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A ETNOECOLOGIA EM PERSPECTIVA: ORIGENS, INTERFACES E CORRENTES ATUAIS DE UM CAMPO EM ASCENSÃO

Resumos

O conhecimento ecológico local (CEL) tem sido abordado em suas dimensões cognitivas, históricas e de interface com a ciência normativa. Para uma compreensão mais aprofundada das potencialidades presentes nos estudos sobre o CEL é imprescindível uma visão mais abrangente dos marcos teóricos que pontuaram a história das etnociências, notadamente da etnobiologia. Assim, o presente artigo traz uma síntese dos debates centrais na etnobiologia e dos seus desdobramentos em linhas de pesquisa correntes e também incipientes, sobretudo no Brasil. As transformações no CEL e as comparações deste com o conhecimento científico também são aqui abordadas. Também é desenvolvido o argumento de que, mais do que nas similaridades, são nas divergências entre esses conhecimentos que reside o maior potencial para se aprofundar no entendimento do CEL. Trazer à luz a parcela de seu repertório que lhe é particular alimenta novas hipóteses de interesse tanto etnoecológico quanto antropológico sobre seu processo de aquisição individual.

Conhecimento Ecológico Local; Etnoecologia; Etnozoologia; Quilombolas; Vertebrados


El conocimiento ecológico local (CEL) ha sido abordado en sus dimensiones cognitivas, históricas, y de interfaz con la ciencia. Para una mayor comprensión del potencial presente en los estudios sobre el CEL es imprescindible una perspectiva más integral de los marcos teóricos que conceptuaron la historia de las etnociencias. El presente artículo expone una síntesis de los debates centrales en la etnobiología y de sus desdoblamientos en líneas de investigación desarrolladas y también incipientes, sobre todo en Brasil. Las transformaciones en el CEL y las comparaciones de este con el conocimiento científico también son abordadas aquí. Además, se desarrolla el argumento de que, más que en las similitudes, es en las divergencias entre estos sistemas de conocimiento donde reside el mayor potencial para profundizar en la comprensión del CEL. Revelar la parte de su repertorio que le es particular sustenta nuevas hipótesis de interés antropológico sobre su construcción.

Conocimiento Ecológico Local; Etnoecología; Etnozoología; Quilombolas; Vertebrados


Ethnoecology has approached local ecological knowledge (LEK) based on its cognitive and historical aspects, and regarding its interfaces with science. However, a comprehensive understanding of the potential in LEK studies also relies entirely on the awareness of the academic background that have formed the ethnosciences and, particularly, the ethnobiology throughout the 20th century. Focusing on it, this paper brings a synthesis of the central debates in ethnobiology history, and discusses its influences on current and incipient research venues, especially in Brazil. Topics about inter-generational changes in LEK repertory and the comparisons between LEK and science are also discussed herein. This article highlights mainly that the divergences between LEK and science can be more informative for a comprehensive understanding of LEK than the convergences. I addition, it is argued that bringing to the light the singular repertory of LEK can better support new anthropological insights about its acquisition.

Local Ecological Knowledge; Ethnoecology; Ethnozoology; Quilombolas; Vertebrates


Introdução

O conhecimento ecológico local (CEL), também denominado de conhecimento ecológico indígena (CEI) ou conhecimento ecológico tradicional (CET), pode ser definido como um conjunto de conhecimentos sobre as relações entre as espécies e destas com o ambiente (CONKLIN, 1961CONKLIN, H.C. An ethnoecological approach to shifting agriculture. Transactions of the New York Academy of Sciences, v.17, p. 133-142, 1954.; TOLEDO, 1992TOLEDO, V. What is Ethnoecology? Origins, Scope, and Implications of a Rising Discipline. Etnologica, v.1, n. 1, p. 5-21, 1992., 2002; MARTIN, 1995MARTIN, G. Ethnobotany: A Methods Manual. London: Chapman & Hall, 1995.; GRAGSON e BLOUNT, 1999GRAGSON, T.L.; BLOUNT, B.G. Introduction. In: GRAGSON, T.L.; BLOUNT, B.G. Ethnoecology: knowledge, resources and rights. Athens: The University of Georgia Press, 1999, p. vii - xviii.; NAZAREA, 1999NAZAREA, V.D. A view from a point: Ethnoecology as situated Knowledge. In: _______. Ethnoecology: Situated knowledge/located lives. Tucson: The University of Arizona Press, 1999, p. 4-20., 2006; MORAN, 2000MORAN, E.F.; BRONDIZIO, E.S.; TUCKER, J.M.; SILVAFORSBERG, M.C.; MC-CRACKEN, S.; FALESI, I. Effects of soil fertility and land use on forest succession in Amazonia. Forest Ecology and Management, v.139, n. 1-3, p. 93-108, 2000.; HUNN, 2007HUNN, E.S. The utilitarian factor in folk biological classification. American Anthropologist, v.84, p. 830-847, 1982.). O CEL também pode ser compreendido como o conjunto de repertórios de uma dada população sobre as condições ecológicas do meio em que vivem e suas diferentes implicações práticas (STURTEVANT, 1964STURTEVANT, W.C. Studies in Ethnoscience. American Anthropologist, v.66, n. 3, p. 99-131, 1964.; JOHNSON, 1974JOHNSON, A. Ethnoecology and Planting Practices in a Swidden Agricultural System. American Ethnologist, v.1, n.1, p. 87-101, 1974.), podendo ser compartilhado extensa ou apenas parcialmente pelos seus integrantes (D'ANDRADE, 1981D'ANDRADE, R.G. The Cultural Part of Cognition. Cognitive Science, v.5, p. 179195, 1981.; ROMMEY et al., 1986; AUNGER, 1999AUNGER, R. Against Idealism/Contra Consensus. Current Anthropology, v.40, p. 93-101, 1999.; REYES-GARCÍA et al., 2003REYES-GARCÍA, V.; GODOY, R.; VADEZ, V.; APAZA, L.; BYRON, E.; HUANCA, T.; LEONARD, W., et al. Ethnobotanical Knowledge Shared Widely Among Tsimane' Amerindians, Bolivia. Science, v.299, p. 1707, 2003.; ROCHA, 2005ROCHA, J.M. Measuring traditional agro-ecological knowledge: an example from peasants in the Peruvian Andes. Field Methods, v.17, p. 356-372, 2005.). Para uma revisão crítica do conjunto de definições presentes na literatura ver Davis e Ruddle (2010)DAVIS, A.; RUDDLE, K. Constructing confidence : rational skepticism and systematic enquiry in local ecological knowledge research. Ecological Applications, v.20, n.3, p. 880-894, 2010..

O conceito de CEL é mais associado à área da etnoecologia (GRAGSON e BLOUNT, 1999; NAZAREA, 1999; ALVES et al. 2010ALVES, A.G.C.; SOUTO, F.J.B.; PERONI, N. Etnoecologia em perspectiva: natureza, cultura e conservação. Recife: NUPEEA, 2010.), que compõe com outras áreas específicas, como a da etnobotânica (MINNIS, 2000MINNIS, P.E. Introduction. In: MINNIS, P.E. Ethnobotany. Norman: University of Oklahoma Press, 2000, p. 03-10.; NOLAN e TURNER, 2011NOLAN, J.M.; TURNER, N.J. Ethnobotany: The Study of People-Plant Relationships. In: ANDERSON, E.N.; PEARSALL, D.M.; HUNN, E.S.; TURNER, N.J. Ethnobiology. Hoboken: John Wiley & Sons, 2011, p. 133-147.) e da etnozoologia (ALVES e SOUTO, 2011ALVES, R.R.N.; SOUTO, W.M.S. Ethnozoology in Brazil: current status and perspectives. Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine, v.7, n.1, p. 7-22, 2011.; HUNN, 2011), o campo mais abrangente da etnobiologia (STEPP et al., 2002STEPP, J.; WYNDHAN, F.S.; ZARGER, R.K. Ethnobiology and Biocultural Diversity. Athens: The University of Georgia Press, 2002.; ELLEN, 2006ELLEN, R. The cultural relations of classification. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.; ANDERSON, 2011ANDERSON, E.N. Ethnobiology: Overview of a Growing Field. In: ANDERSON, E.N.; PEARSALL, D.M.; HUNN, E.S.; TURNER, N.J. Ethnobiology. Hoboken: John Wiley & Sons, 2011, p. 01-14.). As etnociências de modo geral abrangem um conjunto de subdisciplinas que têm em comum o estudo dos sistemas locais de conhecimento e processos cognitivos (CONKLIN, 1954; GOODENOUGH, 1956GOODENOUGH, W.H. Componential Analysis and the Study of Meaning. Language, v.32, n.1, p. 195-216, 1956.; FRAKE, 1962FRAKE, C. Cultural Ecology. American Anthropologist, v.64, p. 53-59,1962.; STURTEVANT, 1964).

Na literatura, a etnobiologia aparece mais associada aos estudos focados nos sistemas locais de classificação das espécies biológicas (STEPP et al., 2002; ELLEN, 2006; ANDERSON, 2011). Já a abordagem da etnoecologia, tem sido apresentada como os modos locais de compreensão das relações entre os humanos e o seu meio natural, incluindo outros aspectos ecológicos, além das espécies em si, tais como o solo, o clima, as comunidades ecológicas, entre outros elementos do ambiente (TOLEDO, 1992; HUNN, 2007).

Não obstante as diferenças entre as especialidades da etnobiologia, na prática as mesmas compartilham grande parte de seus principais temas de interesse, como a compreensão dos sistemas locais de conhecimento do mundo natural a partir: da identificação de suas bases universais (BERLIN, 1973BERLIN, B. Folk systematics in relation to biological classification and nomenclature. Annual Review of Ecology and Systematics, v.4, p. 259-271, 1973., 1992); da sua dimensão adaptativa (HUNN, 1982, 2007); do papel das crenças e das práticas sociais na sua constituição (ELLEN, 1993), de seus desdobramentos nas práticas humanas (STURTEVANT, 1964; JOHNSON, 1974), e de suas similaridades e divergências em relação ao conhecimento científico normativo (BERLIN, 1973, 1992; HUNN, 2006).

Outros temas comuns aos estudos etnobiológicos em geral são as formas de transmissão (D'ANDRADE, 1981; OHMAGARI e BERKES, 1997OHMAGARI, K.; BERKES, F. Transmission of Indigenous Knowledge and Bush Skills Among the Western James Bay Cree Women of Subarctic Canada. Human Ecology, v.25, n. 2, p. 197-222, 1997.; ROSS, 2002ROSS, N. Cognitive Aspects of Intergenerational Change: Mental Models, Cultural Change, and Environmental Behavior among the Lacandon Maya of Southern Mexico. Human Organization, v.61, n.2, p. 125-138, 2002a.a; ROSS e REVILLA-MINAYA, 2011), e de distribuição (GARRO, 1986GARRO, C. Intracultural Variation in Folk Medical Knowledge: A Comparison Between Curers and Noncurers. American Anthropologist, v.88, p. 351-370, 1986.; BOSTER, 1986BOSTER, J.S. Exchange of Varieties and Information Between Aguaruna Manioc Cultivators. American Anthropologist, v.88, p. 428-436, 1986.; ROMNEY e MOORE, 1998ROMNEY, A.K.; WELLER, S.C.; BATCHELDER, W.H. Culture as Consensus: A Theory of Culture and Informant Accuracy. American Anthropologist, v.88, n. 2, p. 313-338, 1986.; REYES-GARCÍA et al., 2003, 2007a) do conhecimento local numa dada sociedade, e de suas transformações frente às mudanças históricas vivenciadas por populações locais/rurais (ZENT, 1999ZENT, S. Behavioral orientations toward ethnobotanical quantification. In: ALEXIADES, M.N. Selected Guidelines for Ethnobotanical Research: A Field Manual. New York: The New York Botanical Garden, 1996, p. 199-239.; HUNN, 1999; BENZ e WORTH, 2000BENZ, B.F.; WORTH, F. Losing Knowledge About Plant Use in the Sierra de Manantlan Biosphere Reserve, Mexico. Economic Botany, v.54, n. 2, p. 183-191, 2000.; ROSS, 2002b; ELLEN, 2006; REYES-GARCÍA et al., 2007b).

Neste artigo, analisaremos de forma abrangente os marcos teóricos e os debates centrais na etnobiologia, bem como seus desdobramentos em linhas de pesquisa correntes e incipientes, sobretudo no Brasil. Adicionalmente, com vistas à importância da identificação das singularidades presentes nos diferentes regimes de conhecimento, daremos atenção especial à análise das abordagens comparativas entre o CEL e o conhecimento científico, com ênfase nos estudos com vertebrados. Por fim, a título de exemplificação, apresentaremos um estudo de caso sobre o tema, realizado entre populações quilombolas do Vale do Ribeira (SP, Brasil).

Marcos teóricos e debates centrais na etnobiologia

Como um campo interdisciplinar, a etnobiologia sempre estabeleceu relações com disciplinas de diversas áreas, como a biologia, a antropologia, a etnologia e a economia. Entretanto, durante algum tempo essa relação não foi entendida como simétrica, e a etnobiologia parecia figurar mais como uma disciplina periférica, que apenas se apropriava de métodos e teorias oriundas de outras áreas (ELLEN, 2006). Mais recentemente, entretanto, observa-se cada vez mais a importância da abordagem etnobiológica em outros campos do conhecimento e programas de pesquisa, como na ecologia, biologia da conservação, ecologia política, antropologia cognitiva, antropologia ambiental, entre outros (STEPP et al., 2002; ANDERSON, 2011).

Com relação ao seu desenvolvimento, dois momentos principais, ou níveis de investigação podem ser identificados no campo da etnobiologia (CLÉMENT, 1998CLÉMENT, D. The historical foundations of ethnobiology. Journal of Ethnobiology, v.18, n.2, p. 161-187, 1998.; ELLEN, 2006). Sua fase inicial pode ser caracterizada, principalmente, por estudos voltados à determinação do potencial econômico das espécies biológicas conhecidas e utilizadas por populações locais, em geral em contextos indígenas. Hunn (2007), por exemplo sustenta que esta primeira fase teria se iniciado ainda no século XVI, com os primeiros viajantes e exploradores europeus no Novo Mundo, e se estendido até meados do século XX. De modo geral, com esta abordagem se produziam listagens de nomes e usos de plantas e animais por parte das populações estudadas. Nesse sentido, pode-se dizer que até a primeira metade do século XX, a maioria dos estudos em etnobiologia foi orientada a partir de uma perspectiva utilitarista de uso dos recursos naturais.

Já a segunda fase da disciplina tem sido identificada a partir dos estudos de Harold Conklin (1954; 1961), Ward Goodenough (1956) e Willian Sturtevant (1964). O aspecto inédito da contribuição desses autores foi a adoção e fortalecimento da abordagem êmica nas etnociências. Consequentemente, uma maior valorização do conhecimento local e a crítica à suposta superioridade universal da ciência ocidental em relação aos sistemas locais de conhecimento passaram a ser cada vez mais comuns (FORD, 2011FORD, R.I. History of Ethnobiology. In: ANDERSON, E.N.; PEARSALL, D.M.; HUNN, E.S.; TURNER, N.J. Ethnobiology. Hoboken: John Wiley & Sons, 2011, p. 15 - 26.). A partir desse ponto de conversão, ao longo da segunda metade do século XX os estudos em etnobiologia se concentraram no entendimento da conceituação e classificação humanas do mundo natural (NAZAREA, 1999; ELLEN, 2006).

Durante este período, duas abordagens centralizavam as discussões em torno do mecanismo pelo qual os sistemas de classificação se estruturam: as correntes teóricas "ideacionista" e "funcionalista" (HAYS, 1982HAYS, T.E. Utilitarian/adaptationist explanations of folk biological classification: some cautionary notes. Journal of Ethnobiology, v.2, p. 89-94, 1982.). A abordagem dita "ideacionista" esteve mais associada a elucidação das bases cognitivas universais da percepção e classificação humanas do ambiente. Esta assumiu que a complexidade envolvida nos processos de identificação e classificação da natureza independia das dimensões materiais (de subsistência) da vida humana (LÉVI-STRAUSS, 1966; BERLIN, 1973, 1992).

Brent Berlin e seu grupo (BERLIN, 1973, 1974, 1992) defenderam a ideia de que as descontinuidades presentes na natureza como, por exemplo, as diferenças entre as espécies, se mostram de maneira tão evidente aos humanos que dificilmente não seriam percebidas como tais pelas pessoas em diferentes culturas. Sem teorizar sobre modelos de pensamento humano como o fez Lévi-Strauss, Berlin (1974) considerou os sistemas locais de classificação como sistemas prototaxonômicos, desenvolvidos principalmente a partir da simples distinção morfológica existente entre as espécies. Destaca-se também a contribuição para o entendimento de universais humanos oriunda dos estudos em antropologia cognitiva (ATRAN 1998ATRAN, S. Folk biology and the anthropology of science: cognitive universals and cultural particulars. The Behavioral and Brain Sciences, v.21, n.4, p. 547-69, 1998.; ROSS e REVILIA-MINAYA, 2011), e aqueles envolvendo as bases biológicas/evolutivas do pensamento humano (MITHEN, 2006MITHEN, S. Ethnobiology and the evolution of the human mind. Journal of the Royal Anthropological Institute, v.12, n.1, p. 45-61, 2006.).

Por outro lado, a corrente dita "funcionalista" investigou principalmente a maneira como as relações materiais humanas com o ambiente moldariam o conhecimento etnobiológico (HUNN, 1982). Isto implicaria em dizer que os sistemas de classificação locais deveriam ser compreendidos principalmente como produtos de processos ligados à sobrevivência humana. Vale mencionar que o célebre artigo The Utilitarian Factor in Folk Biological Classification, de Eugene Hunn (1982), parece refletir em parte movimentos mais amplos de fortalecimento das abordagens funcionalista/adaptacionista e adaptacionista/ evolucionista na antropologia das décadas de 1960 e 1970.

No primeiro caso, representado pela antropologia ecológica ecossistêmica de Roy Rapapport e Andrew Vayda (RAPPAPORT, 1984VAYDA, A.P.; RAPPAPORT, R.A. Ecology, Cultural and Non-Cultural. In: CLIFTON, J.A. Introduction to Cultural Anthropology. Boston: Houghton Mifflin, 1968, p. 476-98. [1967]; VAYDA e RAPPAPORT 1968VAYDA, A.P.; RAPPAPORT, R.A. Ecology, Cultural and Non-Cultural. In: CLIFTON, J.A. Introduction to Cultural Anthropology. Boston: Houghton Mifflin, 1968, p. 476-98.), e no segundo, pelo Materialismo Cultural de Marvin Harris (HARRIS, 1979HARRIS, M. Cultural Materialism: The Struggle for a Science of Culture. New York: Random House, 1979.). Nessas tradições acadêmicas, as condições materiais (principalmente ecológicas) e os modos de produção seriam os verdadeiros motores do comportamento e do pensamento humano, bem como dos padrões culturais vigentes.

Para além dessa polarização entre as duas correntes acima apresentadas, outros autores no entanto acreditam que tais paradigmas refletiam apenas abordagens teóricas focadas em diferentes níveis de operação dos sistemas cognitivos humanos (BOSTER, 1986; NAZAREA 1999), uma direcionada aos padrões universais de classificação (LÉVI-STRAUSS, 1966; BERLIN, 1973, 1992) e a outra no modo como a dimensão material da vida humana moldaria (mas não determinaria) os sistemas locais de conhecimento e classificação da natureza (HUNN, 1982). Nesse sentido, gradualmente essas duas explicações passaram a ser consideradas cada vez mais como modelos de funcionamento cognitivo que poderiam operar de maneira simultânea e complementar no modo como as pessoas apreendem os elementos do mundo natural (BOSTER, 1986; NAZAREA, 1999; MORRIS, 2000MORRIS, B. The Pragmatics of Folk Classification. In: MINNIS, P.E. Ethnobotany. Norman: University of Oklahoma Press, 2000, p.69-87.; TURNER, 2000TURNER, N.J. "The importance of a rose": Evaluating the cultural significance of plants in Thompson and Lillooet Interior Salish. American Anthropologist, v.90, p. 272-290, 1988.).

Paralela a essa discussão, ainda tem sido proposto a dissolução da dicotomia natureza/cultura, com desdobramentos importantes para o entendimento dos processos de percepção humana do ambiente. A principal consequência destas ideias é a crescente aceitação da premissa de que a percepção do ambiente - bem como os sistemas de classificação originados neste processo - não pode ser compreendida exclusivamente sob um viés materialista ou ideacionista apenas, mas sim como o resultado de formas de engajamento das pessoas em suas atividades cotidianas (INGOLD, 1996INGOLD, T. Hunting and gathering as ways of perceiving the environment. In ELLEN, R.F.; FUKUI, K. Redefining nature: ecology, culture and domestication. London: Berg, 1996, p. 117-155., 2000a,b), bem como de processos de socialização humana da natureza (DESCOLA e PÁLSSON, 1996DESCOLA, P.; PÁLSSON, G. Introduction. In: DESCOLA, P.; PÁLSSON, G. Nature and Society: Anthropological Perspectives. London and New York: Routledge, 1996, p. 1-21.; DESCOLA 1998; VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, E. 2002. Perspectivismo e multinaturalismo na América Indígena. In: VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002, p. 345-400.).

Em síntese, essas discussões em torno dos mecanismos associados ao processo de construção do conhecimento humano sobre o mundo natural parecem ter levado a uma ênfase cada vez maior às condições - materiais (ecologia e modo de produção), sociopolíticas (economia política) e simbólico-cognitivas (formas locais de representação) - nas quais os processos de transmissão (D'ANDRADE, 1981; HEWLETT e CAVALLI-SFORZA, 1986HEWLETT, B.S.; CAVALLI-SFORZA, L.L. Cultural Transmission Among Aka Pygmies. American Anthropologist, v.88, n. 4, p. 922-934, 1986.; OHMAGARI e BERKES, 1997OHMAGARI, K.; BERKES, F. Transmission of Indigenous Knowledge and Bush Skills Among the Western James Bay Cree Women of Subarctic Canada. Human Ecology, v.25, n. 2, p. 197-222, 1997.; ROSS, 2002a; ROSS e REVILLA-MINAYA, 2011) e de distribuição (GARRO, 1986; BOSTER, 1986; ROMNEY e MOORE 1998; REYES-GARCÍA et al., 2007a) do conhecimento estão inseridos.

No rastro dessas contribuições, e considerando que em todo o planeta populações rurais/locais têm passado por transformações econômicas e socioculturais significativas, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, também têm havido um foco cada vez maior dos estudos nas transformações do conhecimento local associadas à esse processo (ZENT, 1999; HUNN, 1999; BENZ e WORTH, 2000; ROSS, 2002b; ELLEN, 2006; REYES-GARCÍA et al., 2007b).

Estudos inseridos nessa temática têm constatado que tais transformações históricas em comunidades rurais afetam diferentes dimensões da vida das pessoas, influenciando no modo como estas desenvolvem suas práticas e conhecimentos sobre o ambiente em que vivem (ROSS, 2002a; CRISTANCHO e VINING, 2009CRISTANCHO, S.; VINING, J.P erceived Intergenerational Differences in the Transmission of Traditional Ecological Knowledge (TEK) in Two Indigenous Groups from Colombia and Guatemala. Culture & Psychology, v.15, n.2, p. 229-254, 2009.). Sabe-se, por exemplo, que a integração ou maior envolvimento de comunidades locais ao mercado econômico regional com frequência estão associados à perda do CEL, com exemplos em Honduras (GODOY et al., 1998GODOY, R.; REYES-GARCÍA, V.; BROESCH, J.; FITZPATRICK, I.C.; GIOVANNINI, P.; RODRÍIGUEZ, M.; HUANCA, T., et al. Long-Term (Secular) Change of Ethnobotanical Knowledge of Useful Plants: Separating Cohort and Age Effects. Journal of Anthropological Research, v.65, p. 51-67, 2009.), na Bolívia (GODOY et al., 2009), no México (ROSS, 2002b), no Equador (LU, 2007LU, F. Integration into the market among indigenous peoples: A cross-cultural perspective from the Ecuadorian Amazon. Current Anthropology, v.48, p. 593-602, 2007.), e na Espanha (GÓMEZ-BAGGETHUN et al., 2010GÓMEZ-BAGGETHUN, E.G.; MINGORR, S.; REYES-GARCÍA, V.; CALVET, L. Traditional Ecological Knowledge Trends in the Transition to a Market Economy : Empirical Study in the Do nana Abstract. Conservation Biology, v.24, n.3, p. 721-729, 2010.).

O estabelecimento de escolas rurais com programas educacionais alheios aos costumes e valores das comunidades locais também tem sido identificado como outro fator que deflagra ou acelera o processo de perda do CEL ou, pelo menos, de sua profunda transformação (BONSI, 1980_______. Further notes on Covert categories and Folk Taxonomies. American Anthropologist, v.76, p. 327-331, 1974.; GODOY, 1994; OHMAGARI e BERKES, 1997; ZENT, 1999; BENZ e WORTH, 2000; WILBERT, 2002WILBERT, W. The Transfer of Traditional Phytomedical Knowledge among the Warao of Northeastern Venezuela. In: STEPP, J.R.; WYNDHAM, F.S.; ZARGER, R. K. Ethnobiology and Biocultural Diversity. Athens: University of Georgia Press, 2002, p. 336-350.; CRISTANCHO e VINING, 2009; REYES-GARCÍA et al., 2010). Nesse processo, o papel massificador de programas televisivos produzidos em grandes centros urbanos (STENBAEK, 1987STENBAEK, M. The Inuit Years of Cultural Change among Forty Some Reflections in Alaska, Canada and Greenland. Arctic, v.40, n. 4, p. 300-309, 1987.; OHMAGARI e BERKES, 1997), e a migração de jovens para a cidade (BONSI, 1980) também são apontados como fatores que aceleram sobremaneira tais processos.

Nesse sentido, não obstante a constatação de casos de manutenção do CEL (ZARGER e STEPP, 2004ZARGER, R.K.; STEPP, J.R. Persistence of botanical knowledge among Tzeltal Maya children. Current Anthropology, v.45, n.3, p. 413-418, 2004.), e até de seu incremento (GUEST, 2002GUEST, G. Market Integration and the Distribution of Ecological Knowledge within an Ecuadorian Fishing Community. Journal of Ecological Anthropology, v.6, p. 38-49, 2002.; GODOY et al., 2009; AHMED et al., 2010AHMED, S.; STEPP, J.R.; TOLENO, R.A.J.; PETERS, C.M. Increased Market Integration, Value, and Ecological Knowledge of Tea Agroforests in the Akha Highlands of Southwest China. Ecology And Society, v.15, n.4, 2010. [online] URL: http://www. ecologyandsociety.org/vol
http://www. ecologyandsociety.org/vol...
; FURUSAWA, 2009FURUSAWA, T. Changing Ethnobotanical Knowledge of the Roviana People, Solomon Islands: Quantitative Approaches to its Correlation with Modernization. Human Ecology, v. 37, n.2, p. 147-159, 2009.) nas gerações mais novas, o padrão geral que tem emergido dos estudos nessa temática aponta que as transformações das últimas décadas vivenciadas pelas populações locais estão fortemente associadas à perda de parte do repertório desses sistemas, em diferentes regiões do mundo.

Diante desse cenário de mudança, a elucidação dos mecanismos pelos quais o conhecimento local é gerado e transmitido a novas gerações, bem como das condições e dos fatores que impulsionam ou inibem a sua manutenção, passou a ser cada vez mais premente (HEWLETT e CAVALLI-SFORZA, 1986; OHMAGARI e BERKES, 1997; WILBERT, 2002; ZARGER, 2002; CRISTANCHO e VINING, 2009; ATRAN e MEDIN, 2010).

No Brasil, entretanto, a temática das transformações do CEL ainda não tem sido abordada, a despeito das significativas mudanças econômicas e socioculturais pelas quais suas populações rurais/locais também têm passado, incluindo exemplos documentados entre comunidades indígenas (GROSS et al., 1979GROSS, D.R.; EITEN, G.; FLOWERS, N.M.; LEOI, F.M.; RITTER, L.; WERNER, D.W.; RITTER, M.L. Ecology and Acculturation Among Native Peoples of Central Brazil. Science, v.206, n.4422, p. 1043-1050, 1979.; FORLINE, 1997FORLINE, L.C. The persistence and cultural transformation of the Awá-Guajá Indians: foragers of Maranhão state, Brazil. Doctoral Dissertation in Philosophy. Gainesville: Department of Anthropology: University of Florida, 1997.; COIMBRA JR. et al., 2002COIMBRA Jr., C.E.A.; FLOWERS, N.M.; SALZANO, F.M.; SANTOS, R.V. The Xavánte in Transition. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 2002., PRADO et al., 2012PRADO, H.M. O conhecimento de agricultores quiLombolas sobre forrageio e uso de habitat por mamíferos de grande porte na Mata Atlântica: evidenciando a centralidade dos ambientes antropogênicos na constituição do etnoconhecimento (Vale do Ribeira, SP, Brasil). Tese de Doutorado, Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo, 2012.), caboclas (MURRIETA 1998MURRIETA, R.S.S. O dilema do papa-chibé: consumo alimentar, nutrição e práticas de intervenção na ilha de Ituqui, Baixo Amazonas, Pará. Revista de Antropologia, v.41, n. 1, p. 97-145, 1998.,2001; BRONDIZIO, 2008BRONDIZIO, E.S. The Amazonian Caboclo and Açaí Palm: Forest Farmers in the Gobal Market. New York: The New York Botanical Garden Press, 2008.; ADAMS et al., 2009ADAMS, C. As populações caiçaras e o mito do bom selvagem: a necessidade de uma nova abordagem interdisciplinar. Revista de Antropologia, v.43, n.1, p. 145-182, 2000.), caiçaras (ADAMS, 2000; HANAZAKI e BEGOSSI, 2003BEGOSSI, A.; SILVANO, R.A. Ecology and ethnoecology of dusky grouper [garoupa, Epinephelus marginatus (Lowe, 1834)] along the coast of Brazil. Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine, v.4, n.20, p. 1-14, 2008.; SANCHES, 2004SANCHES, R.A. Caiçaras e a Estação Ecológica de Juréia-Itatins: Litoral Sul de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2004.) e quilombolas (PENNA-FIRME e BRONDIZIO, 2007PENNA-FIRME, R.; BRONDÍZIO, E. The risks of commodifying poverty: rural communities, quilombola identity, and nature conservation in Brazil. Habitus, v.5, n. 2, p. 355- 373, 2007.; PENNA-FIRME, 2012; ADAMS et al., 2013).

Nesse sentido, pode-se considerar que o meio rural brasileiro ainda configura-se como um contexto socioambiental com alto potencial para a investigação etnoecológica no campo das transformações no CEL - bem como de suas temáticas relacionadas (i.e distribuição e formas de transmissão do CEL). Assim, o desenvolvimento dessa linha de pesquisa no Brasil poderá trazer contribuições tanto teóricas quanto empíricas para esta temática central e atual na etnoecologia. A seguir, passaremos à análise da literatura etnoecológica sobre as comparações entre o CEL e a abordagem científica.

Contrastando repertórios locais e ciência normativa

Além dos aspectos acima mencionados, um conjunto de estudos desenvolvidos nas últimas duas décadas também tem contribuído para um maior entendimento das características centrais dos sistemas locais de conhecimento e de suas potenciais formas de interação com o conhecimento científico normativo, tanto no âmbito teórico (AGRAWAL, 1995AGRAWAL, A. Dismantling the divide between indigenous and scientific knowledge. Development and Change, v.26, p. 413-439, 1995.; HUNN, 2006; DAVIS e RUDDLE, 2010), como no das práticas de conservação e de manejo dos recursos naturais (POSEY et al., 1984POSEY, D.A.; FRECHIONE, J.; EDDINS, J.; SILVA, L.F.; MYERS, D.; CASE, D.; MACBEATH, P. Ethnoecology as applied anthropology in Amazonian development. Human Organization, v.43, n. 2, p. 95-107, 1984.; PRANCE et al., 1987PRANCE, G.T.; BALÉE, W.; BOOM, B.M.; CARNEIRE, R.L. Quantitative ethnobotany and the case for conservation in Amazonia. Conservation Biology, v.1, n. 4, p. 296-310, 1987.; MACKINSON e NOTTESTAD, 1998MACKINSON, S. Integrating Local and Scientific Knowledge: An Example in Fisheries Science. Environmental Management, v.27, n.4, p. 533-545, 2001.; BERKES et al., 2000; BECKER e GHIMIRE, 2003BECKER, C. D.; GHIMIRE, K. Synergy between traditional ecological knowledge and conservation science supports forest preservation in Ecuador. Conservation Ecology, v.8, n.1, 2003. [online] URL: http://www.consecol.org/vol8/ iss1/art1
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; MOLLER et al., 2004MOLLER, H.; BERKES, F.; LYVER, P.O.B.; KISLALIOGLU, M. Combining Science and traditional ecological knowledge: monitoring populations for co-management. Ecology And Society, v.9, n.3, 2004. [online] URL:http://www.ecologyandsociety.org/vol9/iss3/art2
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; NAZAREA, 2006; DAVIS e RUDDLE, 2010).

De modo geral, os estudos ocupados com a temática das interfaces entre CEL e conhecimento científico têm salientado o potencial de complementaridade e convergência entre os dois tipos de conhecimento, além de singularidades na forma de apreensão e no conteúdo presente em cada um deles. Aqui, esta abordagem comparativa entre os dois tipos de conhecimento será discutida à luz dos estudos etnoecológicos que tomam como objeto de estudo a fauna de vertebrados.

Em geral, os estudos que contrastam explicitamente o CEL e as pesquisas ecológicas sobre vertebrados têm focado nas temáticas sobre padrões de uso do espaço e a abundância das espécies nos diferentes habitats e ao longo do tempo. Aves (HUNTINGTON 2004HUNTINGTON, H.P.; et al. Traditional Knowledge of the Ecology of Beluga Whales (Delphinapterus leucas) in the Eastern Chukchi and Northern Bering Seas, Alaska. Arctic, v.52, n. 1, p. 49-61, 1999.a; GILCHRIST et al., 2005GILCHRIST, G.; MALLORY, M.; MERKEL, F. Can Local Ecological Knowledge Contribute to Wildlife Management? Case Studies of Migratory Birds. Ecology And Society, v.10, n.1, 2005. [online] URL: http://www.ecologyandsociety.org.
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; GAGNON e BERTAUX, 2009GAGNON C.A.; BERTEAUX, D. Integrating Traditional Ecological Knowledge and Ecological Science: a Question of Scale. Ecology and Society, v.14, n.2, 2009. [online] URL: http://www.ecologyandsociety.org/vol14/iss2/art19/.
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) e peixes (NEIS et al., 1999NEIS, B.; SCHNEIDER, D.C.; FELT, L.; HAEDRICH, R.L.; FISCHER, J.; HUTCHINGS, J.A. Fisheries assessment: what can be learned from interviewing resource users? Methods, v.56, p. 1949-1963.; ASWANI et al., 2004ASWANI, S.; HAMILTON, R.J. Integrating indigenous ecological knowledge and customary sea tenure with marine and social science for conservation of bumphead parrotfish (Bolbometopon muricatum) in the Roviana Lagoon, Solomon Islands. Environmental Conservation, v.31, n.1, p. 69-83, 2004.; BERGMAN et al., 2004; FRASER et al., 2006FRASER D.J.; COON, T.; PRINCE, M.R.; DION, R.; BERNATCHEZ, L. Integrating Traditional and Evolutionary Knowledge in Biodiversity Conservation: a Population Level Case Study. Ecology and Society, v.11, n.2, 2006. [online] URL: http://www.ecologyandsociety.org/vol11/iss2/art4/
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; BEGOSSI e SILVANO, 2008) têm sido os grupos mais estudados nesse campo de pesquisa. Entre os mamíferos terrestres, apenas o caribu (Rangifer tarandus) (FERGUSON et al., 1998FERGUSON, M.A.D.; WILLIAMSON, R.G.; MESSIER, F. Inuit Knowledge of Long-Term Changes in a Population of Arctic Tundra Caribou. Arctic, v.51, n.3, p. 201-219, 1998.), a raposa do ártico (Vulpes lagopus) (GAGNON e BERTAUX, 2009) e os mamíferos de médio e grande porte na Mata Atlântica brasileira (Vale do Ribeira, SP) (PRADO et al., 2014), têm sido considerados nesses estudos.

As pesquisas nesta área mostram que o CEL oferece informações com maior profundidade temporal, envolvendo oscilações na abundância das espécies, e tende a reconhecer uma maior variedade de habitats usados pelos animais (FERGUSON et al., 1998; NEIS et al., 1999; LYVER, 2002LYVER, P. O'B. Use of Traditional Knowledge by Rakiura Maori to Guide Sooty Shearwater Harvests. Wildlife Society Bulletin, v.30, n.1, p. 29-40, 2002.; MOLLER et al., 2004; GILCHRIST et al., 2005; FRASER et al., 2006; GAGNON e BERTAUX, 2009). Por outro lado, os estudos ecológicos podem complementar o CEL ao acessar informações em âmbito regional de ocorrência das espécies (FERGUSON et al., 1998; HUNTINGTON, 2004a; MACKINSON, 2001; ASWANI et al., 2004; BERGMAN et al., 2004; FRASER et al., 2006; BEGOSSI e SILVANO, 2008; GAGNON e BERTAUX, 2009). Observa-se neste caso, o caráter da complementaridade entre os dois sistemas de conhecimento.

Já as convergências e as divergências entre o CEL e o conhecimento científico apenas podem ser identificadas quando os mesmos são comparados sistematicamente numa mesma escala observacional (nas mesmas unidades paisagísticas ou nos mesmos habitats, por exemplo), o que é ainda muito incipiente na literatura etnoecológica sobre fauna (HUNTINGTON et al., 1999; HUNTINGTON et al., 2004b; GAGNON e BERTAUX, 2009; HIBERT et al., 2011HIBERT, F.; SABATIER, D.; ANDRIVOT, J.; SCOTTI-SAINTAGNE, C.; GONZALEZ, S.; CARON, H. Botany, Genetics and Ethnobotany : A Crossed Investigation on the Elusive Tapir 's Diet in French Guiana. PLoS ONE, v.6, n. 10, 2011: e25850.doi:10.1371/journal.pone.0025850
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, PRADO et al., 2014). Vale mencionar que, do ponto de vista das ciências naturais, a identificação de convergências entre os dois sistemas de conhecimento configura-se, principalmente, como uma forma de validação dos conhecimentos locais pela ciência. Lógica esta que também permeia, ainda que não expressamente, muitos dos estudos etnoecológicos de caráter comparativo em relação ao sistema científico hegemônico.

Essa forma assimétrica de abordar os diferentes regimes de conhecimento apenas reproduz - de forma naturalizada inclusive - a relação de poder que também caracteriza o empreendimento antropológico, assentado fundamentalmente no encontro entre diferentes concepções de mundo. Entretanto, podemos constatar que essa lógica científica de validação do CEL passa ao largo do próprio movimento crítico pós-moderno na antropologia da segunda metade do século XX, em muito sintetizado por Clifford e Marcus (1986)CLIFFORD, J; MARCUS, G.E. Writing Culture. Berkeley: University of California Press, 1986. em Writing Culture. Essa crítica foi direcionada, especialmente, para uma forma de narrativa etnográfica de caráter muito mais ético do que êmico, na qual as epistemologias locais eram negligenciadas pelo uso acrítico de uma lógica ocidental-cientificista de observação e descrição das sociedades (CLIFFORD, 1986; MARCUS, 1986; RABINOW, 1986RABINOW, P. Representations are social facts: modernity and post-modernity in anthropology. In: CLIFFORD, J.; MARCUS, G.E. Writing culture. Berkeley: University of California Press, 1986.).

Interessantemente, é possível identificar em estudos etnobiológicos inclusive anteriores a esse grande debate, soluções que parecem responder a essa crítica. Por exemplo, como bem apontado por Hunn (2006), Birds of my Kalam country, de Ian Saem Majnep (integrante da etnia karam das terras altas da Nova Guiné) e o etnobiólogo Ralph Bulmer (MAJNEP e BULMER, 1977MAJNEP, I.S.; BULMER, R.N.H. Birds of my Kalam country. Oxford: University Press, 1977.), é um caso paradigmático de colaboração entre os regimes local e ocidental de conhecimento. Nela, as falas de Majnep sobre o mundo das aves, traduzidas e transcritas por Bulmer, são reproduzidas na íntegra, ao lado de trechos de autoria do próprio Bulmer, as quais trazem sua visão ocidental (científica) da avifauna da regiãoi.

No entanto, considerando o cenário ainda prevalente de assimetria nas comparações entre conhecimento científico e local, não é de se surpreender que, ao delegar à ciência ocidental o papel de validar os conhecimentos locais, tais abordagens tendam a realçar os seus aspectos convergentes em detrimento daquilo que os faz distintos. Não obstante, se se tem como principal escopo de estudo a compreensão do CEL em sua completude - objetivo central da etnobiologia moderna -, faz-se necessário também promover, durante a pesquisa, condições para que as singularidades do CEL possam ser reveladas, e, então, analisadas com o mesmo afinco que se tem dedicado às similaridades presentes. A título de exemplificação, a seguir, daremos continuidade a este argumento apresentando brevemente um de nossos estudos de caso sobre o tema.

Revelando singularidades no CEL quilombola (Vale do Ribeira, SP, Brasil)

O estudo que passa a ser descrito foi realizado no âmbito da pesquisa de doutorado de um dos autores (PRADO, 2012), na qual o conhecimento de quilombolas do Vale do Ribeira (SP, Brasil) sobre dieta e uso de habitats por grandes mamíferos silvestres foi sistematicamente contrastado com o conhecimento científico sobre o tema. A pesquisa foi desenvolvida nas comunidades remanescentes de quilombos São Pedro, Pedro Cubas e Pedro Cubas de Cima, localizadas na região do médio rio Ribeira (SANTOS e TATTO, 2008SANTOS, K. M. S.; TATTO, N. Agenda socioambiental de comunidades quilombolas do Vale do Ribeira. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2008.).

Vale salientar que a paisagem na qual tais comunidades estão inseridas é em parte antropogênica, e reflete principalmente a agricultura itinerante de corte e queima praticada na região há pelo menos 200 anos por tais populações (PEDROSO-JÚNIOR et al., 2008PEDROSO-JÚNIOR, N. N.; MURRIETA, R. S. S.; TAQUEDA, C. S.; NAVASINAS, N. D.; RUIVO, A.; BERNARDO, D. V.; NEVES, W.A. A Casa e a Roça: Socioeconomia, demografia e Agricultura em Populações Quilombolas do Vale do Ribeira, São Paulo, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas v.3, n. 2, p.227-252, 2008.; ADAMS et al., 2013). Assim, além das roças em uso (MUNARI, 2009MUNARI, L.I. Memória social e ecologia histórica: a agricultura de coivara das populações quilombolas do vale do Ribeira e sua relação com a formação da mata atlântica local. Dissertação de Mestrado, Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo, 2009.) e dos quintais e seu entorno (TAQUEDA, 2009TAQUEDA, C. S. A etnoecologia dos jardins-quintal e seu papel no sistema agrícola de populações quilombolas do Vale do Ribeira, São Paulo. Dissertação de Mestrado. Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo, 2009.), observa-se na área duas outras grandes categorias de florestas (ou habitats) na paisagem: (1) um contínuo de matas consideradas maduras, e (2) uma porção mais antropogênica, composta por matas secundárias (antigas e recentes roças abandonadas) em diferentes idades de regeneração (GOMES et al., 2013GOMES, E.P.C.; SUGIYAMA, M.; ADAMS, C.; PRADO, H.M.; OLIVEIRA Jr., C.J.F. A sucessão florestal em roças em pousio: a natureza está fora da lei? Scientia Forestalis (IPEF), v.41, p. 343-352, 2013.).

Inicialmente, a partir de nossa percepção etnográfica de um conhecimento refinado do moradores locais sobre o forrageio de plantas por espécies de grandes mamíferos, e de um repertório científico ainda incipiente sobre o tema (PRADO, 2013), passamos a comparar esses dois regimes de conhecimento buscando identificar uma potencial complementaridade entre eles. Para isto, fizemos um levantamento sistemático na literatura acadêmica sobre a dieta de ungulados presentes na região (veados-Mazama spp., cateto-Pecari tajacu, queixada-Tayassu pecari, e anta-Tapirus terrestris) (PRADO, 2013). Paralelamente, elaboramos um conjunto de entrevistas baseadas no método de listagem livre, as quais foram aplicadas aos moradores locais (QUINLAN, 2005QUINLAN, M. Considerations for Collecting Freelists in the Field: Examples from Ethnobotany. Field Methods, v.17, p. 219-234, 2005.).

Durante a compilação dos dados etnoecológicos sobre dieta da fauna, foi notada, na fala dos entrevistados, uma alta prevalência de plantas típicas dos ambientes antropogênicos, notadamente das roças, dos quintais e das matas secundárias (antigas roças em pousio). Esse foi o caso, por exemplo, de plantas como a mandioca (Manihot esculenta Crantz), o milho (Zea mays L. subsp mays L.), o feijão (Phaseolus vulgaris L.), a embaúba (Cecropia pachystachya Trécul), e a palmeira juçara (Euterpe edulis Mart.) (PRADO et al., 2013).

Este de fato foi um aspecto interessante do CEL analisado, já que as áreas cultivadas em forma de quintais e roças ocupam menos que 5% dos territórios estudados, as matas secundárias entre 4-13% (a depender da comunidade em questão), e as matas maduras em torno de 80-90% (dados de 2007; SANTOS e TATTO, 2008). Nesse sentido, foi possível aventar que o CEL estudado não refletia o forrageio das espécies na paisagem como um todo, mas sim uma visão parcial dos moradores locais sobre os hábitos alimentares dos animais em unidades paisagísticas específicas (PRADO et al., 2013). A partir daquele momento, passamos então a trabalhar com a hipótese de que, historicamente, a prática agrícola local teve um papel central na determinação de uma certa vivência dos moradores na paisagem - a ponto de influir em outros domínios de conhecimento não diretamente atrelados à agricultura, como foi o caso do conhecimento sobre a fauna.

Não obstante, se tal hipótese estivesse correta, era de se esperar também um viés cultural semelhante no que se refere a outros aspectos ecológicos dos mamíferos, como por exemplo a distribuição espacial das espécies na paisagem. Foi o que de fato avaliamos, comparando o CEL com um levantamento in situ de mamíferos de grande porte na paisagem (PRADO et al., 2014). Para tanto, realizamos um registro etnoecológico e ecológico sobre a frequência dos animais nas duas principais categorias ambientais presentes: as matas maduras e das matas secundárias (antropogênicas). Na nossa lógica analítica, um viés cultural para o ambiente antropogênico seria identificado caso os entrevistados indicassem as matas secundárias como principal ambiente para os animais e o registro ecológico in situ das espécies o oposto (ou simplesmente um uso indiscriminado daqueles dois habitats pelos mamíferos.

O levantamento faunístico foi feito por meio da técnica de armadilhamento fotográfico, a qual consiste na utilização de câmeras fotográficas acopladas a sensores de infravermelho sensíveis a qualquer movimento e aumento de temperatura (PRADO et al., 2014). Foi realizado um registro padronizado em campo, selecionando-se na paisagem 30 pontos de amostragem em mata madura e outras 30 no contexto das matas secundárias, ao longo de 18 meses de registros (entre os anos de 2009 e 2011). Para a pesquisa etnoecológica foram elaborados questionários estruturados abordando a presença e o quão frequente seriam os mamíferos nos contextos das matas maduras e das matas secundárias (PRADO et al., 2014). Assim, os mesmos tipos de ambientes selecionados para o registro ecológico das espécies in situ foram abordados nas entrevistas. Como resultado principal, constatamos que, de modo geral, nossa hipótese foi corroborada, já que na visão dos moradores as espécies de mamíferos frequentam muito mais as matas secundárias, enquanto que o nosso levantamento de fauna na área sugeriu que os animais utilizam esses dois ambientes de maneira muito semelhante (sem diferenças significativas estatisticamente) (PRADO et al., 2014).

Assim, com as comparações entre os dois regimes de conhecimento sobre dieta e uso de habitat por grandes mamíferos, pudemos evidenciar uma maior ênfase do CEL na porção mais antropogência da paisagem, o que parece revelar sua dimensão histórica e cultural. Com base no conhecimento atual sobre essas populações foi possível argumentar que, de alguma maneira, o seu modo de vida centrado na agricultura itinerante imprimiu uma vivência tal das pessoas na paisagem que esteve mais associada à tais ambientes. Nesse processo, parecem ter sido definidos os cenários principais nos quais as interações com a fauna e a aquisição de conhecimento sobre a mesma se dariam: o mosaico formado pelas matas secundárias (antigas roças), e os espaços das roças e dos quintais. Enfim, com este estudo de caso reforçamos o argumento a favor do uso da comparação do CEL com o conhecimento científico também como um método analítico visando a identificação de singularidades presentes no CEL. Nesta pesquisa, o CEL esteve no centro da investigação e o conhecimento científico pôde fornecer um contraponto a partir do qual particularidades do CEL foram identificadas.

Considerações finais

Neste artigo, analisamos o estudo do conhecimento ecológico local a partir dos principais marcos teóricos que definem a etnobiologia em geral, e a etnoecologia em particular. Partindo de um interesse meramente utilitarista, passando pela introdução de uma abordagem êmica, e culminando na superação da polarização entre os modelos ideacionista e funcionalista de entendimento do conhecimento local, a pesquisa etnobiológica/ etnoecológica corrente se ocupa, principalmente, das condições - sejam elas materiais, históricas, políticas, simbólicas ou cognitivas - nas quais os processos de aquisição e de transformação do conhecimento estão inseridos. Nesse cenário, observa-se que a temática das transformações do conhecimento frente às mudanças históricas vivenciadas por populações locais/rurais ainda se faz ausente na literatura etnobiológica brasileira, em detrimento do alto potencial que aqui se encontra para estudos nesse campo.

No que se refere às comparações entre o CEL e o conhecimento científico, nos estudos com vertebrados, aspectos convergentes entre os dois sistemas de conhecimento têm sido amplamente registrados. Nota-se também que, explicitamente ou não, tais estudos têm sido orientados por uma lógica de validação do CEL pela ciência. O caráter complementar entre os dois sistemas de conhecimento também tem sido reconhecido, impulsionando assim projetos colaborativos entre pesquisadores e populações locais, sobretudo no que diz respeito ao manejo de fauna em escala local e regional. Por outro lado, as singularidades presentes no CEL têm recebido menor ênfase, e ainda carecem de procedimentos metodológicos rigorosos para serem acessados de forma mais efetiva.

Trazer à luz parte do repertório do CEL que lhe é particular, por sua vez alimenta novas hipóteses sobre a sua construção, que são ao mesmo tempo de interesse etnoecológico e antropológico - assumindo que todo conhecimento deriva, em última instância, da experiência humana no ambiente em suas mais variadas dimensões. Este tipo de desdobramento analítico supradisciplinar mais uma vez nos remete às reflexões de Ellen (2006) e de Atran e Medin (2010), para os quais, mais do que periférica e acessória, a etnobiologia/etnoecologia reúne em seu espectro analítico o potencial de figurar como disciplina chave em vários de seus campos correlatos, como é o caso da antropologia e da biologia.

Agradecimentos

Este artigo é parte da pesquisa de doutorado (08/50952-3) e de pós-doutorado (12/51333-7) de HMP, ambos realizados no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) e financiados pela Fundação e Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Os autores também agradecem ao professor Eduardo Sonnewend Brondizio, do Anthropological Center for Training and Research on Global Environmental Change (ACT), Indiana University, por sua densa contribuição intelectual ao longo do processo que também culminaria neste manuscrito. À professora Cristina Adams, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, por sua contribuição acadêmica ao doutorado de HMP, o qual figurou como estudo de caso para a reflexão teórica e analítica aqui proposta, bem como aos moradores dos bairros de São Pedro, Pedro Cubas e Pedro Cubas de Cima, onde a referida pesquisa foi desenvolvida.

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    para uma análise atual das possibilidades e desafios inerentes ao diálogo entre os diferentes regimes de conhecimento sobre a natureza, no contexto de manejo e governança de ecossistemas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    26 Mar 2014
  • Aceito
    14 Maio 2015
ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
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