Resumos
Dado o contexto pandêmico, terapeutas ocupacionais refletem sobre atividades humanas, cotidianos e relações sociais em uma construção contra-hegemônica em diálogo com Ailton Krenak e sua cosmovisão. Problematizando perspectivas que dissociam seres/natureza/cultura/vida e não consideram os impactos dos modos de vida; inspiram-se nessa perspectiva para potencializar experiências e renovar o compromisso ético-político-cultural com a coletividade. Identificamos afinidades propositivas: pessoas-coletivas; a ressignificação da humanidade e da vida em sua interdependência em constelações de seres; o acolhimento dos encontros intensificando alianças afetivas; a presença na experiência pois o que existe é o agora; e o deslocamento urgente dos modos de vida modernos pela criatividade e poesia da resistência com reinvenção e criação de mundos possíveis mobilizados pelo cantar, dançar, suspender o céu e construir paraquedas coloridos.
Palavras-chave Terapia Ocupacional tendências; Cosmologia; Ecologia de saberes; Mudança social
In the context of a pandemic, occupational therapists reflect on human activities, the everyday, and social relations, in a contra>-hegemonic construction that intersects with Ailton Krenak’s cosmovision. Problematizing perspectives that dissociate beings/nature/culture/life and disregard the impacts of modes of living, this study draws on this perspective to potentiate experiences and renew the ethical-political-cultural commitment to the collective. We identified propositive affinities: people-collectives; the resignification of humanity and life in its interdependence in constellations of beings; the receptiveness of encounters intensifying affective alliances; the presence in experience because all that exists is now; the urgent shift in modern modes of living and poetry of resistance, with the reinvention and creation of possible worlds mobilized by singing, dancing, suspending the sky, and building colorful parachutes.
Keywords Occupational trends; Cosmology; Knowledge ecology; Social change
Considerando el contexto pandémico, terapeutas ocupacionales reflexionan sobre actividades humanas, cotidianos y relaciones sociales en una construcción contra-hegemónica en diálogo con Ailton Krenak y su cosmovisión. Problematizando perspectivas que disocian seres/naturaleza/cultura/vida y no consideran los impactos de los modos de vida, se inspira en esa perspectiva para potencializar experiencias y renovar el compromiso ético- político-cultural con la colectividad. Identificamos afinidades propositivas: personas-colectivas; la resignificación de la humanidad y de la vida en su interdependencia en constelaciones de seres; la acogida de los encuentros intensificando alianzas afectivas; la presencia en la experiencia, puesto que lo que existe es el ahora; y el desplazamiento urgente de los modos de vida modernos por la creatividad y poesía de resistencia con reinvención y creación de mundos posibles movilizados por el cantar, bailar, suspender el cielo y construir paracaídas de colores.
Palabras-chave Terapia ocupacional tendencias; Cosmología; Ecología de saberes; Cambio social
Introdução
Recentemente o encontro de um vírus com a vida humana afetou todo o mundo. Dimensões da vida passaram a se estabelecer no modo on-line, acelerando drasticamente um processo de virtualização dos cotidianos já em curso. Desigualdades, exclusões e a descartabilidade de grupos vulneráveis foram intensificadas globalmente com o reconhecimento da fragilidade da vida, da insuficiência dos sistemas de cuidado e da desigualdade na distribuição dos recursos.
Nesse contexto, terapeutas ocupacionais colocaram-se a pensar sobre os impactos nos modos de vida, nas atividades humanas, nos cotidianos e nas relações sociais. Afirmamos e acompanhamos ressonâncias no campo por meio da busca por romper com a colonialidade do poder, do saber e do ser1,2, da criação de práticas significativas e dos compartilhamentos afetivos das experiências. Espreitamos um deslocamento conceitual e prático em curso desdobrando elementos para a reflexão que aqui se constela. Como lidar com as crises tão presentes nos cotidianos? Como aproveitar as aberturas no tempo e nos ritmos que a pandemia instaura? Como adiar o fim do mundo?3.
Neste texto, pretendemos estabelecer um diálogo com proposições de Ailton Krenak na construção contra-hegemônica e decolonial dos modos de ser-fazer-pensar-sentir Terapia Ocupacional. Essa tessitura busca recuperar certos fazeres em que possam fluir as conexões, os afetos, os cuidados com o vivo e as sensibilidades, considerando a necessidade de reposicionamento, abrindo pontos de vista comprometidos ética e politicamente com a transformação. Aqui, sonhar e pensar mundos compõem o desejo de reconhecer novas possibilidades para a vida.
Atividades humanas, cotidianos e relações sociais
Ao nos determos em temas priorizados pela Terapia Ocupacional (TO), intensificados pela pandemia, acompanhamos alterações nos cotidianos, problematizamos as atividades humanas e revisamos as estruturações das relações sociais pela necessidade e pela impossibilidade do contato. Vimos acentuar desigualdades e exclusões, o que exige mobilizações sociais, políticas e econômicas para enfrentar o empobrecimento da população e garantir a sobrevivência dos grupos historicamente marginalizados4.
A vida cotidiana, como a conhecemos, está impregnada das atividades humanas que tecem, organizam, estabelecem, orientam e estruturam o que costumamos chamar de “as vidas das pessoas” – essas formas e modos plurais como experimentamos, compreendemos e enunciamos a experiência de estarmos vivos acentuam o entendimento do cotidiano como a composição dessas expressões da vida.
Nós nos centraremos nas experiências do vivo materializadas nos seres humanos, respeitando nossa necessidade vital, complementar e interdependente de todas as demais e inúmeras outras formas e experiências de vida na Terra, considerando que “os humanos não são os únicos seres interessantes e que têm uma perspectiva sobre a existência. Muitos outros também têm”3 (p. 32).
As atividades humanas são singulares, coletivas e, ainda que exercidas por uma pessoa única, são a composição e a representação de um todo coletivo – do presente, passado e futuro –, interconectadas e interdependentes de todas as esferas comunitárias que compõem a humanidade como natureza-cultura. Aliás, as pessoas necessitam de seus vínculos profundos com sua memória ancestral para sustentar sua existência e identidade3.
Afastamo-nos de algumas perspectivas em Terapia Ocupacional que insistem em dissociar os sujeitos do ambiente visto como contexto ou entorno, delimitando as possibilidades de composição entre pessoas, coletivos e espaços que habitam e convivem, corroborando com a desresponsabilização comunitária, social, cultural e ecológica do ser-fazer-pensar-sentir no mundo em uma perspectiva individualista perpetrada pelo capitalismo neoliberal.
De fato, muitas vezes acompanhamos devastações, explorações indiscriminadas e relacionadas à produção do capital que estabelecem uma relação de desrespeito com a natureza, com os ambientes diversos e com os outros seres – o socius – em atividades predatórias. Isso imprime a urgente necessidade de desconstrução e reposicionamento diante da vida cotidiana, com invenção de novos modos de fazer, cuidar e se relacionar com as múltiplas formas de existência.
Essa complexidade nos requisita um constante redimensionamento da compreensão das nossas ações em Terapia Ocupacional. Se, por um lado, há a compreensão de “uma ontologia de causalidade circular: ao realizar atividades em seu dia a dia, o homem se constitui, isto é, o ser humano se faz fazendo”5 (p. 62), que nos convoca imediatamente para essa constituição artesanal e minuciosa da vida singularmente a cada sujeito; por outro lado, não podemos nos furtar a compreensões sócio-históricas das dinâmicas dos poderes, interesses e políticas macroestruturais, capitalísticas e colonizadoras.
As atividades humanas e os modos de fazer expressam e materializam a composição de linhas intensivas diversas na produção de diferentes formas de existir, em relações múltiplas e plurais possíveis entre forças sociais e culturalmente constituídas e os movimentos singulares de implicação e coprodução dessas mesmas forças6. Nesse processo, expressamos no cotidiano, no que fazemos, teias de relações e sentidos que revelam experiências, possibilidades e limites que nos aproximam ou distanciam das potências de afirmação e expansão da vida.
Diante disso, colocamos a questão: O que nossos modos de viver, nossos fazeres e cotidianos revelam sobre nossa existência singular-coletiva no momento atual, suas possibilidades de destruição, criação e transformação?
Segundo o líder indígena, o homo sapiens no seu percurso “evolutivo” foi se separando das outras espécies, produzindo a cisão homem/natureza. Tal separação e outros binômios como natureza/cultura, sujeito/objeto, homem/mulher, indivíduo/coletivo, foram investidos nos últimos séculos por dispositivos e mecanismos da modernidade em perspectiva dicotômica, opositiva e hierárquica, sustentando a concepção atual de humanidade e humano3.
De acordo com Krenak3, nessa caminhada o homem branco foi se considerando mais humano que os outros e na sua concepção moderna, com escalas de superioridade, produziu as humanidades e as sub-humanidades.
Enquanto isso, a humanidade vai sendo deslocada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a terra. Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes – a sub-humanidade3. (p. 20)
No entanto, essa ideia de viver deslocado da terra é uma “abstração civilizatória”3 (p. 22) que “suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos”3 (p. 22-23) na produção de uma “humanidade homogênea”3 (p. 24) baseada no consumo, porque deixa a natureza e se conecta à mercadoria. Somos condicionados a essa concepção de humano e a uma ideia de existência produzida nessa lógica que sustenta a exploração do planeta em suas diversas formas de vida3.
A experiência da pandemia, de maneiras diversas, não equânimes e unânimes, alterou ritmos e formas da produção do viver. As mobilizações provocadas em escala global convocaram interferências, relações e implicações humanas não habituais no meio ambiente e nos sentidos de individualidade e coletividade. Em uma perspectiva cotidiana, impuseram adaptações e rupturas que podem nos ajudar a olhar mais atentamente para a experiência humana, seus aprisionamentos, opressões, violências, desigualdades, mas também possibilidades de resistência, criação e renovação. Se não o suficiente para adiar o fim do mundo3, talvez potente na provocação de experimentações, movimentos, conexões e criações que afirmem e possam ampliar a construção de outros mundos possíveis.
A disputa política e discursiva que polariza economia e saúde reforça os dispositivos7 de um sistema que prioriza a produção, o mercado e uma determinada lógica de desenvolvimento autodestrutivo. A fricção da situação pandêmica trouxe outra perspectiva sobre o cuidado no cotidiano. Atividades de autocuidado e manutenção com novas qualidades de atenção entraram em foco e tomaram a dianteira das principais ações para a organização do tempo e dos dias, intensificando cuidados, riscos e outros modos de ser-fazer-pensar-sentir.
O que reforça uma compreensão de saúde não deslocada das pessoas e da vida dos seres em conexão, intrínseca à cosmovisão indígena Krenak. A saúde “vem do espírito, é compartilhada, vem do sonho”8, ressalta Krenak8 em entrevista: “é profundamente implicada com as escolhas que são feitas no cotidiano e com suas relações. Não só com o que você faz, mas com o que todos os que estão ao seu redor fazem, pensam ou desejam”8.
Há um processo de revisão e reflexão em curso. Esgotamentos dos modos de vida, de produzir, trabalhar e consumir pedem outras configurações e pausas para novas formulações e conscientizações. Convocam-nos a “revitalizar uma corporeidade massacrada e alienada”5 (p. 68) diante da “perda do sentido do gesto”5 (p. 68), produzida pelas formas burguesas e hierárquicas do capitalismo mundial integrado, que acelera e opera a vida pelo consumo, pela exclusão e pela violência, pela poluição da natureza e do que é vivo5.
As atividades humanas, ao serem consideradas por pessoas-coletivas, ganham novas intensificações e significações, entram em foco outras temporalidades, outros contextos, engajamentos e modos de produção de subjetividades. Discernindo os processos hegemônicos que produzem desigualdades e exclusões na constituição das identidades e subjetividades definidas, hierarquizadas e reprodutoras de poderes patriarcais, coloniais, capacitistas, aporofóbicos, entre outros9; as atividades humanas são reconhecidas por meio de experiências únicas contextualizadas, situadas como expressões singulares e coletivas.
A diversidade de experiências, acionada pelos seres ativos e contemplativos no mundo, abre um amplo leque de possibilidades para prosseguir as existências. Emergem necessidades anteriormente consideradas secundárias: cuidar da natureza, dos seres e dos tempos em comunhão, repensar as relações e os afetos desses encontros. Novas operações de criar e recriar sentidos, conhecer e reconhecer ritmos, revisitar e inventar modos de vida, afirmar e reafirmar a vida que quer prosseguir, entram em cena.
Em Terapia Ocupacional, as atividades humanas estão ligadas aos processos de criação e invenção de novos modos de fazer e de viver os dias. A artesania das atividades altera os modos de viver e traz intensificações estéticas nas quais os seres são produzidos, em experiências intensivas, indispensáveis à existência5.
Nessa direção, o trabalho do dia a dia pode conjurar duas possibilidades: a intensificação da vida ou a mortificação do corpo [...] a intensidade do gesto não está na sua monumentalidade […], mas no sentido existencial que ele carrega, na sua força poética expressiva e intensificadora da vida5. (p. 74)
Constela-se uma reconfiguração nos modos de existência, no cuidado e nas relações ao perceber que “estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda”3 (p. 45).
Rumo ao fim dos mundos
“Qual é o mundo que vocês estão agora empacotando para deixar às gerações futuras? O.k., você vive falando de outro mundo, mas já perguntou para as gerações futuras se o mundo que você está deixando é o que elas querem?”3 (p. 68).
As atividades humanas podem ser entendidas como a própria ação humana no mundo para transformação da natureza. Mas a ideia de transformação e progresso, na perspectiva desenvolvimentista, política e econômica hegemônica atual, é baseada na exploração, na devastação e no uso irresponsável de recursos finitos e não renováveis; a terra é vista como mercadoria e propriedade privada monopolizável e alienável10.
Assim, as atividades humanas também podem ser intensamente destrutivas e desalentadoras, já que possibilitam a destruição e inúmeras catástrofes, sobretudo sobre os diversos tipos de vida em dimensão global. Essa racionalidade tem perpetuado a ideia da natureza descolada da humanidade, e como consequência sua exploração e consumo sem responsabilidade pelos impactos atuais ou consequências futuras. O prazer imediato e a geração de capital desprezam qualquer passado ou futuro, seus riscos e custos sociais e ambientais.
O futuro nem existe e já está contaminado com o descompasso de hoje, desse momento em que o cuidado deveria estar acontecendo, pois “não existe futuro […] o que existe é esta manhã”11, a vida ofertada no agora. Esse despertar compreende que o propósito do hoje é parte de uma rede profunda de relações interconectadas com tudo que nos faz estar vivo – não em sobrevida ou vida amortizada e automatizada.
Podemos compreender que a ampliação da consciência sobre nossa existência e sobre nossa ação no mundo pode despertar um novo ser-fazer-estar-sentir. A conexão e a interdependência entre pessoas-coletivas e o que é vivo demanda responsabilidades, cuidados cotidianos, éticas e valores para além do que está na superfície dos sistemas e poderes hegemônicos.
Nos interessa a interdependência compreendida como “conjunto de atividades, trabalhos e energias interconectadas em comum para garantir a reprodução simbólica, afetiva e material da vida”10 (p. 48). A reprodução da vida, nesse sentido, se refere “ao conjunto de atividades e fazeres materiais, afetivos e simbólicos que geralmente são invisibilizados, negados, desvalorizados, feminizados, naturalizados no capitalismo-patriarcado-colonialismo e que são ao mesmo tempo a base de extração e geração de valor”12 (p. 52).
Para que essa compreensão enraíze, precisamos problematizar a visão individualista e meritocrática que prioriza independência e autonomia, tão mencionadas nos processos de cuidado em Terapia Ocupacional. Ser independente e autônomo para produzir e consumir, para ser incluído na lógica moderna de desenvolvimento, corroborando necessariamente com o sistema explorador-explorado, para “comer o mundo”8, ignorando que “nós somos o mundo”8. “Sentimo-nos como se estivéssemos soltos num cosmos vazio de sentido e desresponsabilizados de uma ética que possa ser compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas”3 (p. 44).
Tanto a reprodução técnica quanto a ciência se tornaram produtos de consumo e meios de dominação e exploração do mundo, servindo à hierarquização dos saberes. A própria ciência “vive subjugada por essa coisa que é a técnica”3 (p. 63). E o “desconforto que a ciência moderna, as tecnologias, as movimentações que resultaram naquilo que chamamos de ‘revoluções de massa’, tudo isso não ficou localizado numa região, mas cindiu o planeta”3 (p. 61).
Os laboratórios planejam com antecedência a publicação das descobertas em função dos mercados que eles próprios configuram para esses aparatos, com o único propósito de fazer a roda continuar a girar. Não uma roda que abre outros horizontes e acena para outros mundos no sentido prazeroso, mas para outros mundos que só reproduzem a nossa experiência de perda de liberdade, de perda daquilo a que podemos chamar inocência, no sentido de ser simplesmente bom, sem nenhum objetivo3. (p. 64-5)
Enquanto a humanidade se reduz a alguns, sustentada pela ilusão da individualização e do antropocentrismo, a “experiência das pessoas em diferentes lugares do mundo se projeta na mercadoria”3 (p. 45), que é valorizada na condição de exótico. Cuidar dos cotidianos da forma que tem sido feito sustenta apenas “espaços de segurança temporária”3 (p. 45) e relações de consumo, “à custa da exaustão de todas as outras partes da vida”3 (p. 46).
O mundo como conhecemos vai acabar. “O fim do mundo talvez seja uma breve interrupção de um estado de prazer extasiante que a gente não quer perder. Parece que todos os artifícios que foram buscados pelos nossos ancestrais e por nós têm a ver com essa sensação”3 (p. 60). É mais fácil imaginar o fim do mundo do que construir outras formas de relação com a vida, do que aprender com as formas de vida que continuam existindo e resistindo a milhares de anos, mesmo às custas do desenvolvimento, da ordem e do progresso capitalista.
Não tem fim do mundo mais iminente do que quando você tem um mundo do lado de lá do muro e um do lado de cá, ambos tentando adivinhar o que o outro está fazendo. Isso é um abismo, isso é uma queda. Então a pergunta a fazer seria: “Por que tanto medo assim de uma queda se a gente não fez nada nas outras eras senão cair?”3. (p. 62)
Outros povos, em outros tempos, já passaram pelo fim de seus mundos. Os povos da terra que foi chamada Brasil receberam a visita do homem branco e morreram. Para eles, o fim do mundo foi no século 16 e “fez com que essa parte da população desaparecesse”3 (p. 71), e “muitos eventos que aconteceram foram o desastre daquele tempo”3 (p. 72). No momento atual, estamos “vivendo o desastre do nosso tempo, ao qual algumas seletas pessoas chamam Antropoceno. A grande maioria está chamando de caos social, desgoverno geral, perda de qualidade no cotidiano, nas relações, e estamos todos jogados nesse abismo”3 (p. 72).
O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim3. (p. 26-7)
Pessoas-coletivas criando paraquedas coloridos
[…] passamos o tempo inteiro morrendo de medo. Então, talvez o que a gente tenha de fazer é descobrir um paraquedas. Não eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos. Já que aquilo de que realmente gostamos é gozar, viver no prazer aqui na Terra3. (p. 63)
Se não nos interessa reproduzir formas e estruturas de saber-fazer na lógica da dominação, às custas do aniquilamento da potência de diferenciação e pluralidade da vida, é preciso afirmar e ampliar formas outras de perceber, se relacionar e criar, o que pensamos ser um desafio crucial para a Terapia Ocupacional diante do fim dos mundos.
Trata-se de um convite à uma (r)existência baseada na criação e na expansão de experiências e mundos plurais. Considerando a produção das subjetividades como uma forma de resistir às violências e aos aniquilamentos do viver, levantamos a questão: o que as histórias das pessoas nos revelam em sua potência de singularização, diversidade e criação, em sentido contrário à padronização que transforma os humanos em consumidores, limitando a multiplicidade de visões e experiências de vida a uma falsa ideia de que somos iguais?
Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir a nossa mente para alguma cooperação entre os povos, não para salvar os outros, mas para salvar a nós mesmos3. (p. 44)
As pessoas pertencem a coletivos, suas histórias são de profunda interação com uma constelação de gente, cheias de sentidos e significações que expressam as teias de atividades, cotidianos e relações, marcas e potencial de ressignificação das existências singulares-coletivas. O que nossos fazeres e os sentidos a eles atribuídos revelam a respeito de nossas visões e poéticas sobre a existência?
Apreciar as atividades e seus sentidos13, conhecer e compreender as constelações de seres e suas formas de se relacionar e produzir coletividades, convocam terapeutas ocupacionais. Essa apreciação reconhece o alargamento da subjetividade, o cantar e dançar para suspender o céu e o “viver a experiência da nossa própria circulação pelo mundo”3 (p. 27) podendo “contar uns com os outros”3 (p. 27).
A Terapia Ocupacional, desde sua fundação, valoriza a experiência objetiva e subjetiva das ocupações e atividades, a relação holística que rompe com certos binarismos, a necessidade de práticas situadas e contextualizadas, a premissa sobre ser ativo e ver propósito e significado no que e como se faz14, acionando seu compromisso ético-político, desejando a diferença15 e a diversidade. Em sua história, produziu técnicas e, em muitas situações, se distanciou da sensibilidade perceptiva do mundo e do viver, mas tem buscado rever suas escolhas e se amparado menos em “objetivos assertivos” e mais em composições e experimentações sem garantias prévias, acolhendo outras concepções de cuidado e de viver junto16.
Referimo-nos a lidar com o que se apresenta sem apego a protocolos técnicos ou à ontologia da ação, tão clamados pela produtividade. “Quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é só empurrá-lo e respirar”3 (p. 28), fazer menos, pausar, recolher-se, aproveitar o não fazer e a “inutilidade”, desativar, contemplar as fragilidades que nos compõem, sem julgar ou tentar superar ou corrigir. Esse é o respiro de que precisamos para enxergar outras paisagens, reconhecendo que o pausar e o contemplar compõem e resgatam a vida também.
Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos. […] Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas “pessoas coletivas”, células que conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo3. (p. 28)
É preciso encarar o desafio com coragem para reconhecer os equívocos e reinventar, recriar maneiras possíveis, aprender com a “resistência continuada desses povos, que guardam a memória profunda da terra”3 (p. 29). “Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos. Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos”3 (p. 30).
Constelações afetivas na Terapia Ocupacional
De que lugar se projetam os paraquedas? Do lugar onde são possíveis as visões e o sonho. Um outro lugar que a gente pode habitar além dessa terra dura: o lugar do sonho. [...] Alguns xamãs ou mágicos habitam esses lugares ou têm passagem por eles. São lugares com conexão com o mundo que partilhamos; não é um mundo paralelo, mas que tem uma potência diferente3. (p. 65-7)
Terapeutas ocupacionais têm convocado saberes-fazeres plurais aprofundando compromissos ético-político-culturais, buscando reafirmar a potência de sujeitos-coletivos com os quais partilham a produção de vida e de suas atividades, dando “sentido existencial à humanidade”3 (p. 62).
Por isso, e com esse pensamento, nos referimos às atividades humanas, cotidianos e relações sociais que podem contribuir para o despertar da consciência e de nossa responsabilidade pessoal-coletiva no mundo. Ativando também “as redes de solidariedade”3 (p. 44) na diversidade e com equidade ao romper com processos hegemônicos de poder do patriarcado, colonialismo e capitalismo neoliberal17. Entender a interdependência entre os seres vivos, “não se trata de ‘preservação’, mas da potência para ‘criar mundos’”8.
Após a confusão e o estranhamento instaurados com a pandemia, ao reconhecer nossos cotidianos, nossos bandos, nossos afazeres, nossas relações sociais, após um breve recuo e um respiro, pareceu necessário reaprender a viver. Aflorou em nós o medo, o luto, a consciência da fragilidade, do efêmero. Assim como, a fúria e a indignação avassaladora pela falta de amparo e responsabilidade das autoridades públicas, mas também de cada um de nós, em uma “gestão da crise” marcada pela necropolítica neoliberal protofascista que aumenta a vulnerabilidade e devasta o país. Ressignificamos concepções sobre isolamento, normalidade, produtividade, raça, gênero, comorbidades, prioridades e privilégios. Tudo junto na existência aguda e exausta, resistente e esgotada, atarefada, “pré-ocupada”, desesperançada e questionando por que queremos ser úteis, ativos, capazes, produtivos ou termos propósito na vida?
Entre tantos não saberes, nos convoca o saber-cuidar da afetividade e a efetuação possível daquilo que nos apresenta. A possibilidade de encontro entre trabalho e amorosidade, entre produção e existência, entre responsabilidade e cuidado, entre fazer e respirar, entre resistência e criação e entre preservação e solidariedade apresenta direções e tentativas de refazer tessituras de amparo para experimentar novos cotidianos, ressignificar as atividades e reinventar sociabilidades. Nós nos percebemos pessoas-coletivas nos sustentando e pairando no ar, pequenas constelações de gente capazes de levantar o céu e projetar paraquedas coloridos.
O acirramento da política de genocídio nos aproxima da percepção da condição de colonizado, oprimido, latino, subdesenvolvido, e isso não nos ofende, essa é nossa raiz de sensibilidade, coragem e resistência. Historicamente as orientações das políticas de Estado buscam pelo desaparecimento do pensamento e das formas de sociabilidade, de comunidade e de vida que os povos originários sustentam18.
Nossas ancestralidades, culturas e histórias sociais são nossas alianças afetivas, nossas condições de existência. Os povos da floresta se aliaram para a sobrevivência da floresta, não por uma natureza que lhes garante subsistência, mas pela interdependência da vida de todos os seres. Nossa sobrevivência não depende dos países desenvolvidos, ao contrário, a nossa vida é o que os alimenta, nossa existência só depende de nós, mesmo que marcada pelo conflito, “com pouca colaboração, com pouca aceitação e muita revolta também, muito sentimento de injustiça, de perda”18 (p. 170).
O que nos sustenta são as alianças afetivas dessa nossa constelação e coletividade, são as trocas e variações na sensibilidade, o engajamento crítico, a consciência das nossas resistências diante dos poderes que reduzem a potência da vida e a coragem para reinventar o que somos, o que fazemos e como vivemos. Essa forma acolhedora, amorosa e generosa intrínseca a como compreendemos as relações, a criação, o corpo, a arte, a cultura e a subjetividade, nos faz problematizar e pousar reflexivamente nas atividades humanas.
“A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais”3 (p. 31) e, por isso, vemos a potência em “poder contar uns com os outros”3 (p. 27) e nos reconhecermos como “pessoas coletivas”3 (p. 28). Nos conectamos em “alguma constelação de seres que querem continuar compartilhando a vida nesta casa comum que chamamos Terra”3 (p. 48).
Tomara que estes encontros criativos que ainda estamos tendo a oportunidade de manter animem a nossa prática, a nossa ação, e nos deem coragem para sair de uma atitude de negação da vida para um compromisso com a vida, em qualquer lugar, superando as nossas incapacidades de estender a visão a lugares para além daqueles a que estamos apegados e onde vivemos3. (p. 50)
A produtividade tem sentido na lógica mercadológica de desenvolvimento moderno, mas precisa ser questionada, inclusive pela Terapia Ocupacional, por também capturar a ideia de “inclusão social” e de atividade “significativa”, entre outras. Após um ano de pandemia, a produtividade se intensificou, assim como a concentração de renda e as fortunas dos mais ricos, associadas com a perda de milhares de vidas, a extensão e a iminência da pandemia da pobreza, da saúde mental e outros efeitos devastadores para a vida humana e da Terra...
Para alguns, a negação camufla a experiência atual. Para outros, a desesperança com o futuro indica mais facilmente o fim do mundo do que possibilidades de mudança no presente. Para esperançosos, o comprometimento ético-político-cultural pode conduzir a novos encontros, tessituras coletivas, formas e significados, olhando para a sensibilização do que nos acontece como potência de criação e de esperança com a proliferação de paraquedas coloridos.
Agradecimento
As imagens foram produzidas pela coordenadora de uma ação que produziu e doou máscaras e itens de higiene para a população em situação de rua da cidade de São Carlos-SP/Brasil. Agradecemos às mulheres que se uniram para essa produção artesanal e a todas as pessoas envolvidas na ação solidária.
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Cardinalli I, Cardoso PT, Silva CR, Castro ED. Constelações afetivas: cotidiano, atividades humanas, relações sociais e Terapia Ocupacional entrelaçados à cosmovisão Krenak. Interface (Botucatu). 2021; 25: e210262 https://doi.org/10.1590/interface.210262
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Financiamiento
Isadora Cardinalli recebeu bolsa de estudos Capes – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior durante a elaboração da pesquisa da qual deriva este artigo.
Referências
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» https://doi.org/10.18356/9789210053754 - 5 Almeida MVM, Costa M. Movimento de artes e ofícios: perspectiva ética-política-estética de constituição da Terapia Ocupacional. In: Silva CR, organizador. Atividades humanas e terapia ocupacional: saber fazer, cultura, política e outras resistências. São Paulo: Hucitec; 2019. p. 59-79.
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- 7 Foucault M. Microfísica do Poder. 8a ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Paz e Terra; 2018.
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8 Krenak A. Os brancos querem comer o mundo. Mas nós, nós somos o mundo [Internet]. São Paulo: n-1 edições; 2020 [citado 19 Abr 2021]. Disponível em: https://www.n-1edicoes.org/os-brancos-querem-comer-o-mundo-mas-nos-nos-somos-o-mundo
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
25 Out 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
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Recebido
28 Abr 2021 -
Aceito
25 Jun 2021