernandes da Silva

CONASEMS. silviof@sercomtel.com.br

A leitura do artigo de Ligia Bahia, "A unificação do sistema público e a expansão do segmento suplementar: as contradições entre o SUS universal e as transferências de recursos públicos para os planos e seguros privados de saúde ", proporciona ao leitor uma análise ao mesmo tempo abrangente e aprofundada a respeito do financiamento e da regulação estatal sobre o segmento privado da saúde.

Partindo da constatação que esse segmento vem apresentando lucro nos últimos nove anos e em um cenário no qual se vislumbra prolongada estabilidade, o artigo procura romper com reducionismos e explicações simplificadas sobre esse fato. Critica pressupostos que atribuem à mera exploração de um mercado de consumidores individuais como causa da situação favorável observada. Informa sobre os reajustes mais elevados durante o governo Lula do que no período anterior. Refere-se aos ganhos de escala propiciados pela aquisição de empresas menores pelas de maior porte e à introdução de medidas de gerenciamento na oferta e utilização dos serviços para reduzir custos, mas, considerando esses fatos insuficientes para explicar os bons ventos observados para o setor, deixa uma pergunta: como explicar que em uma conjuntura de baixo crescimento econômico o subsistema privado esteja tendo boa performance?

Construída a tese de que a elevação dos subsídios públicos está sendo estratégica para esse crescimento, a autora, de forma consistente, critica "discursos" pouco reflexivos que analisam essa conjuntura e abordagens acadêmicas insuficientes para abranger em sua totalidade a compreensão desse objeto, restritas à modelagem microeconômica, notadamente quando se trata de compreender temas relacionados à regulação estatal e às relações entre o público e o privado.

Finalmente, diante desse quadro, refere-se à falta de indignação com a assimetria de cobertura observada no sistema de saúde brasileiro, que fica "naturalizada", à redução do script do Estado, que assume papel de mero coadjuvante, intermediador de conflitos ou mero comprador de serviços, e à sofisticação do aparato jurídico-legal que sanciona o aporte de recursos públicos para os planos de saúde. Esses constituiriam sintomas de certo desencanto com o SUS universal e de qualidade.

Minha contribuição ao debate está centrada nesses últimos pontos, em especial no tocante à relação entre a gestão do SUS e os planos privados de saúde. As contradições observadas nos dezenove anos de implementação do SUS, considerando que seu início se deu a partir da Constituição de 1988, são bem evidenciadas nas reflexões suscitadas pelo artigo, sendo oportuna uma referência à história da regulação do segmento assistencial privado para analisar o quadro atual.

Desde o final da década de 1980, e mesmo na seguinte, após a consolidação do direito universal à saúde, paradoxalmente à ampliação do acesso, que se tornou constitucionalmente universal, ocorreu expressiva redução da oferta assistencial pública nas atenções básica, de média e de alta complexidade, como constataram autores como Mendes1, Paim2, entre outros. Essa redução teve, por um lado, aspectos positivos ao afastar do sistema público hospitais e serviços ambulatoriais de baixa qualidade que compunham o modelo centrado em hospitais e médicos, da época. Por outro, no entanto, foi também uma fuga de bons serviços hospitalares e ambulatoriais de maior complexidade, afugentados pelos valores inadequados de remuneração decorrentes do não reajuste da tabela do SUS em época de hiperinflação.

Essa situação ampliou as lacunas na assistência do SUS " constituindo uma espécie de "herança" do modelo anterior " e contribuiu para o crescimento do subsistema privado de saúde, que passou a agregar camadas médias e operariado mais qualificado, no fenômeno que foi chamado por Favaret Filho & Oliveira (apud Mendes1) de "universalização excludente". Ou seja, o SUS incorpora os segmentos mais carentes e "expulsa" as camadas mais privilegiadas para o subsistema privado, reforçando com isso a noção de que o sistema público é uma "medicina simplificada para pobres".

Complicando esse quadro, a regulação deficiente da gestão do SUS contribuía para que o sistema privado contratado não tivesse dificuldade de selecionar doenças e "clientes", e planos de saúde transferissem para o subsistema público usuários que não lhes interessava atender. Ou seja, a inclusão propiciada pelo SUS dos "excluídos da saúde", à época milhões de desempregados que eram até então tratados como indigentes, e trabalhadores rurais, não se dá em uma condição de cidadania plena. O acesso passa a ser universal, mas a oferta assistencial pública é insuficiente, mal regulada, sujeita a privilégios de porta de entrada e pagamentos "por fora" para conseguir atendimento, entre outras distorções3.

A reorganização gradativa da porta de entrada dos sistemas municipais de saúde, com ampliação do número de unidades básicas e criação de instâncias de regulação descentralizadas mais preparadas nas secretarias estaduais de saúde e municípios maiores, reduz um pouco dessas distorções. Os serviços de auditoria e controle das gestões descentralizadas deveriam, em tese, entre suas demais finalidades, impedir que usuários do subsistema privado furassem filas, entrando na frente de usuários do SUS para procedimentos mais complexos, ou fossem vítimas de cobranças indevidas, complementando "por fora" o que o SUS pagava, por parte de médicos e de hospitais.

Esses serviços de controle atingiram parte do seu objetivo, mas a oferta assistencial continuou distorcida e lacunas na assistência persistiram. As distorções que se acumularam na tabela do SUS ao longo dos anos, em decorrência de pressões de sociedades de especialidades médicas e de empresários do ramo, e critérios mal elaborados de correção dos valores de procedimentos por parte do Ministério da Saúde, mantiveram a seleção na oferta pela rede contratada privada. Em outras palavras, realizavam procedimentos que pagavam melhor, deixando de lado outros, que eram freqüentemente encaminhados para hospitais públicos.

Para suprir as lacunas assistenciais que se criaram diante dessa situação, os gestores, ao ficarem reféns de prestadores de serviço, passaram a complementar os valores da tabela do SUS. Outras alternativas encontradas foram se associar em consórcios intermunicipais de saúde para ampliar a oferta em média complexidade ou ainda criar serviços próprios, muitas vezes ineficientes por não atenderem critérios básicos de economia de escala para suas implantações. Estudos sobre inovações nos modelos gerenciais e assistenciais dos sistemas municipais de saúde acontecidos nos últimos doze anos mostram não haver uniformidade sobre isso. Aquelas gestões descentralizadas que foram conduzidas com visão estratégica, contemplando o interesse público, construíram boa governabilidade para suas ações, se adaptaram melhor e desenvolveram boas inovações no modelo de saúde, ao passo que outras, no pólo oposto, tiveram grandes dificuldades.

Independentemente, no entanto, da forma como passa a ser exercido esse controle, como bem aponta a autora, sofisticam-se as formas e o aparato jurídico-legal que sanciona aporte de recursos públicos para os planos de saúde. O privilegiamento da clientela do subsistema privado para o acesso aos serviços públicos, driblando normas do sistema, tais como internar pelos pronto-socorros casos eletivos que deveriam ter passado antes pelas unidades básicas de saúde, é uma realidade. Além desse tipo de irregularidade, existem outras formas associadas à transferência de recursos públicos para o subsistema privado e sobre isso destaco duas com mais interface com a gestão do SUS.

A primeira referente às restrições na cobertura dos planos de saúde privados. Como bem mostra Scheffer4, as exclusões de cobertura assistencial constituem as demandas judiciais e de órgãos de defesa do consumidor mais comuns dos usuários desses planos, e, salienta o autor, "é possível supor que uma grande fatia deste mercado sobrevive à custa das restrições praticadas e de conseqüente subsídio do Sistema Único de Saúde". As negativas de atendimento por parte dos planos de saúde ocasionam conflitos não só entre o usuário e o seu plano, mas também entre o usuário do plano, o prestador de serviços e o gestor do SUS. A pintura desse quadro mostra, em geral, pacientes dentro de UTIs, em macas de pronto-socorros, em entradas de centros cirúrgicos e, não raro, com interferência de Ministério Público ou mandados judiciais. As decisões de autorizar ou não a transferência de um usuário de um plano de saúde para o SUS não são tão simples diante dessas situações.

A segunda relaciona-se aos subsídios públicos que os prestadores privados contratados filantrópicos conveniados do SUS recebem tanto nas formas de renúncia fiscal, já bem conhecida, como para investimentos em infra-estrutura e equipamentos e para custeio da assistência. Como os serviços contratados atendem usuários do SUS e dos planos de saúde, essa é uma forma de transferência que pode representar um montante significativo, nem sempre considerado pelos prestadores de serviço quando reivindicam reajustes nas tabelas do SUS.

Como propõe a autora, é preciso elaborar uma agenda de pesquisas que amplie o conhecimento sobre essas interfaces e, também, em suma, sobre as múltiplas relações que se estabelecem entre o setor público e os planos e seguros privados. Isso poderia permitir vislumbrar formas mais adequadas de regulação estatal sobre o sistema de saúde, reduzindo a fragmentação existente e avançando, como propõe a autora, na construção do SUS universal e de qualidade.

  • 1. Mendes EV. As políticas de saúde no Brasil nos anos 80. In: Mendes EV, organizador. Distrito sanitário: o processo social de mudança das práticas sanitárias do sistema único de saúde São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco; 1993.
  • 2. Paim JS. Políticas de descentralização e atenção primária à saúde. In: Rouquayrol MA, Naomar FA. Epidemiologia & saúde 5Ş ed. Rio de Janeiro: Medsi;1999.
  • 3. Silva SF. Municipalização da saúde e poder local: sujeitos, atores e políticas São Paulo: Hucitec; 2001.
  • 4. Scheffer M. A exclusão de coberturas assistenciais nos planos de saúde. Saúde em Debate 2007; 29(71): 231-247.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2008
  • Data do Fascículo
    Out 2008
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