Open-access Aprendizagem baseada em projetos para o ensino-aprendizagem de Saúde Coletiva na Medicina: relato de experiência

Project-based learning for teaching and learning Public Health in Medical care: an experience report

Aprendizaje basado en proyectos para la enseñanza-aprendizaje de Salud Colectiva en la Medicina: relato de experiencia

Resumos

No sétimo semestre do curso de Medicina de uma universidade federal brasileira, construímos um componente curricular de Saúde Coletiva para problematizar as questões de gênero e sexualidade na interface com as políticas públicas e o cuidado em saúde das pessoas. Elegemos a Aprendizagem Baseada em Projetos (ABPj) como método de ensino-aprendizagem deste componente curricular. Relatamos essa experiência em diálogo com a literatura, refletindo sobre suas potencialidades e desafios. Identificamos a ABPj como capaz de desenvolver habilidades de resolução de problemas e de comunicação, pensamento crítico, gestão de conflitos e profissionalismo. A ABPj também foi capaz de integrar o ensino-aprendizagem das políticas públicas na Saúde Coletiva com a assistência individual desenvolvida em outros componentes curriculares do curso médico. Assim, recomendamos fortemente o uso da ABPj como estratégia para se alcançar o perfil esperado para o profissional de saúde do século XXI.

Palavras-chave Aprendizagem baseada em projetos; Saúde Coletiva; Medicina


During the seventh semester of a medical degree offered by a federal university in Brazil, we developed the curriculum module Public Health to problematize issues related to gender and sexuality at the interface of public policy and health care. We chose project-based learning (PBL) as the teaching-learning method for this module. Drawing on the relevant literature, we provide an account of this experience, reflecting on its strengths and weaknesses. The findings show that PBL enabled the development of problem-solving, communication and conflict management skills, critical thinking and professionalism. PBL was also capable of integrating the teaching and learning of public health policy and individual care developed in other course modules. We therefore strongly recommend the use of PBL as a strategy for achieving the desired health professional profile in the twenty-first century.

Keywords Project-based learning; Public Health; Medicine


En el séptimo semestre del curso de Medicina de una Universidad Federal Brasileña, construimos un componente curricular de Salud Colectiva para problematizar las cuestiones de género y sexualidad en la Interfaz con las Políticas Públicas y el cuidado de salud de las personas. Elegimos el Aprendizaje Basado en Proyectos (ABPj) como método de enseñanza-aprendizaje de este componente curricular. Relatamos esa experiencia en diálogo con la literatura, reflexionando sobre sus potencialidades y desafíos. Identificamos el ABPj como capaz de desarrollar habilidades de resolución de problemas y de comunicación, pensamiento crítico, gestión de conflictos y profesionalismo. El ABPj también fue capaz de integrar la enseñanza-aprendizaje de las Políticas Públicas en la Salud Colectiva con la asistencia individual desarrollada en otros componentes curriculares del curso médico. Por lo tanto, recomendamos fuertemente el uso del ABPj como estrategia para alcanzar el perfil esperado para el profesional de salud del siglo XXI.

Palabras clave Aprendizaje basado en proyectos; Salud Colectiva; Medicina


Introdução

Saúde Coletiva e Medicina: construindo competências para aprimorar a prática médica

A Saúde Coletiva, na educação médica, busca agregar à formação dos profissionais, entre outros aspectos, o desenvolvimento de competências que os tornem aptos a atuar em equipes multiprofissionais, bem como conhecer e analisar criticamente as políticas públicas existentes para, assim, cuidar dos usuários do sistema de saúde a partir da perspectiva da integralidade. Dessa forma, o médico deverá ser capaz de resolver a maior parte das demandas e manejar os atendimentos para os contextos de referência e contrarreferência1.

Um dos modelos de trabalho incentivado pela Saúde Coletiva e pela Saúde da Família é a promoção de relações paritárias, com tendência à horizontalização e redução da verticalidade entre a equipe multiprofissional, em oposição aos modelos tradicionais de trabalho técnico hierarquizado2. Essa relação horizontal colabora para maior flexibilidade de poderes entre os pares, assim como maior autonomia, criatividade e integração da equipe. Atingir esse nível de integração ainda é um desafio para grandes e pequenos grupos3.

Associado a isso, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação em Medicina4 ressaltam competências fundamentais a serem desenvolvidas com os graduandos, como a comunicação interprofissional e médico-paciente; a liderança; a educação continuada e pautada na construção e na busca ativa do conhecimento; o raciocínio crítico com tomada de decisões; a humanização; e a avaliação formativa e baseada em competências.

Levando-se em consideração esses aspectos, identificamos que a Aprendizagem Baseada em Projetos (ABPj) apresenta-se como uma proposta interessante para desenvolver as competências almejadas pelas DCN para o graduando em Medicina e que podem ser desenvolvidas nos componentes curriculares de Saúde Coletiva.

ABPj: uma breve definição

A ABPj é um método de ensino-aprendizagem em equipe que utiliza a realidade vivida nas diversas conjunturas como fonte geradora de conhecimento5. Assim, torna-se necessário compreender e detalhar os elementos que compõem a ABPj6 (figura 1).

Figura 1
Fases e características da Aprendizagem Baseada em Projetos (ABPj).

Em relação aos elementos e termos utilizados na ABPj, segundo Bender6, a “âncora” é o primeiro deles e refere-se à fundamentação do ensino sobre a realidade, isto é, ao uso do mundo real como disparador da motivação para aprender e, portanto, garantir a autenticidade dos projetos. Em seguida, faz-se importante definir a “questão motriz”, que diz respeito a alguma situação da realidade observada e escolhida que, segundo avaliação dos elaboradores do projeto e de acordo com a demanda da realidade observada, necessita de soluções. Posteriormente vem a fase de “aprendizagem expedicionária”, que se refere às vivências que dão suporte para a interface do projeto com suas potencialidades para resolução de problemas identificados – destaca-se que as equipes, anteriormente à atividade, já estão inseridas em ambientes reais de ensino-aprendizagem, o que potencializa as reflexões sobre a questão motriz que, após ser definida, amplifica o olhar à aprendizagem em ambiente real que continuará ocorrendo e passará a ser denominada expedicionária, pois terá uma questão a ser respondida e/ou solucionada. Concomitantemente, o brainstorming constitui o levantamento de ideias, hipóteses inovadoras de solução e plano de tarefas e trabalho para o desenvolvimento do projeto6.

Potencializando esse processo, a “Web 2.0” constitui-se como a rede de conhecimentos que são construídos por meio da ressignificação de informações disponíveis na literatura utilizada como fonte de busca. Além disso, durante o processo da ABPj, artefatos – item “apresentação de artefatos” – são construídos, ou seja, produtos das possíveis soluções pensadas para a intervenção sobre a realidade e que não necessariamente representam a resposta final, mas sempre degraus, até que seja alcançado o objetivo proposto pelo projeto. Outro conceito relevante é a “voz e escolha do estudante”, que diz respeito à autonomia relativa ao estudo, direcionamento de ideias e criatividade deste ao longo do projeto. É importante destacar que, mesmo sendo colocados como etapa final, “feedback e revisão” do projeto/processo ocorrem constantemente, permeando transversalmente as outras etapas como forma de avaliação dos caminhos que estão sendo construídos, das propostas de intervenção, da própria intervenção e do processo de trabalho em equipe6.

A contextualização geral da ABPj e sua funcionalidade nos permite compreender sua correlação com a área da Saúde e seus aspectos relativos ao cuidado, uma vez que cada pessoa e cada comunidade constituem desafios para todo profissional de saúde, pois representam histórias com potenciais de envolvimento destes para que se dediquem ao aperfeiçoamento do estado de saúde das pessoas por eles cuidadas. Dessa forma, a percepção da realidade das pessoas e suas vulnerabilidades constituem possíveis pontos de aprimoramento, sendo o trabalho em equipes de saúde essencial nesse processo, o que torna essa metodologia de ensino-aprendizagem adequada para o ensino da Saúde Coletiva em um curso médico, por exemplo.

ABPj, Saúde Coletiva e nossa experiência em um curso médico

Destarte, em um componente curricular de Saúde Coletiva, em uma faculdade pública de Medicina, a proposta do uso de ABPj foi desenvolver projetos que propiciem o aprimoramento do cuidado integral em saúde no que diz respeito às questões de gênero e sexualidade, relacionadas às políticas públicas de saúde da mulher; do homem; da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT) e dos adolescentes e adultos jovens.

Em analogia com Bender6, o método propicia reflexão de forma crítica da realidade encontrada no cenário de atendimento em saúde por meio de pesquisas ou buscas expedicionárias, em que cada participante do grupo está envolvido na percepção de diferentes necessidades de mudanças ou alternativas para o aprimoramento de lacunas encontradas nas políticas públicas que possam ser aplicadas na realidade.

Além disso, o trabalho em equipe proporciona o desenvolvimento de habilidades profissionais e inter-relacionais necessárias na prática médica, sendo que há ainda a possibilidade de publicação dos projetos produzidos, estimulando o perfil científico, crítico e reflexivo do futuro profissional4.

Com isso, o objetivo deste artigo é relatar a experiência do uso da ABPj em um componente curricular de Saúde Coletiva no sétimo semestre de um curso de Medicina no Brasil.

Percurso metodológico

Contexto da experiência

O componente curricular em que esse método foi aplicado está no sétimo semestre de um curso médico de uma universidade federal brasileira. O módulo em questão discute as questões de gênero e sexualidade no âmbito da Saúde Coletiva, integrando as políticas públicas ao contexto do cuidado em saúde.

Assim, nesse componente curricular, busca-se construir transformações e melhorias tanto no cuidado quanto na formação médica, bem como na aplicação prática dessas políticas, sendo essa intencionalidade potencializada pela utilização da metodologia da ABPj.

Destarte, os estudantes poderiam ser agentes ativos na transformação daquilo que aprendiam e praticavam durante a sua formação, atuando em aspectos passíveis de melhoria ou com carência de intervenção em uma necessidade de aprendizagem no que diz respeito às questões de gênero e sexualidade no cuidado em saúde, no âmbito das políticas públicas de atenção integral à saúde da mulher, do homem, da população LGBT, dos adolescentes e dos adultos jovens. Alguns dos resultados dessa intervenção inovadora são expressos e analisados por Raimondi et al.7.

Dessa forma, os estudantes desse componente curricular foram divididos em grupos heterogêneos, com o sorteio das políticas públicas que deveriam abordar ao longo do semestre. É importante considerar que os estudantes tiveram os serviços de saúde onde realizavam as práticas dos componentes curriculares de saúde individual(i) como cenários para desenvolverem suas questões motrizes, articulando a política pública pela qual estavam responsáveis e o cenário de cuidado em saúde. Assim, inicialmente, os estudantes foram divididos em oito grupos, sendo dois para cada política mencionada, por meio do instrumento denominado Myers-Briggs Type Indicator® (MBTI)8, ferramenta que agrupa indivíduos de personalidades distintas para formar equipes heterogêneas que, com a complementação de habilidades, pode produzir construtos ricos. O uso do MBTI nessa experiência inovadora é descrito com detalhes e seu impacto é analisado e discutido por Rosa et al.9.

Por meio da percepção que cada grupo pôde construir a partir da leitura da política pública e da reflexão sobre o cenário de prática, a ABPj foi seguindo os seus passos, descritos na Introdução deste artigo. Diante de um questionamento, de um desafio ou de uma curiosidade, surgiam as motivações para uma ação em equipe que visava desenvolver um trabalho capaz de promover uma devolutiva positiva a esse cenário e/ou sociedade.

Assim, após o estudo dessas políticas públicas e sua comparação com o que vivenciavam na prática desses serviços, os estudantes construíram, com base na literatura, uma proposta de melhoria para cada política, sistematizada na forma de linhas de cuidados integrais em saúde. Essas linhas podem ser compreendidas como “a imagem pensada para expressar os fluxos assistenciais seguros e garantidos ao usuário, no sentido de atender às suas necessidades de saúde”10 (p. 1). Por isso, representam possibilidades para se promover o cuidado integral em saúde, proposto pelas próprias DCN4.

Ademais, a apresentação à turma e aos serviços ocorria na forma de produção audiovisual, com produtos criativos e inovadores capazes de aperfeiçoar a execução prática dessas políticas públicas, a aprendizagem desses temas, o processo de trabalho das equipes de saúde e o cuidado em saúde dos usuários dos serviços.

Construção deste relato

Construímos a descrição dessa experiência, com as devidas reflexões e diálogos com a literatura. A descrição feita de forma retrospectiva busca narrar fatos, sentimentos e percepções do processo vivenciado, bem como construir uma análise crítica e reflexiva do método utilizado, elencando pontos positivos e de aprimoramento para que a experiência possa ser replicada em outros componentes curriculares da formação médica e em saúde e nos contextos em que ela mais esteja em acordo com as competências esperadas para aquele momento da formação.

Aspectos éticos

Este relato de experiência foi construído pelos docentes idealizadores da experiência e discentes da turma que a vivenciou pela primeira vez. Ele se enquadra no item VIII do artigo primeiro da Resolução nº 510 de 7 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Saúde11, não necessitando de submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.

Resultados e discussão

ABPj, políticas públicas e cuidado em saúde: (des)encontros que podem potencializar a formação e a prática médicas

Durante o componente curricular de Saúde Coletiva em questão, utilizamos a ABPj como ferramenta para a valorização e o aperfeiçoamento das políticas públicas (anteriormente citadas) que poderiam ser aprimoradas, constituindo assim um projeto a ser desenvolvido durante o semestre. Em seguida, partimos para o estudo das políticas públicas e a realização das vivências em serviços de saúde nos quais fazíamos as práticas do componente curricular Saúde Individual (aprendizado autêntico e baseado na realidade vivenciada).

A realização das vivências, nos mais diversos cenários, permitiu-nos contemplar limitações e dificuldades do cuidado em saúde das populações relacionadas a cada uma das políticas públicas mencionadas anteriormente sob diversos aspectos: a ausência de uma atenção específica ao adolescente e jovem; o revés epidemiológico do homem como alvo de condições agudas e crônicas graves e com um enfoque na prevenção do câncer de próstata pelo Novembro Azul; as dificuldades em se estabelecer um cuidado integral que englobe os aspectos de gênero e sexualidade no cuidado em saúde da população como um todo; as tensões geradas quando se acolhem pacientes cujo gênero e orientação sexual diferem da heteronormatividade, entre outros.

Pudemos ver como o conceito de heteronormatividade molda a prática do cuidado médico, sendo este entendido como a reprodução de práticas e códigos heterossexuais, alicerçadas pelo casamento monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal, constituição de família (esquema pai-mãe-filhos)12. Além disso, compreendemos o heterossexismo compulsório, compreendido como o imperativo inquestionado e inquestionável por parte da sociedade que reforça e legitima as práticas heterossexuais12 na nossa formação, no cuidado em saúde e até em algumas políticas públicas. Todos esses aspectos, entre outros, foram disparadores para a próxima etapa da ABPj, proporcionando também a oportunidade de refletirmos sobre as políticas públicas e sua interface com a prática.

Estabeleceu-se então a âncora e a questão motriz a partir da aprendizagem em ambiente real, iniciando a aprendizagem expedicionária, concomitantemente à realização de brainstorming para o estabelecimento de plano de tarefas e a geração de ideias para resolução de lacunas identificadas tanto na política pública quanto na realidade observada. Essas etapas (questão motriz, aprendizagem expedicionária e brainstorming) foram dirigidas pela atuação dos grupos, de forma autônoma, tendo como facilitadores os docentes responsáveis pelo módulo. A reação inicial dos discentes foi a de estarem “perdidos” na condução dos projetos. Por isso, a finalidade dos projetos pareceu nebulosa por um momento. Em parte, o primeiro contato com este tipo de metodologia foi um fator contribuinte dessa percepção. O fato de geralmente ter-se contato com políticas públicas para conhecê-las sem determinado grau de questionamento próprio também auxiliou para que pudéssemos exercitar nossas reflexões de forma autônoma.

De forma geral, para a etapa seguinte (Web 2.0), a literatura científica mostrou-se promissora para nos fornecer suporte na construção de projetos significativos para as políticas públicas e realidades vivenciadas. Entretanto, diante da etapa de busca de respostas, uma das primeiras tensões do trabalho com projetos foi a confecção do plano de trabalho, com a atribuição das responsabilidades de cada componente do grupo, considerando que, dentro de grupos heterogêneos, pode-se observar dificuldades, como o pouco envolvimento de alguns integrantes, o que pode ser considerado um fator restritivo das potencialidades do projeto a ser desenvolvido. Em parte, reconhecemos como a realização de feedback constante se coloca como ferramenta promissora para que as capacidades individuais e as relações interpessoais sejam marcadas pelo profissionalismo13 e, dessa forma, haja uma minimização do fator restritivo acima comentado.

Permeando as etapas principais da ABPj, principalmente a Web 2.0, foram inseridas interações interprofissionais na tentativa de enriquecer e ampliar a discussão de cada política pública e a compreensão dos aspectos de gênero e sexualidade como determinantes sociais do processo saúde-adoecimento-cuidado. Essas interações ocorreram por meio de rodas de conversa com profissionais que trabalhavam com determinada política pública, permitindo uma ampliação das interfaces do cuidado individual, coletivo e da própria formação em Saúde.

Concomitantemente, as pesquisas na busca de soluções foram efetivadas e artefatos foram gerados, culminando na criação de Linha de Cuidados Integral em Saúde como forma de aperfeiçoar as políticas de saúde de cada população. Para finalizar a ABPj, deu-se início à apresentação das linhas por meio de produções audiovisuais como forma de despertar a criatividade dos estudantes, além de serem encorajadas as publicações das experiências desenvolvidas.

A finalização dos projetos e a apresentação para nossos pares nos permitiu constatar a riqueza dos construtos, as percepções dos grupos sobre a realidade e as falhas passíveis de intervenção. Permitiu-nos também contemplar a superação de dificuldades relacionais e a utilização da criatividade para compartilhar os produtos.

Finalizado o semestre letivo, percebemos que a compreensão do método facilita a condução das etapas, o foco em finalidades específicas e a proximidade dos facilitadores com o grupo são elementos que potencializam o processo de ensino-aprendizagem por meio dessa metodologia. Para aprimorar essas questões, no semestre seguinte (que estava em andamento quando este artigo era escrito), cinco estudantes dessa turma que vivenciaram pela primeira vez a ABPj assumiram o papel de monitores, auxiliando na construção de novos projetos.

A partir da perspectiva de monitores, foi possível perceber como, apesar da utilização do mesmo método de ensino-aprendizagem (ABPj), os grupos seguem linhas de raciocínio diferentes, resultando em uma Linha de Cuidados Integral em Saúde e produções audiovisuais distintas. Um mesmo cenário é capaz de gerar inúmeras questões motrizes a depender do olhar e da identidade de cada grupo. Os resultados são extremamente dependentes do envolvimento e da profundidade com que buscam resolver/aprimorar questões identificadas que motivaram a temática.

Para tanto, pesquisando na literatura e desvendando as nuances da ABPj, os monitores que vivenciaram o componente curricular nos moldes da ABPj pela primeira vez comprometeram-se em confeccionar um esquema integrativo e explicativo das etapas da ABPj para auxiliar a compreensão dessa estratégia de ensino-aprendizagem dos estudantes que vivenciariam o método nos semestres seguintes (figura 2). Segundo relataram os próprios estudantes dessa nova turma, o esquema integrativo construído pelos monitores facilitou o entendimento da ABPj e os professores identificaram menos queixas no segundo semestre de aplicação da ABPj no que diz respeito à dificuldade de entender o método, de iniciar um projeto e de caminhar na sua execução ao longo do semestre letivo.

Figura 2
Etapas da ABPj confeccionada pelos monitores e docentes.

Ademais, já no primeiro contato com a ABPj, foi possível perceber potenciais de aprimoramento encontrados na arquitetura das Linhas de Cuidado Integral em Saúde, como o delineamento de uma questão motriz com orientações mais claras e objetivas, organização do processo de trabalho com estabelecimento de responsáveis e metas a serem cumpridas e o efetivo exercício de feedback ao longo das reuniões dos grupos.

Destacamos que viver, pela primeira vez, um método de ensino-aprendizagem oriundo de propostas de uma educação libertadora gerou angústia naqueles que estavam na linha de frente de sua construção e foi baseado nesse sentimento de que os monitores assumiram o papel de facilitadores com os docentes, organizando e tornando tanto a construção da Linha de Cuidados Integral em Saúde quanto a produção dos artefatos mais claras e tranquilas de serem realizadas.

ABPj, Saúde Coletiva e Medicina: desafios e potencialidades

Em uma perspectiva de empoderar o estudante na construção do próprio conhecimento por meio de metodologias ativas de ensino-aprendizagem, conforme as orientações das DCN para o Curso de Graduação em Medicina4, a ABPj firma-se como ferramenta para a consolidação de competências necessárias para a formação médica e para a formação na área da Saúde.

A dinâmica da ABPj é norteada pela compreensão de que a realidade em que se inserem os estudantes abarca disparadores capazes de despertar a curiosidade e o verdadeiro interesse desses, o que contribui para a contextualização de conhecimentos a serem desenvolvidos em ambiente acadêmico e torna-os expressivos e úteis para os discentes envolvidos na sua prática profissional futura14.

Além disso, no processo de desenvolvimento de projetos, o trabalho cooperativo, colaborativo e em equipe permeia as relações de construção do conhecimento e intervenções sobre a realidade da qual partem as motivações para a concretização de projetos significativos, de maneira que se aperfeiçoam habilidades de resolução de problemas e de comunicação, o pensamento crítico, a gestão de conflitos e o profissionalismo5.

Diante da dificuldade inicial de os estudantes compreenderem a metodologia, relembramos a possibilidade de envolver monitores e suas percepções como estudantes para que, em conjunto com o trabalho docente, seja aprimorada a estratégia de apresentação da ABPj aos discentes das turmas seguintes, de forma que o processo de trabalho flua de forma leve e significativa, envolvendo ainda mais os estudantes na construção do próprio conhecimento.

A lição dessa união de forças reitera, também, a importância do feedback que o docente recebe dos estudantes sobre a forma como ele escolhe problematizar determinado assunto, tomando como ensinamento para o aperfeiçoamento de suas dinâmicas para envolver e fortalecer o engajamento em novas experiências de ensino-aprendizagem. Além disso, esse feedback pode otimizar sua atuação docente, visto que nem sempre é possível dispor de monitores a cada novo semestre.

Ademais, temos que considerar que a disponibilidade de monitores é um elemento que pode potencializar o desenvolvimento da experiência, sendo que cada instituição deve buscar em seus recursos formas de concretizar esse apoio. Destacamos que essa oportunidade da monitoria permite ao estudante um aprimoramento de competências relacionadas ao ensino em Saúde, bem como em relação à docência.

Alertamos ainda sobre a importante relação da utilização e efetivação da metodologia da ABPj com a disponibilidade do seu debate na literatura indexada, sendo fundamental a criação dos termos “Aprendizagem Baseada em Projetos” e “Project-Based Learning” nas bases de informações, uma vez que, quando os monitores buscaram mais informações sobre a metodologia para aprimorar o processo de ensino-aprendizagem, deparam-se com a inexistência de um descritor específico para essa metodologia.

Sabíamos, ademais, que, independentemente de a organização, segundo o MBTI, apresentar potencialidades – como a conformação heterogênea dos grupos para a produção de projetos –, o mesmo processo tem capacidade de proporcionar atritos e conflitos grupais. Ao fim da experiência, percebemos que, apesar de parecer um ponto negativo, o processo se desenrolou na concepção de desenvolver habilidades relacionais no trabalho em equipe, baseados em profissionalismo e comunicação efetiva aliado ao feedback. De acordo com Ramani e Krackov13, os estudantes compreenderam o feedback como uma ferramenta para atingir o potencial máximo, reforçando atitudes positivas e promovendo o aprimoramento de atitudes que necessitam ser repensadas e aperfeiçoadas para que a performance individual no processo de trabalho se concretize assertivamente.

Uma vez que a escolha da temática a ser abordada parte do próprio interesse do estudante, os resultados obtidos tendem a ser mais satisfatórios, e o caminho percorrido até esse fim, geralmente, compreende artefatos de alto nível de qualidade. Como todos os estudantes estavam em contato com as políticas públicas e as produções de todos os grupos da turma, os objetivos de aprendizagem foram, segundo avaliação dos próprios estudantes, cumpridos e as competências esperadas para aquele componente curricular foram desenvolvidas, sendo que esses objetivos e competências iam aperfeiçoando-se e ampliando-se a partir das necessidades de aprendizagem de cada estudante. Uma das experiências desenvolvidas por um grupo com a ABPj, abordando as questões de gênero e sexualidade no cuidado em saúde de adolescentes, conquistou o primeiro lugar dos trabalhos apresentados no Congresso Brasileiro de Educação Médica em 2017, sendo descrita e analisada em detalhes por Paulino et al.15.

No fim do semestre, aplicamos um questionário para os estudantes da primeira turma que vivenciou a ABPj como método de ensino-aprendizagem das questões de gênero e sexualidade no âmbito das políticas públicas de atenção integral à saúde do homem, da mulher, da população LGBT e dos adolescentes e adultos jovens. Objetivamos avaliar a percepção destes sobre a ABPj e suas potencialidades em desenvolver com os estudantes as competências desejadas para todo profissional de saúde. A análise desse material será objeto de um novo artigo de pesquisa.

Considerações finais

A ABPj tem aplicabilidade e capacidade de produção de novos artefatos tão ampla e variada a ponto de um mesmo cenário atrair diferentes olhares, produzindo inúmeros resultados. Outro aspecto positivo da ABPj é a edificação de melhores relacionamentos interpessoais e profissionais e do trabalho em equipe. Na nossa experiência, ela foi capaz de guiar o processo de ensino-aprendizagem da Saúde Coletiva em um curso médico, integrando políticas públicas e cuidado em saúde de forma atrativa, interativa e significativa.

Para efetivação da ABPj, é necessário enfrentar desafios, como a escassez de tempo disponível para desenvolvimento dos projetos e as limitações encontradas durante as vivências, que podem prejudicar a obtenção de dados triviais para enriquecer o brainstorming6. Além disso, é necessária uma dedicação dos professores como facilitadores na resolução de dúvidas acerca da metodologia e de problemas que possam surgir no decorrer do processo, como conflitos gerados a partir das dificuldades de se trabalhar em grupos16.

Além disso, é importante destacar que a experiência da monitoria é muito válida ao possibilitar que a vivência anterior enquanto estudantes seja a peça fundamental na construção de um caminho para que o ensino-aprendizagem seja mais claro e objetivo para as turmas subsequentes, bem como adaptado a cada contexto e realidade. Por isso, consideramos que é fundamental que as instituições de ensino superior busquem recursos e ações institucionais para viabilizar e concretizar a experiência da monitoria.

Por fim, recomendamos fortemente o uso da ABPj na formação em Saúde como estratégia para se alcançar o perfil esperado para o profissional de saúde do século XXI17,18.

  • (i)
    No novo currículo do curso de Medicina em questão, instituído em 2013, o eixo prático-vivencial se relaciona às atividades práticas que ocorrem em distintos cenários de ensino-aprendizagem, com o objetivo de promover o raciocínio crítico-reflexivo e clínico do futuro médico. Esse eixo divide-se em dois componentes curriculares ao longo de oito semestres, sendo um individual e outro coletivo. Com isso, almeja-se compreender essas esferas na aprendizagem e no cuidado em saúde das pessoas. O componente individual relaciona-se às ações clínico-assistenciais, e o componente coletivo, à Saúde Coletiva7.

Agradecimentos

Agradecemos à Universidade Federal de Uberlândia pelo estímulo à monitoria e pesquisa. Agradecemos ao Programa Faimer® Brasil pela formação e por todo o apoio compartilhados para que essa e outras experiências de aprimoramento da educação médica em nossa instituição fossem possíveis. Agradecemos à Faculdade de Medicina (Famed), ao Departamento de Saúde Coletiva (Desco) e ao curso de Medicina da nossa instituição, que nos apoiaram na participação no Programa Faimer® Brasil e na concretização deste projeto. Agradecemos também aos(às) discentes das turmas do curso de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, que participaram de forma ativa na execução dessa proposta. Agradecemos, por fim, a todas as pessoas e setores de nossa instituição que tornaram essas atividades possíveis.

  • Financiamento
    Durante a vivência como monitores da respectiva turma do sétimo semestre, dois deles receberam bolsa vinculada à monitoria por meio da Universidade Federal de Uberlândia e outros três foram monitores não bolsistas. A bolsa foi destinada para os monitores com as primeiras classificações em processo seletivo realizado pela Universidade Federal de Uberlândia para a monitoria da disciplina. Em relação à execução do presente trabalho, não houve financiamento direto.
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Editado por

  • Editora Roseli Esquerdo Lopes Editor associado Flavio Adriano Borges

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2020
  • Aceito
    18 Mar 2021
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