RESENHA BOOK REVIEW
Máximo rio Amazonas: as jóias do tesouro
Vera Maria Fonseca de Almeida e ValI; Nazaré FerreiraII
IPesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) & Professora Visitante do Centro de Ciências do Ambiente da Universidade Federal do Amazonas (CCA-UFAM)
IIPós-Graduanda (Mestrado) Programa de Pós-Graduação em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia - Universidade Federal do Amazonas
Tesouro Descoberto no Máximo Amazonas
Padre João Daniel
Rio de Janeiro, Contraponto, 2004, 2v.
A leitura das 1.219 páginas da obra de Padre João Daniel (Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas - volumes I e II; Padre João Daniel, 1722-1776) leva-nos a uma verdadeira viagem que, por mais antiga e distante que possa ser, nos remete aos mais atuais problemas e características da região amazônica. Essa sensação é muito real, pois os dois volumes da obra trazem descrições, notícias e conceitos completamente semelhantes, ou mesmo idênticos, aos dos dias atuais. Como se tivesse sido redigida em pleno século XXI, na atualidade, a obra de Padre João Daniel1 1 . Padre João Daniel foi missionário da Companhia de Jesus, viveu entre 1741-1757 na Amazônia e, em sua obra, demonstra uma visão de homem letrado e estudioso do pensamento dos filósofos e viajantes que influenciaram a utopia da Amazônia. Descreve com detalhes tudo o que viu e vivenciou, demonstrando extrema sensibilidade e uma visão humanista, relacionadas ao homem, à terra e à natureza. Mesmo sob forte influência do pensamento religioso medieval, ainda assim, apresenta um pensamento de vanguarda em relação ao seu tempo, em que demonstra preocupação em relação à preservação da natureza. revela, antes de qualquer coisa, o humanismo, a inteligência e a sensibilidade desse Jesuíta, cronista da Companhia de Jesus, que viveu na região amazônica entre 1741 e 1757, quando foi preso por ordem do Marquês de Pombal. Nos dezoito anos em que viveu na prisão - seus últimos anos de vida - escreveu toda a obra que hoje é publicada na íntegra, pela segunda vez, a partir da transcrição de seus manuscritos (no total 766 páginas), descobertos pelo bispo José Joaquim de Azeredo Coutinho. As cinco primeiras partes estão depositadas nos acervos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, ali mantidas desde 1808, quando Dom João VI as trouxe em sua fuga de Portugal, provocada pelo avanço do exército de Napoleão Bonaparte pela Europa ameaçando a soberania do reino Português. A sexta parte, descoberta posteriormente, está depositada em Évora, e sua cópia em microfilme, no Brasil, juntamente com as partes iniciais. A viagem que fazemos por meio do texto é rica e cheia de detalhes que tornam a leitura extremamente interessante, em particular àqueles que querem conhecer melhor a Amazônia. A visão do autor é apaixonante e, por tratar-se de obra redigida no século XVIII, é entremeada de uma visão mística que, por mais imprecisa e irreal que seja, traz ao leitor mais cético e ao próprio cientista, técnico por obra do ofício, um fascínio que impede a interrupção da leitura. Inclusa nessa visão mística, do padre que viveu desde os 19 anos na Amazônia para depois ser enclausurado até morrer em uma prisão, está uma precisão e riqueza de detalhes sobre a história do descobrimento da região, das grandes navegações em busca de riquezas e cidades "fabricadas em ouro," como uma cidade chamada "Manoa"2 2 .Segundo Corrêa (2002, p. 39-40) pela época e, talvez, durante toda a Idade Média "...falava-se sobre o Atlântico com fascínio e medo. A falta de maiores conhecimentos faziam (até homens doutos) as populações européias fantasiarem as antigas viagens dos cartagineses pelas costas da África e possivelmente até as "ilhas" atlânticas (...) . As maravilhosas lendas bretãs baseadas, talvez, na tradição de antigos geógrafos, falavam de um Mar Tenebroso como um oceano de luz, salpicado de ilhas verdes onde havia cidades cobertas de ouro. Ao fim de tormentas inimagináveis chegava-se ao paraíso terrestre". O que motivou a descoberta do rio Amazonas, de acordo com esse autor, foi a cobiça pelas riquezas da região, mais especificamente pelo ouro, que resultou na vinda dos Europeus para o Novo Mundo. Aliado a esse fato também está o boato que os espanhóis espalharam sobre a existência de um lago dourado e de uma cidade chamada Manoa, onde tudo era de ouro. que, dizia-se, ter atraído grandes expedições, a principal delas, liderada por Gonçalo Pizarro,...com numerosa tropa de soldados e equipados com 900 índios... em uma esquadra de embarcações que viria a fracassar por nunca encontrar a famosa cidade cuja descrição dava conta de grande riqueza: ...porque de ouro eram as suas casas e tetos, e de ouro toda a serventia de seus moradores...
O fracasso da expedição é narrado e explicado com maestria por Padre João Daniel: "Em umas partes parava a tomar língua, em outras mandava especular o campo; e em todas vinha buscando entre os muitos outros o seu dourado lago, até consumir com os víveres a paciência da sua grande comitiva, que já desesperada da empresa, e desenganada, de que só achava misérias em lugar de riquezas, e muita pobreza em lugar de ouro, persuadiu a Pizarro a retirada para Quito, depois de dous anos de viagem. Contudo, porque ainda a fama permanecia, ainda houve aventureiros que se ofereceram ao mesmo descobrimento, e se arriscaram na mesma viagem e tropa, posto que tinham visto o infeliz êxito [de] Pizarro: mas também a estes sucederam as mesmas misérias, e desenganos, assentando por fim, que a cidade Manoa era fantástica, e quimérico o lago Dourado". Padre João Daniel continua, com sua fantástica escrita, a explicar que foi por meio dessas navegações que se pôde conhecer melhor o 'Máximo Rio Amazonas', ao qual tratou como uma entidade, dando-lhe vida ao descrever sua geografia e características: "Este lago, e esta cidade ou sonhada ou verdadeira foi o motivo do descobrimento deste grande gigante; e todo o fruto que tirou da grande tropa e dilatada viagem o Pizarro, e os mais que depois o intentara; e na verdade podiam dar por bem empregados os seus desvelos, só por este descobrimento, a não terem morrido tantos na empresa; pois de tão numerosa tropa de Pizarro, apenas escaparam uns poucos, que puderam dar notícia do Amazonas e seus colaterais, do seu dilatado curso, estendidas praias, e embrenhadas matas".
De capítulos curtos, cada um trazendo um assunto delineado, por vezes, dando continuidade, por vezes trazendo um novo, os dois volumes vão intercalando a história do descobrimento do maior rio do mundo com a opinião própria do autor que, ao escrever o Capítulo Terceiro da primeira parte (Volume I, página 49) "Da causa e origem do seu nom,e" conta com detalhe a história, ou as lendas que sejam, sobre o nome de origem espanhola "Amazonas", dado às índias guerreiras pelos espanhóis, por "serem em tudo semelhantes às antigas amazonas de que fala Virgílio..." e ousaram disputar a navegação da tropa de Pizarro, "pelas alturas do rio Trombetas... jogando com destreza os seus arcos, e flechas, e pelejando com ânimo varonil..." . É também nesse capítulo que conta de Orelhana,3 3 .Escreve-se Orellana e não Orelhana. Don Francisco de Orellana é considerado na literatura internacional o descobridor do rio Amazonas e, por essa razão o rio foi primeiramente chamado "Rio de Orellana" (Sioli, 1994 - The Amazon, W. Junk Publisher, Dordrecht). um capitão da tropa de Pizarro, que segue adiante e se separa da expedição principal para buscar uma grande povoação de que tiveram notícia a fim de reabastecer a mesma e, não a encontrando, segue viagem abandonando a expedição por completo. Tido como traidor, foi Orelhana quem mais cedo descobriu o rio até sua foz e partiu "com bem delineado mapa de todo o rio, e curioso diário do que tinha observado para Castela, onde alegou serviços, pediu aumentos, e alcançou mercês; deixando com a nota da infidelidade afamado o seu nome naquele grande rio, que desde então se começou a chamar Orelhana, como ainda hoje conserva nos espanhóis desde a foz do rio Madeira, ou rio Negro até o Pongo". O terceiro nome atribuído ao rio foi Maranhão e, como Padre João Daniel conta, Pizarro contou que, na busca do lago Dourado, tudo "eram maranhas, e mais maranhas" o que queria dizer que o caminho era cheio de mato, lagos, pântanos, voltas, rodeios e que tinham, por isso, andado embaralhados. Daí o rio ter sido também chamado de Maranhão (um grande conjunto de maranhas). O apaixonado autor comenta, ainda, que há outro rio com o nome Maranhão, que deságua no rio Tocantins, que, apesar de grande e caudaloso, "é regato a respeito deste Maranhão, Orelhana [ou] Amazonas, que pela sua grandeza, longitude, e muitas águas, se faz digno de ser chamado um mar natante, o máximo e monarca dos rios, e merecedor de muitos nomes, e multiplicados títulos."
Impressiona a paixão e memória com as quais descreve os principais rios que o Amazonas recebe, tanto ao norte como ao sul, sem deixar de descrever, também, suas principais características físicas. Ao descrever o fenômeno da Pororoca, traz ao leitor a verdadeira sensação de presenciar fenômeno tão incomum e singular quando a descreve como "...medonha, horrenda, e exorbitante alteração das águas..." que "...compõe-se de um conglobado de águas tão encrespadas, bravas, e tão horrorosas ondas, que fazendo, e desfazendo em pedaços quantas embarcações apanham, parece que querem aterrar, e fazer guerra aos mesmos elementos. É tão repentina a sua brava alteração, e tão instantânea a sua alterada braveza, que no breve espaço de um minuto corre, e faz subir a maré por quatro léguas, e talvez mais em algumas partes. Não a há em todas as partes, nem em todo o tempo; que, a ser contínua, faria inabitáveis aqueles rios, e totalmente impossibilitaria a sua navegação". Segue dando descrições de outros observadores, e do quão impressionante é o estrondo por ela causado, que ditou, para alguns filósofos e sábios, discursos de personificação de um improvável monstro natural, semelhança de "... um exército de cavaleiros em bravos, e indômitos cavalos vomitando cóleras em espumas, e vociferando roncos, correndo à desfilada pelo mar...".
Assim segue Padre João Daniel a descrever os fenômenos naturais e, ao longo do texto, mostrando as principais características e costumes dos povos que se refere como "naturais": os índios supostamente catequizados pelos jesuítas, mas muito explorados como escravos com ofícios diversos.
Como o título diz, os dois volumes podem ser considerados um verdadeiro Tesouro, cujas jóias são as raras preciosidades contidas na descrição da terra e seus encantos, belezas naturais, seres vivos e do homem que nela vive. Não há, na obra, o encanto da descoberta científica, tampouco do conhecimento da região, que a precisão tecnológica dos dias de hoje, somada a mais de um século de expedições científicas com o propósito da descrição biológica, levou o homem a desvendar e descrever com maior precisão os meandros naturais dos rios amazônicos e a intimidade do interior da floresta, roubando-lhe o caráter misterioso que, à época, transbordavam-na de lendas e seres místicos. O que há de precioso é o conhecimento de que já tinham, na época, os missionários que ali chegaram para conquistar a terra e catequizar os índios. Impressiona constatar que algumas práticas colonizadoras ainda persistem nos tempos atuais, tais e quais existiam há séculos atrás. Impressiona, também, a mudança imposta pela cultura européia à região e suas populações naturais que, à época, foram descritas por Padre João Daniel como profundos conhecedores da região e desprendidos dos valores mercantis dos brancos.4 4 . HOLANDA (1995, p. 38) abordando aspectos de nossa colonização descreve características que nos levam a entender melhor a maneira como Padre João Daniel se coloca frente ao ambiente Amazônico: "Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobiliante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal é uma vida de grande senhor. E assim, enquanto povos protestantes preconizam e exaltam o esforço manual, as nações ibéricas colocam-se ainda largamente no ponto de vista da antiguidade clássica. O que entre elas mais predomina é a concepção antiga de que o ócio importa mais do que o negócio e de que a atividade produtora é, em si, menos valiosa que a contemplação e o amor". O contexto histórico em que ocorre a narrativa é o de um Brasil sob o domínio de Portugal. Nessa época havia uma atividade econômica intensa na parte norte do país. O interesse pelas riquezas naturais por parte de alguns países da Europa era muito, pois o velho continente passava por profundas mudanças de ordem econômica, política e social. Em conseqüência disso Marquês de Pombal tomou algumas atitudes com a intensão de melhorar a economia portuguesa.
Na descrição da busca frustrante dos espanhóis pelo lago dourado e pela cidade de Manoa, o autor comenta seu fracasso porque "Quem só poderia dar alguma notícia são os índios naturais, e habitadores dos rios; mas como eles não estimam o ouro, nem o conhecem, mal podem dar razão do lago Dourado. Além disto são tão tenazes nos seus segredos, que nem por morte os revelam, e, quando conhecem algum desejo ou empenho dos brancos de saber alguma cousa especial, nem [a] pau lha tirarão do bucho". A tenacidade dos povos indígenas da Amazônia continua, mas seu desapego pelos valores materiais, originalmente descritos por muitos historiadores e há muito cantado pelos colonizadores, desapareceu com a proximidade das culturas múltiplas instaladas em todo o país e, em particular, na Amazônia.
Para o leitor leigo, o fascínio está no modo da escrita e nas curiosidades que o livro traz sobre a Amazônia que, por mais antigas que sejam e recheadas das crenças da época, são verdadeiras no que se refere à descrição geográfica e aos processos e características naturais. Impressiona a descrição do hábito reprodutivo das tartarugas verdadeiras, bem como da questão ecológica já presente à época, sobre a exploração excessiva de seus ovos pelos colonizadores, para fazer a tão apreciada manteiga de tartaruga. Já naquela época havia uma preocupação com a super exploração de algumas espécies, o que fica bem claro na obra que cotém tratados diversos que visam, sobretudo, apontar o melhor caminho, na concepção do autor à época de sua escrita, para que as práticas da agricultura passassem de uma "prática que dá mais dano que proveito a seus moradores" para uma prática que denominou "um novo método para a agricultura; utilíssima praxe para a sua povoação, navegação, aumento, e comércio, assim dos índios, como europeus". Ainda, na parte final, no Manuscrito de Évora (assim denominado por ter sido depositado em Évora, Portugal, só sendo juntado aos manuscritos iniciais posteriormente), Padre João Daniel faz sugestões... dos meios necessários para a povoação e aumento do rio Amazonas,... melhor provisão dos operários do Amazonas,.... mais facilidade e aumento para a exploração das preciosas riquezas do Amazonas,... melhor método de povoar o rio, melhor método para a fatura das canoas,... e inventos úteis, e curiosos para melhor navegação fazendo prósperos todos os ventos ainda os mais ponteiros, e contrários, e para fazer nas calmarias boa viagem".5 5 . Um aspecto importante da nossa colonização foi abordado por HOLANDA (1995, p. 31) e está presente na obra de João Daniel: "A tentativa de implantação da cultura européia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à tradição milenar, é nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em conseqüências". Segundo AFONSO (s.d., p.288-289) "Quando Sebastião José de Carvalho, futuro marquês de Pombal, assumiu o poder, no ano de 1750, a situação econômica do país era má e os comerciantes ingleses estabelecidos em Portugal faziam terrível concorrência aos Portugueses, dominando a praça de Lisboa e até o comércio do Brasil (...). Com o objetivo de forçar o equilíbrio das importações proibiu a exportação de ouro e de prata (...) para hostilizar o comércio britânico, instituiu monopólios comerciais na metrópole e nas colônias a favor de empresas caracteristicamente portuguesas".
Mas, a maior Jóia da obra fica por conta da descrição que faz sobre a "pescaria do rio Amazonas", tanto a que ele denominou excelente como a que denominou ordinária. No capítulo 14 º (volume I, página 119), o autor afirma: "Não pretendo aqui descrever toda a variedade de peixe, em que, assim como é o mais caudaloso de águas, talvez que também ele seja o mais abundante; mas só descrever os mais principais, e menos conhecidos na Europa, ou que excedem no mimoso, etc., aos que neste há da mesma espécie". Segue com a impressionante descrição do que denominou "peixes anfíbios", descrição na qual mistura seres místicos como o "homem marinho", figura que nomeia mais nobre por ser vivente sensitivo e que descreve como as sereias que os historiadores batizaram por serem metade homem, metade peixe, ou totalmente semelhantes ao homem em suas características físicas "menos no racional". A partir deste ponto, começa a descrever as diferentes espécies de animais aquáticos, como os jacarés que habitam as águas da bacia amazônica até hoje, descrevendo sua variedade de formas, tamanhos, cores e hábitos com uma demonstrada vocação para Historiador Natural, pois não lhe escapam detalhes que o Biólogo moderno considera dos mais importantes para explicar o que é mais importante do ponto de vista da espécie que é sua relação com o meio ambiente, considerando predadores, prezas, e até as relações de mutualismo com outras espécies, como é o caso do Jacaré Açu da Amazônia com uma espécie de pássaro. É impressionante a descrição feita do fenômeno, não muito comum entre animais, moldado pela evolução de duas espécies, e utilizado para explicar uma das mais importantes relações interespecíficas que o processo de evolução orgânica propiciou: "Como o seu sustento são ordinariamente carnes, cujas sobras se lhes metem por entre os dentes, têm também seu palito para os esgravatar e limpar. É este palito um passarinho, que metendo-se-lhe na boca, quando a tem aberta com o bico lhos esgaravata, e limpa, servindo-lhe estas lavaduras de sustento, e como seu pajem o acompanha sempre, já dentro na boca, e já na cabeça. Quando o jacaré quer fechar a boca, para o comer, depois de ter os dentes aliviados, dizem que o passarinho o fere com uma espinha, que tem nas costas, e o constrange a abri-la, por cuja razão a avezinha sem susto, nem medo entra, e sai quando quer pela bocarra do bruto, como quem entra por sua casa; e o mais tempo gasta em pequenos vôos da boca para a testa, e desta para a boca, digo corpo, em cuja grandeza tem bom espaço para os seus pequenos vôos; e só se retira do jacaré, quando este mergulha".
Padre João Daniel continua com maestria a descrever os anfíbios da Amazônia e, muito proveitoso é o conhecimento transmitido sobre as tartarugas do Amazonas, "chamadas pelos naturais jurará; e alguns europeus, além do usual nome de tartaruga, a chamam galinha do Amazonas". Sobre as tartarugas, ele diz: "Valente animalejo! Tem tempos de mais, e menos gordas; as suas carnes nas maiores, especialmente estando magras, são alguma cousa duras, e secas; mas se dão em mãos de um bom cozinheiro, sabem como gaitas, ou se convertem como carneiro estofado, ou ensopado, ou como porco de fricassé, ou como galinha. O seu sarapatel, e sangue em nada se distingue do sarapatel, e sarrabulho de porco, se é bem cozinhado. De cada tartaruga fazem sete ou mais menestras diversas; e todas de receber. Primeira o sarapatel, segunda o sarrabulho, terceira o peito assado, quarta fricassé, quinta o cozido, sexta a sopa, sétima o arroz. Isto é mais usual, que em casas particulares ainda fazem mais guisados, especialmente se ela está com os seus ovos; e se é das maiores, uma só pode dar de comer a uma comunidade. As pequeninas quando, e pouco depois que saem dos ovos, sabem como torresmos; e quando já de alguns meses, enquanto são como 1 palmo, ou pouco mais, lhe fazem uma brecha no peito, por onde as limpam, e enchem o vão de temperos, vinagre, cebola, etc., e assadas assim no forno são um pasmo, come-se sem fastio, e por regalo". O amazonense de hoje, apesar de proibida a caça da tartaruga, tem nela um dos seus pratos prediletos e grandes famílias se reúnem em dias de feriado ou domingos para comemorar qualquer acontecimento ou celebrar mesmo a vida com uma boa tartarugada. A tartaruga da Amazônia já pode ser criada em cativeiro e explorada comercialmente, sendo esta uma prática crescente na região. Entretanto, a pesca, por proibida que seja, ainda ocorre e movimenta um setor da economia informal da região. Os esforços do IBAMA em conter a matança das tartarugas de todos os tamanhos na Amazônia são enormes e, de quando em quando, se tem notícias de grandes apreensões em embarcações contendo quantidades enormes do animal. Como se vê, é secular o hábito do paraense e do amazonense de consumir a tartaruga e ter nesse consumo uma de suas mais importantes culinárias. A obra também contém descrições sobre as diferentes espécies de tartarugas, mostrando diferenças quanto à ocorrência, ao hábito reprodutivo, qualidade do ovo, etc..
É obvia a preocupação do autor, um naturalista nato, com a defesa e sustentabilidade do ambiente amazônico. Impressionante a atualidade da obra, quanto à preocupação, já no século XVIII, para que continuasse havendo abundância de pescado. É valiosa a contribuição dada pelo autor no volume II, página 303: "Até agora disse algumas providências necessárias para haver abundância de pescado nas cidades, e povoações; agora apontarei outras providências necessárias para haver abundância de peixe nos rios. Faz admirar a brevidade com que se fazem estéreis de peixe muitos rios nos estados do Amazonas, que poucos anos antes eram abundantíssimos! Basta fundar-se alguma povoação sobre a margem de algum rio abundantíssimo de pescado, para brevemente ficar estéril. Que digo eu, povoação? Bastam cultivar-se com alguns sítios as suas margens, para brevemente haver neles carestia de peixes; sendo na Europa, e muitas outras regiões, onde os rios e mares são totalmente povoados, e têm nas suas margens cidades populosíssimas, e tão antigas como o Dilúvio, ou pouco menos que o tempo do patriarca Noé, e cujos mares todos os dias andam povoados de inumeráveis pescadores e, contudo ainda o pescado é com a mesma abundância, e nas praças há a mesma fartura que nos seus princípios. E se buscarmos a causa original desta diferença acharemos, e assim o confessam os mesmos moradores, que é o uso e abuso dos timbós, e mais venenos de que costumam usar na pescaria; há também o bagaço das canas-de-açúcar que os senhores de engenho costumam deitar nos rios. A experiência o tem mostrado, porque os rios povoados logo ficam estéreis, e não há outra causa a que atribuir esta esterilidade senão aos venenos, e ao bagaço da cana. Quando aos venenos do timbó, sabem todos que basta trosquijar em algum lago, ou riacho, uma vez, para já o peixe não entrar nele por alguns dias, além de morrer todo o peixe, que na ocasião do timbó há dentro, ou seja o peixe grande, ou miúdo, e continuando por alguns outros dias a bater o timbó se faz estéril por muito tempo, e assim sucede aos mais rios".
Como podemos ver, a existência de práticas indesejáveis da pesca, o uso de elementos estranhos no ambiente, bem como a poluição, já eram causa de preocupação há séculos na Amazônia. Tais preocupações persistem ainda hoje, com muito mais razão, por terem se avolumado as populações, por terem se tornado complexas as possibilidades de ações devastadoras, por terem aumentado e intensificado o número e tipo de elementos poluidores das águas e por serem, ainda nos dias de hoje, utilizados alguns venenos como o próprio timbó, em algumas regiões mais distantes, para captura de pescado em grande quantidade. Há hoje, obviamente, um maior controle por parte dos órgãos de proteção ambiental, mais campanhas de ONGs, etc.. Mas, para a época, espanta a preocupação já com problemas causados pelo homem colonizador.
Muitas outras são as jóias raras dessa obra, que o espaço de uma resenha não nos permite descrevê-las todas. Mas, não podemos deixar de citar que dentre as mais preciosas, encontra-se seu caráter naturalista, que compete com os aspectos historiador e descritivo, igualmente preciosos.6 6 . Para a publicação do livro, os editores tiveram a preocupação em manter as características originais da primeira edição completa do códice (manuscrito) utilizando, porém, a ortografia vigente com o objetivo de tornar o texto que data do século XVIII acessível ao leitor contemporâneo. Apesar do texto estar escrito de acordo com a forma lingüística original da época, nem por isso sua leitura deixa de ser atrativa e agradável, o autor dialoga com o leitor, narrando de forma simples tudo o que observou durante o tempo em que viveu e trabalhou na região. É uma obra importante para quem tem interesse sobre aspectos da cultura e da biodiversidade amazônica, podendo fornecer subsídios para se pensar a Amazônia do século XXI. Com relação à conservação do patrimônio natural e cultural VELLOSO (2002, p. 19) diz que a diversidade biológica possui, além de valor intrínseco, valores ecológico, genético, social, econômico, científico, educacional, cultural, recreativo e estético e quase tudo isso é disponibilizado na obra do Padre João Daniel.
Imperdível, também, a apresentação da obra, datada de outubro de 2003, assinada pelo historiador Vicente Salles, intitulada "Rapsódia Amazônica de João Daniel", que pode ser lida no Volume I, páginas 11 a 35. Nela, Salles destaca, com elegância, os pontos máximos da obra, oferecendo-nos, paralelamente, uma aula de história, apontando as causas da prisão de João Daniel e a retomada do poder pela coroa portuguesa na região.
Não poderíamos terminar este texto sem fazer uma referência ao título da obra "Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas" que, em nada nos causa estranheza, pela riqueza natural e imensidão do rio, que abriga a maior bacia hidrográfica do mundo. Neste título, a palavra "máximo", descrita no Dicionário Novo Aurélio - Século XXI (Editora Nova Fronteira, 2ª Impressão) como: (i) maior que todos, que está acima de todos; (ii) absoluto, rigoroso, estrito; (iii) o mais alto grau a que pode chegar uma quantidade variável; (iv) aquilo que é mais alto ou maior; (v) o último grau possível, o ponto de maior intensidade, o cúmulo; (vi) elemento de um conjunto que é maior que outro qualquer elemento desse conjunto, está explicada pelo autor da obra, logo no início do Capítulo Primeiro de maneira singular.
Por fim, terminamos este texto deixando transcritas as palavras do Padre João Daniel que iniciaram a obra,7 7 . DANIEL, João (1722-1776). Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. 2 v. já mostrando sua particular vocação para a escrita bem como sua apaixonada admiração pela região na qual passou parte de sua existência e pela qual se enamorou, dela se ocupando até os últimos dias de sua vida:
"É sem dúvida o Amazonas o máximo dos rios, sem injúria dos Nilos, Núbias e Zaires da África, dos Eufrates, Ganges e Indos da Ásia, dos Danúbios e Ródanos da Europa, dos Pratas, Orinocos e Mississipis da mesma América, em cujo meio ou centro o Amazonas se [ilegível] gigante, chamado com razão pelos naturais mar branco, paraná petinga. E se Júlio César prometia ceder o império a quem lhe mostrasse a fonte do grande Nilo, qual seria o prêmio a quem lhe apontasse a fonte do máximo Amazonas, em cuja comparação aquele se avaliaria pigmeu, ou pequeno regato, e envergonhado, por não poder correr parelhas com este, fugiria a esconder-se na sua pequena mãe?".
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
AFONSO, A. Martins. História da Civilização Portuguesa. 5. Ed. Porto(Portugal): Porto Editora, s.d..
CORRÊA, Luiz de Miranda. Em nome de Deus em nome do rei. Manaus: Edições Governo do Estado do Amazonas/ Secretaria de Estado Turismo e Desporto, 2002.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
VELLOSO, João Paulo dos Reis; ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de (coord.). Amazônia, vazio de soluções? Desenvolvimento moderno baseado na biodiversidade. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Nov 2005 -
Data do Fascículo
Jan 2005