Autocuidado de catadores de material reciclável: ações de Enfermagem à luz da Pesquisa Convergente-Assistencial

Evaluación de los atributos de la Atención Primaria a la Salud desde la perspectiva de los adultos mayores

Resumo

Objetivo

promover o autocuidado de catadores de material reciclável a partir da aplicação da Teoria dos Déficits de Autocuidado.

Método

Pesquisa Convergente-Assistencial realizada com catadores de material reciclável de duas associações de reciclagem do Sul do Brasil. Os dados foram produzidos por meio de observação participante, entrevistas semiestruturadas e grupos de convergência. Os dados foram analisados segundo os passos propostos pelo método: apreensão, síntese, teorização e transferência.

Resultados

os participantes possuíam ações deliberadamente empreendidas e motivações para o autocuidado. No entanto, apresentaram déficits relacionados, principalmente, a hábitos que os expunham aos riscos ocupacionais. Nas ações grupais de apoio-educação, os participantes discutiram seus déficits de autocuidado e estratégias para mitigá-los. A pesquisa possibilitou mudanças no cenário laboral, no entanto, alguns déficits de autocuidado persistiram.

Conclusões e implicações para a prática

pondera-se que mudanças profundas exigem ações permanentes para transformações das iniquidades sociais. No entanto, o Sistema de Enfermagem apoio-educação possibilitou mudanças positivas no autocuidado dos catadores, o que corrobora a contribuição teórico-prática da teoria para o cuidado de Enfermagem.

Palavras-chave:
Autocuidado; Catadores; Enfermagem; Saúde do Trabalhador; Teoria de Enfermagem

Resumen

Objetivo

promover el autocuidado de los recolectores de materiales reciclables basado en la aplicación de la Teoría de los Déficits en el Autocuidado.

Método

Investigación de Asistencia Convergente realizada con recolectores de material reciclable de dos asociaciones de reciclaje en el sur de Brasil. Los datos fueron producidos mediante observación participante, entrevistas semiestructuradas y grupos de convergencia. Los datos fueron analizados según los pasos propuestos por el método: aprehensión, síntesis, teorización y transferencia.

Resultados

los participantes habían realizado deliberadamente acciones y motivaciones de autocuidado. Sin embargo, mostraron déficits relacionados principalmente con hábitos que los expusieron a riesgos laborales. En las acciones grupales de apoyo-educación, los participantes discutieron sus déficits de autocuidado y estrategias para mitigarlos. La investigación permitió cambios en el escenario laboral, sin embargo, persistieron algunos déficits de autocuidado.

Conclusiones e implicaciones para la práctica

se considera que los cambios profundos requieren acciones permanentes para transformar las desigualdades sociales. Sin embargo, el sistema de apoyo-educación de enfermería permitió cambios positivos en el autocuidado de los recolectores, lo que corrobora el aporte teórico-práctico de la Teoría al cuidado de Enfermería.

Palabras clave:
Autocuidado; Segregadores de Residuos Sólidos; Enfermería; Salud Laboral; Teoría de Enfermería

Abstract

Objective

to promote the self-care of recyclable material collectors through the application of the Theory of Self-Care Deficits.

Method

Convergent-Assistance Research conducted with recyclable materials collectorsfrom two recycling associations in Southern Brazil. The data was produced through participant observation, semi-structured interviews and convergence groups. The data was analyzed according to the steps proposed by the method: apprehension, synthesis, theorization, and transfer.

Results

the participants had deliberate actions undertaken and motivations for self-care. However, they presented deficits related mainly to habits that exposed them to occupational risks. In the supportive-educational group actions, participants discussed their self-care deficits and strategies to mitigate them. The research enabled changes in the work scenario; however, some self-care deficits persisted.

Conclusions and implications for the practice

it is pondered that profound changes require permanent actions for transformations in social inequities. However, the supportive-education nursing system enabled positive changes in the recyclable materials collectors' self-care, which corroborates the theoretical-practical contribution of the theory to nursing care.

Keywords:
Self Care; Solid Waste Segregators; Nursing; Occupational Health; Nursing Theory

INTRODUÇÃO

Os catadores de material reciclável compõem um grupo emergente no cenário urbano. No mundo, estima-se que cerca de 15 milhões de pessoas exerçam atividades de coleta de material reciclável ou reciclagem. No Brasil, aproximadamente 300 mil pessoas exercem este trabalho¹.

Os catadores de material reciclável compõem uma população de baixo poder socioeconômico, que reside em áreas vulneráveis e que exerce um trabalho insalubre². Seus ambientes de trabalho são repletos de riscos ocupacionais³ agravados por longas jornadas de trabalho¹. Em decorrência disso, os catadores de material reciclável apresentam alta prevalência de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho⁴.

Há evidência de que os catadores de material reciclável possuem uma deficitária proteção frente aos riscos inerentes ao seu trabalho⁵. A vulnerabilidade social em que se encontram dificulta o acesso à saúde. Além disso, esta população nem sempre desempenha um autocuidado efetivo, o que potencializa os riscos⁶. Neste sentido, pode-se considerar que a promoção do autocuidado representa uma estratégia capaz de proteger a saúde desta população.

Promover o autocuidado coloca em cena a Teoria dos Déficits de Autocuidado, postulada por Dorothea Orem⁷. A teoria de Orem é uma das mais importantes teorias de Enfermagem e seu uso é um diferencial na pesquisa⁸. Constitui um modelo capaz de melhorar o autocuidado dos indivíduos^9,10, dividindo-se em três núcleos interdependentes: Teoria do Autocuidado, Teoria dos Déficits de Autocuidado e Teoria dos Sistemas de Enfermagem.

Por meio da Teoria do Autocuidado, pressupõe-se que todos os indivíduos são potenciais agentes de autocuidado, ou seja, possuem ações e motivações para tal. A Teoria dos Déficits de Autocuidado estabelece que a Enfermagem é exigida quando uma pessoa ou grupo é incapaz ou tem dificuldades para o provimento do autocuidado⁷.

Nesses casos, os Sistemas de Enfermagem são formados por enfermeiros por meio do seu exercício deliberado de capacidades de Enfermagem especializadas (agência de Enfermagem) no contexto de sua relação interpessoal com pessoas ou grupos com déficits com o objetivo de assegurar que as demandas de autocuidado sejam conhecidas e atendidas⁷.

O autocuidado é um marco da autonomia do sujeito sobre a sua saúde. Os enfermeiros compreendem o desafio de promovê-lo a partir de uma prática orientada pela teoria, mas faltam evidências recentes que mostrem quais estratégias e ferramentas podem auxiliá-los. Atualmente, a literatura científica carece de evidências sobre a abordagem prática desta teoria para a obtenção de melhores resultados em saúde¹¹.

Neste sentido, parte-se da premissa de que os enfermeiros possuem um importante papel na promoção da saúde de indivíduos e comunidades e podem contribuir para a otimização de comportamentos saudáveis¹². Frente ao exposto, este estudo teve como objetivo promover o autocuidado de catadores de material reciclável a partir da aplicação da Teoria dos Déficits de Autocuidado.

MÉTODO

Estudo qualitativo, desenvolvido a partir da Pesquisa Convergente-Assistencial (PCA), método que possibilita a condução da pesquisa científica em concomitância com uma prática assistencial com o objetivo de promover mudanças e transformações na prática¹³.

O cenário do estudo foi composto por duas associações de reciclagem localizadas no Sul do Brasil. Estas associações somavam uma população de 23 catadores de material reciclável, que atuavam conjuntamente no mesmo galpão de reciclagem. Todos foram convidados a compor o estudo. No período de produção de dados, uma trabalhadora afastou-se do trabalho e três não tiveram interesse em participar. Portanto, 19 trabalhadores participaram da pesquisa.

Os dados foram produzidos entre agosto e dezembro de 2017. Conforme preconizado pela PCA, os dados de pesquisa e assistência foram produzidos por meio da triangulação de três ferramentas metodológicas: observação participante, entrevistas semiestruturadas e grupos de convergência.

A observação participante foi realizada em duas fases. A primeira fase ocorreu durante 20 dias, totalizando 115 horas de observação no galpão de reciclagem, nas dependências da associação e na coleta seletiva, no interior do caminhão. Foi conduzida com o auxílio de um roteiro que sistematizava informações às percepções da pesquisadora principal em relação às ações de autocuidado empreendidas pelos catadores e possíveis déficits.

Seguiram-se as entrevistas semiestruturadas, que foram realizadas individualmente, em local reservado, nas dependências da associação. Foram conduzidas com o auxílio de um instrumento semiestruturado que investigava: percepções sobre a relação entre trabalho e saúde; atitudes diárias para cuidar-se; dificuldades encontradas para cuidar-se; concepções sobre o que pensa ser necessário para a manutenção da saúde no dia a dia do trabalho e sugestões para os grupos educativos.

A primeira entrevista, considerada pré-teste, norteou ajustes no roteiro semiestruturado, sendo excluída do banco de dados. A duração média das entrevistas foi de 28 minutos. Foram audiogravadas com a anuência dos participantes. A partir do diário de campo e das transcrições das entrevistas, foi elaborada uma síntese do conteúdo em forma de tópicos. Essa síntese auxiliou na validação dos dados em ocasião da terceira etapa composta pelo grupo de convergência.

O grupo de convergência foi utilizado, neste estudo, como principal ferramenta para a prática assistencial, pois possibilita a condução da prática investigativa em conjunto com a ação assistencial no mesmo espaço físico e temporal¹³. A ação de assistência foi delineada a partir da aplicação da Teoria dos Sistemas de Enfermagem, compreendida como um modelo explicativo das relações entre enfermeiro e indivíduos/grupos. O sistema apoio-educação foi utilizado como modelo de Sistema de Enfermagem. O sistema apoio-educação é oportuno quando uma pessoa ou grupo está em plena capacidade de protagonizar as suas ações de autocuidado, mas necessita de orientação⁷.

Os catadores de material reciclável foram divididos em dois grupos de convergência para os quais foi aplicado o mesmo plano assistencial. Os encontros foram realizados no refeitório das associações, tiveram duração média de uma hora e trinta minutos cada e foram audiogravados com a anuência dos participantes.

A condução dos encontros foi desenvolvida pela pesquisadora principal auxiliada por uma equipe de três assistentes de pesquisa previamente capacitados. Os encontros do grupo iniciavam-se com a acolhida, retomada dos objetivos do estudo, apresentação dos assistentes de pesquisa e construção de pactos (tempo de duração do encontro, planejamento, liberdade de fala, respeito à opinião do outro, confidencialidade sobre o dito no espaço do grupo, entre outros). Na sequência, eram lidas as sínteses das entrevistas e da observação para a sua validação. Todos os participantes validaram os dados. Em seguida, conduziram-se os encontros conforme as fases que compõem o grupo de convergência: fases do reconhecimento, da revelação, do repartir e do repensar.

Na fase do reconhecimento, os participantes puderam reconhecer o objetivo da ação e construir uma coesão enquanto grupo. Foi utilizada uma técnica de sensibilização denominada “Quem é importante para mim”. Uma rosa foi entregue ao grupo. Cada participante, em posse da rosa, foi convidado a verbalizar quem era(m) a(s) pessoa(s) mais importante(s) da sua vida. Após a rodada de depoimentos, a pesquisadora convidava os participantes a refletir sobre a perspectiva de que eles próprios também deveriam ser as pessoas mais importantes de suas vidas. O objetivo desta técnica era convidá-los a pensar no autocuidado como a valorização de si mesmos.

Seguiu-se a fase da revelação em que os participantes compartilharam suas percepções e experiências em relação ao autocuidado. Esse movimento foi facilitado pela pesquisadora por meio de questionamentos tais como: “Como acontece o autocuidado? Quais as dificuldades e barreiras? O que está bom? O que poderia melhorar?”.

Para otimizar o processo de troca de conhecimentos e saberes, foi realizado o jogo do Verdadeiro e Falso. Em posse de placas que continham V, de “verdadeiro”, em uma face, e F, de “falso”, em outra, os participantes julgavam os mitos e verdades ditos pela pesquisadora, havendo a partilha de saberes.

A fase a seguir, o repartir, consistiu na tomada de decisões compartilhadas a partir da discussão deflagrada. Nessa fase, os trabalhadores puderam perceber a necessidade de transformação de práticas individuais e coletivas de autocuidado. Por fim, na última fase, o repensar, os catadores refletiram sobre a aplicação do que foi construído pelo grupo. O repensar culminou no estabelecimento de pactos e na identificação de comportamentos-chave para o estabelecimento do autocuidado e cuidado do outro na associação.

Os encontros foram finalizados pela avaliação da atividade. Para este momento, um dos assistentes de pesquisa procedeu à leitura da síntese do encontro para a validação dos dados. Os participantes fizeram ajustes no conteúdo nas sínteses de forma verbal e, após, as validaram.

O fechamento do processo de pesquisa aconteceu com a segunda fase da observação participante, que teve por objetivo reconhecer as mudanças no cenário estudado após a prática assistencial. Após 30 dias da realização dos grupos de convergência, foram realizadas oito horas de observação pela pesquisadora principal, ao longo de dois dias, com o registro das observações em diário de campo.

O corpus para a análise foi composto pelo diário de campo, pela transcrição das entrevistas, pela transcrição dos grupos de convergência e pelas sínteses validadas pelos participantes. A análise foi realizada a partir das fases Apreensão, Síntese, Teorização e Transferência propostas pela PCA¹³.

A Apreensão consiste na organização do material e caracteriza-se como a aproximação do pesquisador com o conteúdo empírico¹³. Nesta etapa, a pesquisadora principal selecionou o material que contribuía para o objetivo do estudo e procedeu à sua exploração por meio da leitura aprofundada. Foi aplicada a técnica cromática para sistematizar o encontro de semelhanças entre os textos e aproximações com o objetivo do estudo. Disso, resultou a separação do material empírico em quatro grupos semânticos: ações e motivações para o autocuidado; déficits de autocuidado; ações de promoção do autocuidado.

A Síntese consiste na imersão e análise subjetiva do material sistematizado¹³. Nesta etapa, o material empírico foi recortado, agrupado conforme suas cores e colado em cartazes. Isso possibilitou a visualização global das relações entre os dados e um processo de reflexão que resultou na composição dos eixos temáticos.

Na etapa da Teorização, acontece a abstração dos dados, ou seja, o pesquisador volta-se para as teorias que sustentam o estudo e busca desvelar os sentidos e formular teorias para produzir novos conhecimentos¹³. Este movimento foi facilitado por anotações realizadas sobre os cartazes que auxiliaram na tarefa de interpretar os dados à luz da Teoria dos Déficits de Autocuidado. Ao término desta etapa, foi possível concluir os ajustes sobre os eixos temáticos e estruturar as conclusões do estudo.

Por fim, a Transferência consiste na contextualização das conclusões do estudo para contextos similares¹³. Este movimento foi possibilitado pela discussão dos resultados a partir da interface com outros estudos nacionais e internacionais.

Na apresentação dos resultados, os participantes foram identificados por pseudônimos escolhidos por eles durante a realização dos grupos de convergência seguidos pela sigla “NE” (“Notas de Entrevista”). Os trechos do diário de campo foram identificados pela sigla NO, referente a “notas de observação”, seguida da data correspondente.

Esta pesquisa atendeu aos preceitos éticos estabelecidos nas Resoluções nº 466/12 e nº 510/16 do Conselho Nacional de Saúde. Todos os participantes que aceitaram participar da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido antes do início da observação participante. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa local sob o protocolo número 2.057.103.

RESULTADOS

Dos 19 catadores de material reciclável, 15 eram mulheres. A média de idade era de 43,7 anos (o trabalhador mais jovem possuía 30 anos e o mais velho, 62 anos). Em relação à cor/raça, oito participantes declararam-se morenos ou pardos, quatro declararam-se brancos, três, negros e dois, morenos claros. Dos 19 depoentes, 11 possuíam Ensino Fundamental completo ou incompleto; seis, Ensino Médio completo ou incompleto e dois, Ensino Superior incompleto.

O tempo médio dos participantes na reciclagem era de oito anos. Dos 19 depoentes, 17 possuíam algum quadro de adoecimento crônico e 15 já haviam sofrido acidentes de trabalho. No período em que os dados foram coletados, os ganhos financeiros individuais somavam cerca de R$ 600,00 por mês (o salário-mínimo nacional correspondia a R$ 937 no período em que os dados foram coletados).

Ações e motivações para o autocuidado identificadas pelos catadores de material reciclável

Os dados desta categoria revelam as ações e motivações para o autocuidado dos catadores de material reciclável, identificando como a agência de autocuidado (capacidade de engajamento e autonomia para o autocuidado) está caracterizada neste grupo.

Os catadores de material reciclável mostraram estabelecer, dentro do próprio grupo, grande parte de suas ações de autocuidado. A alimentação e hidratação foram identificadas como exemplos dessas ações:

[...] a nossa saúde está melhor por causa alimentação. A gente cuida também, fica chamando a atenção do pessoal porque tem que estar tomando bastante água durante o dia. O que vem aqui [comida recebida pelo programa Mesa Brasil] a gente distribui para levar para casa, para ter certeza que eles vão ter [...]. (Simoniti)

As ações de autocuidado evidenciavam-se também por meio de cuidados frente aos riscos ocupacionais e uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs):

Eu cuido bastante a urina de rato. [...] procuro não comer as coisas que aparecem na reciclagem. Não comer com a mão suja. [...] (Alessandra)

Eu uso os EPI. Eu uso muito, eu dou valor a isso. Me cuido para não me machucar, me cuido muito mesmo, eu aprendi a me cuidar. (Paloma)

Outro recurso identificado como importante ação de autocuidado foi o uso de medicamentos e curativos:

[...] uma trabalhadora se queixou de dores intensas no punho direito. [...] usou uma pomada cujo nome não identifiquei (pelo odor, se assemelhava a diclofenaco dietilemônico) e enfaixou o pulso com uma atadura. Disse que isso aliviava as dores. (NO, 08/09/2017)

Além disso, também foi evidenciado que o lazer e a espiritualidade consistiam em ações de autocuidado para o bem-estar psíquico e existencial:

[...] quando está muito puxado, eu faço questão de pescar. [...] fim de semana, eu saio para dar uma voltinha de moto. [...] eu consigo dar uma aliviada na minha cabeça. [...] (Simoniti)

No intervalo do meio-dia, eu estava conversando com um grupo de trabalhadoras. Uma delas referiu como a espiritualidade havia cumprido o papel de amenizar sentimentos e sensações negativos, como o estresse, a ansiedade e o sofrimento. Referiu que seu investimento pessoal nisto havia começado pela leitura de um livro encontrado, por acaso, no material reciclável intitulado “Violetas na Janela”. Disse que este livro havia mudado sua vida e o modo de ver o mundo. Desde então, vinha lendo conteúdo espírita e refletindo sobre a dimensão espiritual e referiu que isto tem ajudado a enfrentar as adversidades da vida. [...] (NO, 16/08/2017)

Por fim, os trabalhadores explicitaram suas motivações para o autocuidado. O desejo de viver, com saúde e qualidade, foi uma das motivações citadas. Além disso, a memória de períodos passados, em que os acidentes eram comuns, também atuava como motivação:

Eu não quero morrer tão cedo. [risos] A minha vida! Eu quero estar de pé, para sempre trabalhar e não ter que depender de filho, nem de marido, nem de ninguém. [...] (Sônia)

[...] quando a gente trabalha em um local de risco, a gente tem que ter consciência. Às vezes, falta um pouquinho, mas eu acho que, se a gente olhar bem lá atrás o que acontecia, a gente vai se lembrar e vai colocar uma luva. [...] (Tassiane)

Ao visualizar as ações empreendidas pelos catadores, pode-se inferir que eles eram agentes de autocuidado, ou seja, eram pessoas com potencial para satisfazer as suas necessidades de saúde.

Saúde em risco: elementos que sinalizam para déficits de autocuidado

Apesar dos resultados mostrarem que os catadores de material reciclável eram agentes de autocuidado, com potencial e motivação, os dados evidenciaram também que os participantes apresentavam um conjunto de dificuldades na operacionalização dessas ações, decorrente, muitas vezes, do conhecimento insuficiente ou de ações do cotidiano que os expunham aos riscos.

O pouco conhecimento que os trabalhadores possuíam sobre a relação entre saúde e trabalho atuava como um limitador para o estabelecimento do autocuidado. Algumas vezes, os participantes manifestavam a negação da interferência do trabalho em sua saúde:

[...] a saúde não depende só da reciclagem. [...] eu tenho bronquite, mas a minha mãe tem bronquite. Então, isso aí já vem de antes. [...] se eu tiver um problema de coração é porque na minha família tem, eu não posso colocar a culpa na reciclagem. [...] eu acho que se a doença vem é porque ela tem que vir. [...] (Tassiane)

A falta de conhecimento sobre os possíveis impactos do trabalho em sua saúde fazia com que os catadores apresentassem hábitos que os expunham aos riscos, como ingesta de alimentos provenientes do material reciclável:

Eles [colegas] comem muita porcaria que vem no reciclável. [...] eles estão ali na esteira, veem que tem bolacha e saem comendo. Não sabem há quantos anos estava aquele saquinho ali, nem se algum bicho passou por ali. [...] (Fia)

Os catadores, por vezes, banalizavam os riscos inerentes a seu trabalho, o que os colocava em situação de vulnerabilidade. A relativização da importância dos EPIs destacou-se como um exemplo:

[...] a gente se acostuma com aquilo ali [riscos] e deixa de se cuidar. Uma coisa que, para mim, antes era nojento, hoje, para mim, é normal. Então, eu posso não ter tanto cuidado ao lidar com aquilo. Às vezes, a gente não usa luvas, não usa botinas, porque acaba te acostumando. [...] eu observo que eu chego em casa com a unha toda suja, cheia de coisa embaixo [...]. (Madalena)

[...] eu não me cuido muito. Eu sou bem estabanada. [riso] esses dias, eu peguei uma coisa com caco de vidro, eu não me cuido, eu não faço nada para me cuidar. [riso] (Fernanda)

Por fim, pode-se observar o estabelecimento da prioridade do trabalho em detrimento do autocuidado. A necessidade de obter ganhos financeiros era compreendida como uma necessidade que se sobrepunha à saúde do trabalhador:

[...] é o tempo. É muita coisa para a gente estar se cuidando. Se tu se cuidar, não consegue fazer tudo. Então, a gente não se cuida mesmo [...]. (Fernanda)

Os dados evidenciam que a agência de autocuidado dos participantes deste estudo não era linear. Ao passo que alguns participantes estavam engajados em suas ações, outros possuíam carências mais profundas de conhecimento e motivação, o que caracterizava um cenário heterogêneo.

O sistema de enfermagem apoio-educação na prática: convergência da pesquisa e da assistência para a promoção do autocuidado

O grupo de convergência foi o instrumento escolhido para deflagrar a etapa assistencial da PCA, que consistiu na aplicação prática da Teoria dos Sistemas de Enfermagem. A pesquisadora assumiu uma postura de facilitadora por meio da realização de perguntas provocadoras, em alguns momentos, e de orientações de Enfermagem para apoio e educação, em outros momentos. O movimento de apoio-educação traduziu-se nesse processo ilustrado na Figura 1.

Figura 1
Ilustração do modo como se estabeleceu o Sistema de Enfermagem apoio-educação com os catadores de material reciclável, configurando-se a convergência da pesquisa e da assistência de Enfermagem para a promoção do autocuidado. Santa Maria, RS, Brasil, 2017.

Na primeira etapa da PCA, o levantamento dos dados de pesquisa permitiu vislumbrar as relações entre a agência de autocuidado (composta pelas ações e motivações) e os déficits de autocuidado. As entrevistas e as observações foram as fontes de evidência. Este diagnóstico permitiu o reconhecimento das demandas para a agência de Enfermagem (ação assistencial).

Já na segunda etapa da PCA, a ação assistencial deflagrada por meio dos grupos de convergência consistiu no encontro entre os catadores de material reciclável e a pesquisadora principal/enfermeira em um espaço de compartilhamento de saberes, educação em saúde e pactuações para a promoção do autocuidado. Esta ação assistencial traduziu-se na aplicação do Sistema de Enfermagem apoio-educação, em um movimento participativo que possibilitou a convergência entre pesquisa e assistência.

Como parte deste processo, os trabalhadores foram capazes de reconhecer seus déficits de autocuidado e a necessidade de mitigá-los com a ajuda da equipe de pesquisa. A partir disso, os trabalhadores firmaram pactos para o estabelecimento de um autocuidado individual e colaborativo a partir dos problemas identificados pelo grupo. O Quadro 1 ilustra estes pactos.

Quadro 1
Déficits de autocuidado individuais e coletivos reconhecidos pelo grupo com a ajuda da equipe de pesquisa e pactos firmados para a sua mitigação. Santa Maria, RS, Brasil, 2017.

Déficits de autocuidado	Pactos
Dificuldades no uso e manutenção dos EPIs.	- Usar sempre os EPIs;
	- Usar sempre o uniforme, sobretudo, na rua;
	- Manter as luvas limpas e comunicar às coordenadoras quando necessitar de troca;
	- Não extraviar os EPIs no galpão.
Consumo inadequado de alimentos e utensílios provenientes do material reciclável.	- Não consumir alimentos provenientes do reciclável;
	- Evitar o reaproveitamento de objetos de uso pessoal (como escovas de dentes e aparelhos de barbear);
	- Quando reaproveitar um objeto, proceder à higienização adequada com água, sabão e álcool 70%.
Automedicação.	- Atentar para os riscos do uso de medicamentos sem prescrição médica;
	- Dores que persistem, mesmo com o uso de medicamentos, possuem uma causa que deve ser investigada;
	- Buscar o serviço de saúde que é referência para o seu território.
Lavagem inadequada das mãos antes das refeições.	- Lavar adequadamente as mãos sempre que utilizar o espaço coletivo do refeitório, atentando para a higiene das unhas.
Pouca colaboração nas tarefas extenuantes.	- Oferecer ajuda sempre que um colega estiver desempenhando uma tarefa difícil;
	- Solicitar ajuda sempre que estiver realizando uma tarefa difícil.
Desorganização do galpão, resultando em potencialização dos riscos de acidentes.	- Estabelecer que uma pessoa seja responsável unicamente pela organização e pelo acondicionamento dos recicláveis no interior do galpão.

Ao final dos grupos de convergência, a ação assistencial foi positivamente avaliada pelos participantes. Conforme descrito no método, 30 dias após as ações, houve a segunda etapa de observação participante para a visualização das possíveis transformações da pesquisa na prática. Percebeu-se que os participantes modificaram alguns comportamentos em prol do autocuidado, mas que alguns déficits persistiram:

[...] questionei o que ela [trabalhadora] pensava sobre o trabalho que eu havia feito com o grupo e, em especial, se havia surtido alguma mudança. Ela respondeu-me que algumas coisas haviam mudado. Disse que os trabalhadores estavam higienizando as mãos. [...] (NO, 20/12/2017)

[...] em visita ao galpão, hoje, encontrei-o bastante organizado. Percebi que havia poucos recicláveis no chão, o que facilitava muito o trânsito. Descobri que há um trabalhador responsável pela organização, limpeza, carregamento dos recicláveis e auxílio aos demais colegas, conforme foi falado em ocasião do grupo de convergência. No entanto, percebi que alguns trabalhadores seguem atuando sem luvas. (NO, 19/12/2017)

DISCUSSÃO

A primeira categoria evidenciou os catadores de material reciclável como agentes de autocuidado cujas ações se voltaram, primeiramente, à valorização de uma alimentação de qualidade e hidratação. Os catadores de materiais recicláveis constituem uma população vulnerável aos determinantes sociais de saúde¹⁴, pois convivem, muitas vezes, sob precárias condições de saúde, vida, trabalho e alimentação^6,15. Sabe-se que, frequentemente, suas condições alimentares são fragilizadas pela baixa remuneração¹⁵. Isso ressalta que as ações de valorização da alimentação e ingesta hídrica, como ações de autocuidado, são positivas na cooperativa.

Entretanto, estabelecem-se outras demandas para o autocuidado, expressas, sobretudo, pelos riscos laborais. Frente a estes riscos, os catadores buscam proteger-se, ainda que convivendo com eles diariamente, e sanar as consequências em sua saúde por meio do uso autônomo de medicamentos e curativos.

O trabalho com material reciclável é marcado por riscos físicos (calor, umidade, frio), químicos (substâncias tóxicas), biológicos (material orgânico ou biológico), ergonômicos (relacionados à postura e ao esforço físico), de acidentes e relacionados à convivência com insetos e roedores^1,2,6,15,16.

No entanto, um estudo de revisão integrativa evidenciou o pouco acesso ou pouca procura dos serviços de saúde pelos catadores, principalmente no que diz respeito à vacinação básica e ações preventivas⁶. Portanto, frente à necessidade de estabelecer o autocuidado e na ausência de orientações profissionais, os trabalhadores buscam recursos medicamentosos por conta própria.

Embora os participantes tenham identificado essas atitudes como ações de autocuidado, deve-se ponderar sobre os riscos relacionados ao uso de fármacos sem prescrição médica. Estudo realizado com catadores evidenciou que os participantes não recorriam aos serviços de saúde quando necessitavam, optando por utilizar remédios caseiros ou resíduos médicos encontrados dentre os recicláveis².

O lazer e a espiritualidade também foram citados como ações de autocuidado. Há evidências de que os riscos psicossociais são presentes no cotidiano dos catadores, estando relacionados à falta de reconhecimento da sociedade^1,6 e a condições adversas em suas trajetórias de vida¹⁷. Assim, ações de cuidado à dimensão espiritual e existencial são importantes para a manutenção da saúde mental.

A primeira categoria encerra-se com a confirmação da motivação para o autocuidado firmada na expectativa de uma sobrevida com qualidade, autonomia e no desejo de um trabalho mais seguro. Estudo realizado com indivíduos diabéticos evidenciou que os cuidados alimentares e relacionados ao bem-estar emocional se mostraram como ações de autocuidado¹⁸, o que vai ao encontro dos resultados deste estudo.

Em contraponto, os dados da segunda categoria evidenciam que à agência de autocuidado dos catadores contrastavam-se os déficits. Indo ao encontro disso, estudos realizados com outras populações evidenciaram que, apesar dos indivíduos, muitas vezes, reconhecerem a importância do autocuidado e identificarem as ações de que necessitam, nem sempre conseguem colocá-las em prática, pois encontram, como obstáculos, a falta de orientações por parte dos profissionais de saúde, a desmotivação e fatores extrínsecos como domésticos e do trabalho^18,19.

Nem sempre os catadores de material reciclável reconhecem a relação entre o trabalho e sua saúde^15,20. Por vezes, possuem pouco entendimento em relação aos riscos laborais e recaem em processos de negação dos mesmos⁶.

Ao desconhecimento dos riscos ocupacionais associa-se a banalização dos mesmos quando os catadores ingerem alimentos provenientes do reciclável⁶. Algumas vezes, esses trabalhadores também aproveitam objetos ou mesmo medicamentos encontrados no reciclável sem considerar os riscos à sua saúde^2,15. Além disso, o não uso dos EPIs também evidencia a negação e banalização dos riscos e constitui um elemento evidente em outras pesquisas com estes grupos^2,6,16,20.

Esta categoria finaliza com a ideia de que o autocuidado, algumas vezes, é preterido em relação à busca de aumento dos ganhos financeiros. Um estudo discutiu que, devido aos ganhos da reciclagem serem condicionados à produtividade do catador (quantidade de material coletado e separado), esses trabalhadores aceitam os riscos cotidianos como condição necessária para a sua subsistência⁶. Isso confirma que a dinâmica saúde e adoecimento dos catadores encontra importantes determinantes nos aspectos socioeconômicos^14,21.

Por fim, a terceira e última categoria evidencia o encontro entre a ação investigativa e a prática assistencial, culminando na promoção do autocuidado, a partir da aplicação da Teoria dos Sistemas de Enfermagem. O estabelecimento de sistemas teóricos de Enfermagem desempenha um importante papel na prática assistencial do enfermeiro e consiste em um pré-requisito fundamental na consolidação de uma Enfermagem profissional e científica²².

A aplicação da Teoria dos Sistemas de Enfermagem, neste estudo, mostrou-se adequada para a realidade dos catadores e forneceu suporte teórico suficiente para a sistematização da prática assistencial. Também mostrou convergência teórico-prática com o método da PCA, a qual possibilitou, metodologicamente, a aplicação prática da teoria. A abordagem educativa no coletivo evidenciou uma importante contribuição da PCA para a aplicação da Teoria dos Sistemas de Enfermagem, confirmando que a promoção do autocuidado pode extrapolar o indivíduo e ser realizada em espaços em que o grupo possa trocar experiências e se potencializar.

A Teoria dos Déficits de Autocuidado tem sido aplicada em estudos nacionais e internacionais recentes, contribuindo para a obtenção de bons resultados, não apenas de pesquisa, mas também de intervenção^8,9,18,19. Nesta pesquisa, corrobora-se a completude desta teoria de Enfermagem e sua potencialidade para a pesquisa e a assistência.

Todavia, deve-se ponderar que os resultados deste estudo não foram completamente exitosos, pois um conjunto de déficits de autocuidado não foi minimizado. Em vista disso, é importante ressaltar, primeiramente, que a promoção do autocuidado exige que o indivíduo reconheça a centralidade do seu papel e que o enfermeiro atue como um apoiador do seu processo de mudança, mas considerando que o indivíduo é o protagonista¹⁸.

Além disso, é fundamental resgatar Orem em seu conceito de condicionantes básicos de saúde, elementos que interferem não apenas na agência de autocuidado (ações e motivações), mas também nas demandas de autocuidado dos indivíduos. Orientação sociocultural, padrões de vida, disponibilidade de recursos, sistema de atenção à saúde, dentre outros, são exemplos de condicionantes que interferem no autocuidado⁷.

Neste ponto, reconhece-se a importância destes condicionantes para que se possa entender por que a mitigação de problemas de saúde complexos em populações vulneráveis é um desafio para a Enfermagem. Pobreza, exclusão social, barreiras no acesso à educação, trabalho precarizado, distanciamento dos serviços de saúde e, muitas vezes, fome e outras privações são elementos que exercem força sobre as subjetividades, interferindo sobre suas decisões, motivações e poder sobre a própria saúde, sobretudo no contexto de vida e trabalho de determinados grupos que nem sempre estão visibilizados no Sistema Único de Saúde.

Assim, defende-se que é possível a promoção da autonomia para o autocuidado com o trabalho de enfermeiros instrumentalizados pela teoria e pelas evidências científicas e, preferencialmente, atuantes no contexto da Atenção Primária à saúde, capazes de firmar vínculos com seus territórios. No entanto, o trabalho da Enfermagem deve ser acrescido de um processo de transformação de estruturas sociais e econômicas historicamente sedimentadas, que excluem determinados grupos do acesso à educação, à profissionalização, à renda, à inclusão social e a uma vida sem fome e sem privações.

CONCLUSÕES E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA

Os catadores de material reciclável possuíam ações deliberadamente constituídas e motivações para cuidar-se, o que os caracterizou como agentes de autocuidado. Contudo, possuíam um conjunto de ações que sinalizavam para déficits.

O Sistema de Enfermagem apoio-educação mostrou-se adequado para a promoção do autocuidado junto a este grupo, pois foram alcançadas mudanças positivas em seu cotidiano. No entanto, identificou-se que ações educativas pontuais não são suficientes para eliminar problemas complexos, pois necessitam de articulação com ações permanentes, protagonizadas pelos atores sociais em conjunto com profissionais de saúde instituídos e responsabilizados pelo território, além da redução das iniquidades em saúde por meio de políticas públicas de educação e combate à pobreza.

Este estudo teve como limitação a restrita disponibilidade dos catadores de material reciclável para a participação na produção de dados. Como os ganhos financeiros eram condicionados à produção, foi necessário pactuar uma condução mais breve das entrevistas e um número mínimo de encontros para os grupos de convergência. É possível que isto tenha limitado, em alguns momentos, a profundidade dos dados obtidos.

AGRADECIMENTOS

À profa. Dra. Mercedes Trentini, pelo olhar crítico, sensível e dedicado que tem auxiliado no processo de compreensão e aplicação da Pesquisa Convergente-Assistencial.

• FINANCIAMENTO Este trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

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EDITOR CIENTÍFICO

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  19 Nov 2021
• Data do Fascículo
  2022

Histórico

• Recebido
  28 Abr 2021
• Aceito
  05 Out 2021