Open-access Sociedade civil e democracia: descortinando seus significados e usos

RESENHA

Sociedade civil e democracia: descortinando seus significados e usos

Rosana de C. Martinelli Freitas

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

RESENHA: Sociedade civil e democracia: descortinando seus significados e usos

DURIGUETTO, Maria Lúcia. Sociedade civil e democracia – Um debate necessário. São Paulo: Cortez, 2007, 240p.

BOOK REVIEW: Civil Society and Democracy: Revealing its Meanings and Uses

DURIGUETTO, Maria Lúcia. Civil Society and Democracy – A Necessary Debate. São Paulo: Cortez, 2007, 240p.

O livro, resultante da tese de doutorado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2003, cujo orientador foi Carlos Nelson Coutinho, apresenta uma análise crítica do tratamento teórico das elaborações acerca do processo de consolidação da democracia no Brasil, que partem da perspectiva do fortalecimento da sociedade civil.

Com base na definição das categorias democracia e sociedade civil, a autora faz a análise tendo como referência os pressupostos centrais do método de investigação da teoria social marxiana. Elege, entre as categorias-chave da teoria, a concepção de totalidade segundo Kosik para quem "a totalidade concreta não é um método para captar e exaurir todos os aspectos, caracteres, propriedades, relações e processos do real; é a teoria da realidade como totalidade concreta." Desta concepção de realidade decorrem certas conclusões metodológicas que se convertem em orientação heurística e princípio epistemológico para estudo, descrição, compreensão, ilustração e avaliação de certas seções tematizadas do real.

O livro de Duriguetto é dividido em duas partes, cada uma constituída por dois capítulos. Na primeira parte, intitulada Temática da democracia na tradição liberal e marxista, a autora explicita o debate contemporâneo: sociedade civil, democracia e esfera pública na tradição liberal e marxista.

No capítulo um, Democracia e socialismo na tradição marxista, o fio teórico da exposição da autora retrata a gênese da estruturação dos conceitos sociedade civil e democracia em pensadores como Rousseau e Hegel, demonstrando, de acordo com o prefácio realizado por Carlos Nelson Coutinho, "como a assimilação - crítica - dos principais ensinamentos dos mesmos é parte ineliminável da estruturação da teoria social de Marx e de Gramsci."

A autora tem como referência Antonio Gramsci,o que significa que o centro da relação entre democracia e socialismo é a sociedade civil, e a partir dela é que se projeta a construção de um projeto hegemônico das classes subalternas e da transição ao socialismo. Desta forma, a sociedade civil é considerada o espaço em que são construídos e articulados projetos e direções ético-políticas, onde se formam vontades coletivas, espaço em que se disputa poder e hegemonia.

No capítulo dois, nomeado Debate contemporâneo: sociedade civil, democracia e esfera pública na tradição liberal, são abordadas as categorias democracia e sociedade civil na tradição liberal e seus significados.

A autora, inicialmente, discute a teoria democrático-elitista, cujas formulações, constituem o marco para a emergência de uma concepção minimalista procedimental e restrita da democracia; identifica como a análise schumpeteriana acerca das relações entre indivíduo, esfera pública e democracia e recupera, ainda, outras concepções, como as de Harvey e Sartori. Na seqüência, aborda a concepção de "democracia liberal pluralista" que influenciou um conjunto de autores, e a produção sobre o entendimento dos limites e das possibilidades da democracia. Se na teoria elitista a ação política dos indivíduos é retratada em conexão direta com a eleição de líderes, conferindo pouca atenção à organização coletiva de seus interesses via formação de grupos, entidades, sindicatos, a autora mostra que é precisamente esta esfera dos "grupos de interesse" e da dedicação competitiva à satisfação de interesses que os teóricos democráticos pluralistas vão explorar como sendo a expressão central da democracia. Duriguetto prioriza as formulações de Robert Dahl acerca do significado e da caracterização dos regimes democráticos e, posteriormente, explicita os fundamentos conceituais que abarcam a "cosmovisão" pluralista, tendo como referência os balanços e argumentos de Alford e Friedland e Smith. A autora identifica, nos liberalismos modernos, uma vertente que apresenta uma tentativa de restaurar, numa síntese que ela denomina "liberal-democrática", a linguagem dos direitos sociais ao elenco de liberdades civis e direitos políticos da tradição liberal. As mediações políticas e sociais para elaboração consensual desse novo "contrato" social são as estabelecidas pelo pluralismo dahlsiano, e a autora recuperará, dentre os defensores desta perspectiva "neocontratualista", as formulações de Norberto Bobbio. Duriguetto identifica uma tradição teórica do pensamento liberal que teve como objetivo criar uma teoria da democracia alternativa à dos 'liberais realistas' dos pluralistas e dos "éticos ou comunitaristas", nesta foi introduzida uma nova conceituação da relação entre sociedade civil e democracia que tem, na defesa da construção de um esfera pública democrática, o seu fulcro central. O que é destacado, nesta tradição que tem Habermas como referência, é o entendimento da democracia como procedimento jurídico-institucional e à forma de convivência crítico-argumentativa, abrindo, assim, uma via distinta da oferecida pelos elitistas para a análise da democracia, com um novo tratamento no conceito de esfera pública.

Ao final, a autora identifica que as formulações acerca do conceito de esfera pública, operadas por Habermas, estão teórica e praticamente ligadas à redescoberta e/ou recuperação do conceito de sociedade civil presentes a partir da década de 1970. Arato e Cohen, apoiados na distinção operada por Habermas entre "sistema" e "mundo da vida", dedicar-se-ão a formulações sobre a criação de instituições cujo objetivo se inscreve na preservação dessa dinâmica associativa de formação de identidades e solidariedades. Desta forma, a sociedade civil é a estrutura institucional de um mundo da vida moderno estabilizado pelos direitos fundamentais

Na segunda parte do livro, intitulada Questão democrática na transição brasileira são apresentados os cenários brasileiros e o modo como vem ocorrendo a redefinição da questão democrática, bem como as propostas de democracia no Brasil, na década de 1990, em face da ofensiva neoliberal, e o que ela considera ter havido, ou seja, a autonomização da sociedade civil.

O capítulo três, intitulado Cenários brasileiros: redefinições da questão democrática, apresenta as características centrais do processo histórico das relações entre Estado e sociedade no Brasil a partir de 1945, até meados da década de 1980, a autora expressa e revela, no contexto em que aparecem os movimentos e as organizações sociopolíticas, que a categoria sociedade civil foi empregada no Brasil, demonstrando, no entanto, que neste contexto, o termo passou a expressar projetos políticos em disputa. A partir das análises realizadas por Carlos Nelson Coutinho, Francisco Weffort e Marilena Chauí, a autora aborda a democracia como construção de uma contra-hegemonia, como participação e justiça social e como renovação cultural.

Duriguetto conclui que os movimentos sociais foram os únicos sujeitos e espaços de renovação social e de exercício de uma autêntica cidadania, sendo que, posteriormente, a ampliação da democracia fixou-se na defesa da abertura de canais institucionais públicos de discussão das políticas sociais e de sua ocupação pelas organizações da sociedade civil, que representavam os interesses das classes subalternas. No entanto, a participação foi visualizada e implementada a partir dos anos de 1980, pelo projeto neoliberal em ascensão, na direção de desqualificar o Estado e transferir para a esfera da sociedade civil "transmutada em esfera pública não-estatal", o enfrentamento das desigualdades sociais.

O capítulo quatro, Propostas de democracia: Brasil anos 90, é desenvolvido com base nos diferentes significados conceituais utilizados para definir sociedade civil e democracia, e permite visualizar a complexidade existente, na atualidade, no campo teórico-analítico que aborda as propostas de fortalecimento da democracia no Brasil. Especificamente em relação à discussão da democracia, a autora, considera que, identificar democratização com ampliação de liberdades civis, com democracia política descentralizada e participativa, conduz a uma perspectiva teórica e prático-política que tende a limitar o processo de democratização. Durigueto assevera que o processo não é identificado com a idéia da criação de uma nova hegemonia de classe, com a criação de um novo projeto societário, mas com o reconhecimento e a conquista de direitos dentro da ordem do capital. Nas palavras da autora, "a luta pela cidadania não aparece associada à criação de um novo projeto de classe contra-hegemônico."

As conclusões procuram responder a pergunta: "Afinal, qual é o valor universal da democracia?" A autora ressalta que o debate contemporâneo acerca dos conceitos de sociedade civil e de democracia, nos setores progressistas da sociedade brasileira, tende a expressar uma fragilidade teórica com evidentes desdobramentos nas direções e/ou inserções prático-políticas. Enfatiza a importância do entendimento da categoria de sociedade civil, tal como formulada nos termos de Gramsci, destacando que esse é um parâmetro conceitual do qual se pode dotar as lutas sociais de uma perspectiva teórica e ético-política que vise à totalidade social, que rompa com o caráter presente da parcialidade e do corporativismo de modo a envolver e desenvolver suas reivindicações a partir e no interior de projetos contra-hegemônicos.

Os dois conceitos parecem se constituir propriedade emocional e ideológica de muitos grupos e o tema pode parecer peculiar, porque as pessoas atuam como se compartilhassem de um mesmo vocabulário quando, na verdade, não o é. Acredita-se que isto seja uma herança cultural e um empecilho para o pensamento analítico. Portanto, é importante desenvolver um vocabulário mais específico, que permita uma melhor compreensão sobre o tema, e sendo assim, sem dúvida, este livro de Duriguetto contribui para a ampliação do debate sobre o tema.

Rosana de C. Martinelli Freitas

Doutora em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Professora do Curso de Graduação e Pós-Graduação em Serviço Social da UFSC

UFSC

Departamento de Serviço Social

Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima

Trindade – Florianópolis – Santa Catarina

CEP: 88010-970

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2008
  • Data do Fascículo
    Jun 2008
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