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Os desafios de legitimidade em sistemas multissetoriais de governança: uma análise do Forest Stewardship Council

Resumos

Sistemas voluntários de certificação passaram a ocupar posição de destaque no debate sobre sustentabilidade. Na ausência de autoridade governamental, estes sistemas constroem e mantém legitimidade por meio do apoio político dos diferentes grupos da sociedade civil que participam em um determinado mercado. Este artigo apresenta considerações sobre o processo de construção e manutenção de legitimidade do sistema de certificação florestal FSC.

certificação florestal; legitimidade; governança; sociologia econômica


Voluntary certification systems are now playing an important role on the sustainability debate. In the absence of governmental authority, those systems build and maintain legitimacy through political support from stakeholders that are engaged in a certain market. This article presents consideration about the means of building and maintaining legitimacy in the FSC forest certification system.

forest certification; legitimacy; governance; economic sociology


ARTIGOS

Os desafios de legitimidade em sistemas multissetoriais de governança: uma análise do Forest Stewardship Council1 1 Este artigo é baseado na dissertação de mestrado defendida pelo primeiro autor no Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP e agraciada com o Prêmio SOBER 2011 de Melhor Dissertação em Sociologia Rural, oferecido pela Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural. Os autores agradecem as contribuições de Ricardo Abramovay, Marcelo Sampaio Carneiro, Carla Morsello, Paulo Sinisgalli e Arilson Favareto, destacando, contudo, que são os únicos responsáveis por seu conteúdo.

Mauricio de Almeida VoivodicI; Luiz Carlos Beduschi FilhoII

IEngenheiro Florestal e mestre em Ciência Ambiental pela Universidade de São Paulo. Pesquisador associado do NESA (Núcleo de Economia Socioambiental) da FEA/USP e Secretário Executivo do IMAFLORA; e-mail: mauricio@imaflora.org

IIProfessor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (PROCAM) da Universidade de São Paulo (USP). http://www.each.usp.br/beduschi

RESUMO

Sistemas voluntários de certificação passaram a ocupar posição de destaque no debate sobre sustentabilidade. Na ausência de autoridade governamental, estes sistemas constroem e mantém legitimidade por meio do apoio político dos diferentes grupos da sociedade civil que participam em um determinado mercado. Este artigo apresenta considerações sobre o processo de construção e manutenção de legitimidade do sistema de certificação florestal FSC.

Palavras-chave: certificação florestal; legitimidade; governança; sociologia econômica

ABSTRACT

Voluntary certification systems are now playing an important role on the sustainability debate. In the absence of governmental authority, those systems build and maintain legitimacy through political support from stakeholders that are engaged in a certain market. This article presents consideration about the means of building and maintaining legitimacy in the FSC forest certification system.

Keywords: forest certification; legitimacy; governance; economic sociology

1. INTRODUÇÃO

O sistema de certificação florestal FSC (Forest Stewardship Council), cujo objetivo institucional é reduzir os impactos negativos da exploração predatória de florestas, é um mecanismo criado e governado por atores da sociedade civil. Sem dispor de poder governamental para regulamentar a forma de atuação do setor privado, o FSC define regras socioambientais de produção que são adotadas por centenas de empresas em diversos países do mundo. Isso se dá por meio de um instrumento de diferenciação e rotulagem de produtos, que resulta em incentivos econômicos e de acesso a mercados para as empresas que, voluntariamente, se comprometem a adequar suas atividades produtivas a estes critérios.

Diversos estudos buscam compreender o fenômeno pelo qual empresas privadas adotam voluntariamente critérios de produção que são definidos por organizações da sociedade civil e que vão além daquilo que é exigido por lei. Em geral, a interpretação dada se concentra em argumentos micro-econômicos relacionados às oportunidades de ganho concorrencial para as empresas que agregam valor aos seus produtos através de um "selo verde" (SEDJO; SWALLOW, 1999; MASON, 2008). Em outra abordagem, pesquisadores das ciências sociais observam que as empresas adotam esses critérios para se proteger de possíveis contestações da sociedade civil, interagindo proativamente com atores externos aos seus mercados, protegendo e valorizando sua reputação e imagem no mercado em que atuam (GODARD, 2003; GODARD; HOMMEL, 2005).

Essas duas abordagens mantêm como foco central de análise a decisão racional das empresas em se adequar a instrumentos de certificação. Entretanto, não explicam os fatores que levam estes sistemas a se tornarem instrumentos que efetivamente resultam em ganhos concorrenciais e de proteção de imagem. A autoridade para definir a forma de produzir de empresas privadas está geralmente associada a regulamentações governamentais ou acordos internacionais legalmente vinculantes, o que, em nenhum dos dois casos, representa a situação do FSC.

Então, o que faz com que o FSC, uma iniciativa da sociedade civil, consiga conferir a um selo credibilidade suficiente para influenciar a forma de produção de mais de mil empresas florestais, em 81 países, representando cerca de 20% da área total de florestas produtivas no mundo?

A mesma pergunta pode ser formulada a partir do ângulo reverso: o que faz com que o FSC, um mecanismo que gera ganhos econômicos para empresas privadas, consiga manter em sua base de apoio as principais organizações ambientalistas e sociais do mundo, conhecidas fundamentalmente por suas campanhas de exposição e ataque a empresas causadoras de impactos sociais e ambientais?

Este artigo analisa os mecanismos utilizados pelo FSC para manter esta densa rede de organizações, cada qual com seus interesses específicos e muitas vezes antagônicos. De forma muito direta, pretende-se responder a seguinte pergunta: por que o FSC, um mecanismo não governamental que busca no mercado soluções para problemas coletivos, se tornou uma estratégia convergente para atores com interesses antagônicos, como é o caso de empresas privadas, organizações ambientalistas e movimentos sociais?

A hipótese central é que o FSC é legitimado por esses diferentes atores, pois possui um desenho institucional que possibilita o acesso e a participação de diferentes grupos de interesse nos processos de tomada de decisão que regem o funcionamento do sistema. Não se trata aqui de afirmar que o sistema FSC consegue evitar plenamente as assimetrias de poder entre os atores. Ao contrário, é a partir do reconhecimento de tais assimetrias que o desenho institucional é concebido de forma a minimizá-las, estimulando que a participação dos atores se mantenha ao longo do tempo e ao redor dos consensos possíveis.

Para responder a pergunta formulada, foram reunidos elementos teóricos e empíricos a respeito do sistema FSC, sua inserção no mercado de produtos florestais, e o funcionamento do processo de tomada de decisões por meio da participação das representações setoriais. O desenho institucional do FSC e os mecanismos utilizados no processo de tomada de decisões foram analisados por meio de um estudo de duas Assembléias Gerais do FSC (2005 e 2008), instância máxima de decisão do sistema. Este estudo foi realizado a partir de análises dos resultados das decisões tomadas nestas ocasiões, e de interpretações factuais do processo de negociação que existe entre os diferentes setores envolvidos.

2. CONHECENDO O FSC

Fundado em 1993, o FSC foi o resultado de um debate político que se iniciou muito antes, motivado pelas profundas alterações que o setor florestal enfrentou, especialmente durante a década de 1980. O aumento significativo do consumo de madeira levou a uma enorme pressão sobre as florestas mundiais, o que gerou diversas preocupações em diferentes grupos sociais, impulsionando iniciativas voltadas a frear a exploração predatória dos recursos florestais, tanto no âmbito multilateral das negociações internacionais quanto em campanhas da sociedade civil. Na esfera governamental, o ápice deste debate se deu na Convenção das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (RIO 92), quando países produtores e compradores tentaram alcançar um acordo sobre conservação e comércio de madeira (HUMPHREYS, 2004). Entretanto, marcadas por visões antagônicas entre os países produtores e consumidores, as negociações ocorridas durante a RIO-92 resultaram em uma convenção cujo texto foi considerado apenas uma "carta de intenções", insuficiente por não conter vinculações legais e nenhum tipo de mecanismo de monitoramento (HUMPHREYS, 2004; GULBRANDSEN, 2004).

O fracasso da discussão intergovernamental sobre a gestão de florestas tropicais levou o debate sobre conservação e mercado de madeira para uma nova direção, focada em iniciativas não-governamentais, orientadas pelo mercado, como alternativa para solucionar o problema. Organizações Não Governamentais (ONGs) ambientalistas passaram a desenvolver campanhas de boicote a produtos feitos com madeira tropical, em uma tentativa de reduzir a demanda e a pressão sobre os estoques florestais (DUDLEY et al., 1995; ZHOURI, 2006). Por outro lado, empresas que trabalhavam com madeira tropical passaram a criar mecanismos próprios de diferenciação de seus produtos, se autodenominando sustentáveis, em uma tentativa de preservar sua imagem no mercado e se desvincular das acusações de exploração predatória de florestas tropicais. Tanto os boicotes quanto as tentativas de "autocertificação" não resolveram o problema, pois colocavam ONGs e empresas em lados opostos, sem apresentar uma alternativa que pudesse substituir a forma como as florestas estavam sendo exploradas (SYNNOTT, 2005).

Nesse contexto, a iniciativa de uma pequena fábrica inglesa de instrumentos musicais começou a atrair a atenção de organizações ambientalistas. Preocupado com a imagem negativa associada a seus instrumentos feitos com madeira tropical, o dono dessa fábrica decidiu estabelecer um grupo de trabalho de certificação florestal, com o objetivo de criar um mecanismo pelo qual poderia comprar madeira de áreas que haviam sido vistoriadas por organizações ambientalistas e que pudessem atestar que a produção estava respeitando critérios técnicos de exploração sustentável (CASHORE et al., 2004: p.4; BARTLEY, 2007: p.318). Assim, em 1990 foi fundada a Aliança dos Trabalhadores da Madeira pela Proteção da Floresta Tropical (WARP2 2 Wood-workers Alliance for the Rainforest Protection. na sigla em inglês). Esta iniciativa cresceu rapidamente com o envolvimento de grandes empresas internacionais e do apoio institucional de ONGs ambientalistas, frustradas com o fracasso das negociações multilaterais (DUDLEY et al., 1995). Influenciado pelo sucesso desta iniciativa, e neste ambiente político de discussão internacional marcado por fortes contestações sobre os impactos causados pelo mercado de madeira, é que foi criado, em 1993, o sistema de certificação florestal FSC.

Sistemas de certificação florestal são desenvolvidos para reconhecer empresas ou produtores florestais que, de forma voluntária, buscam adequar suas práticas de produção a critérios socioambientais pré-definidos. No conjunto da cadeia produtiva este sistema funciona a partir da expectativa de que os compradores darão preferência a produtos certificados, impulsionando assim seus fornecedores a buscarem a certificação (NUSSBAUM; SIMULA, 2005).

No sistema FSC a certificação se aplica a qualquer produto de origem florestal (madeira sólida e seus subprodutos, celulose e papel, produtos não madeireiros como o látex de borracha, a castanha do Brasil, etc.), proveniente de qualquer floresta no mundo (florestas tropicais, boreais, temperadas, savanas, etc.), seja floresta natural ou plantação florestal. Esta certificação é feita por meio de auditorias periódicas, realizadas por organizações independentes credenciadas pelo FSC, aplicadas ao longo de toda a cadeia de produção, tanto nas áreas de manejo florestal - na qual se aplicam critérios socioambientais de produção - quanto ao longo das etapas de beneficiamento do produto - quando se aplicam critérios de rastreabilidade e cadeia de custódia - de modo a assegurar que o produto que chega com o selo FSC ao consumidor final é realmente proveniente de áreas florestais de produção certificadas. Todo este sistema é administrado a partir de normas e políticas de certificação, disponíveis publicamente na página de internet do FSC.

O desenho institucional de funcionamento do FSC foi criado com a intenção de se estabelecer procedimentos para que os interesses de diferentes grupos da sociedade envolvidos com a questão florestal - sejam empresas, organizações ambientalistas, trabalhadores e sindicatos, consumidores, grupos indígenas, entre outros - fossem considerados de forma igualitária nos processos de tomada de decisão.

Assim, o FSC foi fundado como uma associação de membros, aberta à participação de qualquer pessoa ou organização que represente interesses sociais, econômicos ou ambientais relacionados à questão florestal, e que demonstrem comprometimento com os princípios de bom uso das florestas. Para possibilitar esta participação igualitária, os membros são divididos em três câmaras (social, ambiental e econômica) e cada câmara é subdivida entre representantes de países em desenvolvimento e países desenvolvidos. As câmaras são compostas da seguinte forma:

• Câmara Econômica: os membros desta câmara são aqueles que têm interesses econômicos no setor florestal, sejam empresas compradoras, empresas produtoras, traders, grupos de consumidores finais, organismos certificadores, etc. Esta câmara é dividida em sub-câmara econômica norte (membros baseados em países desenvolvidos) e sub-câmara econômica sul (membros baseados em países em desenvolvimento);

• Câmara Ambiental: inclui organizações não-governamentais ambientalistas, instituições técnicas e grupos de pesquisa, universidades e centros acadêmicos. Esta câmara também se divide em subcâmara ambiental norte e subcâmara ambiental sul;

• Câmara Social: inclui organizações não-governamentais preocupadas com a proteção dos direitos de populações indígenas, comunidades e trabalhadores florestais, movimentos sociais, sindicatos e confederações de trabalhadores, pesquisadores e grupos de pesquisa voltados para questões sociais relacionadas ao manejo florestal. Assim como as anteriores, está dividida em subcâmara social norte e subcâmara social sul.

A instância máxima do processo de tomada de decisão dentro do FSC é a Assembleia Geral de membros. Realizada a cada três anos, a Assembleia Geral é o momento em que os membros do FSC se reúnem para discutir temas relacionados ao manejo florestal e ao FSC. É o momento em que, por meio da apresentação de moções (propostas de mudança), é possível alterar as regras de funcionamento do FSC, seja o estatuto, as políticas ou as normas de certificação. As decisões na Assembleia Geral são tomadas a partir do consenso, definido pelo FSC como a ausência de oposição substancial, mas sem a necessidade da unanimidade.

Assim, para que uma moção seja aprovada em uma Assembleia Geral, é necessário que fique demonstrado que os votos favoráveis a ela representam maioria simples em cada uma das câmaras, e 66,6% de todos os votos dos membros presentes registrados na Assembleia.

Desta forma, buscou-se estabelecer um mecanismo formal de tomada de decisão a partir do consenso entre representantes de diferentes partes do mundo com interesses variados distribuídos entre setores ambientais, econômicos e sociais. Tal mecanismo configura uma nova relação entre mercados e sociedade que merece especial atenção neste artigo.

3. SOBRE MERCADOS E SOCIEDADE

Conforme descrito no histórico de criação do sistema de certificação florestal FSC, estudar o contexto político-institucional que possibilitou a sua emergência remete à constatação de que a participação das ONGs ambientalistas e a pressão que as mesmas exerceram no mercado de produtos florestais nas décadas de 1980 e 1990 foram fundamentais para o estabelecimento deste sistema de certificação.

Esta constatação sugere que os mercados podem ser influenciados por demandas sociais. Mas, será possível que mercados sejam realmente influenciados por algum fator diferente daquele que é o resultado do balanço entre oferta e demanda, expresso sob a forma de preços? Além de estar diretamente relacionada com a pergunta central deste estudo, esta questão está fortemente associada a um debate teórico bastante rico das ciências sociais contemporâneas, especialmente no estudo sociológico dos mercados.

Na visão neoclássica da ciência econômica, o mercado é um ente autônomo que se auto-regula a partir do balanço entre forças de oferta e demanda e cujo funcionamento é tanto melhor quanto menor forem as interferências da sociedade e do Estado. Em tal concepção, os indivíduos são atores atomizados cujas decisões racionais são tomadas unicamente a partir da premissa universal da maximização de seus interesses. Sob essa visão, demandas sociais não devem influenciar os mercados, cujos possíveis impactos socioambientais seriam considerados externalidades, a serem corrigidas via regulação estatal. De acordo com essa corrente teórica, e mesmo na Nova Economia Institucional, mecanismos de certificação são instrumentos de mercado necessários para reduzir a assimetria de informações entre produtores e consumidores, e que podem resultar em um aumento real no lucro de empresas certificadas em função da agregação de valor no produto, obtida por meio da diferenciação (rotulagem) do produto na prateleira do mercado (SEDJO; SWALLOW, 1999; MASON, 2008).

A corrente de estudos sociológicos dos mercados, por sua vez, se opõe a tal concepção, ao destacar a importância das interações sociais no funcionamento dos mercados (GRANOVETTER, 1985, 2005; CALLON, 1998; ABRAMOVAY, 2004), e ao defender que outras variáveis, além do auto-interesse, influenciam a tomada de decisões dos agentes econômicos.

Contrariando um pressuposto muito comum na economia, popularmente simbolizado pelo ditado "amigos, amigos, negócios à parte", Zelizer (2005, p.20) demonstra que intimidade e atividades econômicas não são dois mundos hostis, mas sim duas esferas interligadas e complementares da sociedade. Mesmo atividades econômicas centrais da economia capitalista, como aquelas desenvolvidas pelo mercado financeiro (FERRARY, 2003), ou até mesmo o próprio consumo (DIMAGGIO; LOUCH, 1998) são diretamente influenciadas por redes sociais, principalmente a partir de relações de confiança existentes entre os agentes econômicos envolvidos.

Sob esta ótica, os autores da Nova Sociologia Econômica demonstram que os mercados não são esferas opacas, desprovidas de interações sociais e nas quais toda a informação necessária para subsidiar a decisão de compra e venda de produtos é expressa por meio de preços. Pelo contrário, os mercados são vistos como campos onde os atores sociais interagem permanentemente, definindo por meio desta interação a forma como o campo se configura (BOURDIEU, 2005). As estruturas de um campo são determinadas de forma hierarquizada pela localização diferenciada dos agentes sociais em seu interior, e este posicionamento hierarquizado dos agentes sociais se dá a partir da distribuição desigual das diferentes formas de capital entre eles (capital econômico, capital político, capital cultural, capital social e capital simbólico).

O conceito de campo é utilizado de forma central por Neil Fligstein em sua contribuição ao estudo de mercados. Para ele, os mercados se estabilizam por meio do balanço de poder entre agentes em um dado campo a partir da formação de direitos de propriedade, estruturas de governança, concepções de controle e regras de troca (FLIGSTEIN, 2001a). Fligstein associa ao conceito de campo a ideia de habilidade social dos atores. Definida como a capacidade de induzir a cooperação dos outros (FLIGSTEIN, 2001b), esta ideia pode ser utilizada para identificar a contribuição distinta dos atores em um campo, independentemente de estarem defendendo um conjunto existente de arranjos sociais, impondo ou negociando uma nova ordem.

Aplicar os conceitos da Nova Sociologia Econômica ao mercado de produtos florestais nos leva a enxergá-lo como um campo onde empresas dos diferentes elos da cadeia produtiva se posicionam de forma hierárquica, de acordo com a quantidade acumulada de capital. A interação existente entre estes atores se dá de uma forma que vai muito além do que uma simples medida de preços. Estes atores se conhecem, se comunicam, compartilham tecnologias, informações sobre fornecedores, etc. Para isso, precisam desenvolver suas habilidades sociais e assim conseguir induzir a cooperação dos demais, conquistando um melhor posicionamento no campo.

A maior parte da literatura de Sociologia Econômica que estuda mercados estabelece como foco de suas análises as interações sociais e os conflitos existentes entre as diferentes firmas que compõem um determinado mercado. Esta abordagem, em geral, não incorpora a relação existente entre estas firmas e os outros diversos atores sociais que não fazem parte da cadeia produtiva, tais quais as ONGs, os movimentos sociais e o Estado. Bartley (2007, p.309) também observa esta deficiência na literatura e se propõe a analisar os mercados através de uma abordagem que ele denomina como "construção política dos mercados", em que os mercados são formados por meio da interação entre empresas e todos os demais atores sociais, que de alguma forma influenciam e são influenciados pelo mercado.

Alguns autores, inclusive, vão além ao defender que a sobrevivência de empresas em um determinado mercado já não depende mais unicamente de sua capacidade de produzir, de forma competitiva, bens e serviços que atendam satisfatoriamente as demandas dos consumidores. O sucesso competitivo das empresas depende também de se alcançar legitimidade social naquilo que é produzido, assim como na forma como é produzido (GODARD, 2003; GODARD; HOMMEL, 2005). Esses autores demonstraram que empresas vêm buscando se antecipar de forma proativa a possíveis contestações sociais a respeito de seus produtos e processos produtivos - mesmo que isso represente maiores custos de produção e de transação - como uma estratégia para obter uma espécie de licença social para operar, e desta forma garantir a sua permanência em determinados mercados.

4. GOVERNANÇA, AUTORIDADE E LEGITIMIDADE

Não é trivial o fato de haver atores da sociedade civil participando em processos de definição de normas e critérios de produção a serem seguidos pelo setor privado. Tampouco é comum que agências governamentais não tenham um papel central nestes processos, ou em alguns casos, nem participem deles. Assim, a discussão proposta neste item é de fundamental importância.

Regulação pode ser definida, em poucas palavras, como o processo pelo qual se impõem limites sobre o comportamento de determinados atores da sociedade, contendo regras que, em geral, não são voluntárias (MEIDINGER, 2002). Tradicionalmente, o ato de se regular, ou de se criar regulamentações, é um dever dos governos, e o alvo das regulamentações é, na maior parte dos casos, o setor privado. Estes dois lados, público e privado, ficam geralmente separados, sendo um o criador das regulamentações e o outro aquele que deve segui-las. Contudo, o deslocamento do poder regulatório, antes centrado unicamente em governos, para outras esferas da sociedade, tem sido alvo de intensa investigação no campo da ciência política, notadamente desde o final da década de 1980.

Essas transformações sociais resultaram no surgimento de novas formas de governança internacional, marcadas por alterações substanciais no lócus de autoridade e dos mecanismos de controle da sociedade. Novas "esferas de autoridade" foram concebidas, em muitos casos se deslocando do ambiente político para o ambiente econômico e social (ROSENAU, 2000).

Em um mundo onde a autoridade sofre deslocamento contínuo, Rosenau (2000) se preocupou em estudar como poderiam existir formas de governança independentes de governo. Para o autor, para que exista um sistema de governança sem governo, "[...] devem ser concebidas determinadas funções que precisam ser executadas para dar viabilidade a qualquer sistema humano, mesmo que o sistema não tenha produzido organizações e instituições incumbidas explicitamente de exercê-las [...]" (ROSENAU, 2000, p.14). Entre estas numerosas funções necessárias, o autor cita a de interagir com os desafios externos que ocorrem no sistema; evitar que conflitos entre os membros ou facções provoquem uma destruição irreparável, buscar recursos para a preservação e o bem-estar do sistema e definir objetivos e condutas destinadas a alcançá-los.

Estas atividades são evidentes nas operações dos governos que desenvolvem constituições para regulamentar internamente a conduta da população, ou assinam tratados que os orientem internacionalmente. Entretanto, durante este período de mudança mundial rápida e ampla, as constituições nacionais e os tratados têm sido prejudicados, ou ao menos se tornam insuficientes, na medida em que a agenda global passa a ser repleta de temas transnacionais e interdependentes, como as crises monetárias, os efeitos do mercado internacional, o terrorismo, o tráfico de drogas, a poluição ambiental e a dilapidação dos estoques de recursos naturais.

Todas estas questões resultam em um movimento de deslocamento dos centros de autoridade (ROSENAU, 2000). O autor destaca, repetidamente, que não se trata de questionar ou desconsiderar a soberania dos governos, mas sim de reconhecer que uma parte de sua autoridade foi transferida para coletividades sub e supranacionais.

Assim, de maneira mais ampla, sistemas de governança são formas ou processos de ordenação de comportamentos, criados no entorno de valores, interesses e objetivos comuns, compartilhados entre os diversos atores que compõem o sistema, derivados ou não de uma autoridade política centralizada. Caracterizam-se por mecanismos cujo funcionamento - e, portanto, a sua própria existência - depende da aceitação daqueles que seguirão suas diretrizes (ROSENAU, 2000, p.16). Ou seja, é necessário que o sistema defina mecanismos de legitimidade para que a sua autoridade em definir as normas de conduta seja reconhecida e aceita por aqueles cujo comportamento pretende-se ordenar. Assim, na medida em que o sistema consegue construir e manter legitimidade, ele realmente existe enquanto um mecanismo de governança, já que seus valores, objetivos e diretrizes são compartilhados e aceitos por todo o grupo envolvido, resultando em um novo padrão de comportamento frente ao tema em questão.

Entretanto, podem existir sistemas compostos unicamente por atores não governamentais (que inclui organizações da sociedade civil e setor privado), conforme demonstrado por diversos trabalhos que definiram o conceito de sistemas de governança não estatais, orientados pelo mercado, ou sistema NSMD na sigla em inglês3 3 Non-State Market Driven (NSMD) governance systems. (CASHORE, 2002; BERNSTEIN; CASHORE, 2004). Nestes casos, o processo de construção de autoridade para formular normas de comportamento é mais complexo, pois na prática não se baseiam em um poder hierárquico para fazer, por meio de fiscalização e polícia, com que as normas sejam cumpridas. Na ausência deste poder formal, outras formas de legitimação e construção de autoridade precisam ser desenvolvidas para que o sistema consiga condicionar o comportamento de atores da sociedade para resolver problemas coletivos (CASHORE, 2002; BERNSTEIN; CASHORE, 2004).

O conceito de legitimidade utilizado por estes autores segue a definição criada por Suchman (1995, p.574), segundo a qual "legitimidade é uma generalizada percepção, ou suposição, de que as ações de uma entidade são desejáveis, adequadas ou apropriadas, em um determinado sistema social de normas, valores, crenças e definições".

O FSC caracteriza- se como um sistema de governança na medida em que busca ordenar a atividade de produção florestal, por meio de um mecanismo que envolve atores que compartilham um mesmo objetivo, ainda que este objetivo derive de interesses diferenciados. Estes interesses se expressam por meio do mercado, já que as empresas aderem ao sistema na busca por ganhos, reputacionais ou financeiros.

Para Cashore (2002, 2006), é no mercado de produtos florestais que a legitimidade política do FSC é construída. Sob esta perspectiva, a legitimidade do FSC é dada por audiências externas que participam deste mercado, distribuídas entre quatro principais grupos de interesse: i) produtores florestais; ii) compradores de produtos florestais (que inclui consumidor final, processadores e revendedores); iii) o Estado, e; iv) os grupos sociais (que inclui organizações ambientalistas, sindicatos, movimentos sociais e mídia) (CASHORE, 2002, p.511).

A principal pergunta dos trabalhos de Cashore e Bernstein acima apresentados - que poderia ser formulada como: "De onde vem a legitimidade do FSC? - é bastante semelhante à pergunta central deste trabalho. Entretanto, a resposta aqui formulada é diferente daquelas defendidas por esses autores. Cashore e Bernstein elaboram suas análises observando o FSC como um "sujeito determinado", uma entidade ou organização individual, que se relaciona com empresas e com organizações da sociedade civil - denominadas por eles como "audiências externas" - buscando, por meio de ações específicas, construir suas bases de legitimidade que serão necessárias para definir e impor normas socioambientais a produtores florestais ao redor do mundo.

Em uma perspectiva diferente daquela é que defendida por estes autores, aqui buscamos demonstrar que é no processo de tomada de decisão interna do FSC que acontece o principal processo de legitimação do sistema. Assim, para fins de análise, as organizações e as empresas que fazem parte destes processos de tomada de decisão nas Assembléias Gerais do FSC deixam de ser consideradas audiências externas, já que o FSC é composto por estes atores e a organização FSC não existiria sem eles.

5. ARENA MULTISSETORIAL DE NEGOCIAÇÃO E ACORDO

Conforme já mencionado, a Assembleia Geral (AG) do FSC é a instância máxima de decisão da organização. É durante as AGs, que acontecem a cada três anos, que os membros do FSC se encontram para tomar as decisões necessárias ao andamento das atividades da organização. Propostas de alterações estatutárias ou de políticas e procedimentos do FSC são apresentadas previamente pelos membros. Tais propostas são denominadas moções. As moções representam, em sua essência, as aspirações setoriais de um grupo específico sobre o sistema FSC.

Durante os primeiros dias da AG, os membros discutem estas moções em um exercício de negociação e convencimento. É necessário consenso, representado pela maioria de votos a favor em cada câmara (social, ambiental e econômica), para que uma moção seja aprovada. Se não houver consenso, a moção é reprovada e o sistema não incorporará a proposta apresentada.

Ainda que aparente ser impossível que decisões possam ser tomadas a partir de consenso entre grupos cujos interesses são díspares e até antagônicos, surpreendentemente a taxa de aprovação de moções nas AGs do FSC é bastante alta, conforme demonstrado na Tabela 1.

As moções apresentadas para votação, conforme apresentado na Tabela 1, são aquelas que passaram pelo processo de negociação que antecede a votação e, em sua maioria, sofreram ajustes para que pudessem ser aceitas pelas demais câmaras. Isso demonstra que o processo de negociação e ajuste do texto da moção a ser submetido para apreciação da AG é uma prática já estabelecida entre os membros do FSC, fundamental para a aprovação de moções. Propostas radicais, com pouca abertura para a negociação com os demais atores, costumam ser reprovadas por não contemplarem os diferentes interesses que compõem a arena de negociação.

Analisar a evolução temporal de alguns temas nas AGs do FSC possibilita um melhor entendimento do processo pelo qual os interesses dos diferentes atores são confrontados durante as negociações para aprovação de moções. Temas que são discutidos recorrentemente nas AGs representam contestações de um grupo específico, que encontram resistência dos demais grupos e, portanto, não conseguem ser facilmente resolvidos.

Talvez o mais simbólico destes temas na história do FSC é a questão relacionada à inclusão de critérios sociais na certificação de cadeia de custódia. Conforme já mencionado, critérios socioambientais são aplicados apenas na certificação de manejo florestal, sendo que nas demais etapas da cadeia de produção, aplicam-se apenas critérios de rastreabilidade. Essa tem sido, pelo menos desde 1999, uma forte demanda por parte de organizações trabalhistas associadas ao FSC, em especial a Federação Internacional de Trabalhadores da Construção e Madeira (FITCM). O principal contraponto a esta demanda vem da câmara econômica que se preocupa com o aumento no custo da certificação de cadeia de custódia que esta medida representaria.

O representante da FITCM no FSC apresentou moções sobre este tema nas AGs de 1999, 2005 e 2008 (FSC, 1999; 2005 e 2008). Em cada uma delas o texto inicial da moção tinha um caráter bastante radical e definitivo, demandando que o FSC incorporasse critérios sociais ao longo de toda a cadeia produtiva. Nas três situações, a moção foi negociada com as demais câmaras e o texto foi alterado durante esta negociação, sendo abrandado para que pudesse ser aceito também pelas câmaras econômica e ambiental. E, nas três situações, as moções foram finalmente aprovadas por consenso no processo de votação. As propostas aprovadas, ainda que não fosse exatamente o que queria o representante das demandas trabalhistas, significaram melhorias graduais em direção ao seu objetivo final.

O registro das negociações sobre este tema durante a AG 2008 ilustra o processo de diálogo e convencimento que caracterizam a discussão sobre moções. A primeira discussão dos membros da câmara econômica sobre esta moção foi marcada por objeção absoluta à proposta. Durante nove minutos, os membros da câmara econômica argumentaram contra a aprovação da moção com frases como: "[...] auditoria social é uma nova auditoria, adicionará pelo menos um dia a mais da auditoria de cadeia de custódia [...]"; "[...] isso vai aumentar muito o custo de certificação [...]"; Após o seguinte posicionamento, a discussão terminou com a unanimidade de todos os membros em votar contra a moção.

"[...] se começarmos a adicionar critérios sociais na cadeia de custódia, a câmara ambiental vai querer também adicionar critérios ambientais na cadeia de custódia. Precisamos pensar no futuro e decidir o quanto queremos incrementar um padrão que é basicamente de rastreabilidade [...]4 4 Gravações feitas durante a reunião da câmara econômica, no dia 05 de dezembro de 2008. Tradução nossa. "

Em uma segunda discussão sobre o tema com a Câmara Econômica, o proponente da moção apresentou a sua proposta e argumentou que o que estava sendo solicitado era o mínimo, pois não é aceitável que uma empresa certificada pelo FSC possa ter situações trabalhistas degradantes. Argumentou também que, embora isso possa representar custos adicionais, os mesmos se justificam, pois implementar esta moção contribuiria para aumentar a credibilidade do FSC e, portanto, o valor do certificado em um produto. Esta discussão termina com um membro da câmara econômica se propondo a ajudar o proponente a adequar o texto da moção para que se torne um pouco menos radical e possa ser aprovada.

Ao final, o texto da moção que foi levado à votação não mais exigia que o FSC incorporasse critérios sociais na certificação de cadeia de custódia, mas sim que incluísse as convenções fundamentais da Organização Internacional do Trabalho (OIT) nos contratos de certificação. Assim, os auditores não precisariam avaliar critérios adicionais durante uma auditoria de cadeia de custódia - não implicando em custos adicionais - mas poderiam cancelar o contrato com uma empresa caso fossem identificadas evidências de desrespeito às convenções fundamentais da OIT. Desta forma, a moção foi aprovada por consenso pelas três câmaras do FSC.

O processo de negociação que resultou na aprovação dessa moção na AG 2008 é bastante simbólico, pois o tema possui um histórico de evolução de quase dez anos e isso permite que se identifiquem as conquistas gradativas de um grupo de interesse cujo objetivo é facilmente identificado. Este processo é também muito representativo de toda a negociação que acontece durante uma AG do FSC: para cada moção apresentada, um processo semelhante a este se desenvolve durante os dias que antecedem a sessão formal de votação, culminando na aprovação ou não da moção por parte dos membros do FSC. Característica comum destas negociações é a disposição dos proponentes para discutir o conteúdo e as implicações de sua proposta, escutar as reações dos atores das demais câmaras, e trabalhar conjuntamente com eles para elaborar uma proposta que contemple, ainda que parcialmente, os diversos interesses envolvidos no tema em questão.

O desenrolar deste processo faz com que os interesses de cada grupo se tornem conhecidos por todos. Esta é uma negociação marcada pela transparência de interesses, onde o posicionamento de cada grupo sobre o tema é apresentado, debatido e, quando possível, busca-se uma forma de encaminhamento que contemple o interesse de um grupo, e não conflite com os interesses dos demais. O resultado desta negociação é, necessariamente, um acordo entre as partes cujo produto - o texto final das moções aprovadas - geralmente não representa de forma integral o objetivo de um grupo, mas sim, o melhor possível dentro dos limites que foram estabelecidos e comunicados abertamente pelos demais grupos.

Por meio deste desenho institucional, cujo mecanismo de tomada de decisões permite o acesso e a participação dos diferentes grupos interessados, as moções aprovadas representam ações que foram reconhecidas por todos como algo importante para a continuidade do sistema. Este reconhecimento é justamente o ponto central da legitimidade dada por cada um destes atores ao FSC, pois as decisões tomadas nas AGs moldam a configuração do sistema e a forma como ele será operado ao longo da cadeia produtiva. Por ter participado destas decisões, os atores reconhecem que as alterações que serão feitas no sistema estão de acordo com seus interesses e objetivos, fortalecendo a percepção de que as ações desta entidade são desejáveis e apropriadas (SUCHMAN, 1995).

No caso da moção proposta pela FITCM, o fato de ter sido aprovada representa uma conquista para os representantes dos trabalhadores, ainda que não seja exatamente aquilo que se esperava. Ainda assim, esta federação continua participando do FSC e levando o mesmo assunto para discussão, confiando que os avanços graduais são parte de um processo de construção. Ao manter-se como membro do FSC, a FITCM está legitimando o sistema, pois reconhece que os seus interesses estão ali sendo considerados. Esta legitimação acaba sendo uma sinalização para as confederações e os sindicatos locais de que a certificação FSC é algo desejável e apropriado.

A interação entre os atores que participam e apóiam o FSC acontece de forma institucionalizada em uma arena de negociação política que é a Assembléia Geral do FSC. Esta arena se aproxima bastante da definição de "campos bourdieusianos", onde os diversos atores se posicionam de forma hierárquica de acordo com a quantidade de capital disponível (BOURDIEU, 2005). Cada ator que interage neste campo possui seus interesses e objetivos próprios, e utiliza constantemente suas estratégias e habilidades sociais para obter um melhor posicionamento no campo, e consequentemente conseguir alcançar seus objetivos. Em consonância com o conceito proposto por Fligstein (2001b), os atores que fazem parte do FSC desenvolvem habilidades sociais que são utilizadas para induzir a cooperação dos demais, na intenção de se estabilizar o campo por meio de um balanço de poderes entre todos os atores envolvidos.

É justamente este objetivo de manter os diversos interesses continuamente contemplados na arena de negociação que mantém a estabilidade social do sistema. Os atores sabem que, se uma das câmaras sentir que seus interesses não estão sendo contemplados, a estabilidade pode ser ameaçada, fazendo com que o sistema perca sua credibilidade. Esta possibilidade iminente de ruptura, especialmente por ser um sistema formado por atores que possuem interesses antagônicos, leva-nos a buscar elementos para compreender de que forma este sistema conseguiu romper o "ciclo vicioso" da desconfiança e não colaboração, e alcançou um "ciclo virtuoso" de confiança e cooperação (PUTNAM, 2005).

A confiança que existe entre os atores envolvidos nesta arena de negociação é um elemento central para que prevaleça o ambiente de cooperação. Leach e Sabatier (2005) estudaram a formação deste ambiente de confiança em arenas multissetoriais de discussão e elaboração de políticas públicas, e demonstraram que a abordagem da escolha racional explica apenas em parte este processo, sendo necessário aportar elementos da psicologia social para uma melhor compreensão do fenômeno como um todo. Para eles, "confiança envolve crença ou convicção na propensão do outro em manter suas promessas, em negociar honestamente, em mostrar respeito por outros pontos de vista, e em expressar algum nível de preocupação com o bem estar dos demais" (LEACH; SABATIER, 2005, p. 492, tradução nossa).

6. CONCLUSÃO

O FSC é uma organização que funciona como uma arena de negociação política entre diversos grupos de interesse que formam o campo do mercado de produtos florestais. Estes grupos reconhecem o FSC como uma forma para alcançar seus objetivos e interesses, sejam eles relacionados a ganhos financeiros ou reputacionais no caso de empresas do setor privado, ou relacionados à redução dos impactos socioambientais da exploração florestal, no caso das organizações ambientalistas e sociais.

Na medida em que o FSC se propõe a resolver, ou ao menos minimizar, o problema coletivo da exploração predatória de florestas, e quando isso se torna um objetivo comum aos diversos atores, o FSC se qualifica como um sistema não governamental de governança sobre o uso de recursos florestais. Ainda que tenha como foco a busca por alterar o mercado de produtos florestais, este sistema é marcado por interações sociais entre atores da sociedade civil que não participam diretamente de sua cadeia de produção e comercialização. Ao menos não na forma tradicional das relações comerciais e de competição que existem entre empresas de um mesmo setor.

As interações entre os atores que conformam o campo do mercado de produtos florestais são marcadas por contestações da sociedade civil acerca dos impactos da exploração predatória de florestas. O FSC foi criado a partir destas contestações e atualmente possui uma dinâmica de funcionamento cujos fundamentos ainda residem na interação que existe entre os atores da sociedade civil e as empresas do setor florestal. Por isso, a criação do FSC e o seu funcionamento não podem ser explicados unicamente pela abordagem utilitarista e mercadológica, segundo a qual os mecanismos de certificação são criados para resolver uma imperfeição do mercado para empresas diferenciarem seus produtos e reduzirem problemas de assimetria de informações. Esta abordagem não é suficiente para explicar os motivos pelos quais este sistema agrega atores de tão variados e antagônicos interesses.

Para explicar por que este mecanismo não governamental, que busca no mercado soluções para problemas coletivos, se tornou uma estratégia convergente para atores com interesses antagônicos, como é o caso de empresas privadas, organizações ambientalistas e movimentos sociais, faz-se necessária uma abordagem político-institucional que reconheça o mercado como um campo de interações sociais, e o FSC como uma arena de negociações políticas na qual se confrontam esses interesses. Para que todos estes interesses sejam contemplados na configuração do sistema, utilizam-se mecanismos institucionais de tomada de decisões baseados na busca pelo consenso. Se não houver consenso, não se toma decisão.

As análises aqui apresentadas demonstraram que este desenho institucional possibilita o acesso e a participação dos diferentes grupos de interesse nos processos de tomada de decisão que regem o funcionamento do sistema, confirmando, portanto, a hipótese central do estudo. É a partir da percepção de co-responsabilidade para com os encaminhamentos, e de confiança sobre a justiça do processo decisório que os atores com interesses antagônicos legitimam o FSC e o reconhecem como uma instituição desejável e apropriada. Além disso, demonstraram que a legitimidade do FSC é instável, pois é marcada por constantes contestações dos grupos de interesse, materializadas nas moções que são discutidas nas Assembleias Gerais. A fortaleza do sistema também pode ser seu maior risco, uma vez que a não implementação correta e efetiva das moções aprovadas poderá resultar em um ambiente de desconfiança e perda gradativa de legitimidade.

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  • 1
    Este artigo é baseado na dissertação de mestrado defendida pelo primeiro autor no Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP e agraciada com o Prêmio SOBER 2011 de Melhor Dissertação em Sociologia Rural, oferecido pela Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural. Os autores agradecem as contribuições de Ricardo Abramovay, Marcelo Sampaio Carneiro, Carla Morsello, Paulo Sinisgalli e Arilson Favareto, destacando, contudo, que são os únicos responsáveis por seu conteúdo.
  • 2
    Wood-workers Alliance for the Rainforest Protection.
  • 3
    Non-State Market Driven (NSMD) governance systems.
  • 4
    Gravações feitas durante a reunião da câmara econômica, no dia 05 de dezembro de 2008. Tradução nossa.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2011
    ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
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