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Renúncia, violência e denúncia: representações sociais do homem agressor sob a ótica da mulher agredida

Resumo

Objetiva-se analisar as representações sociais do comportamento agressivo do homem sob a ótica da mulher agredida. Trata-se de um estudo de natureza qualitativa e representacional realizado com vinte mulheres que estavam sob proteção do Centro de Referência de Natal/RN, tendo como instrumento de coleta de dados a narrativa livre. Para a análise dos dados textuais, optou-se pelo uso do software ALCESTE 2010. Elaboraram-se três categorias de temáticas: i) O aprisionamento da mulher; ii) A violência e suas significações; iii) A ruptura do ciclo violento. As representações sociais do comportamento agressivo do homem sob a ótica da mulher agredida estão ancoradas nos papéis sociais do homem na família e na sociedade. Assim, configura-se um modelo de masculinidade dominante que reforça, construções familiares e repetições de papéis.

Violência contra a mulher; Masculinidade; Gênero

Abstract

The scope of this study is to analyze the social representations of the male aggressor from the perspective of the female victim of aggression. It is a qualitative and representational study conducted, using free narrative as the data-gathering tool, with twenty women who were under the protection of the Reference Center in Natal in the State of Rio Grande do Norte. ALCESTE 2010 software was used to analyze the textual data. Three thematic categories were developed for the purpose: i) The imprisonment of women; ii) Violence and its significance; iii) Breaking the cycle of violence. From the perspective of the female victim of aggression, the social representations of the behavior of the male aggressor are entrenched in the social role of males in the family and in society. In this way, it represents a model of dominant masculinity that in turn reinforces family structures and the repetition of roles.

Violence against women; Masculinity; Gender

Introdução

Considerado um fenômeno complexo e multifacetado, a violência contra a mulher é fruto de uma construção cultural, política e religiosa, pautada nas diferenças entre os sexos11. World Health Organization (WHO). Global and regional estimates of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and nonpartner sexual violence. Geneva: WHO; 2013.,22. Howard LM, Oram S, Galley H, Trevillion K, Feder G. Domestic violence and perinatal mental disorders: A systematic review and meta-analysis. PLoS Med 2013; 10(5):e1001452.. Tal construção naturalizou e legitimou a assimetria de poder, justificando o domínio do homem sobre a mulher. Como consequência, a forma mais comum de violência contra a mulher é a praticada por parceiro íntimo, o que ocorre entre pessoas de diferentes raças, religiões, classes econômicas e sociais33. Garcia-Moreno C, Jansen HA, Ellsberg M, Heise L, Watts CH; WHO Multi-country Study on Women’s Health and Domestic Violence against Women Study Team. Prevalence of intimate partner violence: findings from the who multi-country study on women’s health and domestic violence. Lancet 2006; 68(9543):1260- 1269.,44. D’Oliveira AFPL, Schraiber LB. Mulheres em situação de violência: entre rotas críticas e redes intersetoriais de atenção. Revista de Medicina. 2013 [acessado 2015 Jan 14]; 92(2):134-40. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revistadc/article/view/79953/83887.
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. As agressões incluem violação, maltrato físico, psicológico, econômico e, algumas vezes, pode culminar com a morte da mulher maltratada55. Acosta DF, Gomes VLO, Barlem E.L.D. Perfil das ocorrências policiais de violência contra a mulher. Acta Paul Enferm. São Paulo, 2013 [acessado 2015 Jan 14]; 26(6):547-553,. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ape/v26n6/07.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/ape/v26n6/07.pd...
.

Nesse cenário, a violência intrafamiliar constitui forma de violência a que muitas mulheres estão submetidas, tendo origem entre os membros da família, independente se o agressor esteja ou não compartilhando o mesmo domicílio66. Araújo MF. A difícil arte da convivência conjugal: a dialética do amor. In: Féres-Carneiro T, organizadora. Família e casal: efeitos da contemporaneidade. São Paulo: PUC; 2005. p. 278-293.,77. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Violência intrafamiliar: orientações para prática em serviços. Brasília: MS; 2001.. Observa-se que a violência traduz a construção social de gênero que determina as relações hierarquizadas entre homens e mulheres, mediante a delimitação de seus papéis sociais enraizados culturalmente88. Scott J. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Educ Real 1995; 20(2):71-99..

Torna-se imperativo pensar na figura do agressor, da vítima e suas relações de conjugalidade, sobretudo, diante da associação naturalizada entre violência e masculinidade presente no imaginário da sociedade33. Garcia-Moreno C, Jansen HA, Ellsberg M, Heise L, Watts CH; WHO Multi-country Study on Women’s Health and Domestic Violence against Women Study Team. Prevalence of intimate partner violence: findings from the who multi-country study on women’s health and domestic violence. Lancet 2006; 68(9543):1260- 1269.,99. Spencer RA, Renner LM, Clarck CJ. Patterns of dating violence perpetration and victimization in U.S. young adult males and females. J. Interpers Violence 2015; 31(15):2576-2597.. Mediante a assimetria de gênero construída nas relações familiares, entre homens e mulheres, assim como a configuração de homem que se apresenta socialmente, elaborou-se como questão de pesquisa: Quais as representações sociais do comportamento agressivo do homem, sob a ótica da mulher em situação de violência intrafamiliar? Acredita-se que a Teoria das Representações Sociais proporcionará, a partir das experiências vividas pelas mulheres em situação de violência, o encontro com o homem agressor e a compreensão do seu comportamento agressivo.

Assim, o estudo tem como objetivo analisar as representações sociais do comportamento agressivo do homem sob a ótica da mulher agredida.

Método

Trata-se de um estudo exploratório e descritivo, com abordagem qualitativa, fundamentado na Teoria das Representações Sociais (TRS). Definem-se os estudos representacionais como um conjunto de suposições, explicações e conceitos que se originam na vida cotidiana através do processo comunicativo entre os indivíduos1010. Moscovici S. Representações sociais: Investigações em psicologia social. 8ª ed. Petrópolis: Editora Vozes; 2011..

Participaram do estudo mulheres adultas que estavam sob proteção do Centro de Referência localizado no Município do Natal, Rio Grande do Norte. No tocante à rede de apoio à mulher vítima de violência, o município dispõe de Delegacias Especializadas em Atendimento à Mulher (DEAM), Centros de Assistência Jurídica/Procuradoria de Assistência Judiciária, os serviços públicos como o Centro de Referência à Mulher Cidadã (CRMC) e as Casas-Abrigo. A escolha do serviço se deu por ser a principal porta de entrada para a mulher em situação de violência doméstica e/ou familiar no município, além de contar com a atuação de equipe multiprofissional capaz de oferecer aparato psicológico necessário, considerando-se as especificidades para realização da coleta de dados.

A amostra intencional foi selecionada mediante os critérios de inclusão: mulheres adultas que sofreram violência intrafamiliar; declarar vínculo afetivo ou de parentesco com o agressor; autoria da agressão do sexo masculino; apresentar condições psicológicas e emocionais adequadas à realidade. E, como critérios de exclusão: casos com condições afetivas e emocionais agravadas, medo e ameaça severa, e risco de morte em familiares da mulher vitimizada. Obteve-se um grupo amostral de 20 mulheres, com faixa etária de 31 a 40 anos (35%), etnia branca (55%), estado civil união estável (50%), ensino fundamental incompleto (30%) e ocupação do lar (25%).

Os dados foram coletados no período de março a junho do ano de 2013, por meio de narrativa livre, tendo como questão norteadora: “Fale-me sobre a violência e o seu convívio com o agressor”. A partir das respostas obtidas, elaborou-se um banco de dados que foi submetido ao software Analyses Lexicale par Contexte d’un Ensemble de Segments de Texte (Alceste) versão 2010. O Alceste permite realizar análise lexical do conteúdo de um texto por meio de técnicas qualiquantitativas específicas, agrupando as raízes semânticas, gerando as unidades de contexto elementares (UCEs) e a classificação hierárquica ascendente e descendente expressas em cada classe, levando-se em consideração a ocorrência, coocorrência das palavras e sua função textual1111. Azevedo DM, Costa RKS, Miranda FAN. Use of the ALCESTE in the analysis of qualitative data: contributions to researches in nursing. Rev. Enferm. UFPE on line 2013; 7(n. esp.):5015-5022..

O estudo em questão foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CEP/URFN). Os trechos de falas das colaboradoras do estudo foram identificados por nomes de personagens femininos de destaque em clássicos do cinema mundial.

Resultados

O material obtido pelo processamento do software Alceste teve um aproveitamento de aproximadamente 58%, indicando relevância para estudos representacionais. Das 177 UCEs selecionadas, o Alceste gerou três classes distintas e, ao mesmo tempo, correlatas. A classe 2 (94 UCEs) constitui a maior parte do material do conteúdo do corpus originado pela falas das participantes do estudo; seguida da classe 1 (50 UCEs) e da classe 3 (33 UCEs), estas que apresentaram uma relação de proximidade direta existente. Nessa etapa de análise paramétrica das classes, o software estabelece seus próprios parâmetros do tipo de classificação, ascendente e descendente (Figura 1)1010. Moscovici S. Representações sociais: Investigações em psicologia social. 8ª ed. Petrópolis: Editora Vozes; 2011..

Figura 1
Dendograma de Classes Estáveis elaborado pelo Alceste versão 2010. Representações sociais do comportamento agressivo do homem. Natal/RN, 2013

A partir da análise e intepretação das três classes elaboradas pelo Alceste, estabeleceram-se três categorias temáticas. A Classe 2 correspondeu à categoria temática 1: “O aprisionamento da mulher, com predomínio trechos dos discursos sobre renúncia e o sentimento de aprisionamento das mulheres vítimas de violência intrafamiliar. A Classe 3 teve seu foco voltado especificamente na violência em si e deu origem à categoria temática 2: “A violência e suas significações”. E, na Classe 1, o espaço semântico criado pelos depoimentos coletados expressou as ideias de denúncia e rompimento, correspondendo então à Categoria temática 3: “A ruptura do ciclo violento”.

O aprisionamento da mulher

A categoria temática 1 revelou o mundo subjetivo da mulher através do ocultamento da violência e do aprisionamento de si mesma em prol do casamento, dos filhos e do marido/companheiro, potencializados pelas desigualdades de gênero nas relações entre o casal. Evidencia-se a doação da mulher como forma de manutenção do seu modelo ideal de família/casamento, a baixa autoestima e sua condição submissa diante da violência no espaço domiciliar.

Durante 5 anos de casamento vivi para cuidar da casa, da nossa filha, dele, e ainda trabalhar fora. E nem podia administrar meu próprio dinheiro, era ele quem dizia o que fazer. Minha vida se resumia a isso. Fui me consumindo, uma sensação de esgotamento tão grande, não sentia mais prazer em ser casada. (Donna)

Ele dizia: “Cala a boca, senão você apanha (enfática). Você está errada, o certo aqui sou eu (enfática)”. Todo relacionamento tem que haver respeito, coisa que ele não tem por mim. Acho que eu não me amava pra ser tão submissa assim. (Olga)

Ele dizia: “Você tem que fazer suas obrigações de esposa, você é minha mulher (enfática).” Era como se eu fosse um objeto, uma propriedade dele. (Scarlett O’Hara)

Negar-se a ter relações sexuais com o marido/companheiro denota um contrapoder, acarretando a ocorrência da violência, até mesmo o estupro, conforme se apresenta no discurso abaixo:

Jamais eu poderia dizer um não (enfática): Não, eu não quero ter relações com você! Isso já era motivo para ser agredida. (Eve)

A violência e suas significações

A categoria temática 2 focalizou a violência propriamente dita e suas significações. Nesse cenário, os conflitos interpessoais vividos diante das situações de violência revelam um contraponto: o homem que, de marido idealizado, passa à condição de agressor.

Violência para mim é soco, tapas, porradas, bofetes. Ele só me deu uma, eu fiquei paralisada, pasma. Fui à DEAM e fiz a denúncia. (Barbarella)

Violência é uma impunidade contra a mulher, porque, além de ser frágil, a mulher não tem força contra um homem. (Cellie)

Por exemplo, ele me chamou de prostituta, dizendo que eu tinha um caso com outro homem porque faz um ano que não tenho mais nada com ele. E isso machuca (choro). (Raimunda)

Violência, para mim, pode ser uma agressão tanto física quanto verbal. Às vezes um homem não agride uma mulher com uma faca, mas agride com uma palavra, uma difamação, e isso é uma grande violência. (Josey)

Essa falta de liberdade de expressão, de não poder expressar o que eu estava sentindo, fosse alegria ou tristeza, nem mesmo as próprias vontades, usufruir do meu próprio dinheiro, era violência e infelizmente eu não conseguia enxergar ou reconhecer. Só fui entender, de fato, o que eu vivia em casa, quando comecei a trabalhar no CRMC, através dos estudos, participando das discussões, da convivência com outras mulheres [...]. (Donna)

Esse cenário compreendeu os conflitos vividos pelas mulheres entre o marido/companheiro ideal versus a figura de agressor. O homem tem atrelado um significado negativo, obscuro, cujas construções figurativas para mulher que sofreu a violência ancoram-se na ideia de um monstro, carrasco, nazista, perseguidor.

Pra começar, eu nunca tinha tido um relacionamento, sempre fui muito de estudar, sendo esta minha primeira experiência. Criei expectativas, sonhei com o relacionamento, com a construção que se iniciava. Então, quando as agressões começaram, foi um impacto muito grande para mim. Ao ver esse mundo diferente, a primeira coisa que eu pensava era em acabar com minha vida. (Frances)

Hoje eu o vejo como um monstro, um carrasco. Assim como se fosse um nazista que me levasse para um campo de concentração e ficasse me ferindo, me obrigando a fazer coisas que eu não quero. (Raimunda)

Essa pessoa significa para mim perigo, eu não confio mais nele. (Margot)

A ruptura do ciclo violento

A categoria temática abordou a denúncia, o processo de enfrentamento da mulher agredida compreendido desde a vulnerabilidade até a resiliência. Narrativas vividas onde se observam as construções simbólicas das mulheres sobre o comportamento agressivo do homem. Fatores como o cansaço, a aceitação do relacionamento falido e o sofrimento do filho foram os pontos de partida para a reconstrução de uma nova história, a partir da denúncia feita no CRCM.

Vivi momentos de tristeza e sofrimento, perdi a cor. Cansada, resolvi começar de novo escrevendo uma nova história. Não foi assim que sonhei com um casamento e com uma família, suportei além das forças, agora eu vou denunciar, dizer: chega! (enfática). (Scarlett O’Hara)

Eu não aguento mais estar apanhando e meu filho vendo. Eu tenho um filho que não pediu para vir ao mundo, mas, também, não posso submetê-lo a uma vida de sacrifício e sofrimento. (Olga)

Eu convivi com ele durante 3 anos e todo esse tempo eu sofri violência, aguentei calada até quando eu engravidei, foi então que resolvi denunciar, dar um basta naquela situação. Eu vou tentar ter outra vida com meu filho que vai nascer. (Eve)

As mulheres, ao saírem da condição de esposa/companheira agredida e submissa, para assumir a condição de mãe, foram encorajadas a quebrar o ciclo de violência, pela situação de violência extrema, presença do filho ou o nascimento deste. Ao constatarem essa condição, recomeçam com um desejo de mudança, assim, inicia-se uma trajetória de luta e busca por apoio.

Cheguei aqui no centro muito depressiva e sofrida, e vocês (os profissionais do CRMC) me trataram tão bem, que eu me senti melhor aqui do que em casa. Antes eu só pensava em morte, vi a morte muitas vezes, não comia mais e por isso perdi peso, tive problemas sérios de saúde, mas, depois que aqui cheguei, estou com vontade de crescer profissionalmente, de ser feliz com meus filhos. Eu sei que posso, sei que merecemos (enfática). Aqui eu encontrei minha autoestima, que perdi no meio de tanto sofrimento. Fazia tanto tempo que eu não escrevia, posso escrever um pouco mais? (Se referindo ao DE). (Nina)

Compreende-se, que o estar com o outro em redes de apoio social permitiu a continuidade do processo de ruptura com a violência e seu agressor.

Sonho com uma casa feliz, ajeitadinha, com todas as minhas coisas no lugar. Desejo paz para viver em família com meus filhos. Certeza que com fé em Deus eu vou conseguir. (Selma)

Com fé em Deus eu sei que posso. Eu e meus filhos vamos ser muito felizes ainda. (Nina)

Já estou estudando, aprendi a dirigir, hoje tenho meu trabalho e vivo minha vida intensamente. Ah! (risos), quero arranjar uma pessoa para mim também. (Donna)

No processo de enfrentamento as mulheres participantes deste estudo encontravam-se submersas na ruptura do ciclo violento, através da tentativa de separação judicial ou medida protetiva.

Trata-se de um nada. Hoje eu ignoro tudo que ele faz. (Katherine)

É até estranho olhar para ele hoje e ver que não sinto nenhum tipo de sentimento. Nem raiva, nem amor. Hoje para mim ele não significa nada. É alguém sem valor. (Scarlett O’Hara)

As falas referenciam ainda o comportamento agressivo proveniente de constructos familiares que se perpetuam no seu relacionamento íntimo com seu companheiro, também agressor:

Eu vejo que ali foi uma construção dentro da própria família. O comportamento dele é o mesmo da mãe, de sempre está culpando o pai, para tentar se isentar da responsabilidade. Então eu acho que ele é uma pessoa perturbada. Acredito que essa falta de educação familiar, essa desestruturação familiar, do sofrimento que passaram, influenciou nas atitudes e comportamentos dele. (Frances)

Na família dele, o pai era muito agressivo com a mãe e a irmã, já com os filhos homens não. Inclusive, quando éramos casados, ele me tratava como a mãe dele era tratada pelo pai. Ele copiava as atitudes e comportamento do pai, como se fosse meu dono. (Donna)

As mulheres relacionam o comportamento agressivo a dois significados, ao vício causado pelo uso abusivo do álcool e drogas, e ao distúrbio de personalidade/comportamento, como doença mental.

O pai do meu marido era muito agressivo com a mãe e também bebia muito. (Cabíria)

Ele estava constantemente sob efeito de drogas, especialmente maconha e cocaína. (Eve)

É como se ele tivesse dupla personalidade. Espero que ele possa descobrir a causa desse comportamento agressivo. Eu acredito que o agressor pode sim se recuperar. (Amélie Poulain)

Quando eu o conheci era uma pessoa totalmente diferente, era caseiro, evangélico, mas, depois que começou a beber, ele destrói tudo dentro de casa. (Selma)

A configuração é de doença, ou de um ser doente, devido ao uso abusivo do álcool e das drogas e distúrbios de personalidade, em virtude da instabilidade emocional frente a uma contrariedade. Algumas falas fortalecem tal pensamento:

Ele apanhava muito do pai. (Amélie Poulain)

O pai dele era muito violento com a mãe e as filhas. Os filhos homens não. (Eve)

Não podia ser contrariado, qualquer coisa ele já explodia. (Maria)

Mediante as categorias e falas elencadas, elaborou-se uma figura ilustrando as representações sociais do comportamento agressivo do homem e sua rede de significados, sob a ótica da mulher agredida (Figura 2).

Figura 2
Representação social do comportamento agressivo do homem sob a ótica da mulher em situação de violência intrafamiliar.

Discussão

As representações sociais do comportamento agressivo do homem, a partir da vivência da mulher em situação de violência intrafamiliar, ancoram-se nos papéis sociais atribuídos ao homem e à mulher, que atribuem ao homem o poder na relação, a figura de provedor, viril, e à mulher, o de objeto de submissão. Refletem também modelos familiares organizados com base no patriarcalismo e na desigualdade de gênero88. Scott J. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Educ Real 1995; 20(2):71-99.. Essas diferenças apontam para padrões de identidade, em que tanto o sujeito quanto o objeto investigado identificam sobre o que é “ser homem e ser mulher” diante das imagens sociais presenciadas na família. E reforçam a ideia de um modelo dominante de masculinidade22. Howard LM, Oram S, Galley H, Trevillion K, Feder G. Domestic violence and perinatal mental disorders: A systematic review and meta-analysis. PLoS Med 2013; 10(5):e1001452.,33. Garcia-Moreno C, Jansen HA, Ellsberg M, Heise L, Watts CH; WHO Multi-country Study on Women’s Health and Domestic Violence against Women Study Team. Prevalence of intimate partner violence: findings from the who multi-country study on women’s health and domestic violence. Lancet 2006; 68(9543):1260- 1269..

Entende-se que essa vivência é construída ao longo do tempo de vida da pessoa, dentro das condições objetivas de vida enfrentadas, e modifica-se constantemente a partir do modo como são experimentadas as relações com o mesmo sexo e com o sexo oposto, tanto no espaço público quanto no privado (dentro de casa)66. Araújo MF. A difícil arte da convivência conjugal: a dialética do amor. In: Féres-Carneiro T, organizadora. Família e casal: efeitos da contemporaneidade. São Paulo: PUC; 2005. p. 278-293.. Ou seja, essa dinâmica apreendida em meio às relações socioculturais corresponde às imagens e significados que se tem do masculino e do feminino, conformando tanto as mulheres em situação de violência intrafamiliar, como os maridos/companheiros agressores, as suas masculinidades e feminilidades22. Howard LM, Oram S, Galley H, Trevillion K, Feder G. Domestic violence and perinatal mental disorders: A systematic review and meta-analysis. PLoS Med 2013; 10(5):e1001452.,44. D’Oliveira AFPL, Schraiber LB. Mulheres em situação de violência: entre rotas críticas e redes intersetoriais de atenção. Revista de Medicina. 2013 [acessado 2015 Jan 14]; 92(2):134-40. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revistadc/article/view/79953/83887.
http://www.revistas.usp.br/revistadc/art...
,88. Scott J. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Educ Real 1995; 20(2):71-99..

A violência nega à mulher a autonomia, a possibilidade de ser sujeito, de construir-se e constituir-se como capaz de autonomia na relação, na medida em que as relações de força materializam a violência, porque coisificam pessoas, indivíduos66. Araújo MF. A difícil arte da convivência conjugal: a dialética do amor. In: Féres-Carneiro T, organizadora. Família e casal: efeitos da contemporaneidade. São Paulo: PUC; 2005. p. 278-293.. Uma das formas de enfrentamento e evitamento da mulher frente às situações de violência diz respeito à passividade, não como forma de aceitação, mas como tomada de decisão apropriada para uma determinada situação1212. Souto CMRM, Braga VAB. Vivências da vida conjugal: posicionamento das mulheres. Rev. Bras. Enferm 2009; 62(5):670-674..

Observa-se na relação conjugal a assimetria dos papéis de gênero do ser homem e ser mulher na sociedade. Dessa forma, o desejo de ter e de manter uma família contribui para a posição de submissão e renúncia da própria mulher88. Scott J. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Educ Real 1995; 20(2):71-99.,1212. Souto CMRM, Braga VAB. Vivências da vida conjugal: posicionamento das mulheres. Rev. Bras. Enferm 2009; 62(5):670-674.. É então quando a mulher permite o aprisionar-se em si mesma. Quanto à sexualidade entre o casal, a mulher é destituída de autonomia, do direito de decidir, inclusive, sobre o seu próprio corpo66. Araújo MF. A difícil arte da convivência conjugal: a dialética do amor. In: Féres-Carneiro T, organizadora. Família e casal: efeitos da contemporaneidade. São Paulo: PUC; 2005. p. 278-293.,99. Spencer RA, Renner LM, Clarck CJ. Patterns of dating violence perpetration and victimization in U.S. young adult males and females. J. Interpers Violence 2015; 31(15):2576-2597.. Assim, o relacionamento conjugal é marcado por uma relação assimétrica de poder, em que a mulher, ao renunciar a si mesma, torna-se vulnerável às agressões, reforçando no homem sua concepção de masculinidade dominante1313. Schraiber LB, Oliveira AFLP, Couto MT. Violência e saúde: contribuições teóricas, metodológicas e éticas de estudos da violência contra a mulher. Cad Saúde Pública. 2009; 25(Supl. 2):S205-216..

Para além da violência física empregada através de socos, tapas, pontapés, empurrões, dentre outros, a mulher vivencia o xingamento, o insulto, a difamação. Ou seja, sofre com a violência psicológica através de danos emocionais, diminuição da autoestima, atos que prejudiquem o pleno desenvolvimento ou que possam desagradar ou controlar ações e comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimentos, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância, perseguição, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e impedimento do direito de ir e vir ou outro meio que cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação do ser humano1414. Meneghel SN, Mueller B, Collaziol ME, Quadros MM. Repercussões da Lei Maria da Penha no enfrentamento da violência de gênero. Cien Saude Colet 2013; 18(3):691-700.. Entretanto, pode ser desconhecida e invisível aos olhos da mulher agredida porque considera um comportamento normal e aceitável dentro dos moldes familiares, não sendo percebida como uma agressão55. Acosta DF, Gomes VLO, Barlem E.L.D. Perfil das ocorrências policiais de violência contra a mulher. Acta Paul Enferm. São Paulo, 2013 [acessado 2015 Jan 14]; 26(6):547-553,. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ape/v26n6/07.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/ape/v26n6/07.pd...
,66. Araújo MF. A difícil arte da convivência conjugal: a dialética do amor. In: Féres-Carneiro T, organizadora. Família e casal: efeitos da contemporaneidade. São Paulo: PUC; 2005. p. 278-293..

Em ambas as situações, a violência passa a ser utilizada como uma manifestação das relações de dominação do homem para com a mulher, expressando uma negação da liberdade do outro, da igualdade, da vida. Essa desigualdade se manifesta como assimetria de poder, a submissão do mais fraco ao mais forte traduzindo-se em maus-tratos88. Scott J. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Educ Real 1995; 20(2):71-99.-99. Spencer RA, Renner LM, Clarck CJ. Patterns of dating violence perpetration and victimization in U.S. young adult males and females. J. Interpers Violence 2015; 31(15):2576-2597.,1313. Schraiber LB, Oliveira AFLP, Couto MT. Violência e saúde: contribuições teóricas, metodológicas e éticas de estudos da violência contra a mulher. Cad Saúde Pública. 2009; 25(Supl. 2):S205-216..

Observou-se que a violência não foi tratada como uma violação dos direitos da mulher, o que reforça e até potencializa a aceitação para o comportamento masculino frente às situações vividas, como algo que faz parte do convívio entre o casal. Os conflitos vividos pelas mulheres do estudo se apresentam no enfrentamento do limite entre o amor e a violência, o companheiro e o agressor. Ambos os lados se entrelaçam na vida desses casais, como um “jogo sem fim” que os une e os afasta, mantendo-os numa contínua tensão que, contraditoriamente, é a principal “liga” do vínculo conjugal e com a violência sofrida, a frustração, sofrimento e a morte como fuga. Nessa dinâmica, confundem-se diferentes expectativas projetadas no outro, mitos e crenças, construções sobre relações de gênero e valores sobre amor e paixão, casamento e família33. Garcia-Moreno C, Jansen HA, Ellsberg M, Heise L, Watts CH; WHO Multi-country Study on Women’s Health and Domestic Violence against Women Study Team. Prevalence of intimate partner violence: findings from the who multi-country study on women’s health and domestic violence. Lancet 2006; 68(9543):1260- 1269.,66. Araújo MF. A difícil arte da convivência conjugal: a dialética do amor. In: Féres-Carneiro T, organizadora. Família e casal: efeitos da contemporaneidade. São Paulo: PUC; 2005. p. 278-293..

Para o rompimento desse circulo vicioso, encontram-se fatores facilitadores como as atitudes pessoais da mulher, que vão desde o esvaziamento de si e das crenças e expectativas de sua conjugalidade no transcurso dos anos de humilhação ou indignação pelo abuso de um filho, até a percepção do incremento na violência e do risco iminente de morte1313. Schraiber LB, Oliveira AFLP, Couto MT. Violência e saúde: contribuições teóricas, metodológicas e éticas de estudos da violência contra a mulher. Cad Saúde Pública. 2009; 25(Supl. 2):S205-216.

14. Meneghel SN, Mueller B, Collaziol ME, Quadros MM. Repercussões da Lei Maria da Penha no enfrentamento da violência de gênero. Cien Saude Colet 2013; 18(3):691-700.
-1515. Santinon EP. Você não enxerga nada: A experiência de mulheres vítimas de violência doméstica e a Lei Maria da Penha [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2010..

Entendido, como resiliência pós-violência doméstica na medida em que consegue falar, expor sua subjetividade a partir da experiência traumática e atribuir um novo significado à vivência armazenada, e, ao fazê-lo, será possível mudar a significação do sofrimento, e, assim, superá-lo1616. Labronici LM. Processo de resiliência nas mulheres vítimas de violência doméstica: um olhar fenomenológico. Texto Context Enferm 2012; 21(3):625-632.. Além disso, a narrativa para si próprio, sobre o trauma vivido, possibilita dar sentido ao que aconteceu e remanejá-lo afetivamente. Esse mecanismo pode ser compreendido com um fator de resiliência, além da narrativa para o outro.

Conclusão

As representações sociais sobre o comportamento agressivo dos maridos/companheiros sob a ótica das mulheres participantes do estudo refletem a masculinidade dominante, além dos constructos familiares em que os homens foram criados. Atribuiu-se ao homem o significado de poder e domínio na relação conjugal, reforçando o modelo dominante de masculinidade que minimiza a figura da mulher, a ideia de passividade, submissão e vitimização; sendo tal relação assimétrica identificada como possível fator gerador de violência.

A construção histórica e social da violência intrafamiliar perpassa um processo complexo de vulnerabilidade e de resiliência como o vivido pelo grupo de mulheres, por vezes, caracterizado pelo ocultamento ou silenciamento da vítima ao relatarem o aprisionamento em si mesmas, inclusive diante do sofrimento e da dor, desencadeada pela ruptura da imagem idealizada do companheiro e o difícil processo de enfrentamento do seu comportamento agressivo.

Destarte, entre as principais limitações do estudo, mencionam-se o tipo de estudo e a abrangência local da pesquisa, em parte inerentes à própria temática abordada sobre violência intrafamiliar a partir de mulheres que enfrentam diversos conflitos biopsicossociais como preconceito, medo, constrangimento, sofrimento psíquico, dentre outros. E os achados apontam para a relevância deste e futuros estudos que denunciem a problemática em questão, estimulando o processo de conscientização e reconstrução de conceitos sobre ideologia de gênero, bem como responsabilização, tratamento e acolhida adequada aos atores envolvidos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    Jul 2019

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2017
  • Revisado
    19 Out 2017
  • Aceito
    21 Out 2017
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