Resumos
Enfocaremos o Parque Nacional do Jaú e a Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, nos quais grupos reivindicaram direitos jurídicos específicos baseados na etnicidade. Refletiremos sobre como a taxonomia população tradicional foi empregada para categorizar os residentes no interior e no entorno dessas áreas e como tal uso convergiu ou se distanciou de propostas conservacionistas.
Conflitos sociais; Conservacionismo; Sociologia ambiental; Identidade
In the present paper we analyse the Jaú Nacional Park and the Mamirauá Sustainable Development Reserve, in which groups have claimed ethnic specific rights. We reflect about how the category of traditional people has been used to classify residents inside and around these natural protected areas, and whether or not this use has converged to the conservationists' proposals.
Social conflicts; Conservationism; Environmental sociology; Identity
ARTIGOS
Entre "tradicionais" e "modernos": negociações de direitos em duas unidades de conservação da Amazônia brasileira*
Between tradition and modernity: negotiations of rights in two conservation units of the brazilian amazonian area
Eliana Santos Junqueira CreadoI; Ana Beatriz Vianna MendesII; Lúcia da Costa FerreiraIII; Simone Vieira de CamposI
IDoutora em Ciências Sociais, Instituto de Filosofia e Ciências Himanas - IFCH, Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. E-mail: eliana.creado@gmail.com; simonevc@unicamp.br
IIDoutoranda em Ambiente e Sociedade, Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais - NEPAM, Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. E-mail: biaviannamendes@gmail.com
IIIPesquisadora, Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais - NEPAM, Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. E-mail: luciacf@unicamp.br
Autor para correspondência Autor para correspondência: Eliana Creado Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais - NEPAM Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP Rua dos Flamboyants, 155 Cidade Universitária Zeferino Vaz CEP 13084-867, Campinas - SP, Brasil E-mail: eliana.creado@gmail.com
RESUMO
Enfocaremos o Parque Nacional do Jaú e a Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, nos quais grupos reivindicaram direitos jurídicos específicos baseados na etnicidade. Refletiremos sobre como a taxonomia população tradicional foi empregada para categorizar os residentes no interior e no entorno dessas áreas e como tal uso convergiu ou se distanciou de propostas conservacionistas.
Palavras-chave: Conflitos sociais. Conservacionismo. Sociologia ambiental. Identidade.
ABSTRACT
In the present paper we analyse the Jaú Nacional Park and the Mamirauá Sustainable Development Reserve, in which groups have claimed ethnic specific rights. We reflect about how the category of traditional people has been used to classify residents inside and around these natural protected areas, and whether or not this use has converged to the conservationists' proposals.
Keywords: Social conflicts. Conservationism. Environmental sociology. Identity.
1 Introdução
A presença humana em unidades de conservação (UCs) é tema presente no ambientalismo e está no cerne de algumas cisões internas ao movimento. Freqüentemente, emerge através da atribuição do critério da tradicionalidade a povos e a comunidades locais, que, no Brasil, foram comumente pensados através do uso da categoria de populações tradicionais em diversos meios, como os acadêmicos, políticos e jurídicos (WEST; BRECHIN, 1991; JACINTO, 1998; VIANNA, 1996; BRITO, 2000; SANTILLI, 2005; FERREIRA, 2004).
A categoria remete a uma oposição entre tradicional e moderno, e, como a dicotomia natureza versus sociedade, encontra-se em um discurso da modernidade que nega a proliferação dos híbridos formados por cultura e natureza (LATOUR, 2000; BARRETTO FILHO, 2001; VIANNA, 1996). O presente texto não a teve como ponto de partida analítico, para evitar uma possível identificação de grupos humanos com a natureza e/ou a sua associação a um estilo de vida circunscrito aos limites da subsistência, na forma de um primitivismo forçado. De modo a procurar, também, não homogeneizar e não essencializar os grupos sociais considerados e a não restringir o debate em torno do uso dos recursos naturais a atores sociais específicos (DAS, 1999; FERREIRA, 1999; SILVEIRA, 2000; MENDES, 2004; FERREIRA et al. 2001; SCHMINK; WOOD, 1992; OSTROM, 1990; TSEBELIS, 1998; BRECHIN et al., 1991; WEST; BRECHIN, 1991; VIANNA, 1996).
A categoria foi um dos elementos presentes nas relações inter e intra-grupais a serem analisados, sobretudo nos rearranjos políticos gerados pela ação coletiva dos moradores de UCs, em seu diálogo com o Estado e com as lógicas administrativo-legais (DAS, 1999; FERREIRA, 1999; CHAGAS, 2001; LIMA, 2004; LOBÃO, 2006). Um cenário no qual relações sociais são estabelecidas em diversos contextos que instauram ou afetam os processos de institucionalização da questão socioambiental, nos moldes do que alguns autores chamaram de supermodernidade (DAS, 1999; AUGÉ, 1999; 2003).
Dentre os autores brasileiros, registra-se a importância de Antônio Carlos Diegues (1994; 1999) como expoente que utiliza o termo populações tradicionais e ajuda em sua difusão; ele se posicionou a favor da presença das populações tradicionais em quaisquer UCs, mesmo as de uso mais restritivo, como os parques (FERREIRA, 2004; VIANNA, 1996). Diferentemente de Diegues, entretanto, o propósito deste texto é o de entender a categoria de populações tradicionais de uma forma relacional, ou seja, como um dos recursos políticos possíveis, surgidos na interação dos residentes de UCs com outros grupos e instituições sociais de diversas arenas, principalmente a ambiental (FERREIRA et al., 2001; FERREIRA, 2004; OSTROM, 1990; CUNHA; ALMEIDA, 2000; TSEBELIS, 1998).
Outros autores na literatura internacional abdicaram do uso político e acadêmico do termo população tradicional. Brechin e colaboradores (1991), por exemplo, preferiram a expressão resident peoples (populações residentes) à expressão traditional peoples (populações tradicionais), pois, na opinião dos mesmos, a primeira não possui conotação política, tem referência espacial e não temporal e não se trata de um rótulo cultural. West e Brechin (1991) advertiram que, de modo geral, nos círculos conservacionistas internacionais, os moradores de áreas naturais protegidas mais restritivas à presença humana são vistos como compatíveis aos seus objetivos desde que usem tecnologias consideradas tradicionais e utilizem os recursos naturais principalmente para a subsistência. Condicionantes que esses autores queriam evitar, defendendo o direito de acesso a recursos naturais nesses espaços a todos os usuários e residentes do seu interior ou entorno, em estado de pobreza rural, com base em técnicas e tecnologias adequadas, não necessariamente as tradicionais.
Autores brasileiros seguiram no mesmo sentido e argumentaram que a ênfase deve ser colocada no comprometimento de usuários e moradores do interior e do entorno das UCs com o uso sustentável de recursos, através da negociação de arranjos institucionais e de regras de uso (BRITO, 2000; FERREIRA, 1999; 2004; FERREIRA; CAMPOS, 2000; FERREIRA et al., 2007; CAMPOS, 2006; CREADO, 2006; MENDES et al., 2006).
O objetivo do texto é, então, o de pensar se a categoria população tradicional traz ou não a atribuição de características e/ou expectativas por parte de ambientalistas e demais envolvidos nas políticas públicas voltadas à conservação e refletir sobre o fato da incorporação dessa identidade ser uma aliança estratégica com setores do ambientalismo, o que implica negociar dentro de um escopo de relações assimétricas nas quais operam normas e valores (GOFFMAN, 1988; HAAS, 1990; VIANNA, 1996; CUNHA; ALMEIDA, 2000).
Para isso, refletiremos sobre duas UCs nas quais os processos de identificação e o reconhecimento jurídico, de fato ou potencial, de parte dos moradores de espaços voltados à conservação deram-se com maior autonomia em relação à questão da conservação, através da reivindicação de direitos étnicos juridicamente respaldados no Brasil: o de quilombolas, no Parque Nacional do Jaú (PARNA-Jaú), e o de índios, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá (RDS-Mamirauá).
Ambas as UCs situam-se no estado do Amazonas, Brasil, no Corredor Central da Amazônia. Representam distintos ecossistemas e inserções institucionais: a primeira é uma UC de proteção integral federal, sobre a qual a Fundação Vitória Amazônica (FVA) possui um termo de cooperação técnica com o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (IBAMA)1, o órgão gestor do parque; a outra é uma UC de uso sustentável estadual, cujos responsáveis pela gestão são o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM) e a Sociedade Civil Mamirauá (SCM)2. O PARNA-Jaú abarcou um ecossistema de águas pretas, enquanto a RDS-Mamirauá, uma área de várzea3 (FERREIRA et al., 2007).
2 Populações tradicionais e conservação: alguns desvios e normas
Compreender a reivindicação de identidades étnicas no interior de UCs exige ter em conta alguns dos deveres e direitos correspondentes a cada um dos seus contemplados do ponto de vista das leis e políticas públicas nacionais, o que remete a uma arena mais ampla do que a ambiental (CUNHA; ALMEIDA, 2001; VIANNA, 1996; TSEBELIS, 1998).
Existem especificidades jurídicas quanto aos direitos territoriais. Os dos quilombolas e os dos índios são mais estruturados, divergem entre si e, também, em relação às demais populações tradicionais (SANTILLI, 2005). Como destacou Vianna (1996), historicamente, no Brasil, a categoria de populações tradicionais excluiu os índios, por eles terem uma legislação específica, separada da ambiental, e se inspirou em conceitos antropológicos, como o de sociedades rústicas4. Todavia, alguns desses conceitos da Antropologia, ao serem incorporados institucionalmente, foram usados muitas vezes de modo a naturalizar os grupos sociais que visou abarcar (VIANNA, 1996).
Contudo, mudanças recentes tendem a agrupar conjuntamente quilombolas, índios e demais povos e comunidades tradicionais, tanto os que competem quanto os que não competem com a questão ambiental5. Das iniciativas do governo federal para isso, podem ser citadas a instauração de uma Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais6 e a realização de encontros e oficinas, dos quais merecem destaque o I Encontro Nacional de Comunidades Tradicionais, realizado em agosto de 2005. Esse processo culminou no advento do decreto n º 6.040, de 07/02/2007, que propôs a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CREADO, 2006, p. 76-99; LOBÃO, 2006).
O artigo 3º., inciso I, desse decreto definiu povos e comunidades tradicionais como:
"(...) grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (...)" (BRASIL, 2007).
O decreto nº 6.040 reconheceu as especificidades em relação aos direitos fundiários de índios e quilombolas, mencionando o artigo 231 da Constituição Federal (CF) de 1988 e o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), além de suas regulamentações posteriores. Os territórios tradicionais foram definidos como os "espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais", utilizados de modo permanente ou não (BRASIL, 2007, art. 3º, inciso II).
Visou respeitar, portanto, as leis específicas voltadas a índios e a quilombolas. Destas podemos citar, para os índios, especialmente: o Estatuto do Índio7, o artigo 231 da CF de 1988 e o decreto nº 5.051, de 19/04/20048; e, para os quilombolas, especialmente: o artigo 68 do ADCT e o decreto de número 4.887, de 20/11/20039. No que diz respeito aos direitos fundiários, a CF de 1988 apontou que os índios têm, coletivamente, o direito à posse permanente e ao usufruto exclusivo de seus recursos naturais, mas o domínio permanece da União (CUNHA, 1994; SANTILLI, 2005); enquanto o artigo 68 do ADCT e o decreto nº 4.887 determinaram que os quilombolas têm a propriedade da terra, através de títulos coletivos, comumente emitidos em nome de associação(ões) legalmente constituída(s) (CHAGAS, 2001; SANTILLI, 2005).
Nos dois casos, apesar da importância histórica do elemento étnico, o critério crucial para a determinação dos grupos repousa na auto-identificação. O Estatuto do Índio já colocava no artigo 3º, inciso I, que índio seria "todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional" (CUNHA, 1986)10. Já o decreto nº 4.887 ressaltou, em seu artigo 2º, que remanescentes das comunidades dos quilombos seriam "os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida" (BRASIL, 2003).
Mesmo com o decreto nº 6.040, é inegável haver, no momento, maior respaldo legal e sociotécnico às questões indígena e quilombola, de modo que as demais populações tradicionais permanecem mais sujeitas aos efeitos das políticas das UCs e de outras restrições ambientais. Inclusive, os territórios legalmente reconhecidos a índios e a quilombolas enfatizam mais a manutenção da sociodiversidade do que a da biodiversidade, ênfase não observada nos casos restantes (SANTILLI, 2005, p. 155).
Houve uma importante tentativa anterior ao decreto nº 6.040, de 07/02/2007, de definir o que seriam populações tradicionais residentes no interior ou no entorno de unidades de conservação, mas que foi vetada. Nela, a maior sujeição dos povos e comunidades considerados tradicionais à questão ambiental fica mais clara. A definição ficou de fora da versão final do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), aprovada em 2000, embora o SNUC tenha utilizado o termo11 e estabelecido categorias de UCs que contemplam tais grupos sociais, como as Reservas Extrativistas (RESEX) e as de Desenvolvimento Sustentável (RDS) (BRASIL, 2000b; LOBÃO, 2006). Ela constava no artigo 2º, inciso XV, e afirmava que tais populações seriam grupos culturalmente diferenciados, habitantes de um determinado ecossistema por, no mínimo, três gerações, reproduzindo o seu modo de vida, "em estreita dependência do meio natural", através do uso sustentável dos recursos naturais (BRASIL, 2000b). A mensagem de veto justificou que a definição seria ampla em demasia e, no limite, capaz de abarcar toda a população rural brasileira de baixa renda (BRASIL, 2000a).
Mesmo o processo que resultou no decreto nº 6.040 colocou desafios ao aparato técnico-administrativo sobre qual o público seria beneficiado pelas políticas públicas voltadas a povos e comunidades tradicionais. Como destacou o Secretário de Desenvolvimento Sustentável do Ministério do Meio Ambiente (SDS-MMA), Gilney Viana, as iniciativas governamentais deram visibilidade a uma variedade e a uma quantidade de classificações de grupos humanos e de territórios muito maior do que a esperada a princípio. Assim, ao longo dos trabalhos, os agentes governamentais optaram por uma linha conceitual semelhante à das leis e políticas voltadas a índios e a quilombolas, com ênfase nos processos de auto-identificação e no crivo desses processos pelas lutas sociais, sem enfatizar muito o aspecto étnico.
Resumindo, índios e quilombolas, dentre as populações tradicionais, contam com políticas públicas específicas mais estruturadas, sem os seus contemplados arcarem tanto com o ônus da conservação, como o imposto pelas UCs, principalmente as categorias de proteção integral, até porque há interpretações jurídicas de que os direitos de quilombolas e índios sobrepor-se-iam ao regime jurídico das UCs12 (SANTILLI, 2004a; 2004b; SANTILLI, 2004, p. 13; LAURIOLA, 2001).
Contudo, é preciso destacar a crescente importância que as RESEX têm ganhado nessa linha de atuação governamental (LOBÃO, 2006), o que permite intuir que, futuramente, elas possam contar com um arcabouço jurídico-institucional mais equiparável ao voltado a índios e quilombolas. Lobão (2006), entretanto, apontou certa negatividade na progressiva institucionalização das RESEX, por terem deixado de ser uma política pública para se tornarem uma política de governo, onde os movimentos que as reivindicam teriam passado a demandar tutela, proteção e projetos de desenvolvimento. Postura na qual vislumbrou uma forma de neocolonização, mediada por profissionais das mais diversas áreas, pouco sinceros a respeito das "implicações discursivas [de seus] enunciados" (LOBÃO, 2006, p. 18)13.
No depoimento que nos foi dado pelo secretário da SDS-MMA, apareceram alguns elementos da normatividade subjacente à sustentabilidade e/ou à conservação pensada para as populações tradicionais como um todo: 1) a valorização da territorialidade e do conhecimento sobre recursos naturais; 2) a ênfase em uma relação potencialmente amigável ou harmoniosa com o ambiente; e 3) a atribuição de uma certa marginalidade nas relações sociais entre elas e a sociedade hegemônica14.
Ver-se-ão, nos casos empíricos analisados, algumas das conseqüências que expectativas e associações desse gênero podem ter em âmbito local e como as categorias jurídicas discutidas aqui podem ser incorporadas e/ou ressignificadas a partir do diálogo com o conservacionismo.
3 A comunidade Tambor, no PARNA-Jaú15
No PARNA-Jaú, apesar do uso da categoria populações tradicionais para se referir aos moradores do parque, também denominados de caboclos e ribeirinhos, nos documentos oficiais, como o plano de manejo (FVA/IBAMA, 1998), podemos dizer que, na prática cotidiana, o quesito da tradicionalidade não é eqüitativamente atribuído pelos conservacionistas ou incorporado pelos moradores da UC.
No momento da pesquisa, os moradores valorizados normativamente por agentes governamentais e não-governamentais, envolvidos na conservação ambiental, eram os que tinham como principal fonte de renda as atividades agrícolas de pequena escala, como a produção e a venda de farinha de mandioca, e, em algum grau, o extrativismo vegetal, como o de cipós (CAMPOS, 2006; CREADO, 2006). Do outro lado, figuravam os mais estigmatizados, os que realizariam a comercialização de carne16, como a de bichos de casco17 ou de outros animais caçados, e, em menor grau, os que praticavam a pesca comercial e a pesca ornamental.
Essa estigmatização pode ser mais bem compreendida em referência ao momento atual de fiscalização e de legislação ambiental e às práticas e expectativas conservacionistas em voga, não restritas ao PARNA-Jaú (DIAS, 2004; CREADO, 2006). Como argumentou Goffman (1988), os estigmas possuem uma história.
O processo de identificação étnica da comunidade Tambor, localizada no médio rio Jaú, em área central do PARNA-Jaú, confirmou a existência desses estigmas. As primeiras iniciativas foram articuladas principalmente pela Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz)18, através de um levantamento de moradores e ex-moradores do rio Jaú afro-descendentes, concentrados, historicamente, mais nessa comunidade e em suas imediações, no rio Paunini. Quanto aos ex-moradores dessas famílias, muitos migraram para Novo Airão, município do baixo rio Negro.
Ambientalistas e funcionários do IBAMA atuantes na área costumavam afirmar que, entre moradores e ex-moradores dessas famílias, estabelecera-se uma rede comercial de recursos da fauna que chegaria até a capital do Amazonas, Manaus, por meio de atravessadores.
As primeiras iniciativas institucionais em relação à questão quilombola no rio Jaú remontam, pelo menos, ao ano de 2003, quando houve uma audiência em Novo Airão, com representantes e líderes das comunidades envolvidas, da FioCruz, dos Ministérios Públicos Federal (MPF) e Estadual, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e da Fundação Cultural Palmares (FCP) (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004). Segundo um antropólogo do MPF-Manaus, a FioCruz liderou as iniciativas em decorrência da difícil situação financeira da FCP19. Ele, por sua vez, relatou ter sentido obstáculos ao seu trabalho, como uma certa dificuldade de diálogo com a FVA, pois integrantes da organização não governamental (ONG), inicialmente, alegaram que a comunidade não poderia ser identificada como remanescente de quilombo, em função da trajetória de suas famílias ligar-se à imigração nordestina que houve no vale do rio Jaú, visando à extração de látex e à produção da borracha, à semelhança de outras famílias que originaram as outras comunidades do rio Jaú. O antropólogo sentiu o mesmo em relação ao IBAMA, o que julgou mais compreensível, em função da cessão de terras que resultaria do reconhecimento.
Uma das respostas do IBAMA foi um ofício do chefe do PARNA-Jaú, segundo o qual somente três moradores eram conhecidos como afro-descendentes no rio Jaú. Para o antropólogo, o IBAMA e a fonte utilizada pela autarquia (LEONARDI, 1999), apoiar-se-iam no argumento, muitas vezes contestado, de que quilombos formar-se-iam apenas de escravos fugidos20.
O processo de identificação gerou cisões internas no grupo de ex-moradores do parque, residentes em Novo Airão, e que se mobilizou pela regularização fundiária da UC, através da Comissão de Moradores e Ex-moradores do rio Jaú (CREADO, 2006). Um ex-morador, por exemplo, abandonou a Comissão, em 10/2003, e passou a se envolver mais intensamente com os trabalhos da FioCruz. Ele ressaltou as diferentes linhas de trabalho entre a FioCruz e a FCP e a Comissão: as duas primeiras priorizariam o acesso à terra e não a indenização pelas posses21. Reconheceu que a maioria dos ex-moradores preferiria a indenização, entretanto, ele a achava insuficiente diante do contexto geral de proibições ambientais e de dificuldades de acesso à terra e a postos de empregos formais em Novo Airão. Ele, inclusive, esforçou-se em mediar a inserção da FioCruz junto à comunidade Tambor, pois, antes, fora agente de saúde ali. Assim, por estar inserido em relações sociais múltiplas, o ex-agente e ex-morador desempenhou o papel de mediador (GLUCKMAN, 1966)22.
Sobre as origens dos que seriam quilombolas, o antropólogo do MPF situou-as na chegada do primeiro Jacinto ao rio Jaú, que não teve filhos e cujos sobrinhos migraram para o mesmo rio. Atualmente, a família compor-se-ia pelos Maria e pelos descendentes de dona Maria Bibi. No relato da própria Dona Maria Bibi, que migrou para Novo Airão, os finados Zé Maria e Egídio Caetano, o último o seu pai, "abriram" os rios Paunini e Jaú. Seu pai era original do Sergipe e a sua mãe da bacia do rio Negro. Segundo ela, a sua família e a dos Maria formavam uma "irmandade".
Já o historiador Leonardi (1999, p. 169) apontou Jacinto e José Maria como os dois primeiros ancestrais dessas famílias a chegarem no rio Paunini, no início do século XX, época do já referido fluxo migratório de nordestinos para o vale do rio Jaú, cujo apogeu deu-se entre 1880 e 1914.
Até 12/2004, apenas um filho de dona Maria Bibi residia na comunidade Tambor Velho. Ele e um dos Maria, morador do rio Paunini, nas imediações do Tambor Novo23, eram os únicos regatões24 atuantes no rio Jaú e afluentes.
Quanto aos rebatimentos iniciais da identificação junto ao IBAMA e à FVA, eles foram negativos. Em relação à FVA, um dos indivíduos do MPF, comentou o temor inicial do diretor-executivo da ONG do processo fragmentar politicamente os moradores remanescentes da área central do parque. O próprio diretor relatou preocupar-se com o fato dos indivíduos potencialmente beneficiados serem justamente os com melhores condições sócio-econômicas, em função dos dois regatões pertencerem às duas famílias.
Além disso, integrantes da FVA e do IBAMA-Manaus associavam os dois regatões da comunidade Tambor com o comércio ilegal de recursos da fauna. Assim, o benefício do status quilombola gerou incômodo junto ao IBAMA e à FVA, demonstrando a existência de uma normatividade atribuída à noção de populações tradicionais, em uma lógica segundo a qual algumas práticas seriam mais aceitas e mais discutidas do que outras, com diferentes graus de clandestinidade atribuídos aos usuários dos recursos naturais e dos espaços do PARNA-Jaú. Com o reconhecimento, as atividades dos contemplados, quando voltadas à subsistência ou ao consumo interno, não se sujeitariam mais à autorização do poder público e à legislação ambiental (SANTILLI, 2005, p. 180-181).
Destarte, os que efetuavam ou eram acusados de praticar o comércio ilegal de recursos da fauna viviam em situação mais estigmatizada e eram comumente associados a outros atributos desfavoráveis, como a violência e o consumo abusivo de bebidas alcoólicas (GOFFMAN, 1988). Inclusive, o estigma foi reproduzido internamente aos grupos de moradores e ex-moradores, apesar de parcela significativa deles ter, de alguma maneira e em algum momento de suas vidas, efetuado o comércio de recursos da fauna silvestre e de seus subprodutos (CREADO, 2006).
Por fim, em 2006, a FCP (2006) certificou a auto-identificação da comunidade Tambor como remanescente de quilombo.
4 A RDS-Mamirauá25
A RDS-Mamirauá permite refletir sobre duas situações: 1) a sobreposição de Terras Indígenas (TIs) à UC, pois a reserva foi criada posteriormente à homologação de algumas delas; e 2) a emergência atual de identidades indígenas, reivindicando a demarcação e a homologação de novas TIs no interior da RDS-Mamirauá.
Centraremos a análise sobre o que essas novas identidades representam para a relação com os seguintes atores que participam da arena local: 1) os ribeirinhos que moram próximos às áreas reivindicadas como TIs; 2) a União das Nações Indígenas da região de Tefé (Uni-Tefé)26; e 3) os funcionários do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), um dos responsáveis pela gestão da reserva27. Como no PARNA-Jaú, as relações entre eles são influenciadas pela dinâmica de outras arenas localizadas na interface das políticas públicas voltadas ao meio ambiente e à cultura.
As diversas sobreposições têm características e histórias diferentes; definem-se tanto como não conflituosas quanto como muito conflituosas (LIMA, 2004). No caso da TI Jaquiri, do povo Kambeba, declarada em 1982 e demarcada em 1987, a UC sobrepôs-se inteiramente, incluindo-a na área focal da reserva, onde se desenvolvem as atividades-piloto do plano de manejo. Em função do interesse dos índios em mais apoio material e legal para a fiscalização de seus lagos, antes realizada com o apoio da Igreja Católica, a UC foi bem aceita por eles (LIMA, 2004; FAULHABER, 1997; PIRES, 2004).
Na TI Porto Praia, do povo Ticuna, demarcada em 2003, após a criação da reserva, continuou a haver conflitos existentes anteriormente, relativos à apropriação de recursos naturais entre residentes e usuários não residentes (LIMA, 2004, p. 540; FAULHABER, 1997, p. 555; PIRES, 2004, p. 562). Pesquisadores apontaram que os Ticuna dessa área não mantiveram sinais diacríticos de sua indianidade, inclusive por causa do preconceito existente na região por parte dos índios e/ou em relação aos índios de um modo geral (LIMA, 2004; FAULHABER, 1997; REIS, 2003). Assim, existem famílias consideradas indígenas por alguns, mas que não se auto-reconhecem como indígenas (REIS, 2003, p. 552). Outrossim, os Ticuna da região do Médio Solimões migraram do Alto Solimões para diferentes localidades e se estabeleceram nelas, ao longo do tempo, o que pode ainda justificar novas reivindicações de demarcação no interior da reserva.
No caso das TIs do entorno, cujos moradores são usuários de recursos e espaços do interior da RDS-Mamirauá, como as TIs Marajaí, anterior à reserva, e Cuiu-Cuiu, posterior à reserva, não há conflito em relação às atividades de manejo propostas pelo IDSM. Segundo Lima (2004, p. 541), seus moradores aceitam diversos programas de extensão e assistência oferecidos pela ONG.
A partir da análise de depoimentos de funcionários do IDSM, envolvidos em atividades de pesquisa e extensão na RDS-Mamirauá, fica claro que as sobreposições representam um impedimento ao seu trabalho, ainda que os objetivos da reserva sejam os de oferecer a todos os moradores alternativas econômicas sustentáveis, conjugando melhorias na qualidade de vida e endossando a conservação ambiental:
"E aí algumas comunidades, no caso uma delas, solicitou que a gente atuasse lá, então fomos para lá. Só que aí, no final das contas, a gente teve um monte de impasse com a FUNAI porque é uma outra instituição ligada à TI, aí paramos nessa comunidade e continuamos nas outras duas. Aí, na seqüência, uma das comunidades que não era indígena agora quer ser indígena, então o Instituto também já parou lá e aí ficou, sei lá, 500 metros de terra, que é a comunidade que sobrou [risos], que é o lugar onde na prática eu poderia estar atuando (...)".
Outro exemplo é o do Programa de Agricultura Familiar, suspenso nas comunidades que começaram a reivindicar a identidade indígena e cuja delimitação foi iniciada. Pela falta de uma parceria com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), os pesquisadores não podem entrar nas TIs para desenvolver os programas e realizar as pesquisas que subsidiariam o manejo sustentável dos recursos naturais.
Logo, seria interessante compreender com quais objetivos tais identidades começaram a ser mobilizadas, inserindo-as no contexto de possíveis alianças, tanto com o IDSM quanto com as associações indígenas. Por que o IDSM e as associações indígenas que, a princípio, poderiam ser parceiros na defesa das populações tradicionais e indígenas não se articulam pela busca de um objetivo comum?
O IDSM tem, por excelência, a meta de implementar o projeto de desenvolvimento sustentável, sendo, inclusive, o gestor, através do acordo de cooperação técnica com a Sociedade Civil Mamirauá (SCM). Já a Uni-Tefé é a instituição indígena regional que organiza e potencializa as reivindicações indígenas e as lutas pelos seus direitos.
Segundo uma liderança da Uni-Tefé, a estratégia seria a de investir em uma parceria com o IDSM, mas reconheceu ser difícil mudar a concepção dos índios sobre a exploração dos recursos naturais, para que ela se dê conforme as regras exigidas pelo Instituto:
"Então, o nosso papel hoje, como Uni-Tefé, devido às nossas parcerias é de fazer com que esses povos indígenas comecem a se conscientizar que a Reserva Mamirauá está trazendo benefício, mas um benefício planejado, que tem que obedecer algumas regras também, assim como sendo na TI".
Assim, IDSM e Uni-Tefé procuram estabelecer alianças, de modo a conciliar as sustentabilidades ambiental, econômica e cultural, junto aos moradores da região. O que os diferencia é a maior ênfase em uma ou em outra das sustentabilidades: no caso das associações indígenas, o que se busca primordialmente é a sustentabilidade sócio-cultural; no caso do IDSM, o compromisso maior é com a sustentabilidade ambiental. Como visto anteriormente, a base jurídica das TIs visa, sobretudo, a conservação cultural dos povos que abriga, e a das RDSs, a sustentabilidade dos recursos naturais utilizados pelas populações tradicionais (SANTILLI, 2005).
De acordo com funcionários do IDSM, o pressuposto de que o acesso aos recursos naturais será maior quando a TI for demarcada é ilusório:
"O que eu vejo assim é que tem pessoas que não têm entendimento da proposta e costuma se escusar nisso agora, se identificar com ser índio agora para se livrar do Mamirauá, entendendo que a partir do momento que eu vou me identificar como índio eu vou ter outros direitos, eu vou poder usar o recurso que hoje a norma da Reserva me proíbe de uma forma e não é assim".
Entretanto, com relação às políticas públicas voltadas à educação e à saúde, os ribeirinhos da região acreditavam que as comunidades indígenas tinham maior facilidade em seu acesso. Este foi um dos fatores alegados por um dos moradores entrevistados para explicar o motivo da reivindicação em sua comunidade. Por outro lado, um dos funcionários do IDSM defendeu que esse tipo de acesso só será possível se a comunidade estiver organizada, seja ela indígena ou não.
Portanto, a identidade indígena foi apropriada para garantir um outro tipo de gestão do território: como TI e não como RDS. A forma e as conseqüências da reivindicação revelaram uma diferença de ênfase normativa e político-institucional entre conservação da natureza e reivindicações de direito à diferença cultural por grupos sociais que dependem da apropriação e do uso da natureza para a sua sobrevivência física e cultural (ALENCAR, 2004). Se antes esses grupos sociais não eram reconhecidos por parte do Estado como atores diferenciados culturalmente das populações tradicionais locais, e seus deveres e direitos eram coletivamente acertados com os demais grupos que compartilhavam os mesmos usos de recursos naturais, ainda que com conflitos, a partir do momento em que se reconhecem como indígenas, o território demarcado exclui a apropriação pelos que, a partir de então, tornam-se os de fora.
Assim, a demarcação das TIs não gera apenas restrições ao trabalho do IDSM, mas pode gerar conflitos dificilmente resolúveis com os moradores do entorno das TIs. De uma perspectiva mais ampla, para os segmentos ambientalistas que defendem a presença humana em UCs, as disputas entre indígenas e ribeirinhos representam a subversão de um princípio, no momento em que as políticas públicas voltam-se a eles. O esperado era que se aliassem em prol de uma melhoria socioambiental, porém, viu-se o contrário nos depoimentos colhidos entre os diversos atores envolvidos na gestão da RDS-Mamirauá (ribeirinhos, funcionários do IDSM e da Uni-Tefé), mesmo que as instituições e os moradores considerados tenham reconhecido, no plano discursivo, que deveriam articular-se.
5 Considerações finais
A produção de identidades étnicas nas duas UCs analisadas, a de quilombolas, no PARNA-Jaú, e a de índios, na RDS-Mamirauá, permitem refletir como se dão as relações entre grupos locais e outros agentes envolvidos com a questão da conservação da biodiversidade, estejam eles inseridos ou não em instituições governamentais.
No caso do PARNA-Jaú, a estigmatização apareceu como um elemento significativo, potencializado por se tratar de uma UC restritiva à presença humana. Estigmatização convergente com a legislação nacional e com as ações e preocupações de setores conservacionistas com determinadas espécies da fauna ameaçadas de extinção (REBELO, 2002; PEZZUTI, 2003; SILVA, 2003). Nesse sentido, a identidade quilombola, bem como a indígena, fornece subsídios para um lugar de maior legitimidade de ação e diálogo com o Estado e com representantes da tecnociência em geral (CHAGAS, 2001; HARAWAY, 2003).
Para as duas UCs, é preciso recordar que, como em outros casos estudados, permanece o risco de que, ao recorrer à ação coletiva e estabelecer um diálogo com o Estado, as comunidades possam oprimir diferenças internas ou favorecer os indivíduos que se apropriem melhor das regras emergentes a partir desse novo contexto, como aqueles com maior facilidade para lidar com a linguagem escrita (DAS, 1999; OATES, 1999; CHAGAS, 2001).
De modo geral, tanto na RDS-Mamirauá quanto no PARNA-Jaú, a reivindicação das identidades quilombola e indígena, com políticas públicas mais consolidadas no país quando comparadas às voltadas aos chamados povos e comunidades tradicionais, ganhou significado, sobretudo, pela ambientalização de conflitos sociais, sem deixarem essas identidades de serem produtos e produtoras de mecanismos de pertença e de produção de outros, mobilizando traços culturais, trajetórias históricas e laços de parentesco anteriores, ao mesmo tempo em os ressignificaram (CUNHA, 1986; 1994; AUGÉ, 1999; FERREIRA, 2004; LOPES, 2006).
Enquanto categorias políticas, tais identidades não precisam ser utilizadas cotidianamente, o que não as invalida, pois ganham sentido na confrontação com outros atores (O'DWYER, 2002). Elas também representam uma reação a restrições de diversas ordens, como as de acesso a recursos naturais, de serviços de saúde e de educação, apesar de propostas que objetivam o desenvolvimento sustentável, mais factíveis na RDS-Mamirauá, uma UC de uso direto. Tais restrições não se devem exclusivamente à vida no interior de UCs, mas foram associadas às UCs durante a produção de tais identidades.
Sob o ponto de vista das negociações na arena ambiental, a opção étnica representou uma ação subótima, por fragmentar a ação política dos moradores das duas UCs, intrincando a inserção dos setores conservacionistas junto aos mesmos. Porém, do ponto de vista dos que assumiram para si o discurso da diferença cultural, representou uma escolha ótima, pois expandiu a ação coletiva para jogos políticos travados em outras arenas que não a exclusivamente ambiental (TSEBELIS, 1998; CAMPOS, 2006).
A análise proposta não foi a de efetuar uma apreciação dos processos de auto-identificação e de reconhecimento em si mesmos, mas refletir sobre algumas de suas implicações em contextos relacionais que dizem respeito às UCs, de maneira a captar alguns dos valores que os representantes da "modernidade" possuem sobre os representantes da "tradição"28, na busca de alianças estratégicas em prol da conservação (CUNHA, 1994; CUNHA; ALMEIDA, 2000).
Portanto, da parte dos modernos, grosso modo, verificamos uma valorização da coesão social dos tradicionais, conturbada com a possibilidade da fragmentação da ação política dos moradores das duas UCs, através das identidades quilombola e indígena. Também verificamos a valorização de algumas práticas e de alguns comportamentos dos ditos tradicionais em relação aos recursos naturais, cuja sustentabilidade passou a ser, ao menos potencialmente, mensurada pelo julgamento dos representantes da modernidade e normatizada por princípios técnico-científicos, legais e administrativos (BARRETTO FILHO, 2001; O'DWYER, 2002). Os modernos também valorizam a inserção marginal dos tradicionais em relação à sociedade hegemônica (LIMA; POZZOBON, 2003; CREADO, 2006; LOBÃO, 2006; VIANNA, 1996).
Se os modernos permitem-se ser fragmentados e possuir identidades múltiplas, por que lamentam que um outro encarnado na figura das populações tradicionais não seja um todo uno fixado à terra-mãe? Não seria isso uma forma de dominação (LATOUR, 2000)?
Como apontou Augé (1999), algumas contradições da modernidade podem ser evidenciadas nas relações entre espaço e alteridade. Ele ressaltou também o risco de se cair em uma tentação culturalista, segundo a qual o indivíduo pode ser visto como um mero reflexo do coletivo e o social como uma mera conseqüência da cultura, condensada e materializada no espaço simbolizado do território étnico. No seu ponto de vista, essa tentação pode levar ao segregacionismo (AUGÉ, 1999). Será que futuramente falar-se-á em uma etnização dos conflitos no PARNA-Jaú e na RDS-Mamirauá nos mesmos moldes da atual ambientalização dos conflitos nas regiões das duas UCs abordadas (LOPES, 2006)?
Glossário de siglas
ADCT - Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
CF - Constituição Federal
FCP - Fundação Cultural Palmares
FIOCRUZ - Fundação Oswaldo Cruz
FUNAI - Fundação Nacional do Índio
FVA - Fundação Vitória Amazônica
IBAMA - Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis
IDSM - Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá
MPF - Ministério Público Federal
ONG - Organização Não Governamental
OIT - Organização Internacional do Trabalho
PARNA - Parque Nacional
PARNA-Jaú - Parque Nacional do Jaú
RDS - Reserva de Desenvolvimento Sustentável
RDS-Mamirauá - Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá
RESEX - Reserva Extrativista
SCM - Sociedade Civil Mamirauá
SDS-MMA - Secretaria de Desenvolvimento Sustentável do Ministério do Meio Ambiente
SNUC - Sistema Nacional de Unidades de Conservação
TI - Terra Indígena
UC - Unidade de Conservação
Uni-Tefé - União das Nações Indígenas da região de Tefé
Notas
Recebido: 14/7/2007
Aceito: 14/4/2008
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- ______. Decreto Presidencial, de 13/07/2006. Altera a denominação, competência e composição da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Dnn/Dnn10884.htm#art11 .
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
03 Abr 2009 -
Data do Fascículo
2008
Histórico
-
Aceito
14 Abr 2008 -
Recebido
14 Jul 2007