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Segurança hídrica, abastecimento metropolitano e mudanças climáticas: considerações sobre o caso do Rio de Janeiro

Resumo

Este trabalho avalia o nível atual de segurança hídrica da população da Metrópole do Rio de Janeiro abastecida pelo Sistema Guandu. Parte-se do pressuposto que a segurança hídrica é alcançada somente quando há universalização do acesso à água pela população, ou seja, quando há disponibilidade de água bruta, em quantidade e qualidade, e serviços de água que garantam o direito humano de água. Com base em pesquisas anteriores, revisão bibliográfica, documentos oficiais e entrevistas, foi possível adaptar e aplicar um esquema analítico de avaliação qualitativa de segurança hídrica ao Sistema Guandu. Conclui-se que são muitos os riscos associados à água bruta, incluindo estressores climáticos, mas é o desempenho do sistema de distribuição de água tratada que mais compromete a segurança hídrica atual da população do oeste metropolitano; a disponibilidade de água bruta, atual e futura, não é o impeditivo para a universalização do acesso à água.

Palavras-chave:
Segurança hídrica; Abastecimento público; Mudanças climáticas; Sistema Guandu; Região Metropolitana do Rio de Janeiro

Abstract

In this article the authors assess the current level of water security of the population of the Rio de Janeiro metropolis supplied by the Guandu System. It sets out from the premise that water security is only achieved when universal access to water is ensured - that is, when water resources are available, in adequate quantity and quality, along with water services that guarantee the human right to safe drinking water. Based on previous research, a review of the literature and official documents, it was possible to adapt and apply an analytic schema to the case study in order to evaluate the level of water security. The authors conclude that there are many risks associated with the water resources, including climate stressors, but it is the performance of the water supply service that most jeopardizes the current water security of the population of the Rio de Janeiro metropolis; the availability of water resources, both current and future, is not an obstacle to universal access to water.

Keywords:
Water security; drinking water supply; climate change; Guandu System; Rio de Janeiro Metropolitan Region

Resumen

Este trabajo evalúa el nivel actual de seguridad hídrica para la población de la metrópoli de Río de Janeiro abastecida por el Sistema Guandu. La seguridad del agua solo se logra cuando la población tiene acceso universal al agua: cuando hay agua cruda disponible, en cantidad y calidad, y servicios de agua que garantizan el derecho humano al agua potable. Basado en investigaciones previas, una revisión de la literatura y documentos oficiales, fue posible adaptar y aplicar un esquema analítico de evaluación cualitativa de la seguridad del agua al estudio de caso. Se concluye que existen muchos riesgos asociados con el agua cruda, incluidos los estresores climáticos, pero es el desempeño del sistema de distribución de agua tratada lo que más compromete la seguridad hídrica actual del oeste metropolitano; La disponibilidad de agua cruda, tanto actual como futura, no es un obstáculo para el acceso universal al agua.

Palabras-clave:
Seguridad hídrica; Abastecimiento de agua potable; Cambio climático; Sistema Guandu; Región Metropolitana de Río de Janeiro

Introdução

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), pactuados pela ONU, apontam a mudança climática como um dos maiores desafios atuais cujos impactos podem comprometer a capacidade dos países de alcançar o desenvolvimento sustentável. Foram definidos 17 ODS com 169 metas associadas, em vigor desde janeiro de 2016 a serem alcançadas até 2030.

Observando ambientes metropolitanos sob o princípio assumido na Agenda 2030 de que os ODS são integrados e indivisíveis, este trabalho toma como ponto de partida o ODS 6 - “assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos” -, associado ao ODS 13 - “tomar medidas urgentes para combater a mudança climática e seus impactos (...)”.

Áreas densamente urbanizadas pressionam fortemente os recursos hídricos ao demandarem grandes volumes de água para o abastecimento público e atividades produtivas, ao mesmo tempo em que provocam a deterioração da qualidade das águas. A intensificação e a extensão da urbanização tornam os sistemas urbanos de abastecimento mais vulneráveis em um cenário de mudança do clima, em particular de secas mais frequentes e/ou mais severas, como observado recentemente em metrópoles brasileiras (FORMIGA-JOHNSSON; LEMOS; SOUZA-FILHO, 2019NAUDITT et al. A grande seca de 2014-2015 na Bacia do rio Paraíba do Sul [...]. In: SOUZA-FILHO et al. (Coord.). ADAPTA - Gestão adaptativa do risco climático de seca. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2019. p. 825-840.; e BRITTO; FORMIGA-JOHNSSON; CARNEIRO, 2016BRITTO, A. L.; FORMIGA-JOHNSSON, R. M.;CARNEIRO, P. R. F. Abastecimento público e escassez hidrossocial na Metrópole do Rio de Janeiro. Ambiente & Sociedade, v. 19, n. 1, p. 183-206, 2016.).

Projeções da Agência Nacional de Águas (ANA, 2010) estimam que 77 sedes municipais do país, concentradas em regiões metropolitanas e áreas litorâneas, compreenderão 42% da população total brasileira no ano de 2025, projetada em cerca de 223 milhões de pessoas.

Nesse contexto, este trabalho tem por objetivo observar e discutir a segurança hídrica do abastecimento público da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), considerando o Sistema Produtor de Água do Guandu (Figura 1). Ele atende 78% da população metropolitana - ou 8,3 milhões de pessoas - e é fortemente dependente das águas transpostas da Bacia do rio Paraíba do Sul, que vivenciou em 2014 sua seca mais severa desde 1931.

Figura 1
Sistema Guandu no contexto do abastecimento da Metrópole do Rio de Janeiro.

O conceito de segurança hídrica aqui adotado é amplo, pois parte do pressuposto que somente é alcançado quando há universalização do acesso à água segura pela população, como defendido por Jepson et al (2017JEPSON, W. et al. Advancing human capabilities f or water security: A relational approach. Water Security, n. 1, p. 46-52, 2017.) e Empinotti, Cortez e Ferrara (2020EMPINOTTI, V.; R CORTEZ, R. S.; FERRARA, L. N. Coronavírus e segurança hídrica: é preciso acesso universal à água. Carta Capital, 10 de abril de 2020.). Ou seja, a avaliação do nível de segurança hídrica do abastecimento urbano aqui proposta integra o gerenciamento dos recursos hídricos, que deve garantir a disponibilidade de água em quantidade e qualidade para o abastecimento público, inclusive face aos extremos climáticos, com a gestão dos serviços responsáveis pela captação, tratamento, reservação e distribuição da água tratada para o usuário final, que deve garantir o direito humano de água potável segura.

Para desenvolver o trabalho proposto, foi feita inicialmente uma breve revisão sobre água e mudanças climáticas e examinado como o tema é tratado nos documentos oficiais de planejamento do estado fluminense. Na sequência, foi feita uma adaptação e aperfeiçoamento do esquema analítico de avaliação qualitativa da segurança hídrica de abastecimento urbano - resultado de pesquisas anteriores - ao caso do Sistema Guandu/RMRJ. Em seguida, procedeu-se à sua aplicação, com base em revisão bibliográfica e documentos oficiais, complementado por entrevistas.

Água e Mudanças Climáticas

As mudanças climáticas e seus impactos potenciais sobre os recursos naturais foram objeto de estudos sistemáticos, notadamente a partir da criação do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) em 1988 e da publicação dos relatórios de 2001, 2007 e 2014. Há atualmente poucas dúvidas de que a mudança do clima vem se manifestando de diversas formas sob influência das ações humanas, destacando-se o aquecimento global, maior frequência e intensidade de eventos extremos, mudança dos padrões de precipitação, perturbações nas correntes marinhas, redução de geleiras e elevação do nível do mar.

Pesquisadores têm ressaltado que as águas serão fortemente afetadas pelas mudanças climáticas (IPCC, 2007 e 2014; BATES et al., 2008BATES, B.C et al. (Coord.). Technical Paper. Climate Change and Water. Geneva: IPCC Secretariat, 2008.; MMA, 2016; ANA, 2016). Para Conway (2013CONWAY, D. Water Security in a Changing Climate. In: Lankford, B. et al. (Coord.). Water Security: Principles, Perspectives and Practices. London, Routledge, 2013. p. 80-100.), a incerteza é particularmente alta quanto aos padrões futuros de precipitação, sendo possível que a precipitação flutue ao longo de décadas, induzindo períodos úmidos e secos no mesmo local. Tal incerteza tem forte influência sobre a pesquisa e abordagens práticas para a adaptação no setor de água, pois quebram um paradigma básico da gestão das águas: a confiança em observações do passado para representar as condições atuais e futuras. Mesmo altamente incertos, os efeitos das mudanças climáticas afetarão todas as dimensões da segurança hídrica, sobretudo a frequência e a intensidade de inundações e secas. Em regiões com redução de chuvas, espera-se a piora da qualidade das águas de mananciais de abastecimento durante os períodos de estiagem severa e de seca.

Em suma, é esperado que os riscos relacionados à água para abastecimento público - associados a extremos de excesso e escassez - aumentem de forma significativa. Nas metrópoles, estes afetarão sistemas e populações já bastante vulneráveis por outros estressores tais como o aumento da demanda hídrica decorrente do crescimento populacional e econômico, a pobreza e o crescimento urbano desenfreado, que suprimem ecossistemas e reduzem a resiliência.

No Brasil, muitas iniciativas e estudos têm se dedicado nos últimos dez anos aos impactos das mudanças climáticas. Todavia, persistem lacunas importantes de informação sobre mudanças climáticas e recursos hídricos como apontado pela ANA (2016) e pelo Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (MMA, 2016). Estes apontam a necessidade de estudos em projeções climáticas e seus impactos sobre a disponibilidade hídrica, ressaltando a desconstrução do fenômeno da estacionariedade, já que séries hidrológicas assumem tendências crescentes ou decrescentes, ainda não consideradas até então.

Mudanças climáticas no contexto de políticas e planos da RMRJ

As mudanças climáticas tornaram-se um tema de política pública para a RMRJ a partir de 2010, quando foi aprovada a lei que define a Política Estadual de Mudanças Climáticas (Lei no 5690/2010 e Decreto no 43.216/2011). Esse marco legal é extremamente genérico no tocante à água. É somente apontado uma ampliação de 40 para 400 km lineares de projetos e obras em margens de rios até 2030, a fim de minimizar os impactos de chuvas intensas e recuperar ambientalmente áreas sob ocupação desordenada. A questão da segurança hídrica não é abordada. Ou seja, a política pública de mudança climática oficialmente instituída, pela sua incipiência e incompletude, oferece poucos instrumentos para tratar da água e sua gestão.

Outros instrumentos de planejamento - o Plano Estadual de Recursos Hídricos (PERHI, 2014) e o estudo da Federação das Indústrias (FIRJAN, 2015) - tratam de segurança hídrica em geral, mas não a relacionam às mudanças climáticas. Já o Plano Nacional de Segurança Hídrica (ANA, 2019) aborda a segurança hídrica da RMRJ sob a ótica da infraestrutura.

O planejamento mais importante para o objeto deste estudo é o Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano Integrado da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (PDUI, 2018), previsto na Lei Estadual no 5.192/2008 em resposta à demanda do Estatuto da Metrópole. Apesar da existência de estudos anteriores (projeto “Megacidades Vulnerabilidade e Mudanças Climáticas” - INPE-Unicamp/ NEPO de 2011), o PDUI não aprofunda o tema de mudanças climáticas; é somente mencionada a necessidade de adaptar as infraestruturas existentes e ampliar a resiliência das estruturas urbanas da metrópole, como detalhado ao longo deste trabalho.

Segurança hídrica: conceitos e esquema analítico

Cook e Bakker (2012COOK, C.; BAKKER, K. Water security: Debating an emerging paradigm. GlobalEnvironmental Change, v. 22, n. 1, p. 94-102, 2012.) e Melo (2016) apontam que o uso da expressão “segurança hídrica” reflete diferentes entendimentos e/ou abordagens de diferentes disciplinas e diferentes atores - academia, organismos multilaterais, gestores das águas, poder público e sociedade civil. Os autores ressaltam a ampliação do conceito, inicialmente focado na quantidade de água para o uso humano, para questões de qualidade, saúde pública e preocupações ecológicas, sendo também abordado em diferentes escalas: municipal/local/comunitária; regional, da bacia hidrográfica; níveis estaduais ou provinciais; nacional; e supranacional.

O dinamismo conceitual da pesquisa sobre segurança hídrica é também apontado por Jepson et al. (2017JEPSON, W. et al. Advancing human capabilities f or water security: A relational approach. Water Security, n. 1, p. 46-52, 2017.). Estes apontam o número expressivo de artigos e livros enfatizando questões de risco, direitos, sustentabilidade e adaptação ambiental, qualidade da água e complexidade, apesar da predominância da definição de segurança hídrica em termos de excesso ou escassez de água bruta. Os próprios autores ampliam o conceito ao alcançar o direito humano à água, incluindo acesso, quantidade, qualidade e acessibilidade econômica do abastecimento humano, incorporados nos ODS, que passaram a ser vistos como parâmetros-chave para avaliar a segurança hídrica (JEPSON et al. 2017JEPSON, W. et al. Advancing human capabilities f or water security: A relational approach. Water Security, n. 1, p. 46-52, 2017.). Este conceito alinha-se ao defendido por Empinotti, Cortez e Ferrara (2020EMPINOTTI, V.; R CORTEZ, R. S.; FERRARA, L. N. Coronavírus e segurança hídrica: é preciso acesso universal à água. Carta Capital, 10 de abril de 2020.), para quem o acesso universal à água deve ser uma das premissas da segurança hídrica e que, sem a universalização, vive-se sob uma permanente insegurança hídrica, comprometendo um direito humano básico.

Na mesma linha, este trabalho interessa-se pela segurança hídrica do abastecimento humano da RMRJ de ponta a ponta, compreendendo, portanto, duas dimensões principais, conforme definidas por Melo (2016): (i) a garantia da segurança hídrica em termos de quantidade e qualidade de água bruta, que tem como domínio a região hidrográfica a montante do ponto de captação, e é atribuição do órgão gestor de recursos hídricos, em articulação com o sistema de gestão ambiental e demais políticas correlatas; e (ii) o abastecimento de água potável da população, que geralmente fica a cargo dos municípios e de seus concessionários que prestam os serviços. Caso falhem os dispositivos de controle dos subsistemas associados a esta função, quais sejam, captação, tratamento, reservação e distribuição, pode ocorrer diminuição significativa da segurança hídrica de abastecimento de água tratada para o consumidor final.

A Figura 2 propõe um esquema analítico envolvendo as duas dimensões de segurança hídrica, que orienta a análise qualitativa de segurança hídrica do abastecimento do Oeste metropolitano do Rio de Janeiro, desenvolvida nos próximos itens deste trabalho.

Figura 2
Esquema analítico para análise qualitativa da segurança hídrica do abastecimento público da RMRJ pelo Sistema Guandu

Segurança hídrica associada à água bruta - Sistema Guandu

Inspirado de Nogueira (2011NOGUEIRA, M. A. R. B. Variabilidade climática, disponibilidade hídrica e ETA Guandu [...] 2011. Dissertação (Mestrado em Engenharia ambiental). UERJ, Rio de Janeiro.), os fatores de estresse foram o eixo da avaliação, elencados na Figura 2 acima, aos quais foram associados os impactos sobre a água bruta captada, bem como as ações de gestão em resposta aos estressores/impactos.

Dependência da Bacia Paraíba do Sul & Infraestrutura de transposição

Documentos oficiais admitem: a maior vulnerabilidade do abastecimento metropolitano é a sua profunda dependência das águas da Bacia do rio Paraíba do Sul (PERHI, 2014; PDUI, 2018; ANA, 2019). A concentração da oferta de água bruta sobre um único manancial diminui a capacidade de reação em caso de falha (PDUI, 2018). Conforme apontado pelo PERHI (2014), 83% da população metropolitana, ou 9,4 milhões de pessoas, são abastecidas pelos Sistemas Guandu/Lajes/Acari.

Desses três sistemas o mais importante é o Sistema Guandu que depende exclusivamente das águas transpostas da bacia do rio Paraíba do Sul, por meio do denominado “Sistema Hidráulico Paraíba do Sul-Guandu”. Este é formado por um complexo conjunto de rios, reservatórios, usinas hidrelétricas e demais estruturas hidráulicas que envolvem a parte alta e média da Bacia Paraíba do Sul bem como a Bacia do rio Guandu, por meio da transposição que interliga as duas bacias, na altura da Estação elevatória de Santa Cecília, no rio Paraíba do Sul.

Inicialmente concebida para gerar energia, a transposição é hoje mais importante para o abastecimento metropolitano e de muitas indústrias na Bacia do rio Guandu. A Estação de Tratamento de Água (ETA) Guandu capta cerca de 42m³/s continuamente e está atualmente em expansão para captar e tratar mais 12m³/s. A CEDAE, companhia fluminense que opera a ETA e o Sistema Guandu, tem ainda mais 12m³/s adicionais como reserva futura de água, totalizando 24m³/s de reserva hídrica. Ou seja, a dependência da Bacia do rio Paraíba do Sul se tornará ainda mais importante.

Por essa razão, outro aspecto muito relevante para a segurança hídrica da RMRJ é a própria infraestrutura hídrica de transposição das águas, operada pela Light, que é parte do Sistema Hidráulico Paraíba do Sul-Guandu. Existe atualmente uma fragilidade relacionada às partes dessa infraestrutura que não recebem a devida manutenção preventiva desde 1978. Por serem manutenções que impõem uma longa paralisação da transposição, estas se tornaram inviáveis com a dependência do abastecimento metropolitano.

Esta questão foi muito discutida em 2010, quando um estudo de mitigação de risco feito pela Light (2010, apudNOGUEIRA, 2011NOGUEIRA, M. A. R. B. Variabilidade climática, disponibilidade hídrica e ETA Guandu [...] 2011. Dissertação (Mestrado em Engenharia ambiental). UERJ, Rio de Janeiro.) apontou pela necessidade de construção de um sistema de redundância da transposição, defendida por todos os planos que se sucederam (PERHI, 2014; PLANO GUANDU, 2018; PDUI, 2018; e ANA, 2019). Até o presente, a infraestrutura de transposição tem sido capaz de garantir água bruta para a ETA Guandu. Mas uma solução se faz urgente.

Pressão sobre a quantidade

Segundo o Plano Estadual de Recursos Hídricos (PERHI, 2014), a outorga atual (45 m3/s) e as duas reservas de disponibilidade hídrica (12 m3/s cada) da CEDAE para a ETA Guandu totalizam uma vazão superior à necessária para universalizar o acesso à água atual e futuro na área de atendimento do Sistema Guandu, no oeste metropolitano do Rio de Janeiro; o prognóstico considerou o aumento populacional até sua estabilização em 2047 e adotou o pior cenário de planejamento, com poucas ações efetivas de uso racional da água.

Portanto, em termos de disponibilidade hídrica em quantidade, observa-se aparente conforto e segurança em situações de normalidade hidrológica. Contudo, nosso estudo permitiu evidenciar que há enorme vulnerabilidade potencial associada a fatores de estresse sobre as águas da Bacia do rio Paraíba do Sul.

Primeiro, em função da demanda crescente por água na bacia doadora, a vazão mínima da transposição do rio Paraíba do Sul para o Guandu tem diminuído ao longo do tempo, com mudanças nas regras de operação do Sistema Hidráulico, passando de 160 m3/s para 119 m3/s, exceto em casos de excedentes de água (COSTA et al., 2015COSTA, L. F.; FARIAS JUNIOR, J. E. F.; FORMIGA-JOHNSSON, R. M.; ACSERALD, M. V. Crise hídrica na Bacia do rio Paraíba do Sul: enfrentando a pior estiagem dos últimos 85 anos. Revista Ineana, v. 3, n. 1, p. 26-47, 2015.).

Segundo, a transposição para o Guandu tem sido cada vez mais objeto de polêmicas, envolvendo São Paulo e a própria Bacia do rio Paraíba do Sul, inclusive na sua parte fluminense (Registros de reuniões do Grupo de Trabalho de Acompanhamento da Operação Hidráulica na bacia do rio Paraíba do Sul - GTAOH/CEIVAP, entre 2014 e 2019)1 1 - Disponíveis em http://www.ceivap.org.br/ophidraulica.php. . São apontados vários fatores que podem deflagrar conflitos futuros envolvendo propostas de redução da transposição Guandu: redução da disponibilidade hídrica provocada por variabilidades e mudanças climáticas; aumento da demanda por água na própria Bacia Paraíba do Sul; ou ainda um eventual aumento da vazão transposta para São Paulo, que foi objeto de um conflito federativo entre os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro (FORMIGA-JOHNSSON et al., 2015FORMIGA-JOHNSSON, R.M. et al. Segurança hídrica do Estado do Rio de Janeiro face à transposição paulista de águas da Bacia Paraíba do Sul: relato de um acordo federativo. Revista Ineana, v. 3, n. 1, p.48-69, dez. 2015.).

Em suma, em tempos de normalidade hidrológica a situação pode ser definida como relativamente confortável. Contudo, as secas recentes - objeto do próximo item - evidenciam que a Bacia do rio Paraíba do Sul já é vulnerável em momentos de eventos hidrológicos extremos, o que não se observava até o final dos anos 1990. Portanto, é preciso que o sistema de gestão seja mais eficiente para controlar os usos da água, estimular o uso racional e, sobretudo, construir pactos de alocação de água na Bacia Paraíba do Sul entre os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, sob a coordenação da ANA, incluindo a transposição para o Guandu, tanto para tempos de normalidade quanto de extremos hidrológicos.

Eventos hidrológicos extremos

Estudos disponíveis sobre o histórico de precipitação nas Bacias dos rios Paraíba do Sul e Guandu apresentam resultados conflitantes. Por exemplo, Nobre e Marengo (2017NOBRE, C. A.; MARENGO, J. A. (Coord.). Mudanças climáticas em rede: um olhar interdisciplinar. São José dos Campos: INCT, 2017.) evidenciaram um aumento de chuvas e vazões no Sudeste e Sul do país nos últimos 50 anos; já o Plano Guandu (2018) aponta que os volumes precipitados totais anuais na Bacia do rio Guandu diminuíram nesse mesmo período.

Um indicador importante acerca dos impactos dos eventos climáticos extremos nessas Bacias são as secas severas de 2001-2003 e 2014-2015. Nauditt et al. (2019) evidenciaram a excepcionalidade da seca nesses períodos, sobretudo em 2014-2015, ao constatar forte anomalia de vazão observada na estação fluviométrica “Paraíba do Sul”, localizada na área hidrológica de influência da ETA Guandu (Figura 3). Essa mostra o déficit permanente (<0) ao longo desses períodos em comparação ao período de referência 1935-2016 em todas as escalas de tempo do Índice de Descarga Padronizado (SDI).

Figura 3
Valores do índice de descarga padronizado (SDI) em todas as escalas de tempo mensais para a estação fluviométrica “Paraíba do Sul” (1935-2016).*

Associadas a estressores não-climáticos, a seca severa de 2014-2015 afetou substancialmente a oferta hídrica do rio Paraíba do Sul, e consequentemente das águas transpostas para a bacia do rio Guandu, forçando assim a já complexa gestão das águas nessas Bacias a tornar-se mais adaptativa.

Para tanto, o Comitê de Integração da Bacia Hidrográfica do rio Paraíba do Sul (CEIVAP) reativou o Grupo de Trabalho Permanente de Acompanhamento da Operação Hidráulica na bacia do rio Paraíba do Sul (GTAOH), que havia sido criado juntamente com a ANA e o Comitê Guandu durante a seca de 2003. O GTAOH, durante a crise, buscou soluções adaptativas por parte dos usuários que permitiram economizar os estoques de água dos reservatórios, evitando ou minimizando impactos. Havia uma preocupação muito grande com o abastecimento público, em especial com a RMRJ, que sediava eventos de porte à época (Copa do Mundo, em 2014, e os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos, em 2016).

A primeira medida proposta foi reduzir gradativamente a vazão do rio Paraíba do Sul bem como a vazão de transposição que alimenta o rio Guandu. Ao longo de 2014 e 2015, a vazão de transposição foi gradativamente reduzida de 119 m³/s para 75 m³/s (Resoluções ANA, de 2014 a 2016)2 2 - Disponíveis em http://ceivap.org.br/resolucoes-ana.php. , uma redução inédita desde a construção do denominado “Sistema Hidráulico Paraíba do Sul-Guandu”, no início dos anos 50.

Tamanha redução de vazões somente foi possível com impactos remanescentes em diversos usuários de água (COSTA et al., 2015COSTA, L. F.; FARIAS JUNIOR, J. E. F.; FORMIGA-JOHNSSON, R. M.; ACSERALD, M. V. Crise hídrica na Bacia do rio Paraíba do Sul: enfrentando a pior estiagem dos últimos 85 anos. Revista Ineana, v. 3, n. 1, p. 26-47, 2015.; VASCONCELOS, 2019VASCONCELOS, N. A. Impactos da crise hídrica 2014-2016 sobre os principais usuários [...] 2019. Dissertação (Mestrado em Engenharia ambiental). UERJ, Rio de Janeiro.). Especificamente, a ETA Guandu foi submetida a uma situação de estresse técnico nunca antes experimentado, tendo sido necessárias adaptações sucessivas nos sistemas de captação e tratamento. A piora na qualidade da água implicou no aumento de 20% no uso dos produtos químicos pelo Sistema de tratamento, um adicional de 52 ton/dia de produtos químicos (VASCONCELOS, 2019).

Com essas adaptações e a gestão coletiva em tempo real dos níveis dos rios Paraíba do Sul e Guandu, a ETA Guandu conseguiu operar continuamente, mantendo normal a sua produção. A população da RMRJ atendida pelo Sistema Guandu não foi afetada em nenhum momento. A crise hídrica foi declarada como superada somente no final de 2016.

Apesar da maior frequência de secas, até agosto de 2020, as Bacias dos rios Paraíba do Sul e Guandu ainda não dispunham de planos de segurança hídrica ou de planos operacionais para os momentos de seca.

Pressão sobre a qualidade das águas

A quantidade de produtos químicos utilizados pela ETA Guandu (260 ton/dia) é um indicador da sua alta exposição a problemas de qualidade da água no ponto de captação no rio Guandu. A principal fonte poluidora são os rios Poços, Queimados e Ipiranga, que estão localizados imediatamente a montante do ponto de captação (PERHI, 2014; PLANO GUANDU, 2018; PDUI, 2018; e ANA; 2019). Esses rios recebem grande carga de efluentes industriais e sobretudo domésticos, tornando-os muito poluídos e por vezes provocando eutrofização e floração de cianobactérias.

É por esta razão que, mesmo utilizando 38% da vazão de transposição (119 m3/s em tempos de normalidade hidrológica), é preciso uma vazão bem superior no rio Guandu para que a água captada pela ETA Guandu se torne ‘tratável’. Durante a crise hídrica 2014-2016, quando a vazão do rio Guandu atingiu o mínimo de 75 m3/s (ao invés de pelo menos 120 m3/s), a Estação demonstrou uma capacidade adaptativa inédita à piora da qualidade de água, mediante o aumento do volume de produtos químicos (VASCONCELOS; FORMIGA-JOHNSSON e RIBEIRO, 2019VASCONCELOS, N. A. Impactos da crise hídrica 2014-2016 sobre os principais usuários [...] 2019. Dissertação (Mestrado em Engenharia ambiental). UERJ, Rio de Janeiro.).químicos (VASCONCELOS; FORMIGA-JOHNSSON e RIBEIRO, 2019).

Por isso foi surpreendente a ocorrência da grave crise de qualidade da água distribuída pelo Sistema Guandu em janeiro de 2020, justamente durante a época de chuvas e de maior vazão dos rios. A ocorrência da geosmina - associada aos problemas de qualidade dos rios no ponto de captação - provocou mau cheiro e gosto de terra na água distribuída pelo Sistema Guandu, o que provocou muita insegurança em milhões de pessoas da Metrópole do Rio de Janeiro, agravada pelos problemas de comunicação por parte da CEDAE e do Governo do Estado do Rio de Janeiro (FIOCRUZ, 2020; GAEMA/MPRJ, 2020).

Uma solução paliativa para este problema vem sendo discutida há quase 30 anos: um projeto de desvio desses rios, com deságue a jusante do ponto de captação da ETA Guandu, é a solução apontada por fontes oficiais (CEDAE, 2014, apud PERHI, 2014; PDUI, 2018; PNSH, 2019). É um projeto muito polêmico, pois muitos defendem uma solução definitiva: o controle da poluição nas bacias dos rios Poços, Queimados e Ipiranga, igualmente previsto nos planos oficiais, mas que demandam mais tempo de execução e investimentos.

Em nota publicada em 10 de fevereiro de 2020, a Fiocruz ressalta que os problemas recentes confirmam que as “pressões sobre a qualidade da água do Rio Guandu não são momentâneas ou pontuais (...) e que se pode esperar a recorrência futura de eventos similares aos atuais, que serão exacerbados pela dinâmica das mudanças climáticas” (FIOCRUZ, 2020).

Diante da gravidade dos eventos no início do ano 2020, passamos a considerar a poluição das águas - que já era um estressor significativo - como o principal fator de estresse sobre a ETA Guandu.

Risco de acidentes ambientais

O risco de acidentes ambientais da ETA Guandu envolve larga porção territorial por conta da transposição: toda a região hidrográfica a montante do ponto de captação, ou seja, a parte mais alta da Bacia do Guandu e toda a Bacia Paraíba do Sul a montante da transposição.

O risco de acidentes é particularmente alto nas áreas mais industrializadas da Bacia Paraíba do Sul (fontes fixas), na parte paulista e no Médio Paraíba do Sul - RJ, bem como ao longo da extensa malha de ferrovias e rodovias (fontes móveis) próximos aos corpos d’água nas duas bacias (VIANA; FORMIGA-JOHNSSON; STRAUCH, 2012VIANA, V. J.; FORMIGA-JOHNSSON, R. M.; STRAUCH, C. E. Riscos ambientais envolvendo o transporte de produtos perigosos para as águas captadas pela ETA Guandu, RJ. Revista Ineana, v. 1, n. 1, p. 46-63, jan-jun, 2012.; CBH GUANDU, 2015). É emblemático o derramamento do inseticida Endosulfan em um afluente do rio Paraíba do Sul pela empresa Servatis, no Médio Paraíba do Sul, ocorrido em 2008. A transposição foi interrompida de modo a não poluir o rio Guandu nem interromper a captação da ETA Guandu, como o ocorrido nos municípios ribeirinhos ao longo do rio Paraíba do Sul.

O Comitê Guandu elaborou um Plano de contingência para abastecimento de água (CBH GUANDU, 2015) a partir da identificação das fontes potenciais de poluição acidental, com detalhamento para a Bacia do Guandu, identificando os envolvidos e suas responsabilidades em caso de acidentes ambientais tecnológicos. Este Plano confirma as conclusões de Viana, Formiga-Johnsson e Strauch (2012VIANA, V. J.; FORMIGA-JOHNSSON, R. M.; STRAUCH, C. E. Riscos ambientais envolvendo o transporte de produtos perigosos para as águas captadas pela ETA Guandu, RJ. Revista Ineana, v. 1, n. 1, p. 46-63, jan-jun, 2012.): apesar da captação da ETA Guandu apresentar relativa vulnerabilidade em relação aos acidentes ambientais de fontes fixas e móveis, não foi identificado nenhum registro de paralisação total da ETA Guandu em função de acidentes ambientais. Quando o acidente ocorre na Bacia Paraíba do Sul, a transposição serve como proteção para o abastecimento metropolitano, pois é interrompida para não contaminar o rio Guandu.

Por fim, não identificamos uma política mais robusta de prevenção e redução de acidentes por fontes fixas e móveis podendo afetar a ETA Guandu, mesmo após a elaboração do Plano de contingência pelo Comitê Guandu.

Segurança hídrica na ponta: o acesso à água nos municípios atendidos pelo Sistema Guandu

Universalização do acesso

Os dados do SNIS de 2017 mostram que, dos municípios atendidos pelo Sistema Guandu, apenas Nilópolis, Mesquita, Rio de Janeiro, Nova Iguaçu e São João de Meriti apresentam percentuais acima de 90% de atendimento com abastecimento de água. Na faixa de 80,1% a 90%, encontram-se dois municípios: Duque de Caxias e Queimados. Já na faixa logo abaixo, de 60,1% a 80%, estão os municípios de Belford Roxo e Japeri.

Mesmo municípios com mais de 90% de domicílios conectados à rede geral de abastecimento de água têm intermitência do serviço prestado (PDUI, 2018). Este Plano aponta que em Nova Iguaçu e São João de Meriti, por exemplo, os problemas relacionados à frequência irregular do abastecimento, à ausência de pressão na rede e à baixa qualidade da água fornecida às residências são conhecidos e fizeram moradores buscar soluções paliativas, como poços, para cobrir as falhas do sistema de rede.

Segundo Quintslr (2018QUINTSLR, S. A (re)produção da desigualdade ambiental na Metrópole: [...] 2018. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) UFRJ, Rio de Janeiro.), na Baixada Fluminense, em geral, e em Duque de Caxias, em particular, observou-se domicílios em que os próprios moradores se desconectaram da rede de água pelo simples fato de não receber água nas suas residências. Ainda assim, muitos deles relataram continuar a receber contas de água tendo por base o consumo estimado (QUINTSLR, 2018QUINTSLR, S. A (re)produção da desigualdade ambiental na Metrópole: [...] 2018. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) UFRJ, Rio de Janeiro.). Em suma, a RMRJ e especialmente o oeste metropolitano, atendido pelo Sistema Guandu, não dispõe de serviços universalizados, o que reduz a segurança hídrica e torna os usuários mais vulneráveis a possíveis situações de estiagem decorrentes de um contexto de mudanças climáticas.

O PDUI (2018) tem entre os Objetivos Metropolitanos, que nortearam os Programas de Ações Prioritárias, o objetivo 11, que traz a necessidade de aprimoramento dos sistemas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, com vistas à universalização.

Desempenho do Sistema de distribuição de água tratada

A Baixada Fluminense, atendida quase completamente pelo Sistema Guandu, é caraterizada por sistemas incompletos, tanto em termos de adução quanto de reservação: os reservatórios de ponta do sistema (no fim da adutora da Baixada) não funcionam; e a água não chega por falta de pressão. Isso gera uma situação permanente de insegurança hídrica, independentemente da disponibilidade de água bruta.

O problema remonta aos anos 90. O Plano de Setorização do Abastecimento de Água da Baixada Fluminense foi desenvolvido no Governo Moreira Franco (1987-1991), sob a responsabilidade da Secretaria de Desenvolvimento Urbano (Sedur) e da CEDAE. O Plano tinha por objetivo “dividir a região em 48 áreas de influência e criar um sistema próprio de abastecimento, com uma subadutora ligando a adutora mais próxima a um reservatório de água, para cada uma delas” (SEDUR, s/d). Seriam assentados na Baixada Fluminense cerca de 3.400 km de tubulações -, troncos alimentadores e redes de abastecimento (distribuição) -, construídos 31 novos reservatórios de água, além da reforma de outros reservatórios. O projeto foi desenvolvido apenas na sua primeira fase, implantando 89 km de rede nos municípios de Nova Iguaçu (61 km), Nilópolis (9 km), Duque de Caxias (15 km) e São João de Meriti (4 km). Não foram construídos reservatórios nessa primeira fase (PORTO, 2003PORTO, H. R. Saneamento e cidadania: trajetórias e efeitos [...] na Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: FASE, 2003.).

Os anos 90 trouxeram novos programas visando solucionar a questão do abastecimento de água. Destaca-se o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), que tinha entre seus objetivos equilibrar a oferta e a demanda de água na Baixada Fluminense. O programa partiu da constatação do funcionamento precário do sistema de abastecimento, pois não existia separação física entre adução e distribuição, ou seja, não existiam reservatórios nem setorização do sistema de distribuição. Isso provocava falta de água ou distribuição irregular em diversos pontos, e pressão excessiva em outros, levando ao aumento de vazamentos, danos às tubulações e grande desperdício.

Foram então construídos, no âmbito do PDBG, três reservatórios em Duque de Caxias, dois em São João de Meriti e três em Belford Roxo, de modo a melhorar o abastecimento na Baixada Fluminense. Nesses municípios também deveriam ter sido instaladas subadutoras, redes tronco, redes distribuidoras e ligações domiciliares, obras que nunca foram concluídas. O resultado desse conjunto de obras inacabadas são reservatórios vazios ou operando muito abaixo da sua capacidade.

Em 2018, o PDUI priorizou, por meio do Programa “Habitar a Metrópole”, a ampliação do acesso à água potável, particularmente na região da Baixada Fluminense, e o aumento da segurança operacional do sistema de abastecimento de água da região Oeste da RMRJ. Para tanto, foi prevista a elaboração de estudos e projetos e a realização de obras necessárias ao bom funcionamento do Sistema Guandu e demais sistemas isolados de abastecimento de água da sua região de abrangência, incluindo a continuidade e a complementação de obras previstas (PDUI, 2018).

A situação de insegurança hídrica na Metrópole compreende ainda uma outra dimensão: as perdas de água pelo Sistema Guandu. A perda de água é considerada um dos principais indicadores de desempenho operacional dos prestadores de serviço público de abastecimento de água. Elas ocorrem em todos os componentes de um sistema de abastecimento de água, desde a captação até a distribuição. A magnitude dessas perdas depende de cada unidade e compreendem: (i) perdas reais ou físicas: toda a água que vaza no sistema, exceto nas instalações dos usuários, decorrentes do rompimento em tubulações e de trincas estruturais e fissuras nas impermeabilizações de reservatórios; (ii) perdas aparentes ou não físicas: toda água que não é medida ou que não tenha o seu uso definido, decorrente de ligações clandestinas e/ou irregulares, inexistência ou fraudes nos hidrômetros, erros de micromedição e macromedição, erro cadastral, erro de leitura, etc.

Observando os municípios atendidos pelo sistema Guandu/CEDAE, verifica-se um índice de perdas não físicas bastante elevado. As causas podem ser, além de ligações clandestinas, o baixo índice de hidrometracão em municípios da Baixada com elevado número de ligações. O SNIS 2017 retrata essa situação (Figura 4).

Figura 4
Medição, hidrometracão e perdas nos municípios atendidos pelo Sistema Guandu, em 2017

O Plano Nacional de Saneamento Básico - Plansab (2013) tinha como meta para o Sudeste, em 2018, reduzir o índice de perdas na distribuição (perdas físicas) a pelo menos 33%. Uma rede de distribuição sem perdas não é um objetivo viável em termos técnicos, existindo assim um limite para a sua redução. Os dados do SNIS, fornecidos pela CEDAE, mostram que somente no município do Rio de Janeiro as perdas eram inferiores ao valor estabelecido pelo Plansab. No extremo oposto, Japeri tem o maior índice de perdas, superando 50%, um valor bastante crítico.

As perdas físicas têm uma implicação direta com a disponibilidade hídrica e oneram o sistema de abastecimento: quanto maior a perda, mais água será demandada dos mananciais de abastecimento para em seguida ser tratada e distribuída, demandando assim mais investimentos e despesas de exploração. No Sistema Guandu, parte importante do volume de água tratada não chega às residências por ocorrência de falhas no sistema de distribuição, tais como vazamentos nas redes adutoras, nas redes de distribuição e nos reservatórios, através do extravasamento de água, ou ainda por conexões irregulares feitas pelos usuários nas adutoras.

No âmbito do PDUI (2018), o Programa “Metrópole Sustentável” sugere a criação de um programa de redução de perdas físicas na rede de água. Suas ações principais são: (i) pesquisa de vazamentos não visíveis, com uso de geofone eletrônico e/ou correlacionador eletrônico de ruídos, por exemplo; (ii) implantação de dispositivos, como válvulas redutoras, e reservatórios para diminuir pressões excessivas na rede de abastecimento; (iii) substituição de tubulações deterioradas das redes de abastecimento e das adutoras (PDUI, 2018). Além disso, é proposto um programa de conscientização da população e incentivo ao uso sustentável da água com redução do consumo. Contudo, é paradoxal falar em redução do consumo de forma genérica, em um contexto de serviços não universalizados (PDUI, 2018).

A Figura 4, acima, revela ainda que muitos municípios possuem um baixo percentual de ligações hidrometradas. Isso significa que a cobrança é feita por consumo estimado; nessa situação, o usuário não tem controle sobre seu consumo, nem a garantia de que está pagando o valor adequado. Além disso, como verificado pelo PDUI, muitas áreas sofrem com intermitência no abastecimento, fazendo com que, mesmo sem água todos os dias, a conta chega no fim do mês às residências, com o valor baseado no consumo estimado. Isso evidentemente estimula a inadimplência.

O PDUI traz nas propostas referentes ao Programa “Habitar a Metrópole” uma ação denominada “Racionalização do uso da água potável por meio de amplo programa de conscientização e participação da população”, que visa: (i) apoiar a implementação em larga escala da hidrometração individual, gerando um controle maior sobre consumo e estimulando a conscientização da população sobre a economia de água potável; (ii) apoiar a revisão da cobrança do setor de abastecimento de água com o agravamento das penalizações tarifárias para consumos elevados, incentivando o consumo de forma racional da água; e (iii) incentivar a criação de plataformas digitais para a população, nas quais o público poderia participar na melhoria dos sistemas de abastecimento indicando os locais nos quais há vazamentos e perdas das redes de abastecimento de água. A ação destaca que tão importante quanto investir na oferta de água é investir na gestão da demanda (PDUI, 2018).

Atualmente, a CEDAE está fazendo altos investimentos para aumentar a quantidade de água disponível na Baixada com recursos da Caixa Econômica Federal, por meio do programa “Novo Guandu, Mais Água para a Baixada”. As obras envolvem a ampliação do sistema produtor do Guandu com a duplicação da ETA Guandu, a ampliação da adução com a construção da Nova Adutora da Baixada; construção/reforma de 17 reservatórios e assentamento de troncos distribuidores e rede.

A Nova ETA, com capacidade para produzir 12 m3/s, contará com o maior reservatório da CEDAE (Marapicu II), com capacidade de armazenar 55 milhões de litros de água, para o atendimento de Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Belford Roxo, Mesquita, Nilópolis, São João de Meriti e Rio de Janeiro. Essa fase do projeto visa o aumento de oferta de água para a Baixada Fluminense e maior segurança ao sistema produtor de água tratada existente, servindo como alternativa em situações de risco e necessidade de manutenção. Embora as obras sejam importantes para garantir a segurança hídrica, se não houver um controle de perdas, através de fiscalização das adutoras e troncos para evitar vazamentos e conexões irregulares e através da ampliação da micromedição, parte desses investimentos estará comprometido.

Vale lembrar que a CEDAE não possui um modelo de tarifa social que dê conta do usuário de baixa renda morador de áreas formais, como grande parte dos moradores da Baixada, daí o alto índice de inadimplência e de recurso a soluções alternativas como poços. Supondo que esses moradores possuíssem hidrômetro, a disponibilidade de um volume mínimo gratuito e tarifas sociais de acordo com a capacidade de pagamento, seria possível reduzir as perdas nas ligações domiciliares. Da mesma forma, a hidrometração deveria ser adotada em todos os estabelecimentos comerciais, com medições e cobrança. Muitos estabelecimentos na Baixada possuem ligações irregulares e, portanto, não pagam o que consomem.

Por fim, a adoção de uma gestão orientada pela segurança hídrica, considerando o desempenho do sistema de distribuição de água tratada, passa pela adoção por parte da CEDAE de dois programas que não figuram em seus relatórios: controle de perdas, orientado por uma gestão sustentável; e gestão da demanda, que preserve os direitos dos usuários de receberem água todos os dias em suas casas a um preço justo, de acordo com seu consumo e sua capacidade econômico-financeira, respeitando assim os princípios decorrentes do direito humano à água.

Planejamento em situações de falha do sistema de distribuição

Outro aspecto a ser finalmente considerado no serviço de água, em termos de segurança hídrica, é a capacidade adaptativa do sistema de distribuição, isto é, planos e medidas de emergência e contingência, que indiquem o que fazer em caso de falta de água parcial ou localizada, orientadas inclusive pela proteção da saúde da população como defendido pela Fiocruz (2020). Esta pode ser originada por contaminação no manancial de captação, escassez hídrica, inundação das captações com danos aos equipamentos e infraestruturas, interrupção prolongada no fornecimento de energia elétrica nas instalações de produção, ou outros problemas operacionais. Não identificamos, nos documentos públicos da CEDAE, medidas de segurança hídrica da população em situações emergenciais, o que revela ser mais um elemento de fragilidade na gestão dos serviços.

Conclusões

Entendendo que a construção da segurança hídrica se relaciona também à capacidade da Metrópole do Rio de Janeiro de enfrentar os cenários negativos advindos das mudanças climáticas e garantir o abastecimento da população, identificamos vários problemas relacionados tanto à disponibilidade de água bruta quanto ao acesso à água tratada.

No tocante à água bruta, observou-se um aumento significativo da vulnerabilidade em função de extremos de seca, que provocaram uma crise hídrica sem precedentes em 2014-2016 e passaram a considerar a seca como um novo problema de gestão para as Bacias Paraíba do Sul e Guandu. No entanto, a capacidade adaptativa do sistema de gestão das águas, associada às adaptações do sistema de captação e tratamento da ETA Guandu, evitaram problemas no abastecimento metropolitano durante a crise hídrica.

Evidenciou-se também que, atualmente, são os estressores não-climáticos que mais impactam ou podem impactar a quantidade e qualidade da água bruta captada pelo Sistema Guandu, em geral associados a problemas de urbanização, de ocupação do território e de planejamento e gestão. São eles, nessa ordem de importância: a poluição das águas captadas pela ETA Guandu, que refletem os graves problemas ambientais dos mananciais de abastecimento; a profunda dependência da Bacia do rio Paraíba do Sul & aumento da demanda e conflitos em torno de suas águas, a exemplo do conflito Rio-São Paulo em 2014-2015; a falta de manutenção da transposição; e os riscos de acidentes ambientais.

Olhando para o futuro, as duas reservas de disponibilidade hídrica garantem - legalmente - a quantidade de água necessária para abastecer todo o Oeste metropolitano, mas esta aparente segurança é ameaçada pelos estressores apontados neste estudo.

Apesar de todos os riscos associados à água bruta, foi possível concluir que o fator que mais compromete a segurança hídrica atual da população do oeste metropolitano do Rio de Janeiro é o desempenho do sistema de distribuição de água tratada, já que a disponibilidade de água bruta não é o impeditivo para a universalização do acesso e para a melhoria da qualidade dos serviços prestados. São aproximadamente 587 mil pessoas sem acesso à rede pública de abastecimento, em função da expansão desigual da infraestrutura urbana, além do número significativo de usuários conectados à rede pública, mas sem acesso regular à água. Esta situação reflete a desigualdade socioeconômica da sociedade brasileira, ou escassez hidrossocial segundo o conceito de Swyngedouw (2009), que está sendo fortemente evidenciada durante a pandemia do COVID-19; é justamente a parcela mais vulnerável da população, que não tem acesso à água segura para sua higiene pessoal e domiciliar, que está sendo mais afetada (EMPINOTTI; CORTEZ; FERRARA, 2020EMPINOTTI, V.; R CORTEZ, R. S.; FERRARA, L. N. Coronavírus e segurança hídrica: é preciso acesso universal à água. Carta Capital, 10 de abril de 2020.).

Em suma, uma segurança hídrica global, que possa tornar a Metrópole do Rio de Janeiro menos vulnerável a extremos climáticos futuros, depende de mais eficiência e proatividade da gestão da água bruta, no sentido de se antecipar aos problemas já colocados, e, sobretudo, do melhor desempenho do serviço de abastecimento público de modo a ser mais inclusivo e mais eficiente. Além da expansão da rede de distribuição, a proatividade pode se dar por meio da redução progressiva das perdas, do maior estímulo à água de reuso para o setor industrial e determinados serviços urbanos, e da implantação de sistemas de captação de águas pluviais para fins não potáveis. Essas medidas vão ao encontro de uma gestão sustentável, necessária ao atendimento do ODS 6, e reforçariam a resiliência, a capacidade de adaptação e a segurança hídrica plena da população abastecida pelo Sistema Guandu.

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), à UERJ (Prociência) e ao Comitê Guandu/AGEVAP pelo apoio à realização de pesquisas nas quais se baseiam este artigo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    16 Out 2019
  • Aceito
    08 Jun 2020
ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaambienteesociedade@gmail.com