Resumos
Com o objetivo de discutir a perspectiva de profissionais de saúde sobre o cuidado às mulheres no climatério na Atenção Primária (AP), foi realizada pesquisa-intervenção por meio de oficinas com uma equipe da Estratégia Saúde da Família (ESF) e do Núcleo Ampliado de Saúde da Família (Nasf) de uma cidade paulista. Os trabalhadores reconheceram a ausência de ações ofertadas às mulheres climatéricas e a invisibilidade das demandas, ao relacionarem as queixas à Saúde Mental e relatarem estratégias de encaminhamento e medicalização do cuidado. Nos encontros, as equipes iniciaram as reflexões sobre as práticas e sugeriram a inclusão dessas mulheres em ações que já ocorrem nos serviços/territórios. Os depoimentos apontam para a inexistência de ações efetivas para as mulheres climatéricas, distanciando-se do cuidado integral na saúde da mulher e da construção coletiva de estratégias de cuidado nos contextos singulares de vida, território e gênero.
Palavras-chave
Estratégia Saúde da Família; Climatério; Saúde da mulher; Integralidade em saúde
With the aim of discussing health professionals’ perceptions of the care delivered to women going through the menopause in Primary Care Services, we conducted an interventional study involving workshops with family health teams in a city in the State of São Paulo. The health workers recognized the lack of actions directed at menopausal women and the invisibility of these women’s health needs, reporting mental health complaints, referral strategies and medicalization of care. During the workshops, the teams reflected on practices and suggested the inclusion of these women in actions developed by the services. The accounts of the health workers point to the inexistence of effective actions for menopausal women, distancing women’s health care from the principle of comprehensiveness and the joint construction of care strategies in unique life, regional and gender contexts.
Keywords
Family Health Strategy; Menopause; Women’s health; Comprehensive health care
Con el objetivo de discutir la perspectiva de profesionales de salud sobre el cuidado de las mujeres en el climaterio en la Atención Primaria, se realiza una investigación-intervención por medio de talleres con un equipo de la Estrategia de Salud de la Familia y del Núcleo Ampliado de Salud de la Familia de una ciudad del Estado de São Paulo. Los trabajadores reconocieron la falta de acciones ofrecidas a las mujeres climatéricas y la invisibilidad de las demandas, al relacionar las quejas a la salud mental y relatar estrategias de derivación y medicalización del cuidado. En los encuentros, los equipos iniciaron las reflexiones sobre las prácticas y sugirieron la inclusión de esas mujeres en acciones que ya ocurren en los servicios/territorios. Las declaraciones señalan la inexistencia de acciones efectivas para las mujeres climatéricas, distanciándose del cuidado integral en la salud de la mujer y de la construcción colectiva de estrategias de cuidado en los contextos singulares de vida, territorio y género.
Palabras clave
Estrategia Salud de la Familia; Climaterio; Salud de la mujer; Integralidad en salud
Introdução
O histórico das políticas públicas de saúde da mulher teve como marco, em 1984, o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), experiência concreta de inserção e incorporação do gênero nas políticas de saúde com foco na dimensão social. Antes disso, a saúde da mulher, incorporada às políticas nacionais de saúde nas primeiras décadas do século 20, limitou-se às demandas da gestação e do parto, traduzindo uma visão baseada em aspectos biológicos e do papel social de mãe e cuidadora da família11 Brasil. Ministério da Saúde. Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde; 2011..
Em 2016, o Ministério da Saúde (MS) brasileiro lança o Caderno de Protocolos da Atenção Básica – Saúde das Mulheres22 Brasil. Ministério da Saúde. Protocolos da atenção básica: saúde das mulheres. Brasília: Ministério da Saúde; 2016. e afirma a necessidade de avanços no cuidado integral desse público, diante do contexto histórico de práticas voltadas, predominantemente, à saúde reprodutiva (pré-natal, parto, puerpério e planejamento reprodutivo) e à prevenção de câncer de colo de útero e mama.
Pensar no cuidado integral à saúde da mulher significa, entre outros aspectos, colocar em análise as práticas profissionais, a organização dos serviços e as respostas governamentais aos problemas de saúde desse público33 Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca dos valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: IMS, UERJ, ABRASCO; 2001. p. 39-64.. Nessa perspectiva, insere-se a discussão sobre momentos da vida da mulher historicamente negligenciados, como o climatério, fase de passagem do período reprodutivo para o não reprodutivo44 Brasil. Ministério da Saúde. Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. (Série C, Projetos, Programas e Relatórios)..
Tomando-se brevemente o climatério no histórico das políticas públicas de saúde da mulher no Brasil, em 1994, o MS lançou a Norma de Assistência ao Climatério e em 1999, a atenção à saúde da mulher acima de 50 anos foi inserida no planejamento da Área Técnica de Saúde da Mulher (ATSM/MS)55 Maron L, Leal A, Bandeira D, Macedo PS, Garcia SS, Silva EB. A assistência às mulheres no climatério: um estudo bibliográfico. Rev Contexto Saude. 2011; 10(20):545-550.. Em 2004, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM) – princípios e diretrizes reforçou a importância da qualidade do atendimento a segmentos da população feminina ainda sem visibilidade e a problemas emergentes que afetavam a saúde desse grupo. Inseriu um capítulo específico sobre o climatério, que abordava, entre outros assuntos, o acesso à informação para que as mulheres tivessem repertório para escolher as ações preventivas e terapêuticas para o seu corpo44 Brasil. Ministério da Saúde. Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. (Série C, Projetos, Programas e Relatórios)..
Em 2008, o Manual de Atenção à Mulher no Climatério/Menopausa elaborado pela ATSM/MS reforçou os objetivos da Política Nacional quanto à atenção ao climatério e enfatizou o acolhimento e a ética nas relações entre profissionais e usuárias diante dos aspectos emocionais e psicológicos, frutos das transformações que acompanham o climatério. As opções terapêuticas preconizadas por esse manual contemplavam as indicações para a terapia de reposição hormonal e alternativas de tratamento, como a fitoterapia e a homeopatia66 Brasil. Ministério da Saúde. Manual de atenção à mulher no climatério/menopausa. Brasília: Ministério da Saúde; 2008. (Série A. Normas e Manuais Técnicos)., em concordância com revisões científicas que apontavam os benefícios desses tratamentos66 Brasil. Ministério da Saúde. Manual de atenção à mulher no climatério/menopausa. Brasília: Ministério da Saúde; 2008. (Série A. Normas e Manuais Técnicos).,77 Johnson A, Roberts L, Elkins G. Complementary and alternative medicine for menopause. J Evid Based Integr Med. 2019; 24:1-14..
Apesar dos esforços e avanços na inserção do climatério nas políticas públicas de atenção à saúde da mulher, diversos autores discutem que, na prática, a maior ênfase está na organização dos serviços e práticas profissionais em programas verticais, com vistas à melhoria dos indicadores epidemiológicos33 Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca dos valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: IMS, UERJ, ABRASCO; 2001. p. 39-64., como a mortalidade materno-infantil, tornando o cuidado às mulheres climatéricas ainda pautado na doença e/ou na medicalização do corpo88 Vidal CRPM, Miranda KCL, Pinheiro PNC, Rodrigues DP. Mulher climatérica: uma proposta de cuidado clínico de enfermagem baseada em ideias freireanas. Rev Bras Enferm. 2012; 65(4):680-684.
9 Araújo IA, Queiroz ABA, Moura MAV, Penna LHG. Representações sociais da vida sexual de mulheres no climatério atendidas em serviços públicos de saúde. Texto Contexto Enferm. 2013; 22(1):114-122.
10 Crema IL, Tilio R, Campos MTA. Repercussões da menopausa para a sexualidade de idosas: revisão integrativa da literatura. Psicol Cienc Prof. 2017; 37(3):753-769.-1111 Marlatt KL, Beyl RA, Redman LM. A qualitative assessment of health behaviors and experiences during menopause: a cross-sectional, observational study. Maturitas. 2018; 116:36-42..
Esse panorama indica a necessidade de construir caminhos para um olhar mais abrangente das necessidades das mulheres, com práticas preventivas e assistenciais articuladas, o que inclui escuta, acolhimento e reflexão sobre as relações de poder ditadas por gênero, raça/cor, classe e geração no processo de saúde-adoecimento-cuidado dessas mulheres1212 Coelho EAC, Silva CTO, Oliveira JF, Almeida MS. Integralidade do cuidado à saúde da mulher: limites da prática profissional. Esc Anna Nery. 2009; 13(1):154-160..
Tomando a atenção às mulheres climatéricas, por exemplo, os papéis sociais de gênero em uma sociedade patriarcal que valoriza a juventude, a beleza e a fertilidade, resultam em práticas profissionais reducionistas, biológico-centradas e, sobretudo, em uma percepção negativa e angustiante desse período, tanto dos profissionais como das mulheres que o vivem1010 Crema IL, Tilio R, Campos MTA. Repercussões da menopausa para a sexualidade de idosas: revisão integrativa da literatura. Psicol Cienc Prof. 2017; 37(3):753-769.,1313 Mendonça EAP. Representações médica e de gênero na promoção da saúde no climatério/menopausa. Cienc Saude Colet. 2004; 9(1):155-166.
14 Gonçalves JTT, Silveira MR, Campos MCC, Costa LHR. Overweight and obesity and factors associated with menopause. Cienc Saude Colet. 2016; 21(4):1145-1156.
15 Silva VH, Rocha JSB, Caldeira AP. Factors associated with negative self-rated health in menopausal women. Cienc Saude Colet. 2018; 23(5):1611-1620.
16 Salis I, Owen-Smith A, Donovan JL, Lawlor DA. Experiencing menopause in the UK: the interrelated narratives of normality, distress, and transformation. J Women Aging. 2018; 30(6):520-540.-1717 Yazdkhasti M, Negarandeh R, Moghadam ZB. An empowerment model of Iranian women for the management of menopause: a grounded theory study. Int J Qual Stud Health Well-being. 2019; 14(1):1665958..
A Atenção Primária (AP) é o lócus de cuidado a essas mulheres, responsável pelo acolhimento, pela escuta qualificada e oferta de ações de promoção da saúde, entre outras, garantindo a integralidade do cuidado. As recomendações mais atuais para a saúde da mulher nesse nível de atenção22 Brasil. Ministério da Saúde. Protocolos da atenção básica: saúde das mulheres. Brasília: Ministério da Saúde; 2016. reforçam que envelhecer é um processo biológico e recomendam abordagem humanizada, em ações de cuidado que englobem competências relacionais, aconselhamento, orientações e educação para a saúde e a qualidade de vida.
Nesse cenário, como pensar em formas de acolher e escutar as demandas dessas mulheres, na Atenção Primária à Saúde (APS), que resultem na construção de práticas de cuidado integral? Este artigo tem como objetivo analisar a perspectiva de profissionais de saúde que atuam em uma unidade da Estratégia Saúde da Família (ESF) sobre o cuidado ofertado às mulheres no climatério na AP.
Método
Foi realizado estudo exploratório de abordagem qualitativa, baseado em orientações teórico-metodológicas da pesquisa-intervenção com vistas a promover um contato direto com o campo de investigação, utilizando ferramentas que ampliassem a discussão sobre temas, processos e relações instituídas na APS. O ponto de partida foi a relação dinâmica entre pesquisador e objeto pesquisado/produção do conhecimento, que permite a implicação dos sujeitos no percurso teórico e metodológico da pesquisa-intervenção1818 Mendes R, Pezzato LM, Sacardo DP. Pesquisa-intervenção em promoção da saúde: desafios metodológicos de pesquisar “com”. Cienc Saude Colet. 2016; 21(6):1737-1746..
Foram convidados a participar do estudo todos os profissionais de uma equipe da ESF localizada em região de elevada vulnerabilidade de Santos, litoral de São Paulo, e da equipe do Núcleo Ampliado de Saúde da Família (Nasf) que apoia a unidade. Participaram da pesquisa 13 trabalhadores: agente comunitário (4), agente de vetor (1), cirurgião-dentista (1), educador físico (1), enfermeiro (1), farmacêutico (1), médico (1), nutricionista (1) e técnico de enfermagem (2).
A escolha da equipe se deveu à organização da unidade no modelo de ESF há mais de cinco anos; com quadro completo de recursos humanos, sem histórico recente de rotatividade de profissionais e com amplo conhecimento do território e das famílias/mulheres acompanhadas. A escolha de uma equipe completa partiu das experiências anteriores do Grupo Técnico de Saúde da Mulher (GTSM) do município, nas quais a participação de apenas um ou dois profissionais de cada unidade em capacitações apresentava poucos avanços na ampliação da discussão e de mudanças nas práticas cotidianas para o restante da equipe. A experiência com essa unidade poderia, portanto, oferecer ao GTSM subsídios para ampliação da discussão em toda a rede de AP da cidade.
Foram realizadas oficinas, ferramentas ético-políticas que favorecem trocas simbólicas, bem como a construção conjunta de outras possibilidades de produção de conhecimento de um determinado tema com mudanças nas práticas discursivas, em uma combinação única entre a coleta e a produção de informações1919 Spink MJ, Menegon VM, Medrado B. Oficinas como estratégia de pesquisa: articulações teórico-metodológicas e aplicações ético políticas. Psicol Soc. 2014; 26(1):32-43.. Foram cinco encontros, de outubro a dezembro de 2018, de aproximadamente 60 minutos, em espaço de reunião de equipe que já acontecia, estimulando a participação ativa dos profissionais no cotidiano do trabalho. Não participaram da pesquisa os trabalhadores que, no momento das oficinas, estavam em férias e/ou em atividade agendada em outras unidades. O número de participantes nas oficinas variou de dez a 13 e as justificativas para as ausências versaram sobre demandas inesperadas e emergenciais de ações na unidade e/ou no território.
Tomando a perspectiva da pesquisa-intervenção, na primeira oficina ocorreu a fase exploratória, com o planejamento dos encontros compartilhado com os participantes, a identificação do problema e a definição coletiva dos temas de interesse do grupo, bem como a frequência, dia e horário dos encontros. Cada oficina contou com questões disparadoras que permitiram, por meio das reflexões dos profissionais, compor um processo de elaboração e proposição de diagnósticos e ações de cuidado1919 Spink MJ, Menegon VM, Medrado B. Oficinas como estratégia de pesquisa: articulações teórico-metodológicas e aplicações ético políticas. Psicol Soc. 2014; 26(1):32-43. para a mulher no climatério. No último encontro, foi realizada a avaliação do processo e identificadas as sugestões para a continuidade do trabalho.
As oficinas foram gravadas e transcritas. O material completo, de todos os encontros, foi apreciado por meio da análise de conteúdo: um conjunto de técnicas de análise de comunicação, organizadas em procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, que permite ultrapassar as incertezas e enriquecer a leitura dos dados coletados, do olhar para falas e das significações2020 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011..
Para alcançar os significados manifestos e latentes no material produzido, optou-se pela análise temática por possibilitar a descoberta de núcleos de sentido que compõem uma comunicação, cuja presença ou frequência signifique algo para o objetivo analítico visado2121 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14a ed. São Paulo: Hucitec; 2014.. A análise incluiu as etapas de pré-análise (organização do conteúdo por meio da leitura exaustiva do material); de exploração do texto (classificação e agregação das informações em categorias simbólicas ou temáticas); e de análise crítica do material possibilitando o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação2020 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011.,2121 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14a ed. São Paulo: Hucitec; 2014..
As diretrizes mais recentes, de 2016, recomendadas pelo MS11 Brasil. Ministério da Saúde. Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde; 2011. para as mulheres no climatério, e a discussão dos sentidos da integralidade do cuidado proposta por Mattos33 Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca dos valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: IMS, UERJ, ABRASCO; 2001. p. 39-64. nortearam as análises do material produzido.
As análises resultaram em duas categorias: 1. A invisibilidade de demandas de mulheres em climatério: gênero e práticas profissionais; 2. Reflexões sobre a atenção a mulheres climatéricas: caminhos possíveis para a integralidade do cuidado.
O estudo se deu em conformidade com a Resolução n. 466 de 12 de dezembro de 2012 e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (parecer n. 2.937.075 de 3/10/2018). Todos os participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e foi utilizada a letra P, referente à profissional de saúde, para garantir o sigilo dos sujeitos da pesquisa.
Resultados e discussão
A invisibilidade de demandas de mulheres em climatério: gênero e práticas profissionais
Quando perguntados sobre as ações realizadas voltadas à saúde da mulher, os profissionais reconheceram práticas que priorizavam o período reprodutivo e a prevenção de câncer de mama e de colo uterino. Predominavam ações programáticas para grupos prioritários, como hipertensos e diabéticos (Hiperdia), recém-nascidos de risco e gestantes, e ênfase às campanhas de prevenção como o Outubro Rosa.
Fazemos a campanha do Outubro Rosa e solicitamos a mamografia. Quanto à gestante, focamos no acompanhamento do pré-natal. (P7)
O foco de atendimento da unidade é no grupo do Hiperdia e na redução da mortalidade infantil, ou seja, no cuidado com o recém-nascido de risco e na gestante. (P11)
Esses trechos reafirmam o conhecimento produzido na literatura sobre o predomínio de práticas voltadas à evitabilidade de mortes maternas e infantis22 Brasil. Ministério da Saúde. Protocolos da atenção básica: saúde das mulheres. Brasília: Ministério da Saúde; 2016.,33 Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca dos valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: IMS, UERJ, ABRASCO; 2001. p. 39-64.,88 Vidal CRPM, Miranda KCL, Pinheiro PNC, Rodrigues DP. Mulher climatérica: uma proposta de cuidado clínico de enfermagem baseada em ideias freireanas. Rev Bras Enferm. 2012; 65(4):680-684.
9 Araújo IA, Queiroz ABA, Moura MAV, Penna LHG. Representações sociais da vida sexual de mulheres no climatério atendidas em serviços públicos de saúde. Texto Contexto Enferm. 2013; 22(1):114-122.
10 Crema IL, Tilio R, Campos MTA. Repercussões da menopausa para a sexualidade de idosas: revisão integrativa da literatura. Psicol Cienc Prof. 2017; 37(3):753-769.-1111 Marlatt KL, Beyl RA, Redman LM. A qualitative assessment of health behaviors and experiences during menopause: a cross-sectional, observational study. Maturitas. 2018; 116:36-42., mesmo após quase duas décadas da implantação da PNAISM, em que foi firmado o compromisso de ampliar as ações para grupos historicamente esquecidos nas políticas públicas, como as mulheres no climatério. Cabe pontuar que a cidade em estudo compõe a região com as maiores taxas de mortalidade materno-infantil do estado de São Paulo.
Tomando a perspectiva da integralidade do cuidado, a organização da Atenção à Saúde da Mulher por meio de programas verticais, com vistas à melhoria de indicadores de saúde, não permite a ampliação das ações considerando as demandas da população, nem sempre explícitas nos encontros entre profissionais e usuárias. Não se trata de negar a importância dos indicadores epidemiológicos e da relevância da mortalidade materno-infantil na agenda do município, mas de reconhecer que algumas necessidades e ações não são apreendidas e/ou se justificam apenas pelos indicadores33 Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca dos valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: IMS, UERJ, ABRASCO; 2001. p. 39-64..
A limitação das práticas profissionais para mulheres no período reprodutivo e a organização do cuidado distante da integralidade, relatadas pelas equipes, contribuem para a invisibilidade das mulheres climatéricas e ausência de ações para esse público:
É difícil pensar em ações voltadas para a mulher nessa faixa etária porque não existe um espaço. Em todas as unidades que eu trabalho, nenhuma equipe tem a preocupação de olhar para a mulher com esse foco. Todos os lugares acabam acolhendo a demanda e não propondo um trabalho prévio. (P12)
A informação e a ação quanto aos sinais e sintomas que podem aparecer no climatério são pouco exploradas e a discussão com os profissionais de saúde para o acolhimento e a melhor abordagem também. [...] Às vezes a gente, por desconhecimento, minimiza o climatério. (P13)
Acho que eu pego esse período das mulheres, tem alterações de humor lá no grupo. Eu nunca pensei nessa possibilidade, sinceramente falando. (P4)
Os trabalhadores relataram uma organização do serviço e das práticas desarticulada das necessidades das mulheres, com ausência de discussão e proposição de outros olhares e abordagens que considerassem a escuta, o acolhimento e “um trabalho prévio”.
Para Mattos33 Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca dos valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: IMS, UERJ, ABRASCO; 2001. p. 39-64., a forma com que as ações se configuram socialmente interferem no alcance da integralidade do cuidado e no modo com que os profissionais respondem aos usuários. O desafio estaria em pensar em respostas não somente ao sofrimento manifesto e/ou às ações atreladas a programas específicos, mas à produção de vida e à garantia do direito à saúde – e ao cuidado – por meio do encontro e da organização dos processos de trabalho.
Nas discussões sobre as demandas das mulheres climatéricas do território, durante as oficinas, os discursos dos profissionais versaram sobre mulheres que não percebem os sintomas, diante da preocupação com as tarefas do cotidiano e/ou sobre queixas que os trabalhadores relacionam à sexualidade e à depressão.
Conversei com várias mulheres e perguntei se perceberam algum sintoma e elas disseram que não sentem nada. [...] Para a mulher acaba sendo normal sentir essas coisas, ela é tão preocupada com os filhos, a casa, o trabalho, que adia a procura por ajuda pelo cansaço do dia a dia e vai acumulando aquilo que sente. (P7)
Tem uns maridos que não entendem essa fase da mulher. Lembrei agora de uma usuária que reclamou: “meu marido não entende, reclama porque em toda relação sexual tem que usar gel, reclama quando fico irritada e que eu sou calorenta”. (P5)
Outro problema é não querer ter relação sexual porque vai doer [...] e ainda tem o receio de falar para o marido e ele pensar que tem outro parceiro ou que não sente mais amor por ele. Fica no dilema de querer ter relação, mas sentir dor. Um conflito interno que só piora a situação. (P7)
Nos grupos de hipertensos e diabéticos, a gente percebe que muitas mulheres na faixa dos 50 anos têm queixa de depressão, se sentem tristes ou relatam amargura, têm ansiedade, algumas referem que já não têm tanta libido. (P13)
Os profissionais reconheceram que os contextos de vida e as dificuldades cotidianas são empecilhos para a busca de apoio e cuidado à Unidade de Saúde da Família (USF) e, nesse sentido, reforçaram o distanciamento que têm das usuárias do território, na medida em que não apreendem o contexto de vida no exercício da escuta e acolhimento dessas mulheres, tampouco na construção compartilhada do cuidado.
Os profissionais parecem, também, não conseguir aprofundar as reflexões sobre as relações entre gênero/classe e o processo de saúde-adoecimento-cuidado dessas mulheres, quando relatam que a sobrecarga causada pelas múltiplas jornadas de trabalho desse público, dentro e fora de casa, as impede de perceber os sintomas e/ou procurar apoio profissional. Nesse sentido, as equipes não percebem que os conflitos cotidianos – e o ser mulher – contribuem para o adoecimento e também para a busca e a sustentação de ações de cuidado, como discutem Coelho et al.1212 Coelho EAC, Silva CTO, Oliveira JF, Almeida MS. Integralidade do cuidado à saúde da mulher: limites da prática profissional. Esc Anna Nery. 2009; 13(1):154-160.:
Nos espaços público e privado, profissionais e parceiros respectivamente limitam ou interditam a liberdade das mulheres [...] os conflitos da vida privada que expõem as mulheres aos agravos à saúde, à violência e à opressão. (p.157)
Olhar para a saúde da mulher – incluindo as climatéricas – e propor práticas organizadas pela integralidade do cuidado implica se debruçar sobre os papéis sociais da mulher e sobre a sexualidade e o sofrimento psíquico como expressões da experiência desse grupo, inserido em uma sociedade patriarcal e em contextos sociais de violação de direitos99 Araújo IA, Queiroz ABA, Moura MAV, Penna LHG. Representações sociais da vida sexual de mulheres no climatério atendidas em serviços públicos de saúde. Texto Contexto Enferm. 2013; 22(1):114-122.
10 Crema IL, Tilio R, Campos MTA. Repercussões da menopausa para a sexualidade de idosas: revisão integrativa da literatura. Psicol Cienc Prof. 2017; 37(3):753-769.-1111 Marlatt KL, Beyl RA, Redman LM. A qualitative assessment of health behaviors and experiences during menopause: a cross-sectional, observational study. Maturitas. 2018; 116:36-42.,2222 Thomas HN, Hamm M, Hess R, Thurston RC. Changes in sexual function among midlife women: “I’m older... and I’m wiser.” Menopause. 2018; 25(3):286-292..
Essa perspectiva é condizente com a contribuição do movimento feminista brasileiro na elaboração do PAISM, no sentido de ampliar o olhar para a saúde da mulher por lógicas emancipatórias, que considerem os contextos culturais e as diversas formas de dominação que implicam adoecimentos33 Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca dos valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: IMS, UERJ, ABRASCO; 2001. p. 39-64..
O papel feminino de fertilidade e maternidade dita estereótipos que podem levar a percepções e vivências negativas relacionadas à sexualidade durante o climatério, marcado pelo fim do período fértil. O que os profissionais descrevem como queixas são processos atravessados pelas dinâmicas de gênero e relações maritais, que colocam as mulheres em situações de violência e opressão, como as apontadas por Araújo99 Araújo IA, Queiroz ABA, Moura MAV, Penna LHG. Representações sociais da vida sexual de mulheres no climatério atendidas em serviços públicos de saúde. Texto Contexto Enferm. 2013; 22(1):114-122..
A parada da menstruação resulta em múltiplos sentidos para a mulher, gerando ao mesmo tempo sensações de alívio e de apreensão: acabam as restrições, desconfortos e preocupações, como, por exemplo, o risco de engravidar; mas se instala o receio, consciente ou não, da perda da feminilidade, do valor social e da saúde1616 Salis I, Owen-Smith A, Donovan JL, Lawlor DA. Experiencing menopause in the UK: the interrelated narratives of normality, distress, and transformation. J Women Aging. 2018; 30(6):520-540.. Pandey et al.2323 Pandey S, Porter M, Bhattacharya S. What women want from women’s reproductive health research: a qualitative study. Health Expect. 2015; 18(6):2606-2615. apontam, em contato com mulheres atendidas por serviços de saúde, que a menopausa é um dos temas relacionados à saúde reprodutiva que esse público gostaria de discutir e de inserir em processos de cuidado.
Essas questões ganham contornos singulares para as mulheres ocidentais, na medida em que a menopausa representa uma etapa de desvalorização diante do negativo estereótipo cultural do envelhecimento e da valoração da atratividade sexual da juventude. Estudo com mulheres britânicas aponta a narrativa da menopausa como uma luta que provoca desconforto e receio de rejeição entre os homens, colegas de trabalho e profissionais de saúde1616 Salis I, Owen-Smith A, Donovan JL, Lawlor DA. Experiencing menopause in the UK: the interrelated narratives of normality, distress, and transformation. J Women Aging. 2018; 30(6):520-540..
O silêncio e estigma dessa etapa intensificam as angústias das mulheres, em um sistema cultural de gênero que contrapõe a beleza e a fertilidade da juventude à perda e ao descontrole do envelhecimento. Revisão integrativa aponta a necessidade de discussão dos contextos sociais que envolvem gênero, para que as mulheres vivenciem esse período com maior tranquilidade, em processos singulares marcados pela cultura e pela sociedade1010 Crema IL, Tilio R, Campos MTA. Repercussões da menopausa para a sexualidade de idosas: revisão integrativa da literatura. Psicol Cienc Prof. 2017; 37(3):753-769..
Cabe pontuar que o território da área de abrangência da USF em estudo é uma das áreas de maior vulnerabilidade social do município, com condições precárias de moradia e de vida; com conflitos familiares relacionados ao consumo excessivo de álcool/drogas e à violência doméstica/sexual; com grande concentração de profissionais do sexo e população em situação de rua. Esse contexto tem impacto direto na organização do trabalho dos profissionais da ESF e Nasf, diante de situações complexas que desafiam o investimento em ações de promoção de saúde e prevenção de doenças, entre outros aspectos.
Nesse cenário, o olhar para o cuidado distante do contexto de vida das mulheres pode contribuir para que os profissionais associem a queixa de tristeza e amargura à depressão. Ainda que diversos estudos apontem que a depressão em mulheres é mais comum durante a menopausa2424 Lui Filho JF, Baccaro LFC, Fernandes T, Conde DM, Costa-Paiva L, Pinto Neto AM. Epidemiologia da menopausa e dos sintomas climatéricos em mulheres de uma região metropolitana no sudeste do Brasil: inquérito populacional domiciliar. Rev Bras Ginecol Obstet. 2015; 37(4):152-158.,2525 Raglan GB, Schulkin J, Micks E. Depression during perimenopause: the role of the obstetrician-gynecologist. Arch Womens Ment Health. 2020; 23(1):1-10., a ausência de escuta e acolhimento às condições de vida e saúde das mulheres podem reduzir as práticas profissionais à patologização e à medicalização da vida.
Muitas mulheres com queixa de depressão tratam com psiquiatra, por falta de manejo clínico ou ginecológico. E usam remédios e não largam mais, até porque tomando remédios dá uma sossegada. (P1)
Tomando o Caderno de Protocolos da Atenção Básica22 Brasil. Ministério da Saúde. Protocolos da atenção básica: saúde das mulheres. Brasília: Ministério da Saúde; 2016., que propõe uma abordagem humanizada das mulheres climatéricas, com o mínimo possível de intervenção e de uso de tecnologias duras (exames, medicamentos), percebe-se a grande lacuna entre as diretrizes propostas e as práticas profissionais, ilustradas pelos relatos de sofrimento psíquico que resultam em medicalização, em uma perspectiva biomédica e tecnicista de cuidado.
A medicalização como prática profissional para os casos de depressão e a ausência de ações para as mulheres climatéricas contribuem para a invisibilidade desse grupo nesse equipamento de AP, bem como para o distanciamento da integralidade do cuidado.
Sem perceber a mulher para além das práticas de saúde materno-infantil, os trabalhadores não reconhecem o direito à saúde desse grupo, independentemente da etapa da vida, trabalhando com as demandas que, quando chegam aos serviços/profissionais, não são associadas ao climatério. Esse cenário contribui para a responsabilização das mulheres pela fragilidade no autocuidado e pela afirmação de que o climatério só se torna uma questão para as mulheres quando a menstruação cessa.
Reflexões sobre a atenção a mulheres climatéricas: caminhos possíveis para a integralidade do cuidado
Diversos estudos referem a necessidade de incentivar os profissionais de saúde a atender as mulheres climatéricas com ações de saúde que as instrumentalizem para passar pelas transformações inerentes a essa etapa do seu ciclo vital99 Araújo IA, Queiroz ABA, Moura MAV, Penna LHG. Representações sociais da vida sexual de mulheres no climatério atendidas em serviços públicos de saúde. Texto Contexto Enferm. 2013; 22(1):114-122.,1010 Crema IL, Tilio R, Campos MTA. Repercussões da menopausa para a sexualidade de idosas: revisão integrativa da literatura. Psicol Cienc Prof. 2017; 37(3):753-769.,1616 Salis I, Owen-Smith A, Donovan JL, Lawlor DA. Experiencing menopause in the UK: the interrelated narratives of normality, distress, and transformation. J Women Aging. 2018; 30(6):520-540.,2626 Leite ES, Oliveira FB, Martins AKL. Perspectivas de mulheres sobre o climatério: conceitos e impactos sobre a saúde na atenção básica. Rev Pesqui Cuid Fundam. 2012; 4(4):2942-2952..
Nesse sentido, as oficinas propiciaram espaços de enunciação das fragilidades do cuidado prestado às mulheres, em um processo de reflexão desencadeado pelos encontros que pautaram o cotidiano de trabalho na USF.
Ter participado dessas oficinas valeu pra mim. Agora quando a gente atende as mulheres e ouve suas queixas, a gente pensa no climatério. Antes disso, eu não conseguia relacionar a depressão com essa fase. Agora é o contrário, eu penso primeiro no climatério. Depois que a gente começou com esse papo, me chamou a atenção a coceira na pele, o incomodo de acordar suada no ar condicionado, que passavam despercebidos. (P1)
A gente tem que ter o cuidado de não patologizar tudo que a gente escuta. Tem que entender que esse processo é natural, que para algumas mulheres pode sobressair mais, pra outras nem tanto. É um processo, é uma fase da vida, senão começa a dar remédio logo de início e a própria pessoa já se sente como tendo um problema de saúde. (P3)
Precisamos começar a pensar em como se preparar para o envelhecimento, quais são suas expectativas pra vida futura? Existem projetos de vida para mulheres além dos 60 anos? Temos que encontrar prazer em outras coisas porque emocionalmente isso também faz diferença. (P10)
Os trabalhadores relataram que as oficinas contribuíram para aumentar o conhecimento e sanar as dúvidas sobre o climatério, bem como para o entendimento dessa fase como parte inerente à vida da mulher.
Ao longo dos encontros, os profissionais identificaram algumas possibilidades de cuidado às mulheres climatéricas: a inclusão do tema nos grupos na USF (grupo de Hiperdia, sala de coleta de exames), com a presença tanto de mulheres como de homens/companheiros; a inclusão das mulheres em atividades no território (caminhada); o apoio do agente comunitário de saúde (ACS) para reconhecimento das queixas das mulheres durante as visitas domiciliares (VD), a fim de potencializar o olhar para as dinâmicas do território e da casa.
Quais as opções que podemos dar? A primeira coisa que eu faria era convidar para ir à unidade, participar do grupo de caminhada, do grupo de exercício físico. É uma forma de ofertar opções que possam dar prazer. (P6)
Outra coisa é tentar fazer um grupo diferente. Qualquer profissional deve deixar a mulher falar porque compartilhar com outras pessoas é legal. Temos que ter paciência. Os ACS vão reconhecer os sintomas na fala das mulheres durante a VD. Minha sugestão é dos ACS levantarem as mulheres dessa faixa etária em suas áreas pra gente marcar uma tarde e fazer um grupo. Temos uma agenda de grupos com vários temas e podemos incluir a menopausa/climatério. (P8)
Podemos conversar com as mulheres no dia da coleta de preventivo e no grupo do Hiperdia. Dar orientações para os parceiros, pra eles também entenderem sobre o climatério. Já pensou no impacto se as pessoas souberem mais desse assunto? (P11)
Nesses trechos, os profissionais apresentaram proposições de inclusão das mulheres climatéricas nos espaços de práticas já existentes, e não avançaram em estratégias concretas para a organização dos processos de trabalho e práticas de cuidado para essas usuárias, com base nas demandas mais ou menos explícitas no contato com as mulheres.
Especificamente sobre o manejo dos aspectos relacionados ao sofrimento psíquico, as equipes mencionaram os serviços de atenção especializada em Saúde Mental – Centro de Apoio Psicossocial (Caps) – e o diálogo com profissionais de formação específica:
Um outro lugar que seria legal de passar uns dias é o Caps porque quantas mulheres nessa faixa etária tomam antidepressivos? Os profissionais não pensam nisso e as mulheres passam a vida tomando remédio. Então, vamos abrir o olhar pra isso. Os pacientes classificados como casos leves estão retornando dos Caps para a AP. (P1)
A gente procura mostrar outras opções como atividade física ou terapia comunitária ou, ainda, tentar uma conversa com a psicóloga do Nasf em espaço mais reservado. (P13)
Essas afirmações se aproximam de reflexões que resultam em um cuidado baseado no encaminhamento, seja para o Caps seja para o profissional do Nasf que podem produzir intervenções desvinculadas de questões inerentes ao climatério. A classificação de casos leves, que resulta no “retorno” da mulher para a AP, reforça a lógica de encaminhamento entre os equipamentos da rede de apoio psicossocial e contribui para um cuidado construído na lógica biomédica. Nessa perspectiva, a mulher não é entendida como parte na construção do cuidado2727 Valença CN, Nascimento Filho JM, Germano RM. Mulher no climatério: reflexões sobre desejo sexual, beleza e feminilidade. Saude Soc. 2010; 19(2):273-285. e alternativas no território – atividade física e terapia comunitária – podem se configurar como possibilidades na construção de um projeto de cuidado dialogado e compartilhado.
Os protocolos e recomendações existentes sobre o climatério, assim como a literatura sobre o assunto, propõem mecanismos que asseguram o acesso e o acolhimento adequado às mulheres, considerando a integralidade do cuidado por equipe multiprofissional11 Brasil. Ministério da Saúde. Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde; 2011.,22 Brasil. Ministério da Saúde. Protocolos da atenção básica: saúde das mulheres. Brasília: Ministério da Saúde; 2016.,1111 Marlatt KL, Beyl RA, Redman LM. A qualitative assessment of health behaviors and experiences during menopause: a cross-sectional, observational study. Maturitas. 2018; 116:36-42..
Ainda que o conjunto de trabalhadores participantes das oficinas contemple uma equipe multiprofissional, os trechos que envolvem as queixas de sofrimento psíquico ilustram a frágil articulação entre os profissionais – Caps, ESF e Nasf – e o distanciamento da integralidade do cuidado. Investir nessa articulação poderia contribuir para a reorientação de práticas e da rede de cuidado, com ações individuais e coletivas. Práticas contextualizadas contribuiriam, portanto, para a promoção da coprodução do cuidado, o cuidar de si, com o envolvimento dos parceiros e rede de apoio.
Considerando a complexidade de construir um cuidado integral às mulheres nos contextos sociais e históricos desse público, novas e outras ações de cuidado ainda são necessárias. Nos encontros, os profissionais identificaram fragilidades, mas apenas ensaiaram a proposição de mudanças. As equipes propuseram outros momentos de discussão coletiva para o grupo e apoio do GTSM na ampliação da discussão para a rede de saúde da cidade, incluindo o Caps.
Cabe pontuar que essa experiência é um pontapé inicial, com respaldo da gestão municipal, uma vez que o GTSM inseriu, ineditamente, no Plano Municipal de Saúde para o período de 2018 a 2021, um objetivo para o fortalecimento das ações relacionadas ao climatério, na diretriz denominada Fortalecimento de Políticas e Programas de Saúde inserida no eixo das Políticas e Programas de Saúde Prioritários. Investimentos iniciais de criação de um protocolo específico sobre a atenção às mulheres no climatério e a padronização do uso de isoflavona, bem como de outros medicamentos para reposição hormonal por via oral e creme vaginal, foram realizados.
O GTSM envida esforços para a discussão compartilhada e permanente, com os profissionais de saúde, sobre os desafios e caminhos para a construção de práticas de cuidado integral com as mulheres climatéricas residentes em territórios vulnerabilizados.
Considerações finais
Nas oficinas, os profissionais da AP reconheceram a predominância de ações voltadas a mulheres no período reprodutivo, bem como dúvidas sobre o climatério, que os levavam a não associar as queixas das mulheres a esse período da vida. Tal cenário resulta em um atendimento baseado em sintomas isolados, em ações de cuidado que envolvem a medicalização e os encaminhamentos a equipamentos de Saúde Mental, distanciando-se do cuidado integral.
As sugestões dos profissionais, no que diz respeito às ações de cuidado às mulheres climatéricas, abarcaram a inclusão desse público – e seus parceiros – nas atividades já existentes na unidade, de cuidado individual, em grupo e nas VD. Os caminhos possíveis para outra forma de cuidar dessas mulheres ainda precisam ser construídos no contexto do território, do município e, sobretudo, do papel social construído para as mulheres na sociedade. São contextos de violação de direitos, de múltiplas jornadas de trabalho produtivo e reprodutivo e de fragilidade nas redes de apoio.
Esses resultados trouxeram, para as equipes e para o GTSM, a expectativa de desenvolver ações e cuidados efetivos construídos em espaços de reflexão sobre as dinâmicas da região e do cuidado em saúde, fortalecendo o apoio e o repertório dos profissionais diante dessa tão complexa fase da vida da mulher.
O conhecimento produzido nas oficinas contribuiu para iluminar a complexidade do cuidado às mulheres climatéricas, no que diz respeito: à invisibilidade desse público em um cuidado historicamente prioritário no período reprodutivo; ao desafio de pensar no cuidado à mulher em uma sociedade patriarcal; à construção de um cuidado integral em tempos de desmonte do SUS e precarização do trabalho em saúde.
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Luz MMF, Frutuoso MFP. O olhar do profissional da Atenção Primária sobre o cuidado à mulher climatérica. Interface (Botucatu). 2021; 25: e200644 https://doi.org/10.1590/interface.200644
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Jul 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
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Recebido
11 Set 2020 -
Aceito
05 Mar 2021