Open-access JUSTIFICAÇÕES MIDIÁTICAS: AS ESTRATÉGIAS DE AMBIENTALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO DE ETANOL ATRAVÉS DA PUBLICIDADE

Resumo

O artigo objetiva elucidar as estratégias utilizadas pelo discurso midiático tanto na composição de um imaginário social favorável à fabricação de etanol, quanto na criação de uma imagem ambientalizada da produção. Para tanto analisará peças publicitárias patrocinadas pelo setor sucroalcooleiro e veiculadas nas revistas Veja e Exame, bem como em órgãos de imprensa da União Europeia e dos Estados Unidos. Com base na análise dos anúncios publicados no Brasil e no exterior, busca-se demonstrar como são acionados os significados de preservação da natureza, combate ao aquecimento global, respeito à biodiversidade e produção de energia limpa, que em um cenário de protuberância de uma dada preocupação ambiental são requisitos que passaram a deter visibilidade e importância na agenda de consumidores, empresas e governos. Pretende-se sugerir que o setor tem moldado uma imagem-quimérica da produção de etanol que, ao mesmo tempo, associa-se à ideia de sustentabilidade e nubla a existência de conflitos.

Palavras-chave: Ambientalização da produção; discurso publicitário; conflitos ambientais; etanol

Abstract

This article aims to elucidate the strategies used in media discourses to create a favorable social imaginary of ethanol manufacturing, as well as to promote the environmentalization of production. Based on the analysis of advertisements, we seek to demonstrate how the meanings of nature conservation, combatting global warming, protecting biodiversity and producing clean energy are used. In a scenario of increasing environmental concern these elements have gained visibility and importance for consumers, businesses, governments and legislators. This paper suggests that the industry has produced a chimerical image of ethanol production which associates itself to the idea of sustainability, while obscuring the existence of conflicts.

Keywords: Environmentalization of production; advertising discourse; environment conflicts; ethanol

Resumen

El artículo tiene por objeto aclarar las estrategias utilizadas por el discurso de los medios de comunicación, tanto en la composición de un imaginario favorable a la fabricación de etanol, como en la creación de una imagen ambientalizada de la producción. Así, examinará la publicidad patrocinada por los ingenios de la caña de azúcar ventilados en las revistas Veja y Exame, así como en los órganos de prensa de la Unión Europea y los Estados Unidos. A partir del análisis de los anuncios, se busca demostrar cómo se activan los significados de conservación de la naturaleza, lucha contra el calentamiento global y producción de energía limpia, que en un escenario de preocupación ambiental son requisitos que han pasado a tener visibilidad e importancia para los consumidores, corporaciones, gobiernos y legisladores.

Palabras clave: Ambientalización de la producción; discurso publicitario; conflictos ambientales; etanol

Introdução

A construção de imaginários sociais tem sido uma preocupação da pesquisa sociológica desde seus pais fundadores. Marx sublinhava a importância das ideologias e as funções que desempenhavam nos conflitos de classe; Durkheim demonstrava as relações entre estruturas sociais e representações coletivas no fortalecimento da coesão social; enquanto Weber delineava as funções do imaginário na atribuição de sentidos que orientam os atores na formulação e entendimento da ação social. No rastro da tradição sociológica, serão analisadas peças publicitárias que promovem o uso de "biocombustíveis", veiculadas nas revistas Veja e Exame, bem como em órgãos de imprensa da União Europeia e dos Estados Unidos. Pretende-se, desse modo, elucidar como o discurso publicitário auxilia na composição de um imaginário social que fortalece a imagem ambientalizada da produção de agrocombustíveis.i

O intuito é clarificar como se formatam os arcabouços simbólico-discursivos que visam legitimar no imaginário coletivo a produção de etanol, ao mesmo tempo em que contribuem para sua aceitabilidade social e obscurecem a existência de conflitos e impactos associados ao seu processo de fabricação. Ademais, pretende-se demonstrar como são acionados os significados de sustentabilidade, combate ao aquecimento global, preservação ambiental, respeito à natureza e produção de energia limpa, que em um cenário de protuberância de uma dada preocupação ecológica passaram a deter visibilidade e importância na agenda de consumidores, empresas, governos e legisladores.

O artigo se ancora na análise de anúncios publicados em duas revistas brasileiras: uma com foco específico no empresariado - Exame, e outra, com abrangência nacional e penetração em várias esferas - Veja, cada qual se diferenciando por ser a principal publicação em seu escopo de abrangência. De forma complementar, examina mensagens publicitárias veiculadas nos Estados Unidos e na União Europeia que foram localizadas por intermédio da internet e fazem parte de campanhas destinadas à promoção do etanol no cenário internacional. Esse material foi publicado entre 2008 e 2009 em jornais de grande circulação, revistas, rádios e sites, tendo sido patrocinado pela ÚNICA - União da Indústria Canavieira.

No procedimento de coleta dos anúncios foram pesquisadas 212 edições da revista Veja e 105 da revista Exame, cujos números foram editados entre janeiro de 2005 e dezembro de 2010. O período analisado coincide com a expansão da monocultura de cana direcionada ao atendimento das demandas por "energias limpas" anunciadas pela União Europeia e pelos Estados Unidos, respectivamente, em 2003 e 2007.

Com a análise de um período de cinco anos vislumbra-se compreender as continuidades e rupturas, tanto no que diz respeito à frequência dos anúncios, quanto na formulação dos discursos difundidos pelo setor. Por fim, vale destacar que a escolha das duas revistas levou em conta a possibilidade de se apreciar um discurso mais amplo, extrapolando, portanto, a segmentação entre pares que se supôs existir em publicações específicas tais como Agroanálise e Globo Rural. Como o intuito era captar as estratégias utilizadas pelo setor sucroalcooleiro na forja de um imaginário coletivo favorável ao uso e fabricação do etanol, avaliou-se que a utilização de veículos de mídia com difusão mais extensa seria o apropriado. Sobre esse aspecto, Almeida Jr. & Gomes (2012) afirmam que um dos reflexos da preocupação empresarial com as questões ecológicas pode ser notado na emergente utilização de um complexo sistema de comunicação publicitária voltado à produção de mensagens de cunho ambiental patrocinadas por organizações privadas e estatais.

Ambientalização da produção de etanol: as marcas e os signos da modernização ecológica

A chamada questão ambiental tem constituído foco de preocupações de órgãos governamentais, corporações empresariais, movimentos sociais, bem como se erigido em ferramenta na justificação de políticas públicas em âmbito nacional e internacional. A institucionalização dessa temática atravessou nas últimas décadas um clima de intensa discussão complementado pela ocorrência de conferências no âmbito da Organização das Nações Unidas. Não obstante seja conflituoso o percurso de constituição dessa arena, iniciado no plano das instituições com a Conferência de Estocolmo em 1972, assiste-se desde o início dos anos 1990 à consolidação da ideia hegemônica segundo a qual é possível conciliar preocupação ambiental com exploração capitalista da natureza. Nesse contexto de modernização ecológica (ACSELRAD, 2004), a produção de etanol vem sendo apresentada como saída tanto para os problemas climáticos resultantes da queima de energia fóssil, quanto para as ameaças de finitude das reservas de petróleo. Ademais, uma propalada preocupação ambiental tem se apresentado como justificativa para o emprego do que se entende ser "energia limpa", ao mesmo tempo em que possibilita a manutenção do ritmo de exploração do meio ambiente por parte dos capitais.

Como afirma Leite Lopes (2006), em um contexto de ambientalização dos conflitos sociais aparece entre os grupos empresariais uma contraofensiva às manifestações e críticas dos movimentos sociais, assim, os segmentos industriais e mercantis passam a considerar as questões ambientais em seus cálculos, porém, fazem-no a partir de uma visão produtivista que valoriza o esverdeamento da marca e sua legitimidade no mercado e na sociedade. Do mesmo modo, Buttel (1992) considera que a ambientalização se refere ao processo concreto por meio do qual preocupações verdes são utilizadas para dar suporte às decisões político- econômicas que integram diversos cenários, tais como os vinculados à educação, ciência, tecnologia e geopolítica. Nesse cenário, os anúncios publicitários que promovem a produção de etanol podem ser enquadrados como vetores de uma ambientalização da produção, tendo em vista que, como se pretende demonstrar, apropriam-se da crítica para propagandear noções de responsabilidade ambiental, fabricação limpa, ambientalmente justa e sustentável, que por sua vez, dão suporte às decisões econômicas e políticas, tanto no que diz respeito à atuação do setor empresarial, quanto no tocante às ações de regulação do Estado.

No processo de ambientalização da produção a mídia pode ser encarada como uma máquina social de fabricação de interpretações, que gerencia a opinião pública fazendo com que a decodificação dos fatos se solidifique antes mesmo dos acontecimentos (RANCIÈRE, 2004). No interior desse mercado midiático a publicidade desempenha importante papel na fabricação de interpretações, logo, o referencial teórico aqui adotado irá concebê-la como uma instância que, simultaneamente, auxilia na compreensão dos imaginários sociais e se estabelece como suporte para as representações sociais (RIAL, 1998; SOULAGES, 1996). Pode-se encará-la tanto como parte integrante das mercadorias visuais, quanto como resultado e consequência de uma rede entrelaçada por valores econômicos, culturais, simbólicos e políticos (CANEVACCI, 2001). A publicidade não constitui apenas uma técnica comercial, que por meio de suas incitações procura tornar necessária a compra de bens ou serviços específicos, ao contrário, erige-se em um produto de ordem sociocultural (BRETON & PROULX, 2002). Como a publicidade extrai sua força dos conteúdos que se entretecem no universo social, bem como incita outras significações possíveis, se buscará evidenciar como esse discurso de promoção dos "biocombustíveis" se apropria de definições em disputa no campo ambiental, tais como: sustentabilidade, energia limpa, responsabilidade ambiental, preservação da natureza, harmonia homem/meio ambiente, dentre outras.

A ideia aqui contida ambiciona realçar que a apropriação econômica da natureza é consubstanciada por significações simbólicas que hierarquizam os olhares sobre a natureza, ao mesmo tempo em que legitimam uma exploração calcada na iniquidade de distribuição e apropriação dos territórios (ASSIS, 2005). Objetiva-se perscrutar os artifícios utilizados pelo setor sucroalcooleiro na tarefa de construir uma significação simbólica no que tange a utilização/fabricação de etanol, demonstrando que "cabe a um dos sujeitos - o polo emissor - escolher o termo mais marcado que, de certa forma, assegurará algum tipo de elo associativo com o imaginário do outro - o polo receptor" (CASTRO, 2001, p. 12). A esse respeito, o discurso publicitário, de caráter ficcional, é, entretanto, uma reconstituição de cenas da vida cotidiana ou social, mas cuja fonte é um acervo cultural compartilhado, pois têm o dever de ser parte interessada na criação de novas representações (SOULAGES, 1996).

É prudente vislumbrar a produção de etanol a partir de um ângulo capaz de evidenciar as significações simbólicas construídas acerca dos valores e usos da natureza. Com base nesse ponto, verifica-se que os conteúdos apresentados ao imaginário social, por intermédio da publicidade, são significações do espaço e reflexos de posições hegemônicas no campo ambiental. Assim, ao se situar a produção de agrocombustíveis em uma perspectiva que realça a existência de conflitos ambientais decorrentes de uma apropriação assimétrica dos recursos naturais, torna-se possível desvelar os antagonismos encobertos pelo discurso prevalecente, que coaduna e harmoniza, estrategicamente, a incongruência existente entre exploração capitalista da natureza e preservação do meio ambiente. Essa abordagem possibilita destacar que o espaço ambiental brasileiro segue sendo significado, apropriado e destinado à manutenção de um tipo dominante de racionalidade, que é erguida e mantida pela expropriação de sujeitos sociais colocados em situação de subalternidade, tais como: indígenas, seringueiros, ribeirinhos, quilombolas e populações camponesas.

Embora os conflitos nas zonas de expansão de monocultura de cana sejam expressivos, como realçam diversos trabalhos (FERRANTE et al,, 2010; PIETRAFESA, 2011; SILVA & MARTINS, 2010) isso não tem logrado alcançar repercussão no imaginário coletivo nacional. Indicativo disso é que mesmo pesquisando um número considerável de edições das revistas Exame e Veja, em um período de cinco anos, foram encontrados apenas oito anúncios de promoção do uso e fabricação dos agrocombustíveis, sendo quatro em cada uma das publicações. Como o processo de ambientalização, não raro, remonta às respostas que os setores empresariais precisam dar às críticas que lograram deter visibilidade na opinião pública, pode-se sugerir que a fabricação de etanol e o avanço da monocultura de cana, não têm sido associados à degradação ambiental do ar, água e solos, à expropriação de populações camponesas e comunidades tradicionais, ao trabalho escravo e degradante, ao aumento nos preços dos alimentos, nem tampouco à entrega de territórios ao capital internacional.

Conforme assinala Assis (2005), em estudo sobre a publicidade dos setores elétrico, químico e petroquímico, a percepção mais imediata por parte da sociedade dos impactos gerados pela indústria química, em virtude da magnitude dos danos ambientais e sociais, demandou das empresas uma reação discursiva mais contundente, com vistas a neutralizar a repercussão dos conflitos difundidos no seio da opinião pública. Por outro lado, a aura de essencialidade, progresso, crescimento econômico e bem-estar associados à produção de energia e construção de hidrelétricas contribuíram para ocultar durante algum tempo a ocorrência dos impactos socioambientais relacionados ao setor elétrico. A notoriedade das violações da indústria química (poluição atmosférica, contaminação de rios e lagos, produção de lixo tóxico e outras) alcança, portanto, maior visibilidade na opinião pública se comparada à inundação de terras para a construção de barragens ou à implantação de grandes maciços de monocultura.

As dinâmicas de avanço da monocultura de cana que vem colocando em marcha a expulsão da soja e da pecuária para a fronteira agrícola forçando a ocorrência de novos desmatamentos na Amazônia, não têm sido associadas pela opinião pública à ocorrência de impactos ambientais e sociais resultantes da produção de etanol. Como ainda inexiste no imaginário coletivo uma relação estreita entre a produção de etanol e a ocorrência de impactos negativos, as peças publicitárias do setor sucroalcooleiro não têm se direcionado a responder críticas e reclamações, ao contrário disso, propõem-se a criar uma imagem enaltecedora do produto, que realça os benefícios ambientais, o desenvolvimento econômico, o avanço tecnológico e o combate ao aquecimento global. A ambientalização da produção operada por meio da publicidade reforça, assim, a imagem de vida, sustentabilidade, inteligência, modernidade e consciência ambiental associada ao uso e fabricação do etanol, ao mesmo tempo em que dificulta o florescimento de críticas e obnubila os questionamentos formulados pelos movimentos sociais.

Remontando o quebra-cabeça: a publicidade do setor sucroalcooleiro

A peça publicitária apresentada a seguir é paradigmática das estratégias utilizadas no Brasil pelo setor sucroalcooleiro. Disposto em duas páginas o anúncio traz na folha da esquerda uma plantação de cana fotografada em close e ocupando um campo de visão privilegiado, dado que o modo de leitura ocidental se realiza da esquerda para a direita (PÉNINOU, 1973). O texto manchete do anúncio, diagramado sobre a imagem, expressa uma relação de complementaridade e atribui novos significados à plantação de cana ao indagar e responder a seguinte questão: "Sabe quanto custa para o Brasil importar o combustível mais moderno e ecologicamente sustentável do mundo? Nada, porque a gente produz aqui".

Imagem publicitária 1
Anúncio Etanol Inteligente

O plantio de cana é ressignificado como condição para que o país produza o combustível mais moderno e ambientalmente sustentável do mundo. Aqui o raciocínio de permutação de imagens pode sugerir novas trilhas na interpretação das estratégias empregadas. No anúncio se visualiza uma plantação de cana, não uma bomba de combustível ou uma destilaria de álcool, que são figurações mais associadas ao insumo energético. Como a imagem publicitária se constitui através de um ângulo de inversão com o mundo: em lugar de ir da cena ao sentido, parte do sentido que deseja imprimir para criar a cena ideal (coloca as relações que motivam a visão), essa estratégia permite construir as imagens em harmonia com os sentidos e ideias que se pretende sugerir ao imaginário social (DUARTE, 1998). Desse modo, a junção texto-imagem operada pelo discurso publicitário visa sugerir ao receptor que o plantio de cana representa a condição de possibilidade para que o Brasil desponte como produtor do principal combustível do futuro. Ademais, a manchete do anúncio joga com duas noções fulcrais; uma que ambientaliza a produção de cana ao apresentá-la como meio para se alcançar o combustível mais ecologicamente sustentável do mundo. A outra que recorre a um traço marcado no imaginário coletivo brasileiro, que associa os melhores produtos aos de procedência internacional. Valendo-se disso a publicidade promove uma inversão simbólica e oferta o etanol como um combustível que, além de ser moderno e ecológico é de origem nacional.

O texto iniciado na página da direita reitera e complementa os sentidos expressos pela manchete imagem-texto. Já de início utiliza uma mensagem subliminar, presente na história do país, que associa o álcool à crise de abastecimento ocorrida nos anos 1990, para, em seguida, ressiginificar a ausência do combustível afirmando que: "Motivo é o que não falta para você abastecer seu carro com álcool combustível, o etanol". Note-se que através do anúncio não apenas a ideia de falta e ausência é ressemantizada, como o próprio combustível é renomeado, o álcool do passado marcado pela crise de abastecimento, cede lugar ao etanol apresentado como, moderno, limpo, sustentável e ambientalmente correto.

O anúncio segue reforçando esses significados ao postular que: "Alguns preferem porque é um combustível renovável que reduz em até 90% a emissão de gases que causam o efeito estufa. Outros, por que ele nasceu aqui e movimenta fortemente a economia brasileira. Tem também quem enche o tanque para aumentar a potência do motor e diminuir o peso no bolso". Como a publicidade extrai sua força de um circuito retroalimentado que compreende por um lado, a absorção de realidades vivenciadas no cotidiano, e por outro, a introjeção de novos valores e conteúdos, pode-se aqui entrever a tentativa do setor sucroalcooleiro em forjar um consumidor ainda inexistente no mercado nacional de combustíveis, que é preocupado com as mudanças climáticas, bem como sintonizado às potencialidades da indústria nacional e à geração de riquezas advindas da fabricação de etanol. A estratégia publicitária intenta, portanto, reforçar valores tais como; benefícios ambientais para a humanidade e o desenvolvimento econômico para o país, que extrapolam a escolha econômica do consumidor por hora existente, que prefere encher o tanque com etanol visando à mera diminuição do peso no bolso.

Ao associar o etanol à redução de gases de efeito estufa o setor sucroalcooleiro fortalece a ambientalização da produção, ao mesmo tempo em que invisibiliza a existência de conflitos ambientais e territoriais desencadeados pelo avanço da monocultura de cana. É notório que essa peça se dedica quase que exclusivamente a erigir uma imagem de positividade em torno da produção de etanol, a única exceção pode ser extraída do trecho de finalização do anúncio, onde se lê: "O sucesso do etanol é tanto que seu consumo já superou o da gasolina usando apenas 1% das terras cultiváveis para sua produção". Ainda que seja uma resposta às tensões que ecoam do meio rural, a internalização da crítica (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2009) é realizada minimizando-se os efeitos no que concerne a concentração territorial. A expansão do agronegócio monocultor de cana é legitimada a partir de um duplo movimento; que afirma a baixa porcentagem de terras ocupadas com plantio e sua eficiência em suprir mais da metade das necessidades de combustível da frota de automóveis. Pode-se afirmar à maneira de Almeida (2010) que uma das estratégias do agronegócio brasileiro tem sido a disseminação de uma visão triunfalista que articulada a uma imagem hiperbolizada do potencial agrícola nacional forma um cenário no qual a terra aparece como bem ilimitado e permanentemente disponível.

O ciclo de sinecura e benesses pintado pelo anúncio é finalizado com um convite ao receptor: "E você já aderiu ao combustível verde (e amarelo)? Encontre um bom motivo em www.etanolverde.com.br". A ideia-força do anúncio não é simplesmente incitar o aumento no consumo de etanol, mais que isso, pretende construir uma imagem-real que vincula seu processo produtivo à preservação da natureza, ao combate do aquecimento global, à diminuição da poluição, ao avanço tecnológico e à consciência ambiental. Ao formatar a ambientalização da produção de etanol essa peça publicitária logra fortalecer a aceitabilidade da expansão da monocultura de cana, uma vez que se utiliza da imagem do canavial como indicativa da possibilidade de geração de uma energia apresentada como limpa, farta, renovável, eficiente, nacional e ambientalmente correta.

O discurso presente nesse e nos demais anúncios veiculados no Brasil prima por propagandear a produção de agrocombustíveis como uma saída técnico-científica que harmoniza o desenvolvimento econômico do país com a preocupação global de preservar o meio ambiente. A modernização ecológica aparece, portanto, como um mecanismo prático-discursivo que transforma a degradação de ar, solos e água, em novos circuitos de acumulação do capital. Com a análise dos anúncios esse artigo pretende sugerir que as forças político-econômicas dominantes no cenário global e nacional, têm moldado um discurso hegemônico que constrói no imaginário social uma imagem que associa a produção de agrocombustíveis à ideia de sustentabilidade ambiental, ao mesmo tempo em que nubla a percepção no que tange a existência de iniquidades na distribuição e aproveitamento dos recursos naturais. Assim, a problemática ambiental de tema público e conflitivo tem se transformado pela prática publicitária em uma construção consensual e sofisticada, que por sua vez, atrela-se aos interesses diversos do capital e do consumo (ALMEIRA JR. & ANDRADE, 2007).

Os anúncios publicados no Brasil pelo setor sucroalcooleiro não representam uma ofensiva orientada a responder as críticas formuladas pelos movimentos sociais, antes disso desconsideram a ocorrência dos conflitos e reafirmam as potencialidades e vantagens da produção de etanol. Diferentemente, as peças publicitárias veiculadas nos países da União Europeia estão fortemente direcionadas a dar respostas às críticas que geraram grande repercussão no cenário europeu. O anúncio apresentado a seguir que compõem uma campanha veiculada de junho a novembro de 2008 no jornal European Voice, pertencente ao grupo The Economist, servirá como exemplo do tipo de estratégia adotada no mercado internacional.

Imagem publicitária 2
Anúncio UNICA no mercado europeu

Composto em verde de alto a baixo, tendo de fundo uma figuração de folhas de cana, lê-se na manchete sobreposta à folhagem "Etanol brasileiro de cana-de-açúcar 1% de terras aradas provê 50% das necessidades brasileiras de petróleo". Já de início e em destaque se evidencia uma estratégia discursiva endereçada a neutralizar as críticas no que concerne a concentração de terra demandada pela monocultura de cana. O anúncio ressignifica a ocupação territorial afirmando que 1% das terras aráveis é suficiente para abastecer 50% das necessidades de petróleo do país, assim, sugere-se subliminarmente que a eficiência da produção de etanol afiança uma baixa ocupação de terras.

Ao se comparar os anúncios veiculados na União Europeia e no Brasil no que se refere à ênfase dada à ocupação territorial da produção de etanol, torna-se possível constatar que enquanto no contexto nacional a expansão da monocultura de cana em vastos territórios é tratada como algo secundário e que não requer a constituição de ordens de justificação (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2009), tanto que na peça anteriormente analisada, há menção a esse fato somente no final e sem qualquer ênfase. Já no cenário internacional essa crítica é alçada a um grau elevado de preocupação, exemplo disso está no fato da resposta discursiva já aparecer na manchete da peça, visando já de início descaracterizar a concentração de terras como um dos impactos resultantes da produção de etanol.

Logo abaixo da manchete reiterando e complementando os sentidos expressos pelo texto se vê uma sequência de imagens enquadradas em close e em tomadas aéreas: 1) cana-crua cortada e lavada pronta para ser processada; 2) campos cobertos por plantios de cana; 3) rebanho bovino com as cabeças de gado próximas umas das outras denotando uma produção confinada e 4) curvas de um rio fotografadas de cima e mostrando uma exuberante vegetação preservada. A apresentação dessas imagens sugere um cenário de produção moderna marcada pela assepsia dos processos, bem como a convivência equilibrada e harmônica entre distintas atividades agropecuárias, tanto é que a imagem do campo plantado com cana está diagramada em um quadro contíguo ao das cabeças de gado que são expostas como aparentemente confinadas.

Esse universo de produção eficiente e equilibrado se conecta a imagem do rio circundado por matas preservadas para denotar a compatibilidade entre a exploração econômica dos espaços e a preservação do meio ambiente. Para Péninou (1973) a instituição publicitária é um sistema de comunicação fundado numa exploração sistemática e interessada da imagem que toma lugar, enquanto tal, entre os dispositivos tecnológicos da troca econômica. Esse uso conveniente da imagem adquire centralidade na formulação dos anúncios e auxilia na construção dos imaginários sociais (RIAL, 1998). Sendo um instrumento fundamental à publicidade, as imagens fixas e em movimento, exprimem histórias não apenas das representações sociais, mas também da prática de contemplar, expor e ocultar certas partes do mundo (SANT'ANNA, 1997). Ao serem vistas por esse ângulo, percebe-se que as imagens exercem uma violação sobre os objetos retratados (SONTAG, 1983) e mostram, especialmente, uma forma de ver, um olhar particular, um recorte da situação e/ou do universo representado. Quando se contrapõe as imagens utilizadas no anúncio acima, àquelas captadas durante os trabalhos de campo realizados em área de expansão da monocultura de cana,fica evidente esse uso interessado e violador do real-concreto. Assim sendo, a título de ilustração são apresentadas abaixo algumas "imagens-reais" captadas durante as pesquisas de campo que retratam situações similares às "imagens-quiméricas" do anúncio veiculado na União Europeia.

Fotos 1 e 2
Cana queimada para possibilitar o corte manual e gado em pastagens extensivas com novos plantios de cana ao fundo e fumaça de queimada acima à direita. Municípios de Capinópolis e Uberaba, Triângulo Mineiro. Fonte: Fotos do autor, 10/05/2010.

Foto 3:
Ao fundo, área de reserva legal circundada por plantios de cana e em primeiro plano uma vereda (área de preservação permanente) invadida pela monocultura canavieira. Município de Água Cumprida, Triângulo Mineiro. Fonte: Foto do autor, 17/05/2010.

Logo abaixo da sequência de imagens que integram o anúncio pode-se ler a seguinte afirmativa: "Você pode ajudar a combater as mudanças climáticas apoiando a meta obrigatória de 10% de energias renováveis nos transportes até 2020". Há aqui uma sugestão implícita e subliminar, da mesma forma que o setor sucroalcooleiro já adota medidas de produção que contribuem para a preservação ambiental e o combate ao aquecimento global, haja vista a baixa utilização de terras, a preservação de rios e matas e o confinamento do gado, sugeridos nas imagens e na manchete do anúncio, o receptor da mensagem pode igualmente auxiliar nessa tarefa pressionando o governo a adotar as metas de substituição de combustíveis fósseis por fontes renováveis. Em uma mesma tacada a produção de etanol é ambientalizada como uma alternativa que possibilita o combate às mudanças climáticas, bem como se apela à consciência ambiental do receptor para se colocar em marcha uma pressão sobre o governo, que pode resultar na abertura de um promissor mercado.

Como visto anteriormente, a ambientalização aparece entre os grupos empresariais como uma contraofensiva às manifestações e críticas dos movimentos sociais, nesse processo as questões ambientais são internalizadas nos cálculos capitalistas, porém, se tem como démarche uma lógica produtivista que valoriza o esverdeamento da marca e sua legitimidade no mercado e na sociedade.

O texto que se inicia na parte inferior da página fortalece a ambientalização da produção, além de estar endereçada à tarefa de neutralização dos efeitos da crítica. No entanto, antes disso o discurso publicitário fortalece a ideia segundo a qual é plenamente factível a substituição na União Europeia dos combustíveis fósseis por fontes renováveis, uma vez que a experiência brasileira afiança a realização desse feito sem o comprometimento de grandes extensões territoriais. "A experiência bem-sucedida no Brasil mostra que a ambição da União Europeia em alcançar 10% de combustíveis renováveis ​​nos transportes até 2020 é viável. O Brasil substituiu metade das suas necessidades de gasolina com etanol feito de cana-de-açúcar, cultivada em apenas 1% de suas terras aráveis"​.

As críticas que, de acordo com a tipologia de Boltanski & Chiapello (2009) podem ser caracterizadas como radicais, tais como; concentração de terras, competição com alimentos e desmatamento da Amazônia, têm sido descaracterizadas no cenário interno com auxílio do Estado, que vem se apresentando como garantidor das investidas "sustentáveis" do capital sucroalcooleiro. Essa legitimação por via da atuação governamental pode ser percebida no fragmento transcrito a seguir extraído do pronunciamento do Presidente Lula, quando da abertura da 62ª Assembleia Geral da ONU, onde afirma:

Os biocombustíveis podem ser muito mais do que uma alternativa de energia limpa. O etanol e o biodiesel podem abrir excelentes oportunidades para mais de uma centena de países pobres e em desenvolvimento na América Latina, na Ásia e, sobretudo, na África. A experiência brasileira de três décadas mostra que a produção de biocombustíveis não afeta a segurança alimentar. [...] É plenamente possível combinar biocombustíveis, preservação ambiental e produção de alimentos. (Presidente Lula, Abertura da 62ª Assembleia Geral da ONU, 25/09/2007).

No contexto internacional, a desqualificação e negação das críticas radicais ganha o reforço dos investimentos em publicidade que promovem a ambientalização da produção. Isso se pode notar no trecho do anúncio que afiança: "A cana se expande principalmente em pastagens degradadas e não compete com a produção de alimentos ou causa desmatamento na Amazônia. De fato, 90% da safra de cana acontecem no Centro-Sul do Brasil e o restante no Nordeste. Ambas as regiões estão a mais de 2500 km da Floresta, ou aproximadamente a distância entre Paris e Moscou". No tocante às críticas radicais, pode-se vislumbrar uma relação de complementaridade entre o discurso publicitário propagandeado pelo setor sucroalcooleiro e a desqualificação levada a cabo pelo governo brasileiro. Os argumentos utilizados são similares tanto no que diz respeito à negatividade da ocorrência de conflitos entre a fabricação de etanol e a produção de alimentos, quanto no que se refere à relação entre a expansão da monocultura de cana e o aumento dos desmatamentos na região Amazônica. A estratégia do anúncio se vale da mesma racionalidade cínica (SAFATLE, 2008) encontrada nos pronunciamentos do Presidente Lula, que afirma a distância geográfica entre as áreas de plantio de cana e a Amazônia como garantidora da inexistência de desmatamentos provocados pelo agronegócio canavieiro.

O trecho que finaliza o anúncio igualmente possui similaridades com os discursos realizados mundo afora pelo então Presidente Lula: "Enquanto a produção de cana aumentou de forma constante nos últimos anos, o Brasil dobrou sua produção de grãos na última década e se tornou o maior exportador global de muitas commodities. A experiência brasileira comprova que alimento, combustível, ração e fibra, podem ser produzidos simultaneamente e de forma sustentável". Essa peça publicitária pode ser lida-vista como um indicativo do grau de comprometimento entre o capital sucroalcooleiro e o Estado, ambos buscando construir uma justificativa empresarial que se baseia na apropriação e desqualificação da crítica ambiental ao capitalismo. O recurso a noção hegemônica de desenvolvimento sustentável, que se difunde a partir da publicação do Relatório Brudtland e apregoa a compatibilidade entre exploração capitalista de recursos naturais e preservação da natureza é evocada tanto no discurso do setor sucroalcooleiro, quanto na postura desqualificadora do governo brasileiro. As dinâmicas conflitivas colocadas em marcha pelas distintas frentes de expansão do agronegócio, soja, cana, pecuária e eucalipto, são obscurecidas pelo discurso da convivência harmônica que ocorre nos dizeres do anúncio mesmo em um cenário de expressivo aumento da produção de commodities agrícolas. A vasta disponibilidade de terras para expansão dos agrocombustíveis, sugerida na manchete do anúncio reaparece aqui de forma implícita como índice de uma produção harmônica e sustentável, que compatibiliza a obtenção de alimentos, combustíveis, rações e fibras.

Ao contrário dos anúncios veiculados no Brasil, que não se preocupam em responder, descaracterizar ou internalizar as críticas à produção de etanol, estando mais direcionados à erigir uma ambientalização da produção, as peças publicadas nos países da União Europeia possuem foco específico na neutralização dos efeitos da crítica, bem como na reafirmação das vantagens dos agrocombustíveis para o combate das mudanças climáticas.

No caso brasileiro, os anúncios pressupõem a existência de um público ainda não familiarizado com as críticas à produção de agrocombustíveis, mas, que tampouco, orienta sua escolha pelas vantagens ambientais do produto. No contexto nacional o preço é tido como um traço definidor da opção do consumidor pelo etanol, sendo necessário, portanto, a criação de uma imagem-produto que extrapole a escolha monetária e realce o caráter ambientalmente responsável do uso e produção do combustível verde. Por outro lado, a linguagem dos anúncios veiculados no exterior prognostica um receptor atento tanto às críticas à produção de agrocombustíveis, quanto às vantagens advindas do emprego de fontes renováveis de energia. No cenário internacional a ambientalização da produção operada pelos anúncios visa, portanto, construir novas ordens de justificação que legitimem o uso de agrocombustíveis e reafirmem, ao mesmo tempo, as vantagens ambientais no enfrentamento das mudanças climáticas.

O processo de modernização ecológica e de ambientalização da produção orienta o discurso publicitário veiculado dentro e fora do país. Entretanto, a tendência em considerar o consumidor europeu como mais afeito à problemática ambiental, mais informado e crítico, em contraposição ao seu congênere nacional, visto como; menos preocupado com questões ambientais, mais atento aos preços e detentor de uma postura acrítica, resultou em estratégias diferentes de construção do discurso. Enquanto na União Europeia o foco foi neutralizar os efeitos da crítica e criar novas ordens de justificação que afiançassem a abertura de novos mercados, no Brasil o intuito foi minar o surgimento de posturas críticas por intermédio da exaltação das benesses resultantes da produção de um combustível nacional, moderno e ecologicamente avançado.

A campanha de promoção do uso de etanol veiculada nos Estados Unidos,ii igualmente, recorre ao argumento de redução de preços como forma de sugerir ao consumidor estadunidense a necessidade de uma pressão pela abertura do mercado para o etanol brasileiro. Se na União Europeia o apelo à consciência ambiental, capitaneado pelo combate à redução dos gases causadores de efeito estufa foi o mote utilizado, nos EUA a estratégia, como se pode notar no anúncio disposto a seguir, foi recorrer às vantagens de uma independência energética sustentada pela redução nos preços dos combustíveis.

Imagem publicitária 3
Anúncio UNICA no mercado estadunidense

O anúncio apresenta na parte superior da página uma imagem em close de duas crianças dentro de um carro, na qual se vê ao fundo um homem na condução do veículo e no banco do passageiro uma mulher, além disso, é possível notar que o automóvel está parado em um congestionamento. A frase diagramada acima da imagem adiciona sentidos à imagem ao indagar: "Nós já estamos lá?" ou em um sentido mais próximo ao utilizado no Brasil, "Nós já estamos chegando?". A resposta apresentada logo abaixo da imagem afirma categoricamente: "Quando se trata de independência energética a resposta é não". A peça se vale de acontecimentos marcados na experiência cotidiana das famílias, como por exemplo, a impaciência das crianças durante as viagens, seguidas de suas reiteradas perguntas sobre se o destino já está próximo, para, assim, introduzir metaforicamente a temática central do anúncio, que questiona a proximidade dos EUA da almejada independência energética.

O período de veiculação dessa peça, publicada nas semanas subsequentes ao feriado de comemoração da independência, reforça a ideia de uma permutação de sentidos, que vai da autonomia política representada pela comemoração do dia da independência à necessidade de se alcançar uma nova independência que se expressa pelo rompimento da dependência do petróleo. De forma subliminar, o carro parado no congestionamento sugere que se tem avançado lentamente nessa nova empreitada, no entanto, o texto iniciado na transição da imagem para a parte inferior do anúncio introduz a possibilidade de um caminho alternativo e começa a introjetar novos significados: "O Gás custa mais de US$ 4 o galão e ainda está subindo; os preços do petróleo estão aumentando a todo tempo, sem final à vista; É hora de combustíveis renováveis como o etanol de cana-de-açúcar, que pode reduzir custos".

O uso do etanol de cana, principal agrocombustível brasileiro, é sugerido como saída para se alcançar a sonhada independência energética. Diferentemente dos anúncios veiculados na União Europeia, não há aqui qualquer resposta às críticas radicais, a estratégia se assemelha mais à utilizada no Brasil que apela às vantagens advindas da diminuição no preço do combustível. Entretanto, no cenário estadunidense se acrescenta o signo da necessária independência do petróleo importado. O texto iniciado na porção inferior e do lado direito da página complementa e reitera os significados expressos na manchete e na imagem do anúncio: "No último fim de semana, famílias em todo o país pegaram as estradas e suas carteiras. A América está em uma encruzilhada e enfrenta uma escolha. Nós podemos continuar nossa dependência do petróleo estrangeiro ou diversificar e promover biocombustíveis renováveis como o etanol de cana-de-açúcar".

A menção às carteiras, em uma clara alusão aos gastos maiores com petróleo se comparados às potencialidades econômicas do etanol é reiterada no texto iniciado na coluna esquerda do anúncio: "Etanol de cana pode diminuir os preços da gasolina em 30% e reduzir as emissões em 90% se comparado com a gasolina de hoje. Longe de abraçar o etanol de cana, nosso governo está taxando-o, impondo uma tarifa que impulsiona o aumento de preços e nos mantêm dependentes do petróleo estrangeiro". A redução das emissões de gases, única associação às características ambientalizadas da produção de etanol, aparece sem muita força denotativa e quase a reboque das vantagens financeiras atribuídas aos agrocombustíveis. O anúncio sugere implicitamente que a revisão das tarifas alfandegárias impostas ao etanol brasileiro possibilitaria ganhos financeiros aos cidadãos estadunidenses, além de gerar, quase que como subproduto, uma vantagem ambiental expressa na redução dos gases causadores do efeito estufa. Por fim, sugere-se ao receptor uma pressão sobre o congresso como forma de alterar o quadro de dependência energética enunciado na pergunta e na resposta que compõem o contínuo imagem-manchete. Assim, o slogan final se conecta aos significados sugeridos ao imaginário social no início da peça, ao mesmo tempo em que conclama a urgência de uma modificação na legislação tributária: "O Congresso necessita revogar a taxação do etanol de cana - ou nós nunca iremos chegar lá".

A problemática ambiental está praticamente ausente do discurso publicitário do setor sucroalcooleiro veiculado no mercado estadunidense. No cenário norte-americano as estratégias de justificação formuladas para o emprego de agrocombustíveis são eminentemente econômicas e apelam a uma racionalidade instrumental de redução de custos e benefícios financeiros, diferindo substancialmente da publicidade veiculada nos países da União Europeia, onde há uma preocupação mais atenta com a crítica ambiental e o empenho em se forjar uma nova matriz de legitimidade capaz de dar sustentação aos negócios de agroenergia. Compreender o processo de construção dessas distintas realidades, partindo da produção de sentidos instituídos pela esfera midiática, exige, portanto, articular o conjunto de interesses em disputa no terreno social, bem como entrever as significações que são mais adequadas atribuir ao fato em questão (CASTRO, 1997).

Breves reflexões finais

A significação do etanol de um lado, como índice de vantagem econômica (EUA), e, de outro como sinônimo do combate às mudanças climáticas (União Europeia), pode ser vista como expressão dos conflitos e jogos de interesses em confronto em cada uma destas sociedades. Nesse universo de tensões, o sujeito comunicante faz um esforço para forjar um elo simbólico, mas sempre hipotético, com os sujeitos interpretantes, recorrendo a saberes, normas, valores e universos de referências supostamente partilhados - o discurso publicitário passa, portanto, a falar de outra coisa, além do produto, colocando em cena uma série de representações do mundo social (SOULAGES, 1996). Como a publicidade não produz seu discurso a partir de um núcleo vazio, mas, ao contrário, articula vários elementos presentes na trama social, pode-se indicar que no Brasil e nos EUA existe pouca permeabilidade à crítica ambiental dos agrocombustíveis, ao passo que na União Europeia, os questionamentos e oposições encontram eco tanto nas representações coletivas, como nas manifestações de sujeitos individualizados.

As peças aqui analisadas oferecem um panorama da disputa de significações e apropriações materiais que permeiam a produção brasileira de agrocombustíveis. A exploração concreta impulsionada pelo avanço das monoculturas de cana e os conflitos ambientais decorrentes dessas dinâmicas de reordenamento geográfico-espacial, ganham novos contornos, significados e representações, a partir da proliferação de estratégias prático-discursivas que visam em um mesmo movimento, construir legitimidade para exploração dos territórios, bem como dotar a exploração econômica de maior eficácia simbólica.

O discurso governamental e empresarial expressa, portanto, a tentativa de neutralizar os efeitos da crítica, ao mesmo tempo em que desqualifica a ocorrência de conflitos na apropriação dos territórios e reafirma a imagem moderna, sustentável e ambientalmente justa da agroenergia. Embora essa disputa na arena de produção dos agrocombustíveis não seja equânime, nem no campo concreto-material, tampouco no imaginário-simbólico, os movimentos sociais e populações afetadas têm feito ressoar os reclames e críticas que visibilizam as limitações e assimetrias de um modelo de produção excludente, concentrador, monocultural e espoliativo, que de maneira continuada vem provocando a expulsão do homem do campo.

As análises levadas a cabo no interior deste artigo procuraram sugerir que o discurso da suposta ameaça maior, representado pelo aquecimento global, tem sido utilizado para justificar simbólica e materialmente o avanço da monocultura de cana para produção de agroenergia. No processo de forja de uma nova ideologia para a produção de agrocombustíveis (ideologia aqui entendida como um conjunto de crenças compartilhadas e ancoradas na realidade, portanto, diferindo da acepção corrente que a vê como um mecanismo que encobre e inebria o real) foi e está sendo de suma importância reconstruir e modificar no imaginário social a imagem associada ao etanol.

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  • i
    A perspectiva adotada neste artigo não se vê representada na noção de biocombustíveis, uma vez que essa denominação traz consigo uma aceitabilidade social que vincula a produção de combustíveis agrícolas a uma matriz energética limpa e sustentável.
  • ii
    Essa campanha foi veiculada em 2008 em jornais, emissoras de rádio e sites de internet durante a semana que sucedeu o feriado de comemoração da independência norte-americana.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    18 Out 2014
  • Aceito
    30 Jul 2015
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