Resumos
Estudou-se a relação do exercício das masculinidades com o cuidado em saúde para homens na atenção primária, por meio de representações e significados de usuários e trabalhadores acerca do que vem ser homem. Foram entrevistados homens usuários e profissionais de saúde de dois serviços de atenção primária. Encontrou-se uma diversidade de modelos de masculinidade que podem definir diferentes formas para pensar o cuidado de saúde dos homens. Observou-se que questões como trabalho, sexualidade, estrutura corporal, relações com as mulheres e transformações nas relações de gênero são temas importantes para os homens e devem ser consideradas nos serviços de saúde.
Gênero e saúde; Saúde do homem; Atenção primária à saúde
This paper studied the relation between the exercise of masculinities and health care of men in primary health care services. It focuses on representations and meanings of primary health care service users and professional of what it is to be a man. Male service users and professionals were interviewed in two primary health care facilities. Diverse models of masculinity were found, defining various forms of reasoning upon men's health care. This study indicates that issues such as work, sexuality, body structure, relationship with women, and transformations in gender relations are important for men, and should be considered in health care services.
Gender and health; Men's health; Primary health care
ARTIGO
ATENÇÃO BÁSICA
Concepções de gênero de homens usuários e profissionais de saúde de serviços de atenção primária e os possíveis impactos na saúde da população masculina, São Paulo, Brasil
Male users' and primary care services health professionals' conceptions of gender and possible impacts on men's health,São Paulo, Brazil
Wagner dos Santos FigueiredoI; Lilia Blima SchraiberII
IDepartamento de Medicina , Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, Universidade Federal de São Carlos. Rodovia Washington Luis Km 235. 13565-905 São Carlos SP. wagfig1@gmail.com IIDepartamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo
RESUMO
Estudou-se a relação do exercício das masculinidades com o cuidado em saúde para homens na atenção primária, por meio de representações e significados de usuários e trabalhadores acerca do que vem ser homem. Foram entrevistados homens usuários e profissionais de saúde de dois serviços de atenção primária. Encontrou-se uma diversidade de modelos de masculinidade que podem definir diferentes formas para pensar o cuidado de saúde dos homens. Observou-se que questões como trabalho, sexualidade, estrutura corporal, relações com as mulheres e transformações nas relações de gênero são temas importantes para os homens e devem ser consideradas nos serviços de saúde.
Palavras-chave: Gênero e saúde, Saúde do homem, Atenção primária à saúde
ABSTRACT
This paper studied the relation between the exercise of masculinities and health care of men in primary health care services. It focuses on representations and meanings of primary health care service users and professional of what it is to be a man. Male service users and professionals were interviewed in two primary health care facilities. Diverse models of masculinity were found, defining various forms of reasoning upon men's health care. This study indicates that issues such as work, sexuality, body structure, relationship with women, and transformations in gender relations are important for men, and should be considered in health care services.
Key words: Gender and health, Men's health, Primary health care
Introdução
Em tempos mais recentes, vários estudos vêm discutindo a questão da saúde masculina, buscando compreender as diferentes motivações para os altos perfis de morbimortalidade dos homens1-3. Parte desses estudos toma como referência a perspectiva de gênero para a reflexão das condições de saúde masculina. Alguns autores associam essas elevadas taxas ao processo de socialização dos homens, no qual poder, força e sucesso, considerados atributos característicos dos homens, resultam em comportamentos que predispõem a doenças e mortes1,4. Outros autores apontam que, nesse processo, o cuidado com a saúde não é valorizado como uma questão importante nas vivências masculinas5.
Dessa forma, os homens reprimem suas necessidades de saúde e têm dificuldades para expressá-las, procurando menos que as mulheres os serviços de saúde. Na atenção primária, essa situação torna-se mais emblemática, pois os serviços são destinados principalmente às mulheres, às crianças e aos idosos6,7. Os homens consideram o ambiente das unidades básicas de saúde feminilizados, o que provoca neles a sensação de não pertencimento àquele espaço6. Da parte dos serviços, estudos mostram que o sistema de cuidados constrói um comportamento de saúde dentro da referência dominante de atribuições de gênero, levando à invisibilidade dos homens8,9. Com isso, os serviços de atenção primária apresentam dificuldades para acionar práticas de prevenção e promoção da saúde dos homens.
Nesse sentido, a categoria gênero pode contribuir para um alcance maior na compreensão das questões relacionadas à saúde masculina. Gênero é compreendido como uma construção social da diferença sexual e tem um sentido relacional, envolvendo homens e mulheres10 e constrói-se em cima de valores que remontam às vivências na vida cotidiana. Por meio desses valores, homens e mulheres adotam determinados comportamentos e atitudes que entendem ser mais condizentes com o esperado socialmente acerca do que venha a ser um homem ou uma mulher.
Por sua vez, a masculinidade é uma configuração prática em torno da posição dos homens nas relações de gênero4,11, existindo uma masculinidade culturalmente hegemônica que serve de modelo e é construída nas relações de homens e de mulheres. Mas nem todos os homens assumem o modelo como sendo o seu, o que indica a coexistência de inúmeras manifestações de masculinidades, envolvendo aspectos tais como viri lidade, agressividade, ambição, competitividade, coragem, autoridade, etc.
No campo da saúde, os estudos de gênero têm sido utilizados principalmente quando se discute a saúde da mulher, como demonstra Aquino12. Segundo a autora, os trabalhos que tematizam a masculinidade e sua interseção com a saúde só começam a ganhar destaque a partir do final da década de noventa, impulsionados pela expansão da epidemia de aids.
Considerando os altos níveis de morbimortalidade masculina e assumindo que os referenciais de gênero podem contribuir para melhor entender os processos de adoecimento e morte dessa população, este trabalho tem o objetivo de discutir as representações que usuários e trabalhadores de serviços de atenção primária à saúde revelam acerca do que vem a ser homem. Desse modo, esperamos fornecer maiores subsídios para se investir em ações de promoção, prevenção e assistência à saúde direcionadas aos homens.
Metodologia
Este trabalho é parte de uma pesquisa maior que estudou as relações entre masculinidades e saúde para compreender como são articuladas a noção de cuidado de saúde com a identidade masculina (ser homem)13. A pesquisa investigou como se dão as representações e interações entre usuários (homens) e profissionais de saúde de serviços de atenção primária. A metodologia teve base qualitativa, utilizando duas técnicas de pesquisa: (1) a observação direta dos diferentes contextos, das situações e atividades assistenciais que compõem a prática cotidiana de um serviço de atenção primária e (2) entrevistas semi-estruturadas com diferentes profissionais e homens usuários. Aqui, discutiremos as representações de gênero apresentadas por esses sujeitos nas entrevistas.
Como se tratava de tema pouco explorado em serviços de atenção básica, escolhemos serviços que tivessem entre suas prioridades a pesquisa e o desenvolvimento de tecnologias inovadoras em atenção primária. Acreditávamos que serviços com essa natureza trariam contribuições valiosas à discussão da problemática da saúde masculina na perspectiva de gênero. Assim, o estudo foi realizado em dois serviços de atenção primária que fazem parte de instituições universitárias da cidade de São Paulo.
Foram selecionados para a pesquisa usuários do sexo masculino de dezoito a sessenta anos e diferentes profissionais que prestam assistência nos dois centros de saúde. A seleção de usuários dessa faixa etária justificava-se porque para adolescentes e idosos há estudos e ações específicas. Quanto aos profissionais, optamos por abranger ambos os sexos, com formação universitária e de nível médio, ampliando, dessa forma, as representações acerca de gênero. Um outro critério de seleção foi entrevistar os sujeitos que tiveram consultas ou atividades profissionais observadas. O roteiro tinha três blocos temáticos: (1) as concepções sobre saúde, corpo, cuidado de si e de outros; (2) as concepções de gênero e (3) as relações entre ser homem e cuidados e problemas de saúde. Aqui discutiremos apenas as questões arroladas no bloco acerca das concepções de gênero.
Entrevistamos 26 usuários e 27 profissionais de saúde. O número de entrevistados foi considerado suficiente quando percebemos a reincidência das informações e que essas permitiam uma discussão aprofundada das questões da pesquisa. Os usuários tinham entre 21 e 59 anos e a maior parte era casada ou vivia conjugalmente. Entre as atividades profissionais exercidas, destacam-se os mecânicos, os biscateiros e os que se encontravam afastados do trabalho. Os profissionais tinham entre 29 e 65 anos, sendo apenas sete homens. Quanto à categoria profissional, a maior parte era de médicos e técnicos de enfermagem. O tempo de trabalho na instituição variou de um ano até vinte cinco anos.
Seguindo os preceitos da ética em pesquisa, todas as entrevistas foram precedidas de consentimento. Para garantir o caráter sigiloso das informações, todos os depoentes foram codificados com nomes fictícios. A interpretação foi feita segundo a técnica de análise temática de conteúdo, a partir da leitura exaustiva do material. Dessa forma, identificamos temas e categorias que reportassem os referenciais de gênero, definindo categorias analíticas de interpretação.
Resultados
De um modo geral, podemos afirmar que o conjunto de sujeitos pesquisados constrói uma multiplicidade de representações acerca do modo como se vive a masculinidade. Mesmo da parte de um único sujeito investigado, percebemos uma variedade de compreensões para a possibilidade de ser homem ou ser mulher. Seis categorias sobressaem nos discursos dos entrevistados: trabalho, corpo, sexualidade, a contraposição à mulher e as transformações nas relações de gênero.
O trabalho como valor moralpara a provisão da família
Para os usuários, o sentido moral que os leva a se afirmarem como sujeitos dignos e de bom caráter funda-se em atitudes e condutas consideradas necessárias para serem reconhecidos como sujeitos detentores de tais valores. Entre tais atitudes, o trabalho assume uma dimensão central, pois permite que os homens "cumpram com suas obrigações". Nesse sentido, o ser identificado como trabalhador confere ao homem uma virtude moral dignificante, afirmando-o perante os outros, proporcionando-lhe reconhecimento social: "Ser homem idealmente, para começar, é você ter dignidade. Você ser honesto e cumprir com suas obrigações em todo sentido, entendeu?" (Edmundo, 58 anos)
"Eu acho que para ser homem tem que ter vergonha na cara, tem que trabalhar, pra você ser honesto e aí ser um homem de verdade". (Raí, 22 anos)
O que parece mover os homens é a percepção de que, por meio do trabalho, eles podem adotar determinadas condutas e atitudes que os impulsionam para o reconhecimento e a respeitabilidade social. Para os entrevistados, o trabalho possibilita as condições necessárias para o cumprimento de seus deveres e obrigações, permitindo, dessa forma, que consigam assumir suas responsabilidades de manter, proteger e cuidar da família, ações diversas vezes reiteradas por eles como sendo inerentes à condição de ser homem.
Com o trabalho, os homens podem assumir o seu papel de provedor da família, reconhecendo-o como uma característica da identidade masculina. Embora os entrevistados não se refiram diretamente ao trabalho como o motor que viabiliza suas prerrogativas com o espaço doméstico, muitos deles afirmam a importância das responsabilidades com a família e com a manutenção da casa. Desse modo, podemos perceber uma lógica que permite entrelaçar os sentidos dados ao trabalho com os significados de responsabilidade com a sustentação familiar. Em diversos discursos, surgem referências a atributos que colocam os homens como o principal provedor do lar, o chefe de família: "Ser homem é ser o chefe de uma família, ser a pessoa que dirige uma família, que orienta a família. É o chefe da família. O homem é aquele que cuida do bem-estar e do futuro da família". (Felix, 51 anos)
Todos somos iguais. Mas o homem, por tradição, eu acho que sempre tem que ser o provedor, ser uma pessoa, assim, que sempre tem que está tentando sempre andar mais pra frente, assim, no dia a dia, pra poder manter os filhos, a mulher. (Giovane, 30 anos)
Nesse sentido, a constituição de uma família aparece como um projeto idealizado por vários homens entrevistados. O processo de se tornar homem, no sentido de ser reconhecido moral e socialmente, passa necessariamente pelo casamento e pelos filhos. Desse modo, o homem se sente apto e impulsionado a assumir suas responsabilidades sociais. Para isso, é preciso trabalhar, pois só por meio do trabalho o homem consegue se apresentar e fazer valer seu papel de chefe de família: "Um homem pretende casar e ter filhos. Aí vêm as responsabilidades de cuidar dele e de quem ele escolheu para viver; e aí vêm os filhos, que precisam ter o apoio do pai. Desde quando o filho nasce, até onde o filho cresce. Hoje, ser o pai, em relação a ser o masculino, ele tem que ter várias responsabilidades que cabe ao homem, numa relação a dois". (Roger, 22 anos)
Todo o processo de construção da identidade masculina associado à categoria trabalho, conferindo ao homem dignidade, respeitabilidade por suas responsabilidades sociais com a família e com a manutenção do espaço doméstico, não deve ser visto separadamente de uma outra dimensão também fortemente atrelada à constituição da imagem do ser homem: o corpo.
O corpo
Este tema aparece nos significados que a relação entre a estrutura corpórea e a força física dos homens suscita na construção da masculinidade. Referir a capacidade física parece ser uma ideia que muitas vezes é compreendida como o fio condutor que potencializa a capacidade de trabalhar: "Na natureza, o ser humano é aquele que tem mais força física. É aquele que a natureza deu mais força física e que, normalmente, desde a Antiguidade, por ter essa força física, desenvolveu trabalhos braçais e, normalmente, na nossa espécie, a obrigação de trazer alimento. E isso, de tempo em tempo, veio com o desenvolvimento da sociedade. Mesmo não necessitando tanto da força física, até nos dias de hoje muitos homens acham que são obrigatoriamente o poder mais forte dentro de suas casas. Mas tudo isso tem uma história". (Denílson, 34 anos)
Com relação ao status que o corpo assume para os homens, vários depoentes trazem as características corporais para salientar seus entendimentos acerca do ser homem. Na maioria das vezes, a alusão não é direta. Algumas vezes, o corpo aparece simbolizado por alguma imagem representativa do ser homem no consciente coletivo. Em outros momentos, eles falam do corpo por intermédio de atitudes, capacidades e comportamentos que acham particularmente significativos do ser masculino. Denota-se tal intenção quando atentamos, por exemplo, para a importância dada à estrutura muscular para descrever a força física como algo que qualifica o homem. Outras vezes, simplesmente, a dimensão corporal aparece relacionada ao fato de o indivíduo ser do sexo masculino ou, então, no reconhecimento da presença do órgão sexual masculino naquele sujeito. Nos casos de referência ao pênis, observamos que a intenção dos entrevistados não é se autocaracterizar, mas tem a finalidade de reforçar atitudes que outros homens assumem para afirmar sua masculinidade: "Eu acho que ser homem é ser do sexo masculino. Eu não tenho muito uma definição do que é ser homem. Eu acho que tinha aquela definição antiga. Antigamente as pessoas diziam: homem é aquele que cuida da casa, aquele que coloca o dinheiro em casa. Homem é aquele que é mais forte, que bate, que não sei o quê. Homem é o que usa a violência pra conseguir as coisas. Homem é o cabra macho que está sempre... Eu acho que, na minha concepção, ser homem é apenas pertencer ao sexo masculino". (Vanderlei, médico)
"Porque tem muita gente que pensa que é homem porque tem um pinto entre as calças. Pensa que é isso". (Elano, 32 anos)
A possível valorização do homem por meio dos atributos e características que se inscrevem e fazem parte de sua composição corporal parece ser um pensamento bastante presente no imaginário da população e essa construção é tida como sendo uma consequência natural e inerente à constituição dos seres humanos.
No nosso estudo, esta questão surge em várias entrevistas. Por exemplo, um usuário toma como referência representações que remetem a características "naturalmente" determinadas e compara os comportamentos humanos com aspectos da vida de outros seres vivos. Ao comentar que o homem tem a necessidade de parecer forte e não transparecer qualquer tipo de problema, o entrevistador o questiona sobre qual seria a razão para o homem ter esse pensamento. Sua resposta segue na direção de que isso seria inerente ao homem: "Eu acho que isso aí é inerente? Inerente ao homem. Eu acho que é uma coisa, assim, como a natureza. Na natureza também acontece o mesmo. Por exemplo, um macaco... cuida das suas crianças. Não sei... de um elefante. Na natureza é o mesmo também. O leão, por exemplo, ele cuida da leoa e dos seus filhotes. Procura comida pra eles e não sei o que. Não sei...". (Diego Lugano, 36 anos)
Muitas vezes a referência ao corpo se deu quando falavam de algumas atividades ou características que consideravam apropriadas para designar os homens. Referiam-se, por exemplo, à capacidade de ser ativo, lembrando de situações que remetiam às práticas como o trabalho, a sexualidade, os esportes ou a violência. Isso pode ser percebido no relato de um médico que aponta a dificuldade dos homens em se assumirem com algum problema de saúde e relaciona a prática de atividades físicas como uma característica valorizada por eles: "Eu acho que, por exemplo, a minha geração foi muito criada na atividade, desenvolvendo atividades físicas. Jogava muito futebol. Toda integração que a gente fazia nos grupos envolvia uma atividade física. Fazer um esporte, ou então... Mesmo nas brincadeiras, né? A coisa do físico, assim, de pular muro, de subir, isso é uma característica muito importante pro homem". (Luis Felipe, médico)
Sexualidade
Uma dimensão importante para a constituição da identidade masculina explorada pelos entrevistados foi a sexualidade. Várias vezes os depoentes mencionaram os significados das práticas sexuais para compor seus modelos de masculinidades, tomando como referência não só as suas próprias vivências, mas também se reportando às representações que compõem o imaginário social acerca dos homens quando se trata dessa questão.
Ao falarem da sexualidade, três aspectos sobressaíram-se nos relatos. Em primeiro lugar, vinculam a identidade masculina a um certo padrão de comportamento sexual, com destaque para a realização de práticas sexuais simultaneamente com várias parceiras e associada à ideia de uma vontade sexual impulsiva, o que categorizamos como heterossexualidade impulsiva. Um segundo aspecto diz respeito à rejeição à homossexualidade como um valor identificado com a masculinidade. Por último, associam a masculinidade à capacidade de manter relações sexuais em razão da boa função do órgão sexual, destacando as dificuldades de ereção.
Com relação à heterossexualidade impulsiva, nem todos a reconheciam como o seu principal marco de referência identitária masculina. Preferiam se afirmar, enquanto homens, por meio de outros valores: "Tem muita gente que pensa que pra ser homem tem que ser desse jeito. Porque tem muitas mulheres. Ah, eu tenho xis mulheres. Ainda eles falam: 'Eu dei xis essa noite'. Pensa que ser homem é isso. Para mim é diferente. Tem que ter responsabilidade". (Elano, 32 anos)
À heterossexualidade como referência para a identidade masculina soma-se a repulsão à homossexualidade masculina. Uma grande parcela dos depoentes não considera os homossexuais como homens. Para um dos depoentes, por exemplo, os homens que se insinuam para outros homens não têm uma atitude de homem. Perguntamos a ele, então, o que seriam essas pessoas: "É metade homem e metade mulher, eu acho. Vamos supor, assim, por exemplo, se um homem chegar e falar. Vamos supor uma brincadeirinha: passar a mão na sua bunda. Já não é uma atitude de homem. É uma atitude errada. Ele fala: 'Ah, estou gostando de você'. Vamos supor, eu sou homem, o homem chega e fala: 'Estou gostando de você'. É uma atitude errada isso aí, entendeu? Acho que não é uma coisa de homem isso aí, não. Porque eu acho o seguinte, uma pessoa que é homem mesmo não vai chegar e falar: 'Vou passar a mão na sua bunda, vou pegar no seu...[risos] No seu bilau, eu vou pegar lá'. O que é isso? Eu acho que isso aí não é atitude de homem". (Edmílson, 36 anos)
Ainda com relação às conexões entre masculinidade e sexualidade, merece ser destacada a importância dada por um entrevistado ao significado que a (in)capacidade de ter relações sexuais mobiliza no processo de identificação masculina. O entrevistado é um homem diabético com disfunção erétil motivada por complicações da doença e conta como vem lidando com o problema, os sentimentos que rondam ou já passaram por sua cabeça (suicídio) e como estimula outros homens que vivem a mesma situação a enfrentá-la corajosamente. Justifica sua atitude para com outros homens dizendo: "ser homem é não ter vergonha de encarar o que está acontecendo comigo. E para muitos homens, encarar é meio difícil". Para o entrevistado, a impotência é "um problema da masculinidade". Segundo ele, "não é questão de você querer ser macho, questão de você precisar. Você precisa daquilo ali; aquilo ali é a natureza sua. Sexo é uma natureza sua. E você fica sem isso, da hora pra outra, isso sobe pra cabeça". (Everaldo, 39 anos)
A mulher e a fragilidade
Muitas vezes, os entrevistados procuraram tomar a mulher como referência para melhor compreender o ser homem. Uma das questões mais apontadas foi uma suposta fragilidade da mulher. Vários depoentes qualificaram as mulheres como mais frágeis que os homens, salientando aspectos de sua fisiologia e de seu corpo para justificar e confirmar sua afirmação. Assinalaram a anatomia do corpo feminino, a menstruação e a gravidez como características que reforçam a ideia de uma maior complexidade da mulher, tornando-a frágil: "A mulher sempre existe uma gravidez, existe uma coisa e outra. Tem aquele procedimento mensalmente. Tem aquele negócio assim, tal. Vai ter uma criança, tem que haver um pré-natal, tem que fazer uma cesariana. É uma coisa complicada em questão de ser mulher". (Edílson, 27 anos)
Para alguns profissionais, no entanto, a fragilidade feminina é algo que se aprende socialmente, sendo parte de um modelo sociocultural introjetado por todos: "Porque elas são educadas para a fragilidade. Em oposição ao homem, que é educado para ser forte. Ela sendo educada para a fragilidade, ela é muito mais sensível às suas mudanças físicas, aos seus sentimentos e às suas sensações". (Darci, assistente social)
A ideia de fragilidade nos conduz à questão da sensibilidade como uma referência ao se falar das mulheres. Alguns entrevistados reportaram as mulheres como sujeitos sensíveis, diferentemente dos homens, que seriam mais práticos e objetivos. Tal compreensão leva alguns dos depoentes a questionarem determinadas atitudes das mulheres, pois acham que características como sensibilidade e vaidade dificultam a vivência cotidiana, principalmente quando se trata do trabalho: "Às vezes eu penso que eu gostaria de ser homem. Eu acho que o homem é mais prático com a vida. Ele tem mais foco nas coisas que ele faz. Quando ele tem que resolver uma coisa, ele vai e resolve, não fica com nhé-nhé-nhé. Eu não gosto dessa coisa. Eu sou mulher, mas eu sou muito prática. Eu não gosto de nhé-nhé-nhé. E quando você trabalha com muita mulher, fica muito... É uma fogueira de vaidades. É difícil de trabalhar. A mulher fica olhando a roupa, o sapato, se está gorda, se está magra. Você vê assim: 'Teu cabelo está despenteado. Você tem que alisar o cabelo, não sei o quê'. Perde tempo com coisas que a gente não precisa perder. Então ela fica muito...: 'Ai, meu Deus! Ai, porque hoje eu estou assim'. Ah, não, uff. Vamos trabalhar! Deixa isso pra lá! Agora isso não vai resolver. E o homem é mais direto". (Natália, técnica de enfermagem)
Muitos entrevistados procuraram chamar a atenção para a valorização de aspectos que apontam para a dimensão moral da mulher, citando especificamente a questão do caráter, das responsabilidades e da honestidade. Contudo, o valor moral colocado nesses atributos correspondia a outras condutas e virtudes diferentes daquelas conferidas aos homens. Para os usuários, uma mulher virtuosa não se prostitui e se dedica ao seu homem. Ela deve ser uma boa dona de casa, cuidar de suas responsabilidades domésticas e respeitar o marido: "Mulher? Eu acho que á quase a mesma coisa. É ter caráter, não se prostituir aí, que ela pode pegar uma doença aí de qualquer um". (Raí, 22 anos)
"Eu sei lá. É uma coisa que não explico. Eu tive uma esposa. Ela nunca trabalhou, nunca precisou trabalhar. Minha primeira esposa. Vivia uma vida maravilhosa. Chegava em casa, minha roupa estava tudo prontinho já pro meu banho e tudo. Chegava do trabalho, chegava em casa e estava tudo prontinho. Saía do banho e o jantar já estava na mesa. É uma coisa que eu admiro, entendeu, sobre a mulher". (Carlos Alberto, 41 anos)
As mudanças nas relações de gênero
Merecem ser destacados os depoimentos que referiram as transformações mais recentes nos modelos de ser homem e de ser mulher, relacionando-as ao processo de mudança em curso na sociedade. Alguns recordaram a maior independência e autonomia das mulheres, apontando o crescimento da inserção das mulheres no mercado de trabalho. Outros chegaram mesmo a lembrar do movimento feminista e sua contribuição para uma maior participação das mulheres nos processos sociopolíticos cotidianos: "Hoje em dia está muito diferente. Mas, antes, ser homem era ser o provedor, aquele que manda. Aquele que exerce a maior influência. Aquele que comanda. Hoje em dia, esse conceito mudou bastante. Hoje em dia, as mulheres estão mais independentes. Muitas já trabalham. Lógico que ainda não é totalmente a maioria. Mas muitas já se libertaram um pouco desse conceito, um tanto quanto machista, que existia antes. E os homens acabaram também tomando consciência de que não é mais desse jeito. As coisas podem ser divididas". (Fabiana, enfermeira)
Ocorreram, no entanto, questionamentos ao processo de mudança. Alguns homens assinalaram que a maior participação da mulher no mercado de trabalho gerou confusão, pois os papeis e responsabilidades de homens e de mulheres não ficaram totalmente claros. De certa forma, tais pronunciamentos pareciam uma indagação ou até uma reclamação acerca da perda de espaço dos homens. A impressão era que os homens compreendiam as mudanças como uma desorganização da vida em sociedade: "Cada um tem o seu dia a dia. O homem cuida das obrigações dele. A mulher tem as obrigações dela. Hoje, como o mundo está mal organizado, as mulheres estão tomando conta quase de tudo. Então, eu acho que a diferença do homem pra mulher é que... A diferença é pouca hoje. Entendeu? Porque tem mulher pilotando avião, tem mulher pilotando metrô, pilotando trem. E tem homem aí que nem sabe varrer uma rua. Entendeu? Então, nessa parte aí, de ser homem e ser mulher, a única coisa que tem diferença de um para o outro, só o sexo mesmo. Porque, parte de serviço, a mulher está quase administrando tudo". (Ronaldo, 45 anos)
Para lidar com essas situações, alguns usuários procuraram argumentos para afirmar a força e o poder da masculinidade. Buscavam a diferença entre homens e mulheres, ressaltando algumas características entendidas como específicas dos homens. Reforçaram, por exemplo, a importância da força física e sua relação com o trabalho, tornando-a símbolo da maior capacidade masculina: "Porque o homem já tem mais capacidade de entrar. Pegar um serviço pesado. Chegar, conversar, esse negócio. Uma coisa diferente da mulher". (Carlos Alberto, 41 anos)
Por fim, é interessante notar o incômodo que o processo de mudança social de gênero na contemporaneidade provoca em certas pessoas. Nos discursos de alguns profissionais, há menções que problematizam algumas situações vividas pelos homens nos dias atuais. Uns falaram nas exigências, expectativas e confusões que o processo tem gerado em muitos homens, deixando-os por diversas vezes perdidos e atabalhoados. Outros se referiram à inversão de papeis entre homens e mulheres, deixando os homens sem espaço e angustiados. Alguns ainda apontaram para uma frustração e desencanto com certas instituições sociais, como o trabalho e o casamento. Dessa forma, vários profissionais viam os homens como coitados, perdidos, atrapalhados, etc.: "Ser homem é uma coisa complicada hoje em dia. Eles estão meio sem papel na sociedade. A gente está suprimindo cada vez mais a masculinidade deles, e fazendo cada vez mais o papel deles. Eles estão muito perdidos. Eu, quando converso com eles, eles tão meio sem saber aonde ir, o que fazer. Por conta da necessidade da autoafirmação, do machismo, do poder; isso hoje em dia está muito mais nas mulheres do que nos homens. Então eles vêm muito angustiados em relação a relacionamento homem-mulher; quando a menina está trabalhando e eles não. Tem muito homem desempregado passando aqui. E ele acaba no bar, bebendo, jogando, arranjando briga. Ele se sente meio diminuído pela esposa. " (Paula, técnica de enfermagem)
Discussão
Os relatos apontam para a coexistência de uma diversidade de modelos, comportamentos e significados relacionados às masculinidades, articulando os exercícios de masculinidades com esferas dimensionadas cotidianamente na vida social. Discutiremos aqui como, nessa articulação, seus modelos de masculinidades podem trazer repercussões para as práticas de cuidado com a saúde da população masculina.
Um dos primeiros aspectos a ser ressaltado é a relação do trabalho como a identidade masculina. Ao apontarem que, para os homens se sentirem honrados e reconhecidos como sujeitos sociais, o trabalho assume um papel-chave, os entrevistados colocam o trabalho como constituinte da masculinidade, dado que é confirmado por outros autores14,15. Por meio do trabalho, os homens constroem seus modelos de comportamento masculino, definindo uma linha divisória entre o público e o privado14. O trabalho vale por seu rendimento moral, pela afirmação de sua identidade masculina de homem forte para trabalhar15. Dessa forma, os homens são responsáveis por suas famílias como seus provedores principais, assumindo suas responsabilidades éticas de cuidador, enquanto chefe de família16. Desse modo, podemos perceber uma lógica que permite entrelaçar os sentidos dados ao trabalho com os significados de responsabilidade com a sustentação familiar.
Para dar conta das suas responsabilidades, o homem precisa ser capaz. Parte dessa capacidade está situada em aspectos relacionados à estrutura corporal e é representada pela força física e por determinados atributos que o homem possui. Assim, a experiência corporal tem uma significação na interpretação cultural de gênero, assumindo um papel central para a construção das masculinidades. Nos relatos, denotam-se duas questões centrais permeando o processo de identificação masculina: (1) o determinismo biológico e (2) os significados dos atributos e características percebidas no corpo.
A primeira questão vale-se de um princípio essencializador das características e comportamentos dos homens, em que a posição ocupada por diferentes grupos sociais deriva de limites ou privilégios inscritos na constituição biológica17. Tais princípios parecem se repercutir intensamente na opinião popular, influenciando as ideias acerca de comportamentos e habilidades de homens e de mulheres. Os relatos indicam que é muito mais fácil e confortável a crença em um determinismo natural do que uma construção cultural dos modos de viver em sociedade18. Dessa forma, os depoentes parecem se eximir da responsabilidade por comportamentos e atitudes. Não questionam a ideologia dominante, nem contestam a forma como o poder se estabelece assimetricamente nas relações sociais.
Apesar disso, não podemos desconsiderar suas concepções. Ao contrário, devemos ficar atentos a esses pontos de vista que permeiam o senso comum, pois os mesmos, certamente, servem de argumentos para a compreensão dos processos relacionados às necessidades e cuidados de saúde da população masculina.
A segunda questão referente aos atributos do corpo, apontando para um ideal centrado na virilidade e na força física indica que não é possível ignorar os significados da experiência corporal na interpretação cultural de gênero. Tampouco é possível desconsiderar a importância das construções de gênero nas representações e na forma de se viver e praticar o corpo no cotidiano. Assim, podemos afirmar que a materialidade dos corpos está inserida nos processos de construção de gênero, no sentido de uma incorporação das práticas de gênero ou de uma encarnação social de gênero. Nesses processos, os corpos são tanto agentes como objetos dessas práticas, tornando-as práticas reflexivas do corpo19.
Quanto à sexualidade, algumas questões importantes devem ser ressaltadas. A primeira diz respeito à ideia de que a heterossexualidade e a impulsividade sexual seguem sendo um marco para a afirmação masculina, tal como é referido em outros trabalhos20-22. No entanto, os relatos apontam para a possibilidade de contestação por parte de alguns homens da sexualidade incontrolável como um modelo a ser seguido por todos. Embora reconheçam a importância do tema, alguns entrevistados tensionam a representação da sexualidade para as masculinidades. Por um lado, reiteram a pertinência do tema mas, por outro, tentam relativizar o seu significado, indicando a existência de questionamentos dos modelos tradicionalmente construídos. Além do mais, por se tratarem de usuários de serviços de saúde com alguma necessidade de saúde, podem se constituir como sujeitos que reelaboram valores e práticas previamente instituídos.
Quanto à homossexualidade, revela-se claramente como a identidade masculina passa por atitudes e gestos que não podem ser identificados com nenhuma imagem homoerótica e como algumas áreas do corpo devem ser objeto de intensa vigilância, pois representam a vulnerabilidade da própria masculinidade. Tais posicionamentos remetem para outros estudos que discutem a questão da homossexualidade em sua relação com o processo de identidade masculina23,24. Esses estudos também demonstram que os homossexuais não são considerados homens, problematizando a homossexualidade no contraste com a masculinidade hegemônica. Ou seja, a desqualificação dos homossexuais nas interpretações do que vem a ser homem parece ser algo necessário ao processo de afirmação da masculinidade, indicando que a homossexualidade masculina desempenha um papel-chave na regulação da conduta masculina normativa24.
A questão da potência sexual merece destaque pelos sentidos colocados para a garantia da masculinidade, constituindo um fundamento nuclear no processo de identificação de gênero. Conforme outros autores25, essas características contribuem para que o homem se reconheça como sexualmente ativo, simbolizando sua virilidade e autoafirmação.
As interpretações acerca da identidade feminina, com enfoque na fragilidade e sensibilidade da mulher, remetem às perspectivas de gênero ideologicamente consagradas como tradicionais e essencialistas. Ora as mulheres são culturalmente valorizadas (como mãe e esposa), ora elas são desqualificadas socialmente (por serem pouco práticas e objetivas). Nesse sentido, os nossos entrevistados afirmam uma visão estereotipada da mulher, partindo de uma ótica da diferença dos papeis sociais influenciada pela visão naturalizada do que vem a ser homem e mulher.
Para os depoentes, um ideal feminino estaria centrado, por um lado, em comportamentos e posturas relacionadas ao recato e ao pudor e, por outro lado, ao desempenho na manutenção do espaço familiar. Para os homens, ao contrário, valorizam-se aspectos que remontam à sua responsabilidade no sustento e provisão do lar. Assim, percebemos a construção de um modelo de relações de gênero bastante tradicional, cristalizado numa divisão sexual do trabalho e do poder nas relações afetivo-sexuais. As mulheres estariam submetidas e subordinadas aos homens, restritas ao ambiente privado, o qual deveriam honrosamente respeitar de forma responsável.
Entretanto, os discursos também pontuam as mudanças nas relações sociais de gênero. Para muitos entrevistados, as transformações ocorridas na sociedade ocidental mais recentemente trazem dilemas e conflitos à socialização dos homens, o que alguns autores denominam vitimização dos homens26. Tais indivíduos estariam vivenciando expectativas que confrontam os ideais hegemônicos de masculinidade com a prescrição de um modelo que limita comportamentos considerados legítimos para a identidade masculina, gerando um sentimento de insegurança.
Essa discussão remete à polêmica da existência ou não de uma crise da masculinidade17,18, fato que tem suscitado grandes debates, levando-nos a perceber que as prerrogativas atuais sobre o ser homem mobilizam diferentes parcelas da sociedade. No entanto, não podemos considerar esses relatos como sendo apenas uma postura vitimizadora dos homens ou, então, algo que respalda uma hierarquia que valoriza a dominação masculina. Ao contrário, devemos reconhecer nesses depoimentos aspectos das iden tidades em conflito, sugerindo possível momento histórico de reconstrução do próprio modelo hegemônico. Ou seja, um modelo que precisa ser superado, sem ainda uma definição clara do que será no futuro.
Concluindo, percebemos que as diferentes dimensões discutidas pelos entrevistados devem ser questões consideradas na perspectiva de gênero nas ações de atenção primária. O modo como tais questões são interpretadas nos depoimentos podem representar impactos para a saúde masculina. Nesse sentido, temáticas como trabalho e sexualidade, por exemplo, devem ser contempladas nas discussões de prevenção e promoção da saúde, desde um ponto de vista que permita ampliar o campo de percepção das relações entre gênero e saúde. Com isso, se pode alcançar uma maior problematização de tais temas, com também enfrentar as iniquidades de saúde e de gênero.
Colaboradores
WS Figueiredo e LB Schraiber participaram igualmente de todas as etapas da elaboração do artigo.
Artigo apresentado em 13/05/2008
Aprovado em 31/10/2008
Versão final apresentada em 30/11/2008
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
06 Abr 2011 -
Data do Fascículo
2011
Histórico
-
Recebido
13 Maio 2008 -
Aceito
31 Out 2008