Open-access Variáveis e desafios do processo decisório no contexto dos Comitês de Bacia Hidrográfica no Brasil

Variables and challenges of the decision making process for Hydrographic Basin Committees in Brazil

Resumos

A gestão das águas no Brasil sofreu uma modernização acelerada nos anos 90, em termos legais e institucionais, com a Lei 9433/97. Na busca da gestão descentralizada e participativa, a Lei estabelece a gestão em nível de Comitês de Bacia Hidrográfica. Sua efetiva operacionalização depende do caráter do processo decisório, principalmente a capacidade de lidar com problemas conjunturais e interesses locais. O artigo visa discutir as qualidades e desafios deste processo no âmbito dos Comitês.

gestão das águas; Comitês de Bacia Hidrográfica; Brasil


One sees a rapid process of rivers management modernization in Brazil in the 90s - in legal and institutional terms. The approval of Law 9,433/97 was one of the main reasons for the changes. It established the National System of Hydrographic Resources Management based on decentralized and participative management principles. The Hydrographic Basin Committees are one of the most important pieces of the new system. The effectiveness of their activities depends on the nature of the decision making process, specially its capacity of dealing with conjectural problems and local interests. This article aims to discuss the qualities and challenges of this process within the committees.

water management; Hidrographic Basin Committee; Brazil


ARTIGOS

Variáveis e desafios do processo decisório no contexto dos Comitês de Bacia Hidrográfica no Brasil

Variables and challenges of the decision making process for Hydrographic Basin Committees in Brazil

Antonio Magalhães Jr.

Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

RESUMO

A gestão das águas no Brasil sofreu uma modernização acelerada nos anos 90, em termos legais e institucionais, com a Lei 9433/97. Na busca da gestão descentralizada e participativa, a Lei estabelece a gestão em nível de Comitês de Bacia Hidrográfica. Sua efetiva operacionalização depende do caráter do processo decisório, principalmente a capacidade de lidar com problemas conjunturais e interesses locais. O artigo visa discutir as qualidades e desafios deste processo no âmbito dos Comitês.

Palavras-chave: gestão das águas; Comitês de Bacia Hidrográfica; Brasil.

ABSTRACT

One sees a rapid process of rivers management modernization in Brazil in the 90s – in legal and institutional terms. The approval of Law 9,433/97 was one of the main reasons for the changes. It established the National System of Hydrographic Resources Management based on decentralized and participative management principles. The Hydrographic Basin Committees are one of the most important pieces of the new system. The effectiveness of their activities depends on the nature of the decision making process, specially its capacity of dealing with conjectural problems and local interests. This article aims to discuss the qualities and challenges of this process within the committees.

Keywords: water management; Hidrographic Basin Committee; Brazil.

INTRODUÇÃO

A ATUAL FASE DE TRANSIÇÃO DO PROCESSO DECISÓRIO NA GESTÃO DAS ÁGUAS NO BRASIL: A "INOVAÇÃO DOS COMITÊS DE BACIA HIDROGRÁFICA

A sociedade humana não é pré-programada em suas idéias e ações, como são, por exemplo, as sociedades dos insetos e, portanto, as transformações da sociedade devem ser geridas, projetadas e planejadas. Porém, planejar exige a contínua tomada de decisões pelos atores envolvidos e, neste caso, acima do nível das transformações, insere-se o nível decisório.

No Brasil, o processo decisório oficial relativo à gestão das águas ocorre no âmbito do recém criado SNGRH – Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Lei 9.433/97) – o qual é fundamentado em princípios aplicados na experiência francesa desde os anos 60. O SNGRH é composto por diferentes níveis hierárquicos, a saber (Fig. 1):

• Conselho Nacional de Recursos Hídricos - órgão hierarquicamente mais elevado, a quem cabe decidir sobre as grandes questões do setor.

• Conselhos de Recursos Hídricos dos Estados e Distrito Federal- órgão mais elevado na hierarquia do Sistema em nível estadual.

• Comitês de Bacias Hidrográficas - instâncias descentralizadas e participativas de discussão e deliberação, contando com a participação de diferentes setores da sociedade (usuários das águas, políticos, sociedade civil organizada) e destinados a agir como fóruns de decisão no âmbito das bacias.

• Agências da Água – organismos com atuação em nível de bacias, os quais visam dar apoio técnico e funcionar como secretaria executiva dos respectivos comitês de bacia. Suas funções são, principalmente, operacionalizar a cobrança pelo uso das águas e elaborar os planos plurianuais de investimentos e atividades, os quais devem ser votados pelos Comitês.

• Organizações Civis de Recursos Hídricos - organizações de cidadãos com atuação nas respectivas bacias hidrográficas.


Os Comitês de Bacia foram criados visando a efetiva implantação, no Brasil, da gestão descentralizada1 e participativa2, congregando representantes do poder público, mas também de usuários das águas e da sociedade civil organizada. Seu funcionamento envolve um "processo decisório" específico, segundo o qual diferentes atores discutem e decidem sobre questões de interesse para os planos de gestão plurianuais das bacias com o auxílio das Agências da Água. A efetivação dos Comitês no Brasil implica em "inovações" principalmente no que se refere à cobrança pelo uso das águas (e não apenas pelos custos operacionais de captação e abastecimento, ou pelo tratamento de esgotos). A aplicação do princípio "poluidor-pagador" é, portanto, um dos princípios que aumentam a importância e a responsabilidade dos Comitês de Bacia, principalmente considerando as dificuldades potenciais nesta fase de transição na qual os Comitês ainda "aprendem" seus mecanismos de funcionamento.

Se qualquer sistema decisório envolve fluxos, transformações e informações, isto vale também para os Comitês de Bacia (Fig. 2). Paradoxalmente, a experiência francesa mostra que as Agências da Água são os organismos de bacia com maior acesso às informações sobre as realidades locais, já que são elas as principais responsáveis pela geração, tratamento e divulgação de informações a serem utilizadas nos planos de gestão de bacias. Acompanhando o "dia a dia" das bacias, as Agências adquirem competência para conhecer detalhadamente os quadros naturais, econômicos e sociais de interesse na aplicação da cobrança pelo uso da água. Mas as atividades, propostas e relatórios das Agências dependem da aprovação dos Comitês, os quais devem, portanto, saber avaliar e interpretar as informações apresentadas e necessárias ao processo decisório. Sem tal controle, os comitês, ou certos setores representados nos comitês, ficam vulneráveis e obrigados a aprovar o que não conhecem. Sem o domínio informacional, um ator ou organismo perde poder de influência e decisão. Estes desequilíbrios potenciais de informação podem "deformar" a atuação dos comitês em função de indivíduos ou setores mais bem organizados e preparados, os quais podem comandar as ações e determinar as decisões sobre uma maioria quase "silenciosa".


Como organismos de gestão das águas nos quais a democracia representativa vem auxiliar o rompimento de décadas de gestão estatal centralizada (refletindo igualmente o histórico do sistema político do país), os comitês não podem perpetuar vestígios do sistema que eles visam justamente combater e inovar. Sabendo-se que nem todo consenso é democrático, e que nem toda decisão é justa, cabe, portanto, aos comitês realizar continuamente um trabalho de preparação, educação e informação de seus integrantes, que evite ou minimize problemas derivados do desequilíbrio de forças internas, como arranjos locais ou setoriais que possam defender interesses próprios acima do interesse comum de melhoria da qualidade ambiental das bacias e, consequentemente, da qualidade de vida dos cidadãos. O princípio da subsidiariedade3 visa distribuir o poder de decisão, mas não garante a liberdade ou igualdade entre os participantes de instâncias decisórias de caráter democrático e representativo. Como o funcionamento dos comitês geralmente se realiza com base em discussões e decisões objetivas (considerando o tempo necessário para a análise e discussão das complexas questões que envolvem a gestão das águas de uma bacia), a referida preparação e informação dos representantes deve se realizar nas reuniões preparatórias para as reuniões principais, nas quais ocorrem os votos e deliberações.

Estes riscos e desafios potenciais aos quais estão expostos os Comitês de Bacia ilustram a necessidade da atenção a ser dada ao processo decisório nesta fase de adaptação e transição, cujas raízes e consolidação de princípios devem ser bem preparadas e instaladas a fim de evitar o surgimento e possível agravamento das referidas "deformações" internas. Como dito, o controle das informações é a garantia do poder das decisões.

O PROCESSO DECISÓRIO NAS INSTÂNCIAS DE COMITÊS DE BACIA

O processo decisório no nível dos Comitês de Bacia está diretamente subordinado aos princípios sistêmicos. Todo modelo sistêmico se organiza pela correspondência de um sistema operacional e de um sistema decisor, por intermédio de um sistema informacional (Fig. 3). Nesta perspectiva, há uma estreita inter-relação entre todos os atores, fatores e fluxos no ambiente (aberto) em que vivemos. A informação informa a organização (Comitê de Bacia), enquanto a organização organiza a informação que a forma e que ela também forma à medida em que se organiza. À medida em que a organização organiza/acumula informações, ocorre a "memorização" da organização, ou seja, a criação de uma memória "coletiva" que se desenvolve de acordo com os inputs do meio. Neste caso, a informação é para a organização o que a matéria é para a energia (MOIGNE, 1977).


É comum que um sistema decisório seja marcado por níveis hierarquizados. A primazia do nível superior implica na determinação de que o inferior deve detalhar o plano parcial recebido, reduzindo as incertezas. A influência do nível imediatamente inferior decorre das respostas sobre os problemas, comunicando as soluções parciais alcançadas, ou mesmo justificando os fracassos e solicitando novas instruções. O nível superior deve, então, fornecer novos esclarecimentos e talvez reformular as decisões anteriormente tomadas (Bernardes, 1991). No caso dos Comitês de Bacia, estes exercem primazias sobre níveis inferiores (agências de águas e associações civis) e sofrem igualmente influências destes mesmos níveis. Por outro lado, os comitês se sujeitam à primazia de níveis superiores e os influenciam (Conselho Nacional de Recursos Hídricos; conselhos de recursos hídricos estaduais). Nestes fluxos, tenta-se evitar o "travamento" das deliberações em função da primazia dos níveis superiores, já que a própria essência dos comitês é sua relativa independência para deliberar sobre assuntos de interesse próprio (subsidiariedade).

A crescente valorização dos comitês (e outras organizações de bacia, como consórcios intermunicipais) vem ao encontro dos estudos que demonstram que apesar de grupos serem mais lentos do que indivíduos isolados na tomada de decisões, a probabilidade de acertos aumenta. Ademais, as pessoas estão sempre mais dispostas a aceitarem uma decisão que elas auxiliaram a tomar. Entretanto, obstáculos podem surgir em nível de grupos decisórios, como o desequilíbrio de forças entre indivíduos ou setores representados, indivíduos mal preparados e informados, indivíduos desinteressados, pouco sensíveis ou com baixa competência interpessoal, além de processos de interação ineficientes (HAMPTON, 1991). Estes obstáculos podem facilitar e, consequentemente, serem potencializados por pressões extragrupo, às quais podem condicionar o "padrão mental e comportamental" interno.

A gestão ambiental, em todas suas tipologias, envolve a tomada de decisões para que metas possam ser atingidas. O processo envolve uma seleção criteriosa de um curso preferencial de ações a partir de alternativas viáveis (OLIVEIRA, 1998). Dentre os fatores que determinam o sucesso do processo decisório está a quantidade e qualidade das informações, fatores que lhes conferem confiança na formulação de cenários. A maioria das decisões são tomadas em um contexto de elevadas incertezas sobre o futuro, principalmente considerando-se a escassez de informações. Dois dos principais fatores que distinguem os diferentes estilos de processos decisórios são o uso da informação e o foco das decisões, referindo-se respectivamente aos estágios de análise da situação e à formulação de soluções.

Qualquer instância do SNGRH envolve decisores de dois tipos básicos quanto ao uso das informações (DRIVER et al., 1993). Há aqueles que tendem a limitar o uso das informações, utilizando apenas aquelas que contribuem para sua compreensão de um problema o mais rápido possível. Desde que os decisores sintam que já possuem informações suficientes para escolher uma ou mais soluções, eles param de buscá-las. Já a segunda categoria de decisores caracteriza-se por buscar informações adicionais até terem certeza de que realmente não há outras disponíveis que possam fornecer-lhes "insights" sobre um problema. Permanecem, portanto, abertos a qualquer nova informação que possa auxiliar-lhes a melhor compreender um problema e encontrar uma solução.

O comportamento ideal depende de cada contexto e situação (contingências), mas é claro que o segundo tipo de decisores corre menos riscos de tomar decisões equivocadas. Em um país com escassez de bases de dados e informações qualitativa e quantitativamente adequadas, qualquer informação pode adquirir importância e relevância. A utilização otimizada das informações vai ao encontro do princípio da precaução, muito defendido atualmente em termos de políticas públicas no campo de meio ambiente, segundo o qual não deve-se tomar uma decisão sem antes terem certa segurança sobre suas consequências. Precaver-se é melhor do que responder posteriormente por equívocos de difícil solução.

A figura 4 representa estes dois tipos de decisores, sendo identificados respectivamente pelas letras A e B.


Por outro lado, o foco das decisões reflete o número de alternativas identificadas na tomada de decisões. Há decisores que, perante um problema a ser resolvido, preferem usar a informação de forma imediatamente associdada a uma solução ou um curso de ação para lidar com o problema (abordagem unifocal). São decisores que geralmente têm idéias bem definidas sobre um problema e suas possíveis abordagens, mas podem correr o risco de serem muito rígidos e instransigentes em suas decisões. Outra classe de decisores prefere associar uma informação a uma variedade de possíveis soluções, isto é, diferentes alternativas (abordagem multifocal). Isto implica que os decisores serão capazes de identificar diferentes cursos de ação ao mesmo tempo, tendendo a ser mais flexíveis e abertos a discussões (fig. 5 e tabela 1).


A fig. 6 demonstra que a definição de um objeto ou fato se faz segundo uma triangulação baseada na ponderação de uma definição funcional (o que o objeto faz), uma definição ontológica (o que o objeto é) e uma definição genética (o que o objeto será). Para Teilhard de Chardin (citado por MOIGNE,1977), definir um objeto é conhecê-lo em sua história (hereditariedade) e seu projeto (futuro). Cada nova decisão envolve novos objetos, fatos e/ou contextos, exigindo novas definições da posição de cada um (figura 6).


As visões histórica, orgânica e funcional relativas aos pólos dos objetos devem ser integradas no processo decisório visando a legitimação das hipóteses iniciais, mas a definição de cada objeto depende também da relação do observador com a realidade observada (interação sujeito-objeto). No que se pretende ser o funcionamento ideal de um Comitê de Bacia (segundo o SNGRH), a disjunção entre ciência (objetos) e filosofia (sujeitos), proposta por Descartes, parece não ser a abordagem mais adequada, justamente porque a gestão dos recursos naturais não pode prescindir da visão sistêmica.

A utilização das informações no processo decisório determina condições de riscos e incertezas. Sob condições de riscos, os gestores contam com situações em que os resultados não são totalmente conhecidos, mas cairão em uma série de alternativas ou probabilidades4. As condições de incertezas operam quando os decisores têm dificuldades de levantar as probabilidades de ocorrência das alternativas, seja devido à falta de informações ou ausência de conhecimentos sobre as alternativas. Neste caso, podem haver muitas variáveis envolvidas, muitos fatos desconhecidos, ou ambos e, portanto, os decisores não podem avaliar as alternativas com adequado grau de confiança. Decisões programadas, ou seja, decisões sobre problemas geralmente rotineiros e repetitivos para os quais é possível estabelecer um procedimento-padrão, envolvem elevado grau de certeza ou no máximo condições de riscos. Já as decisões não programadas, ou seja, aquelas decisões únicas, marcadas pela novidade e que não visam a solução de fatos rotineiros, ocorrem sob condições de riscos e /ou incertezas (SZILAGYI Jr.,1984). Sabemos que a quantidade e qualidade das informações e, no caso em questão, de indicadores hidroambientais, determinam o grau de existência de condições de riscos e/ou incertezas no processo decisório. No atual quadro nacional de gestão das águas, no qual há carência acentuada de informações, há tendência dos decisores (e portanto dos comitês) atuarem sob condições predominantes de incertezas, justificando a necessidade de programas de monitoramento que permitam a geração contínua de dados e o aprimoramento das bases existentes.

Como explicitado acima, a gestão das águas e a conseqüente utilização de informações envolvem decisões que partem dos integrantes de diversos níveis de poder em um sistema de gestão nacional. Estes níveis mantêm inter-relações hierárquicas que podem facilitar ou dificultar o processo de gestão, determinando a qualidade, quantidade e tipologia das informações utilizadas.

Este domínio ao qual os Comitês de Bacia estão sujeitos pode determinar a qualidade de qualquer das etapas do processo decisório considerado "ideal" (SZILAGYI Jr,1984):

1 - Reconhecimento e identificação do problema

Nesta etapa inicial, os gerenciadores geralmente deparam-se com as metas a serem atingidas e os hiatos entre estas metas e a situação atual. Há pelo menos três tipos ou estilos de decisores em relação à identificação dos problemas:

• Decisores que tendem a evitar os problemas: costumam esperar ordem e previsibilidade, tendendo a eliminar problemas que não preencham estes requisitos;

• Solucionadores de problemas: tendem a lidar com uma mistura entre certeza e incerteza na solução de problemas, não ignorando- os mas sim tentando resolvê-los;

• Investigadores de problemas: geralmente lidam com a incerteza dos problemas, procurando adaptar a situação às suas necessidades.

Na definição de problemas, é útil a consideração da lógica dos Sistemas, segundo a qual um problema não está isolado de suas circunstâncias e contexto, aumentando a probabilidade de que as decisões sejam tomadas em circunstâncias mais reais do que "ideais" (HAMPTON, 1991). As características da tabela 2 ilustram o enfoque moderno e dinâmico do Pensamento em Sistemas:

2 - Análise do Problema e Desenvolvimento e avaliação de alternativas

A partir da consolidação das informações, parte-se para a análise do problema com base na visão sistêmica. A avaliação de alternativas busca eliminar aquelas que não são práticas ou economicamente viáveis, e depende, portanto, das informações disponíveis. Dois tipos de abordagens são geralmente aplicados: o processamento de informações e a integração de informações. Enquanto esta última refere-se à combinação de informações de diversas fontes, o processamento de informações depende das premissas consideradas pelos decisores na avaliação e desenvolvimento de alternativas que, por sua vez, envolve duas dimensões: organização de informações e avaliação de informações.

A organização refere-se à forma que os decisores tratam as informações recebidas, envolvendo critérios segundo os quais algumas informações são rejeitadas e outras sumariadas e categorizadas. O estilo "perceptivo" envolve a ênfase no processo de seleção dos dados ou informações, rejeitando as que não se enquadram nos objetivos propostos, enquanto o estilo "receptivo" envolve a consideração de todas as informações recebidas pelo decisor. O estilo "sistemático" é aquele no qual os decisores estruturam os problemas em termos de algum método conhecido que leve à solução, enquanto o estilo "intuitivo" não envolve nenhum método conhecido de resolução de problemas. Os decisores devem abordar os problemas segundo suas tentativas de acerto de acordo com cada situação.

3 - Escolha entre as alternativas

A tendência de se aceitar a primeira impressão de um problema como sendo a mais adequada faz com que, comumente, os decisores restrinjam as soluções alternativas. A carência de informações também limita a escolha, assim como o fato das escolhas derivarem de um ato de julgamento que envolve valores pessoais5 (subjetividade). Subconscientemente podemos estar fortemente dispostos a certa alternativa, mas o que exprimimos como justificativa para nossas escolhas pode ser uma mera racionalização. As emoções e os valores pessoais podem estar subjacentes na escolha, ou seja, ao invés de reconhecer a verdadeira base das escolhas, apresentamos justificativas de caráter profissional.

A base dos nossos julgamentos decorre do grau em que a alternativa atende às metas desejadas, e também de quais são seus custos em relação às suas vantagens, ou de como tal alternativa pode ser implementada. Em todos estes casos, a escolha é influenciada pela qualidade da informação usada na avaliação das alternativas, e decisões podem ser modificadas se novas informações tornam-se disponíveis. Segundo Chester Barnard (citado por Hampton, 1991), "a arte perfeita da decisão... consiste em não resolver questões que não interessam agora, em não decidir logo, em não tomar decisões que não possam ser eficientes, em não tomar decisões que possam ser tomadas por outros.

4 - Implementação

A implementação das decisões envolve sua comunicação a todos os envolvidos, a organização e alocação de recursos e verificação da performance das ações implementadas.

5 - Avaliação dos resultados

A avaliação dos resultados envolve pelo menos três questões: Em que proporção as metas foram atingidas? Qual o grau de comprometimento dos envolvidos nas decisões de curto, médio e longo prazo? Outras decisões poderiam ter sido tomadas?

Entretanto, existe uma diferença acentuada entre a tomada de decisão ideal e a decisão imperfeita e forçada, fazendo com que vários estudiosos defendam a abstenção da tendência histórica do ensino do "ideal" em prol do real. Em condições reais, antes do passo 2 acima, torna-se necessário o passo da "obtenção de todos os fatos", pelo qual na ausência de dados e informações, transforma-se idéias em suposições, aprende-se a tolerar as ambigüidades e os dados incompletos. Seguir em frente mesmo sob tais circunstâncias é qualidade importante no processo decisório (SZILAGYI Jr, 1984).

As etapas do processo decisório descritas facilitam a compreensão do contexto dqwv os Comitês de Bacia no Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Fig. 7):


O processo decisório é consolidado com a elaboração do curso de ação do Comitê que resultará no plano de ação (planos plurianuais de ativiades elaborados pelas agências e aprovados pelos comitês). O processo decisório é, portanto, sempre um sistema caracterizado pela escolha de cursos de ação entre alternativas, no qual os planos iniciais devem ser aprimorados até a obtenção do plano final.

A gestão participativa é certamente dependente dos níveis de decisão e responsabilidades associadas, sem as quais os decisores não podem atuar (MAXIMIANO, 1997):

• Decisões independentes: não precisam de discussão, informação ou acordo do grupo, sendo tomadas unilateralmente para acelerar o processo e resolver os problemas;

• Decisões colaborativas ou consultivas: são tomadas por grupos de pessoas às quais foram dadas responsabilidade e autoridade para tal, exigindo discussões, participação e aconselhamento das pessoas afetadas por elas;

• Decisões de grupos potencializados (empowered): são tomadas pelos grupos que receberam poderes para tal, não precisando ser aprovadas ou revistas por níveis hierárquicos superiores.

O processo decisório em nível de Comitês de Bacia no Brasil deve se basear neste último tipo de decisões. Para decidir, o Comitê deve ser potencializado, ou seja, munido de informações, qualificações e atitudes adequadas para decidir. O "empowerment" , portanto, exige alguns pré-requisitos para seu sucesso (fig. 8), um dos quais associado à plena compreensão das funções e metas de trabalho. O "empowerment" é conferido somente quando os grupos decisórios recebem a compreensão clara das responsabilidades de sua função, bem como dos passos a serem seguidos para alcançarem seus objetivos. Isto não significa limitar e "sufocar" as iniciativas de decisão, mas apenas guiar e assegurar o sucesso do processo decisório, evitando perda de tempo e energia. É essencial também definir e informar os decisores das relações entre responsabilidades e metas, já que as pessoas precisam saber a razão das decisões. Neste sentido, um dos maiores problemas de desmotivação do papel exercido em um grupo decisório é a sensação de não estar contribuindo, resultante, dentre outros fatores, da falta de esclarecimento das funções e dos objetivos.


A motivação resulta principalmente de um sentido de orgulho pessoal, o maior catalisador que leva as pessoas a descobrir e utilizar o seu próprio poder pessoal. Neste caso, o orgulho pessoal deriva em grande parte do próprio sentido de responsabilidade, do próprio reconhecimento do papel que o decisor desempenha. Sabe-se que quando os decisores acreditam em si e têm confiança no seu papel acabam por ter mais poder pessoal para alcançar seus objetivos. Mas a auto-confiança e a auto-estima não podem comprometer o respeito entre os parceiros no processo, já que este é um forte motivador de participação e sucesso. Respeitar não significa acatar (as idéias), mas permitir que cada um se expresse segundo suas diferentes peculiaridades (histórias de vida, condições sociais e culturais), e mesmo interesses (pessoais, econômicos, políticos, etc). Destas diferentes realidades individuais dos Comitês de Bacia, por exemplo, é que surge a riqueza multivariada das discussões e deliberações.

O "empowerment" também só é atingido se os decisores receberem autoridade à altura da responsabilidade que lhes é designada. Logicamente, as pessoas somente podem desempenhar as responsabilidades inerentes às suas funções até o limite da autoridade que lhes for conferida. Autoridade implica em liberdade de idéias e de ação, sem "amarras" legais ou institucionais que impeçam o cumprimento adequado das metas propostas.

Outro pré-requisito do empowerment é a já citada informação e capacitação dos decisores por meio do conhecimento. Muitas vezes os decisores não têm a consciência de que necessitam de certas informações ou mesmo que tais informações existem. É importante, nestes casos, o incentivo constante para que os próprios decisores busquem informações, antecipando, se possível, a obtenção do conhecimento necessário no desempenho das funções do grupo. Os comitês não devem se estagnar na lógica do "consumo" de informações, fato que os torna susceptíveis aos interesses externos.

A carência de informações adequadas no processo decisório resulta em grande parte da ausência ou ineficiência de sistemas de coleta (monitoramento), transmissão e tratamento de dados. A constatação da relação direta entre disponibilidade de informações e gestão sustentável das águas tem levado o governo brasileiro a implementar bases de Informações sobre recursos hídricos no país, seja em nível institucional (sistemas específicos segundo cada instituição como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Instituto Nacional de Meteorologia, etc.), seja em nível espacial (bases estaduais, sistema nacional de informações sobre recursos hídricos, em implantação).

Outros fatores que influenciam o processo decisório são os fatores organizacionais, e os decisores têm muito pouco controle sobre eles. Tais fatores determinam os limites do processo decisório e incluem o nível ou importância do decisor na organização, a importância relativa ou significado da decisão para a organização, a quantidade de recursos envolvidos ou que podem ser afetados, o período de abrangência dos impactos das decisões, dentre outros. A participação dos decisores não pode ser otimizada se sua atuação for cerceada por excesso de padrões estabelecidos.

Há vários métodos e técnicas disponíveis para aplicação no processo decisório, os quais são aplicáveis no contexto do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, dependendo de cada situação. A técnica Delphi envolve a previsão que transforma julgamentos, opiniões e conhecimento de um painel de especialistas em estimativas quantitativas. A avaliação de impacto ambiental é um instrumento de planejamento que permite associar as preocupações ambientais às estratégias do desenvolvimento social e econômico, baseando-se na avaliação, antes da tomada de decisão, dos prováveis efeitos ambientais significativos de uma atividade proposta (BURSZTYN, 1994). São ainda utilizadas outras técnicas, como a Programação Linear (técnica matemática para determinar a combinação ótima de recursos), Matriz de Resultados (tabelas mostrando os resultados esperados de várias alternativas de decisão que envolva riscos e incertezas), árvores de decisão (tipos de rede usados para apresentar uma progressão de decisões que envolvem incertezas), Sistemas de Suporte às Decisões (sistemas que permitem aos usuários a escolha de diferentes softwares, bancos de dados e apresentações gráficas no auxílio às decisões) e Sistemas Especialistas (Sistemas de Apoio às Decisões que podem ser programados para emular a tomada de decisões de uma pessoa com 20 a 30 anos de experiência) (STONER & FREEMAN, 1985).

ALGUNS DESAFIOS DOS COMITÊS DE BACIA NO QUADRO LEGAL/INASTITUCIONAL BRASILEIRO

Alguns dos maiores desafios do processo decisório no Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos não são exclusivos da gestão das águas. Os problemas institucionais na gestão ambiental relacionados a aspectos como superposição de funções, falta de diálogo e deficiências no processo de integração inter-setorial são ainda um desafio em nível internacional. Problemas de infra-estrutura, falta de recursos financeiros e carência de recursos humanos qualificados também condicionam a tomada de decisões. Relacionados a estes "pontos de estrangulamento", a carência de dados hidroambientais e os interesses setoriais, locais e pessoais compreendem os maiores desafios do processo decisório na gestão das águas. Dentre os fatores que explicam o contexto no qual existem tais condicionantes está o contexto legal-institucional de gestão ambiental, fruto de um lento, mas real amadurecimento histórico, que ainda deve evoluir rumo à redução dos desequilíbrios de poder na tomada de decisões.

No Brasil, o início da institucionalização do gerenciamento dos recursos hídricos pode ser identificado na criação da Comissão de Estudos de Forças Hidráulicas do Ministério da Agricultura, em 1920. A partir de então, diversos atos de criação, extinção e reformulação de órgãos federais marcaram o então "cambaleante" processo de amadurecimento das políticas públicas no que se refere à gestão das águas. Sob forte caráter setorial, as águas ficaram, ao longo do século, prioritariamente atreladas ao setor elétrico (hidroelétrico), refletindo o enfoque econômico da ótica governamental. Como marcos das raízes deste processo podemos citar a criação do DNPM em 1934 (Departamento Nacional de Pesquisas Minerais), a criação do Código de Águas também em 1934 (Lei de Direito da Água no Brasil, que instituiu a política hídrica no país), a transformação da Divisão de Águas do DNPM no Departamento Nacional de Águas e Energia (DNAE) em 1965, e a posterior transformação do DNAE em DNAEE (Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica). Em tempos de forte fragmentação e setorização na gestão ambiental no país, a Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA), criada em 1973, também dava ênfase aos recursos hídricos quando atuava no combate à poluição ambiental, mas sem nenhuma articulação com o DNAEE (FEAM & FJP, 1998).

A confusa divisão de funções dos organismos públicos federais de gestão do meio ambiente até os anos 80 atingia o próprio Ministério das Minas e Energia, o qual atuava inclusive no setor de saneamento. Em 1976, o Ministério realizou um acordo com o Governo de São Paulo visando atingir melhores condições sanitárias nas bacias dos rios Tietê e Cubatão, fato que levou ao início de experiências de Comitês de Bacia no Brasil. Para operacionalizar o acordo, associaram-se secretários de Estado de São Paulo, companhias de saneamento e empresas do setor elétrico.

A primeira iniciativa de gestão de bacias em nível federal, via criação do Comitê Especial de Estudos Integrados de Bacias Hidrográficas (CEEIBH) em 1978, esteve também vinculada ao Ministério de Minas e Energia e ao Ministério do Interior. Apregoava-se que a iniciativa visava, dentre outros, a busca do aproveitamento múltiplo das águas (o setor elétrico continuou priorizado nas decisões) e a articulação do gerenciamento de recursos hídricos com a gestão ambiental, integrando diversos órgãos como SEMA, DNAEE, Superintendências de Desenvolvimento Regional e as Secretarias de Meio Ambiente dos estados. Uma das causas dos insucessos esteve justamente atrelada ao fato dos CEEIBH terem atuação apenas burocrática, sem força deliberativa.

Mesmo com os grandes avanços obtidos pela Lei n. 6. 938/81, a qual instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, e pela Lei n. 7.735/89, que criou o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), o tratamento das questões hídricas continuou vinculado ao setor elétrico (DNAEE). A tentativa de redução da fragmentação institucional no tratamento das questões ambientais, com a criação do SISNAMA – Sistema Nacional de Meio Ambiente - e do CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente, não resolveu os problemas de interesses setoriais conflitantes e de carência de um processo decisório voltado aos aspectos qualitativos e quantitativos das águas.

No contexto de uma década na qual iniciaram-se os debates sobre a necessidade de uma política e um sistema de gestão das águas no país, a promulgação da Constituição Federal de 1988 sacramentou o domínio público das águas no Brasil (águas federais e estaduais) e estabeleu a bacia hidrográfica como base para o planejamento regional. Atualmente, um dos principais desafios para a operacionalização dos Comitês de Bacia federais é justamente a consideração do gerenciamento por bacias hidrográficas em um sistema federativo, no qual os interesses estaduais não são sempre convergentes (como no caso do projeto de transposição das águas do rio São Francisco). A existência de dois domínios das águas deve exigir esforços de integração e acordos entre as esferas estadual e federal.

Na década de 90, diversos marcos legais contribuíram para a formação do atual quadro de gestão das águas no país, no qual os interesses mencionados nos parágrafos acima continuarão a existir. Destaque-se que, em 1995, a gestão das águas ganha "status" ministerial específico, e o Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal passa a chamar-se "Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal". A Lei 9.433/97 veio coroar o processo de crescente valorização das águas no país, criando o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SNGRH), no qual a Secretaria de Recursos Hídricos passou a ser o "braço" executivo do órgão máximo do sistema, ou seja, o Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Antes mesmo da aprovação desta Lei eram criados em alguns estados sistemas estaduais de gerenciamento de recursos hídricos, os quais foram ou continuam sendo adaptados à Lei Federal.

Os desafios dos Comitês de Bacia na tomada de decisões passam, então, pelos atores e interesses envolvidos nos diferentes níveis hierárquicos deste sistema. Estes atores devem buscar soluções que atendam, ao máximo possível, os princípios da Lei 9.433/97, baseando-se, dentre outros, na defesa de usos múltiplos da água, na defesa de que todos os setores usuários têm igual acesso ao uso dos recursos hídricos, no reconhecimento do valor econômico da água (cobrança), na aplicação da gestão descentralizada e participativa entre o poder público, os usuários e as comunidades, na articulação da gestão dos recursos hídricos com a do uso do solo, e na obrigatoriedade da outorga.

As divergências tendem a se concentrar em alguns pontos delicados: uso e ocupação do solo, aprovação dos programas de obras prioritárias, critérios de outorga aplicados pelo poder público e definição do valor a ser cobrado pelo uso da água. Nestes pontos de polêmica, os instrumentos legais vigentes devem dar suporte às decisões dos comitês, mas também podem dar margem a manipulações e defesa de interesses, em parte por superposições, lacunas ou falta de compatibilização da legislação das águas com outros quadros legais afins (como os relativos ao saneamento, à mineração e ao Código Florestal).

A existência de conflitos potencializa-se já em nível interno dos comitês. Na reunião de atores e interesses distintos de representantes do poder público (municipal, estadual e federal) e de representantes de usuários das águas e da sociedade civil organizada, mesmo que de forma paritária, um verdadeiro "jogo" pode ter início, no qual tenta-se reduzir as diferenças e aumentar a margem de consenso. Não há como buscar-se sempre a aprovação total dos integrantes dos comitês em cada decisão, mas o maior grau de consenso possível rumo à aprovação de uma decisão relacionada ao bem comum. Os problemas de consenso, presentes mesmo em nível intrasetorial, decorrem em grande parte do caráter multifuncional das águas, as quais servem a múltiplos usos e permeiam a própria viabilização da vida e do desenvolvimento. Torna-se difícil, em qualquer país, conciliar tantos interesses econômicos e ecológicos atrelados a um recurso como a água.

Concomitantemente ao "jogo" interno dos comitês, há o "jogo externo" envolvendo os demais atores dos sistemas estaduais de recursos hídricos e do SNGRH. Diversos textos legislativos (políticas ambientais) controlam a atuação destes atores, como a política nacional de meio ambiente, a política nacional de mineração, a política nacional de saneamento, etc. Mesmo com os governos estaduais e federal aplicando o princípio da subsidiariedade, os Conselhos de Recursos Hídricos dos estados e o Conselho Nacional de Recursos Hídricos são instâncias pelas quais as decisões dos comitês são avaliadas. Nestes conselhos estão representados diversos atores de setores distintos, incluindo os OEMAS (Órgãos Estaduais de Meio Ambiente) e, no caso federal, atores do Ministério do Meio Ambiente ao qual vincula-se o SNGRH.

A articulação do funcionamento dos comitês com o Ministério do Meio Ambiente não é um processo fácil em função, dentre outros, da compartimentação interna do Ministério. Apesar de todas as suas secretarias estarem teoricamente inter-relacionadas, cabe lembrar a importância de algumas delas para o setor de gestão das águas. A Secretaria de Recursos Hídricos é a responsável pela implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, pela definição de normas e implementação de programas e projetos relacionados à gestão integrada dos usos das águas, à integração da gestão das águas com a gestão ambiental, à implementação dos instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos, dentre outros. Com a criação da Agência Nacional de Águas – ANA (Lei 9.984/ 2000), uma autarquia de regime especial, com autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, as funções da SRH tiveram de ser revistas6. A ANA foi criada no contexto da recente fase de reformulação do sistema institucional federal, o qual passou a priorizar as agências reguladoras visando, dentre outros, "uma diluição do papel da administração pública como fornecedor exclusivo ou principal de serviços públicos" (ANVISA, 2001). Como mais um ator envolvido no processo decisório, a ANA deixaria, a priori, para a Secretaria de Recursos Hídricos o papel de "apenas" formular as políticas do setor. A agência já recebia críticas mesmo antes de sua criação, devido a sua vinculação à administração de recursos financeiros arrecadados com a cobrança pelo uso da água no país, fato que cria mais um elo na cadeia de relações inter-institucionais necessária ao funcionamento dos comitês.

Em relação ao Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA), alguns de seus objetivos últimos ilustram particularmente a forte necessidade de compatibilização de suas atividades com as decisões dos comitês: redução e prevenção de poluição agrícola, controle e fiscalização de atividades potencialmente poluidoras (aplicação da recente Lei de Crimes Ambientais -Lei nº 9605, em vigor a partir de 30/03/98), intervenção nos processos de desenvolvimento geradores de significativo impacto ambiental, ordenação do uso dos recursos pesqueiros em águas sob domínio da União, execução de ações de gestão, e proteção e controle da qualidade dos recursos hídricos. O papel de fiscalização dos "crimes ambientais" é determinante da adequada operacionalização das decisões dos comitês.

Na estrutura do Ministério do Meio Ambiente, cabe à Secretaria de Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos (Decreto Nº. 2.972/99) "propor políticas e normas, definir estratégias e implementar programas e projetos, nos temas relacionados à política ambiental urbana, às diferentes formas de poluição, degradação e riscos ambientais, aos resíduos danosos à saúde e ao meio ambiente, à avaliação de impactos ambientais e o licenciamento, ao monitoramento da qualidade do meio ambiente, ao ordenamento territorial, e à gestão integrada dos ambientes costeiro e marinho". As funções da SQA envolvem diretamente o setor de saneamento básico no Brasil podendo gerar confusão quando comparadas às das outras unidades do MMA. A Secretaria está, por suas competências, fortemente atrelada à SRH e ao IBAMA e, por consequência, falhas nesta rede de relações podem comprometer a dinâmica dos comitês.

Se o Ministério do Meio Ambiente é aquele diretamente voltado à gestão das águas no país, outros são, ou devem ser, fortemente associados ao processo. Ao Ministério de Minas e Energia vincula-se a já citada Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, responsável por regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica no país (predominantemente de caráter hidroelétrico). Ao Ministério da Saúde vincula-se a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (foi criada pela Lei nº 9.782/99), cujas funções envolvem a promoção da proteção da saúde da população, incluindo o estabelecimento de normas e padrões sobre limites de contaminantes e resíduos tóxicos.

Os conflitos existentes entre atores do poder público na gestão das águas, seja ele municipal, estadual ou federal, decorrem em grande parte das dificuldades de conciliação de papéis. Principalmente em um país continental como o Brasil, com problemas sócio-econômicos graves, grandes desigualdades regionais, e carência de dados hidroambientais, não é fácil concatenar os poderes de formulação de políticas ambientais com a operacionalização dos poderes de outorga pelo uso da água e de fiscalização (poder de polícia), e de todos estes com os interesses econômicos multisetoriais. Como exemplo, a SRH é responsável pelo fornecimento de outorgas em cursos d'água de domínio da União, mas em muitos casos não há dados hidrológicos suficientes, levando à liberação de licenças por prazo determinado mesmo sem o conhecimento necessário sobre disponibilidade hídrica local.

Outro motivador de conflitos é a dificuldade de minimização, no processo decisório em nível nacional, das diferenças de enfoque e interesses quanto aos aspectos de qualidade e quantidade das águas. Já é por demais conhecido que a situação qualitativa (parâmetros físicos, químicos e biológicos) está associada à situação quantitativa de certo manancial hídrico (disponibilidade hídrica), principalmente devido ao fator "concentração" de poluentes. No Brasil, dados de qualidade da água em nível regional, mesmo que fragmentados no tempo e no espaço, são os mais abundantes em função de diversas redes setoriais ou iniciativas de órgãos estaduais de meio ambiente, universidades e companhias de saneamento. (Tabela 3):

A maior provedora de dados hidrológicos no Brasil é a ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), por meio da administração da rede hidrometeorológica nacional, a qual é operada pela CPRM (Companhia de Pesquisa e Recursos Minerais). A rede inclui estações fluviométricas, pluviométricas, sedimentométricas e de qualidade das águas, fazendo com que os demais setores, com agravante para o setor de saneamento, fiquem dependentes dos interesses locais de instalação de estações hidrométricas da ANEEL. A importância da integração entre dados de disponibilidade hídrica e qualidade da água é expressa pela própria Resolução CONAMA 020/86, ao definir os padrões de lançamentos de efluentes em termos de concentração, e não de volume de poluentes. Um Comitê de Bacia não pode decidir sobre algo que não conhece e, neste caso, a disponibilidade de dados é fundamental. Mesmo que cada vez mais abrangente, a rede da ANEEL não atende e não atenderá no futuro próximo, às necessidades locais e regionais dos Comitês de Bacia sobre dados do "estado" das águas.

Em nível federal, a tabela 4 demonstra as instituições e respectivas competências relativas ao monitoramento das águas, demonstrando o caráter interministerial do processo:

A integração dos dados das instituições responsáveis pelo monitoramento hidroambiental é imperativa, formando um sistema nacional de dados hidroambientais. A integração também deve passar pelos diferentes tipos de dados, como os de uso do solo e aspectos sócio-econômicos, dentre outros de caráter ambiental. Tal integração é ainda um desafio, já que não é fácil considerar as numerosas cadeias de fluxos pelas quais circulam as águas. Os decisores devem, da melhor maneira possível, compreender a dinâmica ambiental condicionante das decisões a serem tomadas.

Não podemos nos esquecer também que o sucesso do processo decisório dos comitês depende dos avanços tecnológicos, os quais aceleram de forma fenomenal a capacidade humana de gerar, transmitir e tratar dados e informações. O monitoramento das variáveis de interesse na gestão das águas sofreu elevados saltos nas últimas décadas em função da evolução dos referidos avanços, os quais possuem como raíz comum o advento da informática (termo cunhado por Philippe Dreyfus justamente para designar a ciência para o estudo e tratamento das informações).

Com a extensão territorial do Brasil, não há como se pensar em atender todas as demandas de dados de interesse local e/ou regional, via somente governo federal. As demandas são sempre renovadas e exigem uma malha de pontos de coleta de dados cada vez mais precisa. Nenhum sistema centralizador é capaz de atender tais exigências sem cair nos conhecidos problemas, como priorização de certas áreas em detrimento de outras. Cabe então, como parte do processo, que os próprios comitês demandem e providenciem a geração e tratamento dos dados de seu interesse particular, considerando inclusive as redes de monitoramento regionais, estaduais ou federais. Neste ponto, diversos obstáculos devem ser vencidos pelos comitês, incluindo a falta de experiência de gestão descentralizada e a falta de conhecimento das realidades locais, fatores essenciais às iniciativas e pressões para geração de dados. Ademais, os sempre lembrados interesses setoriais intracomitês podem atrapalhar o atendimento das reais necessidades.

Ainda em relação à geração de dados de disponibilidade hídrica, outro entrave a ser enfrentado é a relativa dissociação entre águas subterrâneas e águas superficiais. No Brasil, a CPRM (Comissão de Pesquisa de Recursos Minerais) tem a primazia do monitoramento das águas subterrâneas. Como as bacias subterrâneas não têm limites e dinâmica obrigatoriamente semelhantes às bacias superficiais, os problemas começam na própria legislação, já que a Lei 9.433/97 não contempla de forma abrangente e específica as águas subterrâneas no país. A Constituição Federal (1988) determina que as águas subterrâneas são de domínio estadual, mas considerando que os limites dos aquíferos não acompanham os limites dos estados, pode ocorrer a ilógica gestão fragmentada de um aquífero por mais de uma unidade da federação. Quantos Comitês de Bacia possuirão dados confiáveis sobre os limites dos aquíferos de interesse e suas reservas hídricas, considerando que nem todos são monitorados? Além disto, não é a capacidade de reter, mas de transmitir água, que determina a importância de um aqüífero, gerando a necessidade de dados mais específicos sobre condutividade hidráulica dos mesmos. O que fazer para conciliar as pressões das demandas hídricas sobre mananciais subterrâneos dos quais pouco se sabe?

Os desafios dos comitês abrangem não somente o contexto brasileiro. Atualmente ocorrem problemas relativamente generalizados globalmente, e os comitês de bacia na França estão atualmente voltados ao combate da poluição difusa de origem agrícola (agrotóxicos, fertilizantes), sempre difícil de combater por seu caráter espacial, a poluição das águas subterrâneas, para a qual é mais fácil investir em prevenção, e a poluição pelas águas pluviais (especificamente importante nas zonas urbanizadas).

Finalmente, cabe levantar um ponto nevrálgico do processo decisório relativo às águas no país. A operacionalização da gestão via comitês depende fortemente da disponibilização de recursos financeiros para efetivação das obras nas bacias (estações de tratamento, redes coletoras de esgotos, etc.). Sem tais obras, as quais devem estar contempladas nos programas de investimento plurianuais, não há como operacionalizar a Lei 9.433/97 ou qualquer outra que aborde o contole da degradação dos ambientes hídricos. A experiência francesa, da qual deriva o sistema brasileiro de gestão, demonstra que no início da operacionalização das Agências financeiras de bacia, foram necessários investimentos do Estado (subsídios, recursos a "fundo perdido", etc.), até que houvesse recursos em "caixa" gerados pela cobrança, e passíveis de utilização para instalação de novas obras e manutenção da infra-estrutura instalada. Após um certo tempo, as Agências adquiriram fundos de reserva passíveis de financiamento dos planos pluvianuais de investimentos, fornecendo empréstimos e subsídios às coletividades locais (comunas, departamentos) e às indústrias, a fim de viabilizar a construção de redes coletoras e estações de tratamento de esgotos. Mas é preciso lembrar que o Brasil não possui os mesmos recursos financeiros e tecnológicos da França, possui uma extensão (cerca de 16 vezes o tamanho da França) e uma população (cerca de 3 vezes) bem superiores e não possui experiência de gestão descentralizada e participativa, a qual aumentaria as chances de sucesso na implementação do sistema de cobrança.

A experiência francesa mostra atualmente alguns pontos de descontentamento que ilustram bem os desafios de implementação da cobrança pelos organismos de bacia:

• O cálculo dos valores da cobrança são complexos e quase incompreensíveis em termos sociais, o que gera críticas e desconfianças.

• Há fortes diferenças entre os valores pagos pelos setores de usuários: os contribuintes "domésticos" pagam proporcionalmente mais do que os setores industrial e agrícola, e consomem menos água. Ademais, o setor agrícola praticamente não paga a "redevance" pela poluição das águas, sendo um dos "nós" do sistema7.

• Os preços da água subiram significativamente nos últimos anos, com uma política do Estado de aplicar verdadeiramente o princípio "poluidor-pagador"8. Mesmo considerando que as "redevances" respondem por uma parte menor de uma tarifa doméstica (a maior parte vem da parte fixa que cobre os custos e os lucros dos serviços de água e esgotos), elas também sofreram majorações passíveis de críticas e desconfianças sociais.

• Também em relação à forte elevação dos preços pagos pela água e pelo saneamento básico nos anos 90, e também por problemas de casos de corrupção, a gestão delegada às operadoras privadas é cada vez mais motivo de desconfianças e pressões sociais9.

A questão da determinação dos valores de cobrança é um ponto complexo que depende e incorpora inúmeras variáveis políticas, econômicas e sociais, não sendo objeto deste artigo10. Mas estes exemplos de desafios, os quais motivaram o atual processo de reformulação do sistema francês de gestão das águas, podem servir de alerta aos Comitês de Bacia no Brasil.

CONTRIBUIÇÕES DOS PRESSUPOSTOS DA TEORIA DO SISTEMA GERAL

Na busca de compreensão das diversas variáveis a serem consideradas para o sucesso dos Comitês de Bacia, os princípios da Teoria do Sistema Geral podem ser importantes. Em 1637, Descartes propôs quatro preceitos básicos do Método cartesiano que influenciaram sobremaneira o pensamento ocidental, mas que foram questionados pelas idéias do "Novo Método" da Teoria do Sistema Geral (MOIGNE, 1977). Dentre estas idéias de renovação, o preceito da Evidência de Descartes ("devemos ter provas do que venhamos a acreditar"), deve ser complementado pelo preceito da Pertinência, pelo qual todo objeto ou fato se define com respeito às intenções implícitas ou explícitas do analista. Neste caso, devemos encarar algo como verdadeiro não apenas quando for comprovado cientificamente, mas também segundo nossa inteligência perceptiva e cognitiva. Para a gestão das águas no país, este preceito é importante não apenas porque é útil no contexto da carência de dados e informações hidroambientais, mas também porque nos lembra que o funcionamento de colegiados participativos (como os comitês) não envolve apenas fatos comprovados cientificamente, mas valores pessoais inerentes às próprias experiências de vida dos participantes. Interesses e arranjos pessoais e coletivos subjacentes fazem parte do processo humano de discussão e negociação.

Sobre o preceito do Reducionismo (análise dos fatos por meio de sua decomposição), a decomposição de um problema pode aumentar a dificuldade na busca das soluções, além de nem sempre a soma das partes resultar no todo. O todo pode ser mais do que a soma das partes, e a parte é mais do que uma fração do todo. No caso da gestão das águas, não há como haver a gestão isolada do todo, mas sim a gestão sistêmica. É ilustrativo ainda lembrar que as idéias, propostas e soluções apontadas pelo conjunto de representantes no Comitê são muito mais do que a soma das idéias individuais. O funcionamento de um Comitê deve priorizar, portanto, o Globalismo, segundo o qual cada parte do todo deve ser percebida como uma parte inserida, imersa, ativa no todo, ou seja, no ambiente. Envolve, portanto, o princípio da abertura dos sistemas, ao contrário dos "sistemas fechados" do reducionismo.

Outro princípio adotado por Descartes, e proposto anteriormente por Kepler, Galileu e Newton, o determinismo ou causalismo determina que o mundo possui uma ordem, a qual incorpora leis de causa-efeito invariáveis. Nesta ótica, o ser racional é aquele que se comporta conforme as leis já conhecidas, ou crê que as leis existem desde sempre na natureza e cabe a ele identificá-las. Em uma nova abordagem, para o conhecimento do mundo, o homem pode ser racional sem ser determinista. Em nosso dia a dia, percebemos que as mesmas causas não levam às mesmas conseqüências, e que tais consequências têm significado e impactos diferentes para cada um. Não podemos separar os meios dos fins, ou determinar um único meio capaz de se chegar a um fim identificado.

A Racionalidade (abordagem teleológica) vem justamente aplicar o tratamento dos meios, dos fins e de suas relações. Refletindo sobre a finalidade do objeto, a Teleologia não visa dizer quais são os fins, mas apenas nos conscientizar da compatibilidade ou incompatibilidade entre tais fins e meios. A interpretação de algo baseia-se em seu comportamento, sem buscar explicá-lo por alguma lei de alguma estrutura. Este princípio explicita que as hipóteses sobre uma relação de causa-efeito não são indispensáveis para o exercício da inteligência investigativa. Não deixamos de ser racionais somente porque consideramos várias hipóteses sobre os fins. No lugar de explicações de causa-efeito, a Racionalidade defende a busca da inteligência por uma generalização baseada na relação comportamento-finalidade. Enquanto a causalidade baseia-se em leis, a Racionalidade se exprime por sinais e símbolos. A abordagem teleológica evita a separabilidade, e considera a definição ou interpretação de um objeto um processo baseado em dois pólos: o decisor e o restante do objeto, conectados por meio de informações e decisões.

Finalmente cabe destacar a contraposição do princípio cartesiano da exaustividade, segundo o qual devemos compreender um objeto ou fato quando analisamos todos os seus aspectos, assegurando-nos de que nada foi omitido. O cartesianismo defende o conhecimento de um objeto a partir do conhecimento detalhado de suas partes. Segundo o Globalismo, discutido anteriormente, não podemos desdobrar um objeto ou fato a tal ponto que possamos compreender-lhes completamente sem deixarmos de omitir algo. Como toda representação é parcial, não por esquecimento do analista (decisor) mas por ser deliberadamente parcial, devemos buscar selecionar agregados de informações e excluir a ilusória objetividade de uma investigação impecável. O enfoque de um objeto ou fato deve ocorrer segundo apenas o que for de interesse. Este é o princípio do pressuposto da Agregação, da Teoria do Sistema Geral.

No caso dos comitês, parece lógico que não há como intentar-se conhecer toda a complexidade ambiental. Tampouco conhecer o recurso água por meio do seu desdobramento infinito em inúmeras partes informativas. As águas existem em contextos distintos, mas integrados, sistêmicos, mutuamente condicionados. O desdobramento e o conhecimento total destes contextos é algo ainda irreal. Principalmente considerando as realidades de escassez de informações, os decisores não têm como deixar de omitir aspectos na gestão das águas, mas devem selecionar e agregar as informações relevantes e indispensáveis.

Sintetizando a comparação entre a abordagem cartesiana e a sistêmica, Edgar Morin (citado em MOIGNE, 1977) se pronunciou: "Diferentemente de Descartes que falava de um princípio simples de verdade, ou seja, identificação da verdade por meio de idéias claras e distintas, e além, podia propor um discurso do método em algumas páginas, eu faço um discurso muito mais longo na busca de um método que não se revela por qualquer evidência inicial, devendo ser elaborado perante esforço e riscos. A missão deste método ... é convidar cada um a pensar na complexidade" .

O processo de gestão das águas envolve uma variedade e, portanto, uma complexidade ambiental fatal para qualquer visão reducionista. A falta de uma abordagem adequada pode fazer com que a complexidade do ambiente se torne uma barreira ao processo decisório, fazendo com que os decisores fiquem controlados pelo sistema (inversão do processo). Este fato pode indicar disfunções nos organismos decisórios, não pela complexidade ambiental em si, mas pela forma com que o organismo trata tal complexidade.

REFLEXÕES FINAIS: ALÉM DO LEGAL / INSTITUCIONAL

Como visto, o sucesso da empreitada dos comitês depende de fatores conjunturais como disponibilidade de dados ambientais, necessidade de investimentos financeiros, fiscalização ambiental eficiente, definição clara de papéis institucionais e instrumentos legais, e mediação de interesses setoriais, locais ou pessoais. Mesmo considerando que o país deu "saltos" significativos nas últimas décadas quanto à valorização ambiental pelas políticas públicas, conscientização ambiental dos cidadãos e modernização do sistema de gestão (Lei 9.433), o "empowerment" não é simplesmente um ato legal ou institucional. É necessário viabilizar os comitês, fornecendo condições que, no caso brasileiro, o contexto sócio-econômico-ambiental realmente desfavorece. Para que o sistema funcione, a cobrança pelo uso da água é essencial e, por sua vez, seu sucesso depende da definição clara dos dispositivos de intervenção e controle no SNGRH. Portanto, é preciso haver um circuito econômico claro e estável que viabilize a cobrança com suporte social, ou seja, é preciso cobrar para operacionalizar as funções dos comitês, mas sem ultrapassar os limites de aceitação social e poder de pagamento dos cidadãos.

O Brasil chegou ao início do século XXI com uma das legislações ambientais mais avançadas do mundo, mas ainda com problemas de lacunas e superposições de instrumentos legais. Segundo Zeno Simon (citado em CAUBERT, 1994), "em geral percebe-se certa "overdose" de dispositivos legais que protegem rios e nascentes (Código Florestal, Resolução CONAMA, etc.), enquanto faltam peças legislativas mais fortes e consistentes em outras áreas como, por exemplo, uma Lei de Resíduos Sólidos" (Avaliação do Tribunal das Águas).

Ainda hoje, mesmo com o amadurecimento da gestão ambiental no Brasil via instrumentos legais e institucionais, o setor elétrico ainda determina importantes decisões politicas, fato justificado pelas alegadas necessidades de energia do país e sua viabilização do processo de desenvolvimento ("interesses nacionais"). Outros grupos, como os relacionados ao setor agrícola e a setores industriais específicos, também não querem, obviamente, ter seus interesses ameaçados. Apesar de, nos comitês, as decisões serem teoricamente tomadas democraticamente, o processo não exclui os riscos de desequilíbrios de forças e arranjos setoriais.

O processo decisório no qual se inserem os comitês depende da compatibilização de interesses, da qual depende o acordo sobre a natureza dos problemas a serem atacados e a hierarquização dos problemas de forma a surgirem objetivos estruturantes. Seja por meio da justaposição de objetivos setoriais, pela mobilização em situações de crise ou pela existência de um objetivo central resultante de alguma mobilização anterior, a existência de objetivos estruturantes do processo decisório é a "espinha dorsal" do funcionamento dos comitês. Interesses setoriais não devem suplantar os interesses comuns, mas na estruturação dos eixos de trabalho a percepção dos problemas ambientais não é algo objetivo. O "estado" das águas é sempre um tema controverso, já que temos visto nos comitês em funcionamento que além dos conhecimentos técnico-científicos, as discussões muitas vezes centram-se em observações empíricas ou representações sociais. Experiências francesas demonstram que quando há forte assimetria de recursos cognitivos e técnicos entre os atores envolvidos, a organização tende a uma gestão dita "racional" (baseada nas informações científicas) ao invés de um esforço de apaziguamento social do processo (SALLES & ZELLEM, 1998). Como as experiências mostram que a mobilização coletiva ocorre mais em função de ajustes cognitivos que de argumentos científicos, os comitês devem buscar a conciliação entre ambos para que as comunidades contribuam com o processo (vide preceitos da Evidência X Pertinência). Uma tentativa sempre válida é a prévia informação e sensibilização popular sobre o "estado" do meio local, repartindo conhecimentos e envolvendo a comunidade desde o início do processo de gestão local/regional. Sem uma cultura de cooperação que facilite a negociação e o suporte popular, tanto na aceitação da cobrança como em iniciativas comportamentais relativas ao combate, ao desperdicio e à poluição, os comitês e o SNGRH tendem à inoperância.

Aspecto pouco lembrado em tempos de valorização crescente da bacia hidrográfica, como unidade de planejamento no Brasil, é que sua aceitação popular como unidade concreta de gerenciamento é um desafio. A bacia não possui identidade sociológica, administrativa ou política, e não traz, como geralmente apregoado, a noção de espaço funcional de gerenciamento. Os usuários das águas são muito mais conectados, perceptivamente, ao seu espaço próximo, incluindo trechos de rios. Saber que a água poluída que passa na sua porta vem de montante, não resolve o distanciamento cotidiano (perceptivo) do cidadão com respeito às outras partes da bacia. Os comitês devem considerar o desafio de vencer este obstáculo vis à vis o sistema político-administrativo e os valores sociais. Percebemos que os comitês têm a difícil tarefa de suplantar os limites políticos municipais e estaduais, fortemente presentes nas políticas públicas e nos quadros comportamentais-mentais dos cidadãos, na busca da operacionalização da gestão por bacias hidrográficas. Seguindo os exemplos da experiência francesa, após certo tempo do processo de funcionamento do SNGRH, a tendência poderá ser uma maior consideração de outras unidades internas de planejamento como trechos de rios, aquíferos, etc., mas sem o abandono da priorização das bacias hidrográficas como macro-escala de referência.

O desafios tornam-se mais imponentes aos comitês considerando que grande parte das decisões a serem tomadas envolve decisões não programadas, ou seja, aquelas marcadas pela novidade e dinamismo. O processo decisório torna-se, deste modo, uma constante busca das melhores alternativas para se alcançar as metas desejadas. Muitas vezes os riscos e as incertezas tornam o processo decisório um jogo de difícil prognóstico, cujo sucesso depende de alguns pré-requisitos.

Apesar da grande influência dos fatores conjunturais, a busca do sucesso na operacionalização dos comitês pode ser facilitada com a aplicação de preceitos como os da Teoria do Sistema Geral. Aparentemente "fora de moda" em tempos de saltos tecnológicos e individualismo, qualidades humanas, como o respeito à liberdade de opinião e a busca do bem comum, serão certamente necessárias na gradual implantação da gestão sustentável das águas no país. A "modernização" do processo depende logicamente das qualidades comportamentais dos decisores. Como tudo o que se refere às questões ambientais, as soluções emergirão sempre de acordos que ultrapassem as divergências sociais e econômicas. Os interesses pessoais e coletivos são moldados pelo passado e circunstâncias de vida de cada um, mas mesmo respeitados, não podem comprometer as metas de gestão racional. Neste sentido, os decisores no âmbito dos comitês estão e estarão inseridos em um contínuo processo de evolução que na realidade é uma diferenciação de estrutura, mas é ao mesmo tempo uma integração de funções. Quanto mais as partes são diferenciadas e especializadas, mais se torna necessária uma coordenação conjunta para gerar um todo equilibrado. A diferenciação caminha junto com a integração (coordenação), e não em direções opostas, como o pensamento ocidental se acostumou a aceitar. Diferenciação significa diferenças de atitude e de comportamento, e não apenas o fracionamento ou a especialização.

Como bem lembrou Bachelard (1975), "no interior de todo sistema, .... é preciso uma diversidade essencial entre os componentes. Nada é idêntico a nada a não ser substâncias químicas sem reação, indiferentes umas em relação às outras, como mundos fechados". Deduz-se que é na diversidade dos comitês (diferenças de idéias, propostas, soluções...) e simultaneamente na sua integração que jaz uma das chaves do sucesso.

"Mudando o que conhece do mundo, o homem muda o mundo que conhece, mudando o mundo no qual vive, o homem transforma-se a si mesmo". (DOBSZHANSKY, 1966).

BIBLIOGRAFIA

NOTAS

Agradecimentos: Ao Centro de Desenvolvimento Sustentavel (UnB) e ao orientador Oscar de Moraes Cordeiro Neto.

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  • SZILAGYI Jr, A. D. Management and Performance Glenview: Scott, Foresman and Company, 2 ed., 1984, p. 210 - 234.
  • TRACY, D. Dez Passos para o Empowerment - Um Guia Sensato para a Gestão de Pessoas Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1994, p. 01 - 165.
  • 1
    Gestão descentralizada é aqui concebida como a gestão que incorpora o princípio de subsidiariedade, e cujo processo decisório flui em diferentes escalas espaciais, desde o nível federal, aos níveis mais locais relativamente próximos do cidadão (municípios, bacias hidrográficas, etc.).
  • 2
    Gestão das águas participativa é aqui concebida como a gestão não unicamente Estatal, mas que incorpora a participação de diferentes setores da sociedade, incluindo os usuários das águas e representantes da sociedade civil organizada.
  • 3
    Segundo o princípio da subsidiariedade, os poderes de de decisão devem ser distribuidos entre diferentes niveis hierarquicos, buscando-se a optimização de "economia e eficácia". Uma decisão pode ser, si legalmente amparada, tomada pelo nível mais "baixo" do sistema de gestão, e somente em ultimo caso deve ser assumido pelo nível superior.
  • 4
    Probabilidade é o percentual de chance de ocorrência de certa alternativa, considerando o total de alternativas.
  • 5
    Segundo KARL JUNG, "a grande decisão da vida humana tem uma norma muito mais relacionada com ... fatores inconscientes do que com desejos conscientes e significativos, e razoáveis (HAMPTON, 1992).
  • 6
    Atualmente, a Secretaria de Recursos Hidricos tem as funções de planejamento, coordenação, supervisão e controle das ações relativas aos recursos hídricos, incluindo a implantação do Sistema Nacional de Recursos Hídricos, enquanto a Agência Nacional de Aguas (ANA) passa a ser responsável pelas ações de implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos.
  • 7
    Os usuários agrícolas pagaram sempre somente a "redevance" pela captação de água, mas não pela poluição. A partir de 2.000 os grandes criadores começaram a pagar uma nova "redevance" relativa à poluição gerada pela pecuária. Os valores são ainda relativamente insignificantes nos balanços financieiros das agências.
  • 8
    Mesmo que sempre divugado como a concretização do "princípio poluidor-pagador" a aplicação das "redevances" na França nunca representou uma real cobertura de custos da poluição e do abastecimento de água. Se as receitas geradas não cobrem os custos, o princípio poluidor-pagador não é, de fato, aplicado. Nos últimos anos, em parte obrigado pelas exigências das Diretivas Européias sobre meio ambiente, o Estado vem tentando aproximar o valor das redevances de seu valor teórico "ideal", visando cobrir os custos dos investimentos necessários para financiar as obras de combate à poluição.
  • 9
    Na França, a gestão dos serviços urbanos de águas e esgotos é de competência das coletividades locais ("communes"), às quais podem delegar os serviços à companhias privadas. Este sistema de gestão delegada, é fortemente dominante no país.
  • 10
    O próprio caso francês mostra que as críticas muitas vezes decorrem do desconhecimento em relação ao modo de cálculo, o qual incorpora, por exemplo, um sistema de reembolso de grande parte dos valores pagos pelos usuários para o financiamento de obras de combate à poluição. Mesmo aqui, os usuários domésticos são prejudicados porquê o reembolso referente à sua parcela paga, é entregue às coletividades locais, às quais nem sempre aplicam os recursos de forma clara.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Dez 2004
    • Data do Fascículo
      Jun 2001
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