RESENHAS BOOK REVIEWS
Mônica de Castro Maia Senna
Universidade Federal Fluminense
Costa EA, organizadora. Vigilância sanitária: desvendando o enigma. Salvador: EdUFBA; 2008. 180 p.
A vigilância sanitária é uma das mais antigas práticas de Saúde Pública do mundo moderno e suas ações estão historicamente associadas ao processo de regulação, monitoramento e fiscalização de produtos e serviços, com a finalidade de prevenir e reduzir os riscos à saúde individual e coletiva. Não é à toa, portanto, que a face punitiva seja a mais visível e imediatamente associada ao termo.
No entanto, em décadas recentes, a vigilância sanitária tem tido suas funções, responsabilidades e atribuições enormemente ampliadas, consequência de diversos processos socioeconômicos e político-institucionais.
A globalização da economia e a generalização da chamada sociedade pós-industrial e informatizada, ao tempo que representam uma intensificação das relações sociais em nível mundial, interligando localidades distantes e interconectando eventos e acontecimentos, como argumenta Giddens1, têm favorecido a difusão, acelerada e em escala planetária, dos riscos à saúde humana e ao meio ambiente. Do mesmo modo, o desenvolvimento científico e tecnológico, aliado ao progresso econômico-industrial (inclusive aqueles relacionados ao campo da saúde, tais como o desenvolvimento de novas tecnologias médico-terapêuticas e novos medicamentos), trouxe também, paradoxalmente, uma série de efeitos imprevisíveis e mesmo indesejáveis, exponenciando riscos e incertezas. A insegurança é, assim, uma marca da sociedade contemporânea.
A esses processos mais amplos, alia-se, no caso brasileiro, a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) e de seus princípios constitucionais, o que impulsionou a reorganização dos serviços e de práticas sanitárias e a implementação de ações descentralizadas e participativas, com a introdução de mecanismos de gestão compartilhada e pactuada entre os três níveis governamentais, bem como a emergência e a visibilidade de novos atores sociais. O reconhecimento do direito à saúde como parte do rol dos direitos de cidadania tem, por sua vez, possibilitado maior ampliação das concepções em torno do processo saúde-doença, resgatando sua imbricação com os determinantes sociais e valorizando a luta pela promoção e proteção da saúde.
Diante desse contexto e em direção oposta aos preceitos neoliberais de redução do tamanho do Estado, têm sido cada vez mais exigidas a redefinição e a ampliação das responsabilidades dos governos no sentido de concentrar esforços na busca de soluções para os riscos futuros e para os efeitos inesperados do desenvolvimento científico e tecnológico. No caso específico da saúde, observa-se a demanda crescente para que o Estado assuma, de fato, a responsabilidade pública pela proteção da saúde e pela segurança sanitária, o que impõe a redefinição e o alargamento da ação regulatória estatal no setor e das competências e responsabilidades do campo tradicional da vigilância sanitária.
Assim, a partir dos anos 1990 e no bojo do processo de implantação e consolidação do SUS, a vigilância sanitária vai conquistando centralidade na agenda pública brasileira. Um intenso debate sobre as funções e finalidades do setor, suas especificidades e desafios no âmbito da saúde, bem como sobre a própria delimitação teórico-conceitual como campo de conhecimento e práticas sanitárias, ganha corpo nesse contexto.
O livro que aqui se apresenta se insere nessa dinâmica. Trata-se de uma coletânea de textos organizados a partir de um esforço coletivo de reflexão e debates sobre o tema, envolvendo a academia - especialmente o Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia - e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Como chama a atenção a própria organizadora da coletânea, esse processo - um dos frutos da cooperação técnica entre as duas instituições que vem se consolidando desde o ano 2000, no âmbito do projeto Seminários Temáticos Permanentes - constitui parte de um amplo conjunto de estratégias direcionadas ao desenvolvimento da vigilância sanitária no interior do SUS.
Propondo uma abordagem interdisciplinar e o estabelecimento de um diálogo com outras áreas da Saúde Coletiva, os textos apresentados buscam responder a lacunas teórico-conceituais, metodológicas e operativas de um campo de conhecimentos e práticas cada vez mais complexo e abrangente. Mais ainda, esse esforço se faz acompanhar de contribuições ao processo, ainda em construção, de integração da vigilância sanitária às demais políticas e práticas do SUS.
Parte da coletânea é dedicada à construção de referenciais teórico-metodológicos para o campo da vigilância sanitária a partir de abordagens históricas e do diálogo com outras áreas de conhecimento. A necessidade de novos paradigmas para o conceito saúde-doença e o desafio da construção do que denomina de concepção positiva de saúde dão o tom do trabalho de Naomar de Almeida Filho. É sob a rubrica desses novos aportes paradigmáticos que o autor insere as possibilidades de redefinição de um conjunto de práticas sociais em saúde, dentre elas a vigilância sanitária.
Sueli Dallari debate a questão da responsabilidade pública pela saúde como um desafio central, envolvendo não apenas o Estado mas os distintos atores sociais. Aspectos como a complexificação dos riscos à saúde, a qual ultrapassa o próprio âmbito de atuação setorial; a amplitude das atribuições constitucionais da vigilância sanitária também para além do SUS; a histórica fragmentação institucional em diferentes órgãos; e o que denomina de "déficit democrático" são apontados pela autora como alguns dos desafios à efetivação da responsabilidade pública pela questão saúde no Brasil.
O trabalho de Volnei Garrafa aborda os conceitos de responsabilidade e de equidade, associando-os ao conceito de justiça, como uma das bases éticas imprescindíveis ao processo decisório e às práticas em vigilância sanitária.
Fechando o bloco de textos voltados à construção dos referenciais teórico-conceituais, o capítulo de autoria de Jairnilson Paim contribui para examinar a vigilância sanitária na perspectiva das iniciativas recentes de mudanças nas formas de intervenção sobre a situação de saúde no Brasil. O autor enfatiza o caráter interdisciplinar da área e a necessidade de incorporar novos aportes analíticos para pensar os modelos assistenciais, de forma a abranger a proteção e a promoção da saúde e estabelecer as interfaces entre os conceitos e práticas da vigilância epidemiológica e da vigilância sanitária.
Outro conjunto de textos traz a preocupação com as bases científicas para os processos de tomada de decisões e para as práticas em vigilância sanitária. Nessa perspectiva, Mauricio Barreto debate a relação entre o processo de produção de conhecimentos científicos e os processos gerais de tomada de decisões no campo da saúde, especificamente as atividades regulatórias nas quais se insere a vigilância sanitária. Carlos Machado faz uma abordagem crítica das perspectivas dominantes do conceito de risco, bem como dos processos decisórios para sua prevenção e controle. O artigo de Dina Czeresnia também aborda o tema risco, apontando os limites do conceito clássico de risco epidemiológico. A autora propõe o deslocamento da ênfase vigente na vigilância de doenças para a vigilância da saúde, na perspectiva de integração com o campo da promoção da saúde, o que tende a possibilitar a ampliação das estratégias para defesa da saúde e sua articulação com políticas públicas transetoriais.
As interfaces entre vigilância sanitária, vigilância epidemiológica e vigilância da saúde são temas debatidos em dois artigos. Essa discussão apresenta grande relevância, sobretudo ao se considerar a persistência de práticas fragmentadas em estruturas organizacionais distintas, com implicações no alcance e na efetividade das ações de promoção e proteção da saúde. Nessa direção, o capítulo elaborado por Eliseu Alves Waldman e Fabiana de Freitas aborda a vigilância epidemiológica e a regulação sanitária como funções essenciais da Saúde Pública, apontando suas bases conceituais e aspectos de sua operacionalização. Os autores ressaltam a importância e a profunda imbricação das ações de vigilância epidemiológica para a área de atuação da vigilância sanitária. Carmem Teixeira e Ediná Costa trazem reflexões ao debate sobre as perspectivas de mudança do modelo assistencial em saúde, enfocando diferentes concepções de vigilância da saúde e seu potencial como proposta de integração das ações de promoção e proteção no âmbito do SUS. As autoras chamam a atenção também para os riscos de redução do alcance da proposta de vigilância da saúde com a denominação da recém-criada, em 2002, Secretaria de Vigilância em Saúde, no Ministério da Saúde.
A coletânea traz ainda dois textos que abordam questões cruciais ao campo da vigilância sanitária, embora pouco debatidas. O texto de autoria de Ediná Costa discute o processo de trabalho em vigilância sanitária a partir da reflexão sobre o trabalhador da área e as especificidades de seu trabalho. Por fim, Luís Eugênio de Souza debate o modelo de agência adotado com a institucionalização da Anvisa, à luz dos estudos das propostas de reforma da gestão pública no Brasil dos anos recentes.
Aos leitores que estão se aproximando agora do tema, a coletânea possibilita conhecer os principais termos do debate atual sobre a área, trazendo à tona os desafios para a constituição dos referenciais teóricos, metodológicos e operativos da vigilância sanitária e sua interseção com os conhecimentos e práticas da Saúde Coletiva no âmbito do SUS. Já os estudiosos, profissionais e militantes da área, se não encontram propriamente uma novidade no debate travado, têm a possibilidade de encontrar uma boa sistematização dos principais termos que marcam as reflexões e discussões recentes nesse rico e fértil campo que é a vigilância sanitária.
- 1. Giddens A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista; 1991.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Nov 2010 -
Data do Fascículo
Nov 2010