Resumo
Este artigo pretende problematizar o ‘‘diálogo dos saberes’’ agroecológico e prospectar as condições que a antropologia dispõe para o tratamento dos problemas apresentados. O argumento fundamental é que, apesar da proposta de construção não hierárquica do conhecimento agroecológico (entre saberes ‘‘científicos’’ e ‘‘não científicos’’), sua base epistemológica não dá conta das complexas interações produzidas entre os agentes em questão, contribuindo, de forma ambivalente, para uma relação hierárquica e assimétrica de poder. Sugere-se que: a ideia de que a agroecologia promove relações harmoniosas entre cientistas e agricultores simplifica interações tensionadas pela dinâmica aproximação/estranhamento; a concepção de cultura e diversidade cultural implícita no diálogo de saberes está assentada na dissociação entre ‘‘pensamento’’ e ‘‘ação’’; uma ‘‘dinâmica política da alteridade’’ definiria de forma mais adequada o esquema relacional agroecológico; e, enfim, a concepção antropológica de tradução contribuiria para a promoção de uma ‘‘dupla extensionalidade’’, assentada não na capacidade de ensinar, mas de aprender.
Palavras-chave: agroecologia; tradução; diálogo de saberes; dupla extensionalidade; interdisciplinaridade
Abstract
We intend to problematize the agroecological “dialogue of knowledge” and survey the conditions of anthropology for such problems. The fundamental argument is that, despite the proposal of non-hierarchical construction of agroecological knowledge (between “scientific” and “non-scientific” knowledge), its epistemological basis does not comprises the complex interactions produced among the agents in question, ambivalently contributing to a hierarchical and asymmetric relationship of power. We suggest that: the idea that agroecology promotes harmonious relations between scientists and farmers simplifies interactions tensioned by the dynamic approximation/estrangement; the conception of culture and cultural diversity implicit in the dialogue of knowledge is based on the dissociation between “thought” and “action”; a “political dynamics of alterity” would better define the agroecological relational scheme; the anthropological conception of translation would contribute to the promotion of a “double extensionality,” not based on the capacity to teach, but rather on the capacity to learn.
Keywords: agroecology; translation; dialogue of knowledge; double extensionality; interdisciplinarity
Resumen
Este artículo pretende problematizar el diálogo de saberesd agroecológico y prospectar las condiciones de que dispone la antropología para resolver los problemas presentados. El argumento fundamental es que, a pesar de la propuesta de construcción no jerárquica del conocimiento agroecológico (entre saberes científicosc y no científicosn), su base epistemológica no da cuenta de las complejas interacciones producidas entre los agentes en cuestión, contribuyendo, de forma ambivalente, a una relación jerárquica y asimétrica de poder. Se sugiere que: la idea de que la agroecología promueve relaciones armoniosas simplifica las interacciones tensadas por la dinámica aproximación/extrañamiento; la concepción de cultura y diversidad cultural implícita en el diálogo de saberes está asentada en la disociación entre )pensamientop y accióna; una ;dinámica política de la alteridadd definiría mejor el esquema relacional agroecológico; y la concepción antropológica de traducción contribuiría a la promoción de una doble extensionalidadd, asentada no en la capacidad de enseñar, sino de aprender.
Palabras clave: agroecología; traducción; diálogo de saberes; doble extencionalidad; interdisciplinariedad
Introdução
O ‘‘diálogo de saberes” tem sido considerado um dos alicerces da edificação agroecológica. Para além dos seus diferentes usos - um ‘‘princípio ético’’ (LEFF, 2002), uma ‘‘atuação política’’ (CAPORAL et al., 2009) ou uma ‘‘metodologia participativa (TARDIN, 2006; GUHUR, 2010)’’ - o termo tem expressado o esforço agroecológico de promover a interação entre conhecimentos técnico-científicos e não científicos de forma harmoniosa e inclusiva. Para seus adeptos, aqui residiria a grande força da agroecologia: ‘‘(...) no concerto destes saberes se joga o renascimento do ser: da natureza, da produção, do agrônomo, do cientista, do técnico, do camponês e do indígena; a reconstrução do ser que finda sobre novas bases o sentido da produção e abre as vias a um futuro sustentável’’ (LEFF, 2002, p. 36). A ideia, de fato, é muito sedutora e tem sido o motor de engajamento de uma das facetas mais visíveis do ambientalismo contemporâneo. Nossa hipótese, no entanto, é de que a sustentação político-epistemológica do ‘‘diálogo de saberes’’ ofusca a riqueza interacional do referido encontro, tanto no que se refere a seus ‘‘benefícios’’ e ‘‘malefícios’’, quanto ao impedimento que produz no tratamento mais aberto dos problemas internos de desenvolvimento da própria agroecologia. Não seria esse encontro mais denso, conflituoso e complexo do que sugere o termo e sua operacionalização na literatura agroecológica?
Assim, o artigo propõe, em primeiro lugar, um exercício de problematização do ‘‘diálogo de saberes’’ agroecológico, a partir de algumas ponderações críticas sobre o tema que emergem de autores e autoras identificados como atuantes no universo das questões ambientais e da própria agroecologia. Em segundo lugar, sugere um possível olhar para elementos antropológicos que venham contribuir para o entendimento das interações entre os agentes agroecológicos em outros termos. Parte-se do debate clássico sobre o conceito de cultura, estendendo-se até alguns exercícios contemporâneos de conceituação dos diferentes modos de vida como ‘‘ontologias’’. A intenção é argumentar que encontros entre diferentes ‘‘culturas’’ ou ‘‘modos de existência’’ não podem ser reduzidos a uma interlocução ‘‘entre saberes’’, porque esta: (1) reduz e simplifica as condições de interação; (2) garante aos agentes científicos a primazia do que deve ser entendido como ‘‘diálogo’’; e, por fim, (3) define em condições hierárquicas a atuação política decorrente. A partir destas inferências, caracteriza-se, em terceiro lugar, o ‘‘encontro’’ como aproximação perturbadora e cambiante entre duas ‘‘existências sociais’’, cada uma delas amalgamadas por diversas dimensões, sejam elas técnicas, econômicas, sociais, políticas, epistemológicas, simbólicas, dentre outras possíveis: uma ‘‘tensão política de alteridade’’, sendo a articulação epistemológica (o diálogo de saberes...) um desdobramento possível a ser construído de forma cuidadosa. Finalmente, propõe, em quarto lugar, que a ‘‘nova extensão rural’’ ou a ‘‘extensão agroecológica’’ seja o locus de produção de ação/conhecimento a partir de uma ‘‘dupla extensionalidade’’: do técnico ao agricultor e, de forma reversa, do agricultor ao técnico, no qual o vetor de articulação não seja o de ‘‘ensinar’’, mas o de “aprender”.
Diálogo dos saberes, extensão agroecológica e o ‘‘outro’’
Apesar de esforços recentes de contextualizar o ‘‘diálogo de saberes’’ agroecológico em propostas epistemológicas ampliadas - como a perspectiva da complexidade (CAPORAL et al., 2009), do “saber ambiental” (LEFF, 2002; FLORIANI; FLORIANI, 2010) e do ‘‘pluralismo epistemológico’’ (GOMES, 2005) - foram autores como Stephen Gliessman, Miguel Altieri e Eduardo Sevilla Guzmán que se responsabilizaram pela formulação da ideia do diálogo de saberes como um dos elementos definidores da agroecologia. Subjacente a ela, encontra-se a concepção destes autores sobre a contribuição de grupos sociais camponeses, indígenas, quilombolas, dentre outros, para o universo agroecológico.
Por parte de Stephen Gliessman, a questão é colocada a partir do entendimento de que os agroecossistemas ‘‘tradicionais’’ devem se tornar a base referencial da proposta agroecológica (GLIESSMAN, 2002). No mesmo sentido, Miguel Altieri considera que o estudo com base na etnociência, inclusive das estratégias agrícolas das agriculturas tradicionais, deve se constituir no sustentáculo da agroecologia (ALTIERI, 2001). Eduardo Sevilla Guzmán e colaboradores também propõem a edificação de uma epistemologia de orquestramento entre saberes científicos e tradicionais na agroecologia, mas a partir de uma inversão no sentido observado nos dois autores precedentes. Uma agroecologia ‘‘endógena’’, constituída a partir de realidades sociais específicas, tendo como ponto de partida o fortalecimento da identidade dos grupos sociais rurais frente ao processo de expansão do modelo desenvolvimentista da agricultura moderna (SEVILLA GUZMÁN, 2001). Mais do que uma ‘‘fonte’’ de modelos de produção sustentável e formas de conhecimento sobre agroecossistemas, os grupos e comunidades agrícolas etnicamente diferenciadas seriam a base da ação social de produção da própria agroecologia.
Quais seriam as decorrências dessas diferentes visões à estruturação da extensão agroecológica? De um lado, a palavra-chave é ‘‘transferência’’ (ALTIERI, 2001, p. 21) ou ‘‘obtenção’’ (GLIESSMAN, 2002, p. 303) de conhecimentos. A ideia de que a agroecologia deve sistematizar as técnicas tradicionais têm fundamentado uma espécie de etnociência dos agroecossistemas ‘‘tradicionais’’ (KOOHFKAN; ALTIERI, 2010) e implicado, por sua vez, na dissociação de técnicas agronômicas locais de seus contextos sociais de produção como possibilidade de transferi-las para outros locais. Diante disso, caberia à extensão agroecológica a responsabilidade de promover o fortalecimento político-econômico, disseminando técnicas e práticas ecologicamente sustentáveis, economicamente viáveis e validadas pelo conhecimento de base científica. Não raro, a incorporação de práticas agroecológicas tem sido interpretada como ‘‘resgate’’ de práticas e saberes agrícolas potencialmente perdidos (ALTIERI, 2001).
Por outro lado, a extensão agroecológica, informada pela concepção guzmaniana, se concentraria mais em gerar as condições para o fortalecimento do potencial endógeno - principalmente no que se refere à relação com os elementos exógenos ao agroecossistema - do que assumir uma posição assimétrica de ensino e aprendizagem. Nessa perspectiva, prática política e vivacidade sociocultural estão associadas: seriam os centros difusores das práticas agroecológicas. O papel do técnico e do cientista comprometido com esta perspectiva seria o de detectar e fomentar as potencialidades ‘‘endógenas’’ de construção de práticas agronômicas sustentáveis, muito mais do que ‘‘levar’’ ou ‘‘disseminar’’ técnicas alheias a uma dada realidade social e ecológica (GUZMÁN CASADO et al., 2000, p. 139). A prevalência e a sensibilidade ao “social” ganha grande relevo sob a proposta guzmaniana.
Os ecos dessas duas formas de se conceber a relação entre o ‘‘científico’’ e o ‘‘tradicional’’ na agroecologia não são triviais. Caporal e seus colaboradores, por exemplo, sustentam que
(...) a agroecologia busca integrar os saberes dos agricultores com os conhecimentos de diferentes ciências, permitindo, tanto a compreensão, análise e crítica do atual modelo do desenvolvimento e de agricultura, como o estabelecimento de novas estratégias para o desenvolvimento rural e novos desenhos de agriculturas mais sustentáveis desde uma abordagem transdisciplinar, holística’’ (CAPORAL et al., 2009, p. 17-18).
A derivação desta concepção integrativa de agroecologia seria uma extensão rural agroecológica como ‘‘(...) uma intervenção de caráter educativo e transformador, baseado em metodologias de investigação-ação participante que permitam o desenvolvimento de uma prática social mediante a qual os sujeitos do processo buscam a construção e sistematização de conhecimentos que os leve a incidir conscientemente sobre a realidade’’ (CAPORAL; COSTABEBER, 2000, p. 32). Os autores demonstram grande preocupação ao enfatizar que esta ‘‘nova extensão rural’’ exige dos extensionistas a capacidade de ‘‘compreender os aspectos relacionados à vida dos indivíduos e suas relações sociais’’(CAPORAL; COSTABEBER, 2000, p. 32), o que, em tese, abriria grande possibilidade dessa perspectiva abarcar um entendimento amplo das configurações socioculturais no desenho de iniciativas agroecológicas, levando-se em consideração o peso destes autores na formulação teórica e política da agroecologia no Brasil e na América Latina.
No entanto, outros pesquisadores vêm detectando uma certa fissura no aparente equilíbrio entre os diferentes saberes na construção do fazer agroecológico, a partir da prevalência tecnicista na formulação de seus projetos. Siliprandi, por exemplo, destaca:
(...) em que pese o forte conteúdo social dessas definições (...), a preocupação com as novas tecnologias agrícolas sempre foi preponderante nas atividades de extensão, e foi, muitas vezes, considerada a sua única razão de ser. Assim, os chamados “temas sociais”, apesar de presentes (...), acabaram sendo pouco discutidos (SILIPRANDI, 2002, p. 39).
De forma mais incisiva, Almeida refere-se a essa ênfase tecnicista nos seguintes termos: ‘‘A ânsia em intervir nos sistemas agrícolas de forma agroecológica tem (...) consolidado (...) a ideia do ‘pacote agroecológico’’’. Para o autor, estes agem ‘‘desconhecendo-se ou minimizando-se a complexidade e diversidade dos sistemas produtivos, e tendendo-se a uniformizá-los para facilitar a ação tecnológica, a metodologia e a obtenção dos resultados’’ (ALMEIDA, 2002, p. 33).
De forma mais acentuadamente crítica, Gerhardt refere-se ao diálogo entre saberes como parte de um processo de ‘‘epistemogênese’’ no interior da agroecologia, não muito diferente do processo de conformação de outras ciências, tendo como resultado o processo de purificação e apropriação das técnicas ‘‘tradicionais’’:
(...) a cientificização agroecológica tende a higienizar conhecimentos e práticas locais. Apropriados por técnicos, cientistas, agências oficiais e empresas, saberes afetiva e intimamente ligados à história vivida por grupos sociais são “resgatados” (...) e classificados como agroecologicamente relevantes. Em seguida, após retirados de sua circunstancialidade e levados às suas instituições de pesquisa, são avaliados a partir de conceitos e métodos da “agroecologia científica” (...). Finalmente, depois de depurados e “aperfeiçoados” tais conhecimentos e práticas, por esta “ciência”, quanto maior a sintonia entre saber/prática local “resgatado(a)” e critérios científicos pré-estabelecidos, maior será seu valor agroecológico. Feito isso, mais adiante, por meio do extensionista, aquilo que foi “resgatado” pode agora retornar como artefato, técnica ou saber, mas não só ao lugar donde foi extraído. Devidamente higienizados, conhecimentos até então dominados por pessoas que os punham em prática localmente são universalizados, podendo ser aplicados e replicados (como o são “inovações convencionais”) em distintas realidades (GERHARDT, 2014, p. 31).
A crítica de Gerhardt - um contraponto à proposta encabeçada por Caporal - permite vislumbrar a emergência de um modelo etnocientífico de produção do conhecimento agroecológico, no qual o ‘‘saber do agricultor’’ tende a ser reduzido ao conjunto de técnicas agronômicas por ele historicamente cultivadas. Tudo isso, no entanto, atravessado pelo tom discursivo guzmaniano de atenção ao ‘‘social’’. A tensão entre ‘‘obtenção’’ de conhecimento tradicional e seu retorno e “disseminação” a esses grupos de forma padronizada encontra-se de tal modo institucionalizada que se constitui até por um modelo próprio de discursividade, que se refere ao famoso ‘‘relato de experiência’’, formato, inclusive, instituído nas edições do Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA). Neles, articula-se a descrição de um projeto de extensão, com a especificação de uma metodologia ‘‘participativa’’, fundamentada no ‘‘método Paulo Freire’’ e muito frequentemente auto avaliada como bem-sucedida. A título de ilustração:
Este trabalho tem como objetivo relatar a experiência de campo onde ocorreram trocas de saberes e experimentações agroecológicas, durante o Encontro Nacional de Estudantes de Biologia. O mesmo foi resultado de uma construção coletiva de quatro representatividades (extensão rural: EMATER e Projeto PAIS; diversas famílias agricultoras; academia: estudantes de Biologia de universidades brasileiras e OPAC: ABIO), em visita a propriedade da cooperativa familiar AFOJO, no município de Guapimirim. A metodologia utilizada seguiu princípios da Agroecologia, prezando por uma pesquisa participativa e uma pedagogia construtivista buscando a horizontalização de um conhecimento a partir do saber tradicional e acadêmico. Optou-se pela prática da técnica de Adubação Verde; técnica Biointensiva, e elaboração do composto japonês Bokashi. Os resultados foram a aprendizagem e experimentação de uma nova técnica de manejo de solo para os agricultores e técnicos; integração entre diversas entidades relacionadas à agroecologia; e a contribuição das atividades propriamente ditas para o desenvolvimento local (OLIVEIRA et al., 2011, p. 1).
Este modelo contribui para a emergência de extensão agroecológica não destituída de relações de poder hierárquicas, apesar da permanência do enunciado do diálogo dos saberes como relação horizontalizada. Quais seriam as motivações para tal processo que (re)produz relações hierárquicas buscando equivalência? Dentre uma miríade de fatores possíveis, nossa proposta é buscar na estruturação conceitual da questão. Ou seja, a hipótese é que a sustentação epistêmica do diálogo de saberes se dá, de forma subjacente, pelo uso de concepções de ‘‘cultura’’ e ‘‘relação intercultural’’ que convergem para manter o privilégio do universo científico em definir as regras do jogo do diálogo entre técnicos/cientistas e agricultores. Para isso, propõe-se ao leitor um possível olhar (dentre outros) às variações do conceito de cultura no interior da antropologia, que estimule: (1) compreender em que ponto do debate sobre o conceito de cultura o diálogo de saberes se inscreve; e (2) encontrar outros referenciais no qual o mesmo pode ser repensado. Vamos a eles.
Das culturas aos modos de existência
Tomado em seus primórdios, o conceito antropológico de cultura se estabelece com a clássica definição de Tylor, como ‘‘aquele todo complexo’’ (TYLOR, 2005) constituído por quatro dimensões delineadoras básicas: (1) é uma totalidade integrada; que, (2) abrange as esferas do pensamento ‘‘e’’ (e não ‘‘ou’’) da ação humana; (3) a partir de um vetor causal estruturante (pensamento é que produz a ação, ou o contrário?); e, finalmente, (4) é constituída por uma linearidade histórica em formato de sucessão evolutiva. Mais do que uma proposta conceitual circunscrita e datada, o que se apresenta nesta concepção é uma verdadeira agenda metodológica que vai exercer um forte poder demarcador do modo de se fazer antropologia até os nossos dias, tanto no sentido de que alguns desses aspectos são valorizados até hoje, quanto no esforço descomunal de desconstruí-los; esse último, principalmente ao que se refere à quarta característica, a evolutiva. Assim, uma possível forma de entender as transformações do conceito seria observar como cada esforço de conceituação (inclusive as não contempladas nesta revisão) constrói um diálogo crítico implícito ou explicito com esta perspectiva.
Franz Boas, por exemplo, evocou ‘‘renunciarmos ao vão propósito de construir uma história sistemática da evolução da cultura’’ e, ao mesmo tempo, ‘‘começarmos a fazer comparações mais amplas e sólidas (...)’’ (BOAS, 2004, p. 38-39). Uma tentativa de escapar à linearidade evolucionista se configura também com Malinowski, para quem a cultura ‘‘é um sistema de objetos, atividades e atitudes no qual cada uma das partes existe como um meio para um fim; (...) é uma totalidade, em que os diversos elementos são interdependentes; (...) essencialmente, um aparato instrumental; através dela o homem é colocado em posição de melhor tratar os problemas concretos e específicos que enfrenta em seu ambiente’’ (MALINOWSKI, 1986, p. 171-172). Interessante notar, por motivos que não podem ser tratados no escopo deste trabalho, que, em Malinowski, mantém-se os aspectos de ‘‘totalidade integrada’’, ‘‘articulação ação-pensamento’’ e de uma ‘‘relação causal’’ orientada por uma perspectiva materialista (pensamento definido pela ação), mas prescinde da linearidade histórica (diacrônica), a partir de uma opção sincrônica.
A percepção de que as culturas constituem totalidade integrativas levou o primeiro grande esforço teórico pós-evolucionista à sugestão de que grande parte dos eventos sociais inerentes às assim chamadas sociedades não ocidentais se constituiriam em ‘‘fatos sociais totais’’ (MAUSS, 1992), nos quais exprimiriam ‘ao mesmo tempo e de uma só vez, toda espécie de instituições: religiosas, jurídicas e morais (...) e econômicas - supondo formas particulares de produção e consumo, ou antes de prestação e de distribuição’’ (MAUSS, 1992, p. 41). Na constituição das culturas, não apenas os eventos de dimensões diferentes estariam em articulação, mas, em um único evento, poderiam estar sobrepostas e amalgamadas diferentes dimensões desta configuração. Portanto, para este viés de análise antropológica da cultura, tratava-se de reconhecer como determinado ‘‘povo’’, ‘‘comunidade’’ ou ‘‘sociedade’’ apresenta sua forma particular de ‘‘integralidade’’ assim como suas possíveis formas de sobreposição dimensional nos eventos que lhes constituem.
Em um longo e multifacetado processo de mudança nos objetivos e alcances da atuação antropológica - compreendendo um período entre fins de 1940 e começo de 1970 - o reconhecimento das diferentes formas de ‘‘totalidade complexa’’ deixa de ser um objetivo de interesse em si, fortalecendo-se os esforços de busca pelas suas causalidades ‘‘determinantes’’ ou ‘‘estruturantes’’. Com Lévi-Strauss, a busca pelas ‘‘origens secretas’’ de estruturação das culturas (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 349) implicou em uma monumental obra em busca das ‘‘estruturas do inconsciente’’ - os elementos psíquicos que possibilitam a ordenação dos estímulos externos, sejam eles sociais e/ou ecológicos - em modelos relacionais subjacentes aos processos de organização sociocultural das diferentes sociedades. Tanto o ‘‘todo complexo’’ quanto o ‘‘domínio da ação’’ tornam-se epifenômenos do pensamento, sendo este o ‘‘primeiro motor’’ de constituição da(s) cultura(s), de modo que as relações sociais, políticas e simbólicas se constituem como a via de acesso indutivo à estruturas do inconsciente, morada, portanto, fundamento explicativo dos fenômenos culturais.
Outras abordagens buscaram enfatizar o entendimento das configurações culturais a partir das suas dimensões simbólicas e discursivas: ‘‘O conceito de cultura que eu defendo (...) é essencialmente semiótico. Acreditando que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias’’ (GEERTZ, 1989, p. 4). Sem desejar alcançar, como Lévi-Strauss (LÉVI-STRAUSS, 1993), as ‘‘origens secretas’’, a novidade desta abordagem é que Geertz privilegia a dimensão discursiva em detrimento de concepções que propõem conceituações amplas de cultura, a partir da proposta de ‘‘redução do conceito de cultura a uma dimensão justa’’ (GEERTZ, 1989, p. 4). Nesse sentido, Geertz renuncia ao ‘‘todo complexo’’ em prol de seu entendimento como “sistemas simbólicos [utilizados] pelos indivíduos na construção do sentido’’ (GEERTZ, 2001, p. 112). Guardadas as diferenças (que não cabem o tratamento adequado neste artigo), Marshall Sahlins apresenta, em certo momento de sua obra, uma concepção bem semelhante a de Geertz: ‘‘Toma-se a qualidade distintiva da cultura não o fato dessa cultura poder conformar-se a pressões materiais, mas o fato de fazê-lo de acordo com um esquema simbólico definido, que nunca é o único possível (...)’’ (SAHLINS, 2003, p. 12).
Apesar das grandes diferenças entre Lévi-Strauss, Geertz e Sahlins, suas respectivas abordagens denotam um momento histórico no qual os processos de conceituação de cultura, além de rechaçarem a ideia de escalonamento evolutivo, tiram a centralidade explicativa do ‘‘todo complexo’’, assim como fortalecem a relação causal entre ‘‘pensamento’’ e ‘‘ação’’. Dentre os seus muitos efeitos, generaliza-se o fortalecimento do caráter epistemológico dos diferentes povos e sociedades analisados contribuindo como constitutivos de sua ‘‘cultura’’, o que pode ser percebido no título de obras desses autores, como por exemplo ‘‘O Pensamento Selvagem’’ (LÉVI-STRAUSS, 1997) e “O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa” (GEERTZ, 1997).
De forma oposta, mas simétrica, proliferam-se, em meados do século XX, um conjunto de abordagens no qual o elemento estruturante da concepção de cultura se orienta para as dimensões ecológicas. Se para os autores que trabalhamos acima o ordenamento simbólico é autônomo e orientador das dimensões materiais, com a perspectiva ecológica, o aparato cultural seria determinado pelo vetor inverso. ‘‘Ajuste’’ e ‘‘adaptação’’ são as palavras de ordem. Para ‘‘ecologia cultural’’ de Julien Steward, ‘‘(...) el problema consiste en plantearse si los ajustes de las sociedades humanas a sus ambientes requieren de ciertos modos particulares de comportamiento o bien si estos permiten una amplia gama de posibles patrones de conducta” (STEWARD, 1955, p. 1). Apesar do autor ressaltar que “de acuerdo con la mirada holística, todos los aspectos de la cultura son funcionalmente interdependientes unos de otros” (STEWARD, 1955, p. 6), nem todos estes elementos seriam “estruturantes” para o modo de vida particular de um povo ou sociedade: “el grado y la forma de interdependencia, sin embargo, no so iguales para todos los rasgos” (STEWARD, 1955, p. 6).
Para Rappaport, não se trata, como em Steward, de buscar o ‘‘núcleo’’ de articulação causal entre o ecológico e o cultural, mas tentar estruturar uma ‘‘antropologia ecológica’’ a partir da concepção de cultura como ‘‘expressão’’ ecológica, no qual o antropólogo tem de buscar nela o ‘‘significado biológico a los términos clave - adaptación, equilibrio interno, funcionamiento adecuado, supervivencia - de sus formulaciones’’ (RAPPAPORT, 1998, p. 264). Nesse sentido, afirma o autor, “cultura” pode ser pensada como “(...) los medios por los cuales las poblaciones humanas se mantienen en los sistemas ecológicos’’ (RAPPAPORT, 1998, p. 265). No caso destes últimos autores, a ideia de ‘‘todo complexo’’ mantém-se, mas a dinâmica de interações está fortemente ordenada pelo sentido de causalidade ecológica, a ‘‘ação’’ é estruturada pela ‘‘adaptação’’ e o pensamento torna-se uma ‘‘expressão’’desta. Cabe ressaltar, ainda, que esta perspectiva conviveu de forma mais tolerante com posicionamentos evolucionistas (STEWARD, 1955), nos quais seus ecos podem fazer-se sentir, de forma implícita, até os nossos dias.
Em fins dos anos 1970, mas principalmente nos 1980, inicia-se um movimento quase que simultâneo de problematização destes dois vastos campos de orientação antropológica - a ‘‘simbólica’’ e a ‘‘ecológica’’. Em um livro escrito em 1975, mas pouco conhecido do público brasileiro até 2010, Roy Wagner inicia um debate que propõe um olhar reflexivo à própria ideia de ‘‘cultura’’ e os efeitos de sua operacionalização na atividade profissional do antropólogo. Para o autor, há no âmbito do trabalho antropológico um processo de ‘‘invenção da cultura’’. A noção de invenção não se confunde com a ideia de ‘‘ilusão’’ ou ‘‘ficção’’, mas como ‘‘criação’’ de um sentido articulador que, no curso da vida cotidiana, não é apreendido como tal. A consciência de um ‘‘modo’’ de vida, seja do antropólogo em relação ao nativo, ou o seu inverso, só ‘‘emerge’’ na confrontação entre essas duas ‘‘existências’’ sociais.
Nesse sentido, o ‘‘todo complexo’’ constitutivo das culturas seria produzido por ações integrativas conformadas e delineadas em um ‘‘sistema total de conceitualização’’ (WAGNER, 2010). Ele seria a conceitualização do vivido, do experimentado, produzido no duplo processo de confrontação entre ‘‘eu’’ e o ‘‘outro’’. Interessante é que, para Wagner, tanto as abordagens ecológicas quanto as simbólicas se manifestam como exercícios ‘‘controladores’’ que revestem sentido à ação plasmadora totalizante necessária para se conceber antropologicamente a ‘‘cultura’’. A proposta de Wagner abre espaço para o entendimento de que o antropólogo, no processo de transição entre mundos, deve estar permeável à conceitualização que o nativo faz de seu próprio mundo, na medida em que a situação etnográfica também é ‘‘antropológica’’ para o nativo. Ou seja, na transição entre mundos, a condição fundamental de conceitualização também é realizada pelo nativo, mas não nos termos produzidos pelo pesquisador. Se, portanto, o processo é equivalente, seu ‘‘conteúdo’’ não o é.
Se ‘‘cultura’’ só existiria em contornos dialogicamente ‘‘inventados’’ pelo controle conceitual do que é vivido de forma fluída e fugidia, há que se prestar atenção em pelo menos três aspectos que nos interessam diretamente. Primeiro, a antropologia produzida pelo nativo sobre nós e sobre ele mesmo teria valor equivalente à antropologia ‘‘do’’ antropólogo. Desse modo, a validade dos diferentes conceitos de cultura (assim como seus parâmetros de complexidade e causalidade) passariam a ser questionados enquanto modelos ‘‘universais’’ de definição sobre os modos de existência. Não poderiam, dessa maneira, definir o que o ‘‘outro’’ conceberia sobre o seu próprio modo de vida.
Em outras palavras, o conceito de ‘‘cultura’’, seja ele orientado por uma perspectiva simbólica ou ecológica, só poderia servir como ‘‘uma’’ perspectiva, não sendo adequado projetá-la ao entendimento do ‘‘outro’’ sobre sua própria existência, porque os processos que estes usam para conceber o seu modo de vida seriam relativamente os mesmos que os nossos, mesmo quando os seus ‘‘conteúdos’’ fossem radicalmente diferentes do nossos. Nada autoriza, portanto, afirmar que o modelo de cultura por nós concebido seja mais ‘‘coerente’’ do que o outro, inclusive em sua noção de complexidade e causalidade. Segundo, se cultura se apresenta como a substancialização de ‘‘fluxos’’ do vivido, o conceito de natureza também o seria, inclusive sendo as duas dimensões construídas uma em contrapartida da outra. Nesse sentido, a própria divisão ontológica entre ‘‘natureza’’ e ‘‘cultura’’, assim como os vetores de causalidade entre elas (‘‘adaptação’’ ou ‘‘ordenamento simbólico’’), não poderiam ser arbitrariamente estendidas a outros modos de vida, já que seus entendimentos sobre a interação entre elementos humanos e não humanos poderiam diferir do nosso. Por fim, se estes reconhecimentos se dão na tensão entre processos de conceitualização, uma decorrência inevitável é que o próprio pensamento antropológico passa a questionar o uso ‘‘per se’’ do conceito de cultura como seu terreno básico de atuação, tal como pode ser observado em Latour:
Ora, não existem nem culturas - diferentes ou universais - nem uma natureza universal. Existem apenas naturezas-culturas, as quais constituem a única base possível para comparações. A partir do momento em que levamos em conta tanto as práticas de mediação quanto as práticas de purificação, percebemos que nem bem os modernos separam os humanos dos não-humanos nem bem os “outros” superpõem totalmente os signos e as coisas’’ (LATOUR, 1994, p. 102).
Se há um processo de contestação do conceito de cultura, o que o substituiria? O reconhecimento que os fluxos do vivido ‘‘associam’’ elementos humanos e não humanos pode ser expresso pela conhecida opção conceitual de ‘‘rede sociotécnica’’, consagrada por Bruno Latour: ‘‘existe um fio de Ariadne que nos permitiria passar continuamente do local ao global, do humano ao não-humano. É o fio da rede de práticas e de instrumentos, de documentos e traduções’’ (LATOUR, 1994, p. 119). A proposta seria de que existem diferentes formas de associação entre os ‘‘entes atuantes’’, ou actantes, sejam eles de origem técnica, animal, vegetal ou humana não apreensíveis por vetores de causalidade ecológicos ou simbólicos pré-estabelecidos. Uma outra possibilidade, em concorrência com a de Latour, seria a de Tim Ingold, expressa através do conceito de ‘‘malha’’ ou ‘‘teia’’ (INGOLD, 2015). Nela, o pressuposto fundamental é de que ‘‘o organismo (animal ou humano) deva ser entendido não como uma entidade limitada rodeada por um ambiente, mas como um emaranhamento ilimitado de linhas em um espaço fluído’’ (INGOLD, 2015, p. 113). Assim, continua, os sistemas vivos são caracterizados por um acoplamento, que ‘‘é tanto uma condição de exercício da agência quanto da fundação da habilidade’’. Ou seja, os diferentes “mundos” seriam “malha(s) de vida de linhas emaranhadas de crescimento e movimento” (INGOLD, 2015, p. 111).
Esse processo de profunda reconfiguração do status do termo cultura no interior do debate antropológico tem estimulado alguns autores a afirmar a existência de uma ‘‘virada ontológica’’ na antropologia, em substituição ao longo predomínio de uma orientação epistemológica ou cognitivista do campo. Um bom exemplo pode ser expresso pelas palavras de Viveiros de Castro, ao afirmar que “(...) a noção de ontologia não é empregada aqui para sugerir que o pensamento indígena exprime mais uma metafísica do Ser (...), mas sim para sublinhar que esse pensamento é inseparável de uma realidade que constitui o seu exterior’’ (VIVEIROS DE CASTRO, 2001, p. 17).
O reconhecimento do caráter inventivo do conceito de cultura, assim como alguns dos seus desdobramentos aqui dispostos, demonstram que, para além do esforço de alcançar a equivalência entre diferentes, buscando-se eliminar os resquícios evolucionistas no debate antropológico, há um ‘‘retorno’’ do entendimento dos modos de existência enquanto totalidades ou totalizações complexas, expressas na utilização de termos como ‘‘rede’’ ou ‘‘malha’’. Por outro lado, coloca-se um importante ‘‘senão’’ à questão da relação de causalidade, ou determinação, entre ‘‘pensamento’’ e ‘‘ação’’. Não se trata, bem entendido, de se negar o estabelecimento de vinculações entre fenômenos, mas antes, reconhecer que estes não podem ser fixados a priori, sendo a que multiplicidade de diferentes modos de associação confirma e acentua a necessidade de olhares metodologicamente orientados, mas abertos e não apriorísticos, para os diferentes modos de existência.
A crítica que antropólogos de orientação ontológica (LATOUR, 1994; VIVEIROS DE CASTRO, 2015) ou fenomenológica (INGOLD, 2015) fazem à abordagem cognitivista é que, ao reduzir o fenômeno cultural à ‘‘concepção’’, ao ‘‘saber’’ ou ao ‘‘significado’’, ela traz para dentro da ontologia ocidental os outros modos de vida, fazendo-os operar em uma dinâmica política cujo campo de possibilidades está estruturado pela perspectiva cientificista, mesmo que seus agentes estejam imbuídos de toda boa intenção e comprometimento. Nesse sentido, o encontro entre duas ‘‘culturas’’ implicaria em algo a mais do que a aproximação e diálogo entre concepções.
Viveiros de Castro, por exemplo, afirma que, em todo encontro intercultural, o pressuposto básico é o do ‘‘equívoco’’: ele ‘‘(...) não é uma falha subjetiva, mas um dispositivo de objetivação’’, afirma o autor, ‘‘não é um erro ou uma ilusão (...), mas condição-limite de toda relação social, condição que se torna, ela própria hiperobjetivada na relação dita ‘‘intercultural’’, onde os jogos de linguagem divergem maximamente’’ (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 93). Não seria erro ou ilusão porque não estaria em jogo a pertinência de uma ‘‘verdade’’ ou uma realidade unívoca por trás das concepções, já que as diferentes existências sociais implicariam em diferentes realidades. A interlocução entre esses ‘‘modos de ser’’ só engendraria um ‘‘diálogo’’ se fosse possível um processo de tradução que, como tal, possibilitaria uma comunicação que não elimina o equívoco, mas permite ‘‘controlá-lo’’ (VIVEIROS DE CASTRO, 2015). Nesse sentido, ‘‘uma tradução digna deste nome (...) é aquela que trai a língua de destino, não a original’’. ‘‘A boa tradução’’ prossegue o autor ‘‘é aquela que consegue fazer que os conceitos alheios deformem e subvertam o dispositivo conceitual do tradutor, para que o intentio do dispositivo original possa ali se exprimir, e assim transformar a língua de destino. Tradução, traição, transformação (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 87).
Ou seja, para o autor, se o equívoco é a premissa, é o pressuposto básico do encontro entre diferentes, o estranhamento e as divergências de entendimento são um ponto de partida das interações. Promover o ‘‘controle’’ do equívoco por meio da ‘‘tradução traidora do tradutor’’, implicaria em reconhecer: (1) a potencialidade do conflito latente entre diferentes; (2) que pressuposições e esquemas apriorísticos de entendimento, mesmo que ‘‘conceituais’’ e cientificamente validados, são o terreno básico para a equivocidade e para o estabelecimento de esquemas hierárquicos de convívio, inclusive para aqueles que pretendem ‘‘ensinar’’, ‘‘formar’’ e ‘‘capacitar’’ o outro; e, enfim, (3) que traduzir significa transformar-se pelo aprendizado com o outro, em um processo que implica na autocrítica de suas prerrogativas existenciais. Para finalizar, cabe destacar que, para essa perspectiva, controlar o equívoco por meio da tradução não consistiria em construir uma condição de universalidade reguladora de estabilização das diferenças: ‘‘O erro ou ilusão por excelência consistiria, justamente, em imaginar um unívoco por baixo do equívoco, e que o antropólogo seria o seu ventríloquo’’ (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 95).
Enfim, e o diálogo de saberes?
É neste ponto que voltamos ao diálogo de saberes proposto pela agroecologia. É possível localizar os pressupostos culturais que atendem à sua construção teórico-conceitual neste debate? Como esse exercício pode contribuir para a explicitação dos limites desta proposta e seus desdobramentos?
Em primeiro lugar, é perceptível que a concepção de cultura subjacente do diálogo de saberes opera em um registro epistemológico/cognitivista de orientação ecológico-cultural. Isto pode ser observado, por exemplo, no recorrente apoio que vertentes importantes da agroecologia buscam na etnociência. Isto implica em afirmar que os pressupostos culturais estabilizados no debate agroecológico se apresentam como simplificadores da complexidade dos modos sociais de existência neles implicados, porque: (1) apoiam-se em concepções que aplicam aprioristicamente um modelo de funcionamento das dinâmicas culturais e; (2) agem sobre elas a partir destas pressuposições.
Em segundo lugar, como vimos, a proposta de relação intercultural que sustenta o diálogo de saberes se constitui sob a égide do encontro harmonioso e da aspiração à univocidade, na medida em que ela se propõe como terreno epistemológico de integração, via ‘‘diálogo’’, entre conhecimentos científicos e não científicos. Para uma certa antropologia, o equívoco é o pressuposto básico do encontro entre diferentes, sendo que a interlocução dificilmente se perfaz em uma linguagem integrativa comum, mas na confrontação entre diferentes jogos de linguagem. Assim, um processo político de construção agroecológico pode ser pensado como uma dinâmica de tradução que visa ‘‘controlar’’ a equivocidade, e não a eliminar. Isto implica em aceitar que o edifício científico-político da agroecologia vem sendo construído “no” e “pelo” conflito, na tensão não linear entre estranhamento e aproximação. Algo que suas forças estabilizadoras não podem/conseguem ocultar.
Em terceiro lugar, cabe destacar que o pressuposto do ‘‘diálogo’’ contribui para que parte das iniciativas agroecológicas mantenham e atualizem ações político-epistemológicas colonizadoras - tal como observado de forma crua por Gerhardt (2014) - porque seu ‘‘diálogo’’ é construído em um campo de possibilidades estruturado no universo científico. Assim como a ontologia cientificista aceita várias e diferentes ‘‘concepções’’ ou ‘‘cosmovisões’’ culturais sobre ‘‘a natureza’’ (um pressuposto seu e não necessariamente de outros modos de existência), a agroecologia, por exemplo, aceita diferentes ‘‘saberes’’ na construção de um ‘‘agroecossistema’’, termo seguramente exótico a qualquer realidade social extra-científica. Se o denominador comum é científico, os pressupostos de coadunação também o são, e o ‘‘conhecimento tradicional’’ servirá ao se apresentar como a ‘‘expressão’’ adaptada ao arcabouço ecológico subjacente a ele.
Qual seriam as condições, então, de se construir uma dinâmica política de alteridade agroecológica, que pudesse complexificar, a partir das contribuições da antropologia, a consolidada ideia de diálogo de saberes? Como, portanto, construir o projeto epistemológico da agroecologia sob a perspectiva da interculturalidade sem promover uma dissociação entre pensamento e ação e orientado pelas ideias de equivocidade e tradução?
Propõe-se, portanto, de forma incipiente e a ser trabalhada em outros artigos, que uma dinâmica política de alteridade agroecológica deve ser orientada por duas diretrizes, uma teórica e outra metodológica.
Em primeiro lugar, pela ideia de uma dupla extensionalidade agroecológica. Ou seja, para além de ‘‘uma intervenção de caráter educativo e transformador’’ (CAPORAL; COSTABEBER, 2000, p. 32), ainda que de forma participativa que se desenvolve a partir da relação eu-outro, um duplo vetor de aprendizado poderia, antes de tudo, fundar-se no sentido outro-eu (portanto, centrado não no procedimento de ensinar, mas no ato de aprender). Isso, tendo como ponto de partida o aprendizado do técnico sobre o modo de existência de agricultores e agricultoras, gerando-se as condições de uma contrapartida de aprendizagem dos agricultores e agricultoras sobre o modo de existência dos técnicos e técnicas. Assim, a dupla extensionalidade poderia se constituir em uma experienciação de caráter autoeducativo e autotransformador na tensão entre aproximação e estranhamento de técnicos/técnicas e agricultores/agricultoras.
Isso implicaria em mover o centro de gravidade da extensão agroecológica da educação popular para a experiência etnográfica. Esta, nascida no (mas não reduzida ao) campo antropológico, se configura como um princípio de conhecimento ou método que se funda em dois procedimentos metodológicos básicos: a vivência in loco (observação direta) e o inquérito oral (em forma de entrevistas radicalmente abertas) do pesquisador no modo de vida a ser pesquisado. A etnografia se beneficia da tensão estranhamento-aproximação entre etnógrafo e nativo para construir as condições afetivo-intelectivas de entendimento e descrição integrativa desse mundo interrogado. Interrogação que produz seu duplo, ou seja, o interesse e curiosidade do nativo sobre o mundo do etnógrafo. É sobre a etnografia que se estabelece a proposta de tradução tal como trabalhada neste texto. Radicalizar as condições de horizontalidade dessa dupla condição de interesse e curiosidade sobre o mundo do outro tem sido o grande desafio antropológico contemporâneo.
Finalmente, os contextos agroecológicos de produção de conhecimento e de transformação social têm muito a contribuir e a se beneficiar com esse desafio. O ponto de partida é o desejo de se lançar a ele.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Dez 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
-
Recebido
15 Mar 2018 -
Aceito
22 Ago 2019