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Perspectiva dos profissionais da rede intersetorial sobre intervenção educativa para o enfrentamento da violência de gêneroa a Artigo extraído do projeto de pesquisa de pós-doutorado “Sistematização e validação qualitativa de uma proposta de intervenção por meio do jogo Violetas para o enfrentamento da violência de gênero”, apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022, de autoria de Lucimara Fabiana Fornari, sob a supervisão de Rosa Maria Godoy Serpa da Fonseca.

Perspectiva de los profesionales de la red intersectorial sobre intervención educativa para enfrentar la violencia de género

Resumo

Objetivo

identificar a percepção dos profissionais sobre uma intervenção educativa qualificadora para o enfrentamento da violência de gênero.

Método

estudo qualitativo, realizado com 28 profissionais das Casas da Mulher Brasileira: Brasília (Distrito Federal), Campo Grande (Mato Grosso do Sul) e Curitiba (Paraná). A coleta de dados ocorreu por meio de Oficinas de Trabalho Crítico-emancipatórias, entre outubro de 2020 e outubro de 2021. Os discursos foram submetidos à análise de conteúdo temática, e as imagens foram analisadas por meio do método documentário de interpretação, com o apoio de software.

Resultados

participaram do estudo psicólogas, assistentes sociais e técnicas-administrativas que, em sua maioria, tinham mais de quatro anos de experiência de trabalho na instituição. Quatro categorias empíricas emergiram das análises: A intervenção educativa como motivação para a construção do conhecimento; A importância da dinâmica grupal para a aprendizagem colaborativa; A metodologia ativa como ferramenta para o reconhecimento profissional; A intervenção educativa como possibilidade de (re)pensar a prática profissional.

Conclusão e implicações para a prática

as profissionais percebem a potencialidade da intervenção educativa para a compreensão e transformação da realidade do seu trabalho, possibilitada pela dinâmica lúdica, crítica e participativa. Ademais, permitiu ampliar e adensar os conhecimentos para enfrentamento da violência de gênero.

Palavras-chave:
Aprendizagem; Conhecimento; Prática Profissional; Violência contra a Mulher; Violência de Gênero

Resumen

Objetivo

identificar la percepción de los profesionales sobre una intervención educativa calificadora para enfrentar la violencia de género.

Método

estudio cualitativo, realizado con 28 profesionales de Casas da Mulher Brasileira: Brasília (Distrito Federal), Campo Grande (Mato Grosso do Sul) y Curitiba (Paraná). La recolección de datos ocurrió a través de Talleres Crítico-emancipadores, entre octubre de 2020 y octubre de 2021. Los discursos fueron sometidos a análisis de contenido temático, y las imágenes fueron analizadas utilizando el método de interpretación documental, con apoyo de software.

Resultados

participaron del estudio psicólogos, trabajadores sociales y técnicos administrativos, la mayoría con más de cuatro años de experiencia laboral en la institución. De los análisis, surgieron cuatro categorías empíricas: La intervención educativa como motivación para la construcción del conocimiento; La importancia de las dinámicas de grupo para el aprendizaje colaborativo; La metodología activa como herramienta de reconocimiento profesional; La intervención educativa como posibilidad de (re)pensar la práctica profesional.

Conclusión e implicaciones para la práctica

los profesionales perciben el potencial de la intervención educativa para comprender y transformar la realidad de su trabajo, posibilitada por la dinámica lúdica, crítica y participativa. Además, permitió ampliar y profundizar conocimientos para enfrentar la violencia de género.

Palabras clave:
Aprendizaje; Conocimiento; Práctica Profesional; Violencia contra la Mujer; Violencia de Género

Abstract

Objective

to identify professionals’ perception about a qualifying educational intervention to cope with gender violence.

Method

a qualitative study, carried out with 28 professionals from Casas da Mulher Brasileira: Brasília (Distrito Federal), Campo Grande (Mato Grosso do Sul) and Curitiba (Paraná). Data collection took place through Critical-emancipatory Workshops, between October 2020 and October 2021. Speeches were subjected to thematic content analysis, and the images were analyzed using the documentary interpretation method, with the support of software.

Results

psychologists, social workers and administrative technicians participated in the study, most of whom had more than four years of work experience in the institution. Four empirical categories emerged from the analyses: Educational intervention as a motivation for knowledge construction; The importance of group dynamics for collaborative learning; The active methodology as a tool for professional recognition; Educational intervention as a possibility to (re)think professional practice.

Conclusion and implications for practice

professionals perceive the potential of educational intervention for understanding and transforming the reality of their work, made possible by the playful, critical, and participatory dynamics. Moreover, it allowed expanding and deepening knowledge to cope with gender violence.

Keywords:
Gender-Based Violence; Knowledge; Learning; Professional Practice; Violence Against Women

INTRODUÇÃO

O termo “gênero” está associado aos atributos sociais correspondentes a homens e mulheres, e às relações estabelecidas entre eles. O gênero determina o que é esperado, permitido e valorizado para cada sexo, de acordo com o contexto social. Na maioria das sociedades, percebe-se a desigualdade de gênero nas responsabilidades, nas atividades, no acesso e controle de recursos, e nas tomadas de decisão.11 United Nations Women. United Nations Entity for Gender Equality and the Empowerment of Women: conceptions and definitions [Internet]. UN Women; 2022 [citado 2022 dez 8]. Disponível em: https://www.un.org/womenwatch/osagi/conceptsandefinitions.htm
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Acrescenta-se que essa desigualdade é conformada por relações de poder estruturadas na sociedade que se expressam na vida pública e privada.22 Global Health. Gender equality: flying blind in a time of crisis (The Global Health 50/50 Report 2021). London: Global Health; 2021.

A desigualdade de gênero, codificada em normas sociais e consolidada por políticas que asseguram maior status e poder aos homens em relação às mulheres, é responsável por sustentar a violência de gênero contra as mulheres. Apesar de ser um fenômeno constante na vida das mulheres, reconhece-se que o ônus recai particularmente sobre as desvantagens geracionais, raciais e de classe social. Além disso, suas consequências físicas, mentais, sociais e econômicas são devastadoras e podem durar a vida toda para as mulheres, os filhos, a família e a comunidade.33 The Lancet. Preventing violence against women: beyond 16 days. Lancet. 2021;398(10317):2125. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(21)02781-1. PMid:34895519.
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Diante disso, considera-se que as mulheres vivenciam a violência de gênero de diferentes formas, configurações, intensidades e frequências. No mundo, em 2018, uma em cada quatro mulheres na faixa etária entre 15 e 49 anos relatou ter sofrido violência física ou sexual pelo menos uma vez na vida.44 Sardinha L, Maheu-Giroux M, Stöckl H, Meyer SR, García-Moreno C. Global, regional, and national prevalence estimates of physical or sexual, or both, intimate partner violence against women in 2018. Lancet. 2022;399(10327):803-13. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(21)02664-7. PMid:35182472.
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Na pandemia do novo coronavírus (COVID-19), evidenciou-se o aumento mundial deste número, com uma em cada duas mulheres jovens reportando ter sofrido ou conhecido alguma mulher em situação de violência.55 United Nations Women. Measuring the shadow pandemic: violence against women during Covid-19. Washington: UN Women; 2021.

Esses dados ressaltam que a violência contra a mulher é um problema anterior à pandemia e que provavelmente continuará existindo por muito tempo. Assim, pode-se afirmar que a emergência da COVID-19 desvelou e potencializou um problema pré-existente, pois o distanciamento social adotado para evitar a propagação da doença resultou no isolamento das vítimas no espaço doméstico junto com os seus agressores, acompanhado da dificuldade de acesso aos serviços de apoio existentes.66 Kourti A, Stavridou A, Panagouli E, Psaltopoulou T, Spiliopoulou C, Tsolia M et al. Domestic violence during the COVID-19 pandemic: a systematic review. Trauma Violence Abuse. 2021;24(2):719-745. PMid:34402325.

Além da dificuldade de acesso aos serviços de apoio, mesmo em tempos não pandêmicos, muitas mulheres em situação de violência se deparam com limitações no atendimento prestado pelos profissionais. Pesquisa africana com profissionais da Atenção Primária à Saúde constatou a responsabilização das mulheres pelas situações de violência, devido à manifestação de comportamentos como a passividade ou a ingestão problemática de bebidas alcoólicas pelas usuárias.77 Silva ASB, Silva MRS, Semedo DSRC, Fortes DCS, Santos AM, Fonseca KSG. Perceptions of primary health care workers regarding violence against women. Rev Esc Enferm USP. 2022;56:e20210097. http://dx.doi.org/10.1590/1980-220x-reeusp-2021-0097. PMid:35080237.
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Outra pesquisa italiana com profissionais da rede intersetorial verificou tendência de tratamento das mulheres como indefesas e dependentes dos seus parceiros.88 Autiero M, Procentese F, Carnevale S, Arcidiacono C, Di Napoli I. Combatting intimate partner violence: representations of social and healthcare personnel working with gender-based violence interventions. Int J Environ Res Public Health. 2020;17(15):5543. http://dx.doi.org/10.3390/ijerph17155543. PMid:32751890.
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Essas percepções podem reforçar a culpabilização das mulheres e isentar os profissionais do enfrentamento do problema, principalmente quando não estão qualificados para atender às situações de violência.77 Silva ASB, Silva MRS, Semedo DSRC, Fortes DCS, Santos AM, Fonseca KSG. Perceptions of primary health care workers regarding violence against women. Rev Esc Enferm USP. 2022;56:e20210097. http://dx.doi.org/10.1590/1980-220x-reeusp-2021-0097. PMid:35080237.
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Pesquisa espanhola com profissionais de saúde constatou que somente 12% dos participantes referiram alguma formação específica sobre violência de gênero. Além disso, eles consideraram obstáculos para o atendimento, como o risco de exposição da usuária, o medo de ofender, a pouca formação, a insuficiência de tempo, a ausência de privacidade e a consideração de que se trata de assunto privado.99 Méndez RD, Calvo MSR. Percepciones del personal sanitario sobre la violencia de género. Educación Médica. 2021;22:S414-9. http://dx.doi.org/10.1016/j.edumed.2021.01.007.

Para além da necessidade de formação instrumental para o cuidado das mulheres em situação de violência, uma metassíntese sobre a disponibilidade dos profissionais de saúde para o enfrentamento da violência doméstica evidenciou que os sistemas de crenças conformados por experiências pessoais ou por estruturas ideológicas feministas e de direitos humanos foram primordiais para a intervenção no problema.1010 Hegarty K, McKibbin G, Hameed M, Koziol-McLain J, Feder G, Tarzia L et al. Health practitioners’ readiness to address domestic violence and abuse: a qualitative meta-synthesis. PLoS One. 2020;15(6):e0234067. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0234067. PMid:32544160.
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O presente estudo se refere a uma proposta de intervenção educativa (IE) de curta duração que visa promover a construção do conhecimento sobre a violência de gênero, a instrumentalização para a prática profissional e o desenvolvimento crítico-participativo. Está ancorada no referencial da educação crítico-emancipatória, que considera a educação como uma forma de intervenção no mundo, pois o saber é construído a partir da prática comunitária e da discussão sobre a realidade.1111 Freire P. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Editora Paz e Terra; 2004.

Com base no exposto, o estudo teve como questão norteadora: qual é a percepção dos profissionais que atuam no atendimento às mulheres em situação de violência acerca de uma IE para qualificar o enfrentamento da violência de gênero? O objetivo foi identificar a percepção dos profissionais sobre uma IE qualificadora para o enfrentamento da violência de gênero.

MÉTODO

Trata-se de um estudo exploratório, descritivo e interventivo de abordagem qualitativa. A aproximação e a compreensão do objeto de pesquisa foram realizadas a partir das categorias analíticas de gênero11 United Nations Women. United Nations Entity for Gender Equality and the Empowerment of Women: conceptions and definitions [Internet]. UN Women; 2022 [citado 2022 dez 8]. Disponível em: https://www.un.org/womenwatch/osagi/conceptsandefinitions.htm
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,22 Global Health. Gender equality: flying blind in a time of crisis (The Global Health 50/50 Report 2021). London: Global Health; 2021. e da educação crítico-emancipatória,1111 Freire P. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Editora Paz e Terra; 2004. ancoradas no materialismo histórico e dialético. Esse referencial teórico tem como pressuposto a captação do movimento, das relações e das contradições, relacionadas a um determinado fenômeno social. A compreensão da realidade, a partir do empírico, sintetiza determinações transformadas histórica e socialmente.1212 Santos TA, Santos HS, Mascarenhas NB, Melo CMM. Dialectical materialism and quantitative data analysis. Texto Contexto Enferm. 2018;27(4):e0480017. http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072018000480017.
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Os cenários de estudo foram as três primeiras unidades em funcionamento da Casa da Mulher Brasileira (CMB), localizadas em Brasília (Distrito Federal), Campo Grande (Mato Grosso do Sul) e Curitiba (Paraná). Elas foram selecionadas, porque são produtos de uma política pública de integração dos serviços especializados e multidisciplinares de atendimento às mulheres em situação de violência1313 Decreto N° 10.112, de 12 de novembro de 2019 (BR). Programa Mulher Segura e Protegida [Internet]. Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, Brasília (DF), 2019 [citado 2022 abr 28]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D10112.htm#art2
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e apresentam mais de cinco anos de experiência com o trabalho intersetorial.

A CMB é formada pelos seguintes setores de atendimento: recepção, acolhimento e triagem, apoio psicossocial, delegacia especializada de atendimento à mulher, juizado especializado de violência doméstica e familiar contra a mulher, central de transportes, promoção da autonomia econômica, alojamento de passagem, defensoria e promotoria especializada.

O contato inicial com as instituições foi realizado por meio das coordenadoras via ligação telefônica. Após a autorização para a coleta de dados, todos os profissionais que atuavam na CMB foram convidados pelas coordenadoras de forma presencial nos setores de atendimento para participar voluntariamente do estudo. A seleção foi por conveniência dos participantes.

O estudo apresentou como critério de inclusão os profissionais responsáveis ou envolvidos no atendimento às mulheres em situação de violência, e de exclusão, os profissionais que não participaram integralmente da IE. Diante disso, participaram 28 profissionais, sendo 5 de Brasília, 14 de Campo Grande e 9 de Curitiba.

A coleta de dados presencial foi pré-agendada com as coordenadoras, de acordo com a disponibilidade dos participantes, no período entre outubro de 2020 e outubro de 2021. Em decorrência da pandemia de COVID-19, foram respeitadas todas as medidas de segurança necessárias para a prevenção da infecção durante a realização do estudo.

O material empírico foi produzido por meio de Oficina de Trabalho Crítico-emancipatória (OTC), que consiste em um método de investigação e intervenção, fundamentado na educação crítico-emancipatória, no método dialético de exposição e análise, e na emoção como construtora do conhecimento. A OTC tem como pressupostos a participação, a responsabilidade compartilhada, a autoestima e o empoderamento, sendo dividida em quatro momentos: aquecimento, reflexão individual, reflexão grupal e síntese.1414 Fonseca RMGS, Oliveira RNG, Fornari LF. Prática educativa em direitos sexuais e reprodutivos: a oficina de trabalho crítico-emancipatória de gênero. In: Associação Brasileira de Enfermagem, editor. Programa de Atualização em Enfermagem (PROENF): atenção primária e saúde da família: ciclo 6. Porto Alegre: Artmed Panamericana; 2017. p. 59-120.

Neste estudo, a OTC foi estruturada como IE e instrumento para a coleta de dados, concomitantemente. A programação da OTC foi organizada em duas sessões de três horas de duração cada, realizadas em dois dias consecutivos, totalizando seis horas por unidade da CMB. A seguir, são apresentados os momentos que fundamentaram o desenvolvimento da OTC:

a) Aquecimento: os participantes responderam um questionário sociodemográfico e realizaram uma partida do Jogo Violetas: Cinema & Ação no enfrentamento da violência contra a mulher. Trata-se de um jogo de tabuleiro cooperativo e estratégico, com no mínimo quatro e no máximo oito jogadores, que assumem o papel de personagens com habilidades especiais. Todos jogam coletivamente contra a violência que se instala nas cidades do tabuleiro e enfrentam o problema por meio de respostas a perguntas relacionadas a cenas de filmes e ações em defesa das mulheres.1515 Pires MRGM, Almeida AN, Gottems LBD, Oliveira RNG, Fonseca RMGS. Gameplay, learning and emotions in the board game violets: cinema & action in combating violence against women. Cien Saude Colet. 2021;26(8):3277-88. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232021268.00902020. PMid:34378715.
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Neste estudo, o Jogo Violetas foi utilizado como ferramenta mediadora para estimular a produção do conhecimento sobre a violência de gênero. Diante disso, foram realizadas duas partidas com sete jogadores em Campo Grande, duas partidas com quatro e cinco jogadores em Curitiba e uma partida com cinco jogadores em Brasília.

b) Reflexão individual: os participantes responderam um formulário individual sobre uma questão do jogo que suscitou o interesse e as possíveis repercussões do problema para a mulher envolvida.

c) Reflexão grupal: os participantes foram divididos em dois grupos. Cada participante apresentou o que registrou no formulário individual, e o grupo escolheu um dos problemas levantados para responder um segundo formulário, que apresentava elementos que orientavam para a construção de ações nos cenários do estudo.

d) Síntese: os participantes apresentaram as ações construídas pelos grupos por meio de roda de conversa e analisaram as potencialidades e os limites para a implementação na realidade concreta. Posteriormente, os participantes selecionaram, em revistas de circulação nacional e de acesso aberto da Editora Globo, uma ou mais imagens que representavam a participação na IE. As imagens foram utilizadas para estimular a reflexão e a livre expressão verbal dos participantes. No total, foram selecionadas 50 imagens.

A OTC foi registrada por meio de áudio, transcrito na íntegra no formato docx. As imagens foram digitalizadas no formato png. Os discursos foram submetidos à análise de conteúdo temática, conforme as seguintes etapas: pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados, interpretação e inferência.1616 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011. As imagens foram analisadas por meio do método documentário de interpretação, que é dividido em interpretação formulada e refletida, nas quais são analisados os planos, os elementos iconográficos e a composição formal, subdivida em composição planimétrica, projeção perspectivista, coreografia cênica e interpretação icônico-iconológica.1717 Weller W, Bassalo LMB. Imagens: documentos de visões de mundo. Sociologias. 2011;13(28):284-314. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222011000300010.
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Foi utilizado o software Web Qualitative Data Analysis (webQDA) como apoio para a análise dos discursos e das imagens.1818 Minayo MCS, Costa AP. Techniques that use speech, observation and empathy: qualitative research in action. Aveiro, Portugal: Ludomedia; 2019.

No webQDA, a caracterização dos participantes foi inserida no formato xlsx, por meio da ferramenta de importação automática que criou os descritores. Os demais dados relacionados aos discursos e às imagens foram inseridos no software por meio do sistema de fontes internas em duas pastas independentes. Esse sistema se destina ao armazenamento dos documentos submetidos à análise qualitativa. Para a identificação das categorias empíricas, os discursos e as imagens foram categorizados no software por meio do sistema de codificação dos códigos árvore. Esse sistema se propõe à codificação dos discursos e das imagens, bem como à organização dos dados em categorias, conforme a ordem de recorrência das temáticas.

Salienta-se que, na primeira etapa da categorização, os discursos e as imagens foram codificados separadamente, conforme cada técnica de análise. Em seguida, todos os códigos foram reagrupados em categorias empíricas temáticas.

No que se refere aos aspectos éticos, o estudo atendeu aos requisitos propostos pela Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.1919 Resolução no 466, de 12 de dezembro de 2012 (BR). Conselho Nacional de Saúde [Internet]. Diário Oficial da União, Brasília (DF), 2012 [citado 2022 mar 28]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html
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O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, sob Parecer 3.780.945. Também foi apresentado às unidades da CMB de Brasília, Campo Grande e Curitiba, para conhecimento e autorização da coleta de dados. A participação no estudo foi voluntária, e o anonimato foi garantido mediante a substituição do nome dos participantes pela letra “P”, seguida de um número arábico.

RESULTADOS

Participaram do estudo 28 profissionais do sexo feminino. A maioria se encontrava na faixa etária entre 40 e 49 anos (n=10), era casada (n=11) e tinha um ou mais filhos (n=19). 14 participantes referiram ser católicas e 17 se declaram de cor da pele branca. Todas apresentavam ensino superior completo e 19 referiram ter pelo menos um curso de pós-graduação. No que se refere ao trabalho, 11 participantes atuavam como psicólogas, 10 como assistentes sociais, e as demais ocupavam cargos administrativos. 18 participantes tinham mais de 10 anos de profissão e atuavam há mais de quatro anos na CMB.

A partir da análise dos discursos e das imagens, emergiram quatro categorias empíricas: A intervenção educativa como motivação para a construção do conhecimento; A importância da dinâmica grupal para a aprendizagem colaborativa; A metodologia ativa como ferramenta para o reconhecimento profissional; A intervenção educativa como possibilidade de (re)pensar a prática profissional.

A intervenção educativa como motivação para a construção do conhecimento

No início da IE, observou-se que a dinâmica do jogo Violetas e o formato participativo geraram insegurança para as profissionais, pois não estavam familiarizadas com esse tipo de abordagem metodológica, em que as pessoas envolvidas participam ativamente do processo de aprendizagem.

No começo, quando cheguei para participar, eu estava bem confusa em relação ao objetivo desse encontro, como seria. Aí, você veio com a proposta do jogo, fiquei mais confusa ainda. Mas depois fui me familiarizando, entendendo o objetivo e achei fantástico, porque para mim isso representa crescimento, mas, falando do macro, não crescimento meu [...]. Criar esse espaço de discussão, de reflexão, o que é, como está sendo feito, o que está dando certo e o que não dá (P18).

O formato participativo da IE motivou a discussão e a reflexão sobre a violência de gênero e as questões que conformam o cotidiano da prática profissional.

Fiquei animada com essa questão da discussão, porque é isso, a gente não consegue ter muito tempo para abrir essas discussões e falar sobre os casos. Acho que isso foi bem interessante, no sentido de a gente poder discutir o assunto que é o tema do nosso trabalho cotidiano (P25).

A IE foi entendida como um momento propício para analisar os casos atendidos na CMB e as ações propostas para responder ao problema. A possibilidade de discutir o cotidiano de trabalho promoveu a interação entre as profissionais de diferentes setores e tempos de atuação. O compartilhamento das emoções e de experiências oriundas da prática foi apontado como um recurso educativo, principalmente por aquelas que estavam ingressando na instituição e ainda tinham tido pouco contato com o tema.

Estou aqui há pouco tempo, então esse novo recurso que você trouxe para nós da CMB foi de grande importância, principalmente para quem está começando agora, para quem está chegando agora (P17).

Para ilustrar essa categoria empírica, as participantes selecionaram imagens relacionadas ao cérebro, a livros ou a pessoas ensinando. Uma das imagens, por exemplo, representou a emoção como construtora do conhecimento, uma vez que o coração estava situado na parte central do cérebro, símbolo da racionalidade humana.

A importância da dinâmica grupal para a aprendizagem colaborativa

As participantes reconheceram que a complexidade da violência de gênero requer atendimento em rede para que as necessidades das usuárias sejam de fato atendidas. Diante disso, afirmaram que a interação entre os diferentes atores da rede é essencial para a superação do problema.

Foi muito bacana a interação do grupo, a gente trocando. É isso, não é aquilo, vamos olhar de novo. A troca é essencial, acho que em qualquer situação de trabalho. A gente precisa estar sempre conversando com colegas, pedindo sugestão, tirando dúvidas, e isso nos remete à lembrança de que é essencial um trabalho de juntar (P20).

Apesar de cada participante ser singular na IE, todas foram fundamentais para a construção das ações com vistas ao enfrentamento do problema. Dessa forma, considerou-se que o resultado foi alcançado mais rápido, porque foi realizado em equipe. Porém, somente a presença das profissionais não foi suficiente, houve necessidade de diálogo entre todas as envolvidas.

Acho que foi mais rápido trabalhar em equipe do que se tivesse só eu ali, tentando quebrar a cabeça para acertar o que a gente estava querendo fazer. Aqui, na Casa, tem equipe, da recepção vai para o psicossocial e do psicossocial para a delegacia. Então, a gente acaba trabalhando em equipe. Só que aqui mostra que a gente trabalha bem em equipe quando a gente se comunica. Quando não há comunicação, por mais rede que a gente tenha, fica mais difícil (P11).

A comunicação demanda espaço de fala e de escuta, de modo que todas que compõem a equipe possam compartilhar suas perspectivas e habilidades para alcançar um objetivo comum, neste caso, o enfrentamento da violência de gênero.

Na Figura 1, escolhida por uma das participantes, observa-se uma canoa com oito pessoas remando. Cada pessoa ocupa uma posição específica que possibilita o deslocamento da canoa por meio de movimento sincronizado, superando as adversidades da água onde ela está.

Figura 1
Imagem 14 do banco de dados.

A metodologia ativa como ferramenta para o reconhecimento profissional

As profissionais consideraram que a participação na IE propiciou discussão sobre os desgastes associados ao processo de trabalho, com a finalidade de buscar alternativas conjuntas para superá-los.

Acho que esse é um momento até para refazer as nossas energias, porque eu particularmente às vezes canso. As pessoas falam você não cansa, eu canso, a gente se desgasta, às vezes, não encontra alternativas [...]. Acho que esse é um momento que, para mim, serve como um gás para retomar as minhas energias e ver que é possível novas estratégias de atuação (P9).

Na IE, houve reconhecimento do trabalho desenvolvido pelas profissionais durante a pandemia de COVID-19, quando foi constatado aumento expressivo de mulheres em situação de violência e sobrecarga causada pelo aumento do número de atendimentos diários na CMB. Porém, esse trabalho, muitas vezes, é realizado por profissionais fragilizadas em decorrência da própria prática e da condição de mulher na sociedade, dado que os problemas das mulheres não estão somente no âmbito individual, mas também no coletivo.

Peguei essas flores [Imagem 45 do banco de dados], porque cada uma de vocês merece uma flor, com muito amor, muita dignidade, com muito compromisso, e que vocês cuidem da flor de vocês, porque vocês ficam lidando com a dor das outras. E a tua própria dor? Em que momento você se dá flores, se vê como mulher? Então, eu quis colocar um carinho, porque vocês merecem (P26).

A participação na IE foi considerada um momento de acolhimento das profissionais. Na singularidade dos atendimentos, as participantes referiram que em algumas situações é difícil separar o lado profissional e o lado pessoal. Quanto à dimensão estrutural, comentaram os problemas institucionais, como a dificuldade de comunicação intersetorial e a desqualificação de uma parcela dos outros profissionais.

O trabalho está dentro da gente. Mesmo que às vezes fique um pouco desanimada, está na gente aquele amor pela mulher, pelo trabalho, pela escuta, por querer mudanças. Às vezes, os problemas institucionais, que naturalmente acontecem, acabam colocando máscaras pesadas na gente, o que é natural. Só que, na verdade, essa estimulação, esse trabalho, que também é de sensibilização como considerei, traz um pouco para a gente, estamos aqui! (P23).

Apesar das fragilidades expostas, também foi referida a importância da presença e da atuação das profissionais na CMB, principalmente para o apoio às usuárias que estão no início da jornada de enfrentamento do problema. Uma das imagens selecionadas mostrou um tronco de árvore com uma planta florescendo na parte lateral. Embora o tronco representasse um obstáculo para o crescimento das raízes da planta, não impediu a floração.

Nessa categoria, também foram incluídas imagens selecionadas pelas participantes de mulheres de diferentes raças, situadas no centro da fotografia com postura corporal de empoderamento representada pela posição ereta, sorriso discreto e olhar direcionado para a lente da câmera fotográfica. Uma menor parcela das imagens retratou figuras femininas praticando atividades manuais, como jardinagem e marcenaria, dando a impressão de que o futuro estava em suas mãos.

A intervenção educativa como possibilidade de (re)pensar a prática profissional

As participantes equipararam a prática profissional ao exercício de andar em uma linha tênue, pois precisam encontrar e manter equilíbrio entre os aspectos positivos e negativos do trabalho. Os aspectos positivos foram associados à promoção da autonomia e à emancipação das mulheres, enquanto os negativos foram relacionados à desistência da denúncia e à descontinuidade do atendimento intersetorial.

Quando a gente trabalha em rede, é sempre muito incerto, é sempre um desafio muito grande, a gente poder contar com as instituições. Muitas vezes, a gente conta com as pessoas, mas não conta com as instituições. Então, acho que minha imagem seria essa, de buscar um equilíbrio, de buscar estar ali, meio que numa corda bamba, mas ao mesmo tempo conquistando resultados (P9).

A conquista dos resultados positivos por meio da prática profissional se mostrou motivo de satisfação para as participantes, oportunizando o aprimoramento dos atendimentos, em contraposição aos desgastes identificados.

Acho que a ideia é essa, para a gente, nem sempre olhar o que está seco, mas a gente conseguir enxergar algo bonito e positivo, a gente conseguir dar outros formatos para o contexto que a gente tem (P2).

As participantes consideraram que as medidas para o enfrentamento da violência de gênero implementadas nas CMB apesar de serem bastante apropriadas, ainda são incipientes, pois se restringem ao atendimento da demanda, para evitar a cronicidade das violações ou diminuir o risco de vida. Entretanto, ainda há muito a aprimorar para lidar com as verdadeiras causas deste fenômeno, que demandam um conjunto maior de ações e de expertises para o seu enfrentamento.

Tem todo um horizonte para explorar, o tanto de coisas do tema da violência doméstica que ainda precisam ser melhoradas, exploradas, alteradas, transformadas na realidade dessas mulheres, para que um dia não exista a necessidade de existirem Casas da Mulher Brasileira. E esse momento que a gente está, ele está parado. Às vezes, a gente precisar parar, pensar, refletir e organizar. Pensar nas próximas remadas (P27).

A Figura 2 retrata uma pessoa de costas e olhando para o horizonte, que revela um caminho entre árvores e uma montanha com neve para ser escalada. Contudo, ela se encontra parada, segurando os remos sobre a água.

Figura 2
Imagem 41 do banco de dados.

A pausa foi considerada como um momento para observar a realidade, contemplar a jornada e refletir sobre o futuro.

DISCUSSÃO

Os resultados do estudo revelam como avanço científico do conhecimento a evidência de que a violência de gênero também pode ser enfrentada por meio de IE lúdica, crítica e participativa, responsável por mobilizar e qualificar as profissionais que atuam na rede intersetorial de atendimento às mulheres em situação de violência. Entretanto, reconhece-se que esse enfrentamento também depende de intervenções que visam à superação da dominação masculina e da subalternidade feminina na sociedade para a promoção da equidade de gênero.

Considera-se que é fundamental o reconhecimento das desigualdades sociais entre homens e mulheres para a proposição de intervenções para o enfrentamento da violência de gênero na sociedade. Aderente a isso, no contexto educativo, é importante a utilização de pedagogias feministas que se contrapõem ao sexismo e incluam esforços para acabar com a discriminação de gênero e para estimular a equidade na comunidade.2020 Hooks B. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. 1a ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; 2018.

A partir do jogo Violetas, as profissionais discutiram as desigualdades sociais associadas aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, à diversidade sexual e racial, aos estereótipos de gênero, às diferentes formas de violência, às políticas e práticas para o enfrentamento da violência de gênero. Também refletiram sobre a participação e a responsabilização de homens e mulheres para a superação do problema na realidade.

Compreende-se que a violência de gênero é um fenômeno social complexo que requer intervenções para o seu enfrentamento nas diferentes dimensões da sociedade. Neste estudo, as autoras optaram por uma proposta de IE de curta duração para a qualificação dos profissionais que atuam no atendimento às mulheres em situação de violência. Reconhece-se que a qualificação dos profissionais, a despeito de ser pedra angular para a superação do problema, não é suficiente, mas potencializa o cuidado generificado, portanto, mais aderente às condições de vida e saúde das mulheres.

Na IE, a produção do conhecimento sobre as questões de gênero foi estimulada por meio do jogo Violetas, subsidiando a reflexão sobre os padrões sexistas e as relações de poder estabelecidas entre homens e mulheres na sociedade. Também permitiu o primeiro contato entre as participantes que, apesar de atuarem na mesma instituição, não se conheciam devido à inserção em diferentes setores. Na medida em que respondiam colaborativamente às questões da partida, compartilhavam experiências relacionadas à vida pessoal e profissional, sem julgamentos. Esse aspecto favoreceu o engajamento delas na atividade proposta.

O envolvimento com a atividade educativa também foi identificado em uma revisão sistemática sobre a experiência de aprendizado por meio de jogos com estudantes de enfermagem. Os resultados revelaram que o desejo de vencer a partida incentivou a participação e remeteu ao realismo proporcionado pelo contexto lúdico, promovendo o engajamento e a diversão, que tornaram a experiência de aprendizagem mais prazerosa.2121 Xu Y, Lau Y, Cheng LJ, Lau ST. Learning experiences of game-based educational intervention in nursing students: a systematic mixed-studies review. Nurse Educ Today. 2021;107:105139. http://dx.doi.org/10.1016/j.nedt.2021.105139. PMid:34563963.
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Na IE, constatou-se que o momento individual possibilitou a captação das percepções das participantes sobre a violência de gênero, e o momento grupal permitiu o seu compartilhamento. Esses dois momentos se mostraram relevantes, não somente para a construção do conhecimento sobre o tema, mas para o estabelecimento da responsabilidade compartilhada por meio do diálogo, pois as profissionais tinham como desafio vencer a partida do jogo e, a seguir, pensar nas ações para transformar os cenários de estudo.

O diálogo é a forma como os sujeitos sociais se expressam e elaboram o mundo por meio da comunicação e da colaboração. Quando autêntico, envolve o reconhecimento de si e do outro para a construção colaborativa do bem comum.2222 Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra; 2013. Assim, considera-se que a compreensão da vida social ocorre a partir do compartilhamento de diferentes percepções sobre a mesma realidade, que possibilitam uma nova forma de compreendê-la.2222 Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra; 2013.

No contexto educativo, para o compartilhamento das diferentes percepções, é primordial o estabelecimento de relações horizontais, constituídas por múltiplas vozes, onde todos os sujeitos são igualmente falantes e ouvintes, e capazes de expressar distintos saberes.2020 Hooks B. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. 1a ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; 2018.

Na IE, o aprofundamento da discussão sobre a violência de gênero ocorreu por meio da translação do conteúdo abordado no cenário fictício do jogo para a realidade concreta das participantes. A aproximação entre a experiência vivida na partida e na prática profissional possibilitou que as profissionais suspendessem temporariamente o papel de atrizes no enfrentamento da violência de gênero, para ocupar o papel de observadoras críticas das cenas.

A aproximação entre o ensino e a prática também foi evidenciada em uma pesquisa espanhola com assistentes sociais, que apontaram a falta de capacitação apoiada em conteúdos práticos como barreira para o enfrentamento da violência contra a mulher.2323 García-Quinto M, Briones-Vozmediano E, Otero-García L, Goicolea I, Vives-Cases C. Social workers’ perspectives on barriers and facilitators in responding to intimate partner violence in primary health care in Spain. Health Soc Care Community. 2022;30(1):102-13. http://dx.doi.org/10.1111/hsc.13377. PMid:33825247.
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Corroborando esse resultado, outra pesquisa espanhola com enfermeiros pós-graduandos identificou que a análise reflexiva sobre casos práticos promoveu o pensamento crítico e a tomada de consciência sobre a situação.2424 Adánez-Martínez MG, Palacio-Gaviria MP, Díaz-Agea JL, Jiménez-Ruiz I, Ramos-Morcillo AJ, Ruzafa-Martínez M et al. Improving learning in the management of gender violence. Educational impact of a training program with reflective analysis of dramatized video problems in postgraduate nurses. Nurse Educ Today. 2022;109:105224. http://dx.doi.org/10.1016/j.nedt.2021.105224. PMid:34810027.
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O pensamento crítico envolve o movimento dialético entre o fazer e o pensar sobre o fazer, em um movimento ascendente, ou seja, de ampliação da consciência. O distanciamento da prática para torná-la objeto de análise possibilita maior inteligibilidade aos sujeitos envolvidos. Diante disso, quanto mais os sujeitos se percebem na prática, maior é a capacidade de mudança da condição de curiosidade ingênua para crítica epistemológica.1111 Freire P. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Editora Paz e Terra; 2004.

A colaboração proporcionada pela dinâmica da IE possibilitou que as profissionais se sentissem confortáveis para compartilhar dúvidas, inseguranças, insatisfações e inquietações relativas ao atendimento desenvolvido na CMB. Por outro lado, também permitiu o reconhecimento da importância do cuidado oferecido às mulheres e o estímulo para continuidade da implementação de ações para a superação das adversidades do cotidiano do trabalho.

É importante ressaltar que a coleta de dados deste estudo foi realizada quando a pandemia de COVID-19 estava em curso. Portanto, reconhece-se a possibilidade de que as profissionais se encontravam mais fragilizadas devido à sobrecarga de trabalho. Esse resultado foi identificado em outras pesquisas, nas quais os profissionais referiram o aumento da responsabilidade, da carga de trabalho e da pressão, para atender às necessidades das mulheres em situação de violência durante a pandemia de COVID-19.2525 Wood L, Schrag RV, Baumler E, Hairston D, Guillot-Wright S, Torres E et al. On the front lines of the COVID-19 pandemic: occupational experiences of the intimate partner violence and sexual assault workforce. J Interpers Violence. 2020;37:9345-66. PMid:33334241.,2626 Vives-Cases C, La Parra-Casado D, Briones-Vozmediano E, March S, Garciá-Navas AM, Carrasco JM et al. Coping with intimate partner violence and the COVID-19 lockdown: the perspectives of service professionals in Spain. PLoS One. 2021;16(10):e0258865. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0258865. PMid:34673783.
http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0...

O aprendizado construído por meio da IE foi considerado importante, tanto para o embasamento dos atendimentos quanto para a proposição de mudanças no processo de trabalho. A proposta de elaborar respostas para os problemas da realidade concreta foi entendida como desafiadora pelas participantes, na medida em que estavam mais acostumadas a executar do que a propor ou refletir sobre as ações. Essa possibilidade de problematizar e criar soluções promoveu o empoderamento e a elevação da autoestima das profissionais.

Considera-se que a educação problematizadora é importante para que os sujeitos sociais percebam criticamente a realidade e sua inserção nela. Quanto mais desvelam e compreendem essa realidade, mais se inserem nela criticamente na busca de superação das contradições e da emancipação humana.2222 Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra; 2013.

Os resultados do estudo revelaram também que o conhecimento das participantes sobre a violência de gênero não pareceu ser suficiente para enfrentamento do problema. A qualificação foi apontada como um elemento importante, mas que requer outros investimentos, como a consolidação da comunicação intersetorial, o fortalecimento do atendimento integrado e continuado, e a proposição de ações que visam à prevenção da violência contra a mulher.

A importância da comunicação intersetorial também foi citada em uma pesquisa brasileira com profissionais de saúde, assistência social e segurança pública sobre a construção da rede de atendimento às mulheres em situação de violência. De acordo com as autoras, a comunicação depende do conhecimento sobre o processo de trabalho de cada serviço. Para tanto, salientam a importância de iniciativas da gestão para a articulação intersetorial, viabilizando a interação entre os diversos serviços, bem como o aporte adequado de recursos humanos, infraestrutura física, ambiente favorável e flexibilidade de agendas.2727 Cortes LF, Padoin SMM, Arboit J. Inter-sectorial network for assisting women in situations of violence: handicraft work built by the people. Rev Bras Enferm. 2022;75(Suppl 2):e20210142. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0142. PMid:35043935.
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As participantes referiram que, além de a IE proporcionar um momento significativo para a reflexão sobre o objeto de trabalho, foi considerada um espaço de apoio, pois tiveram possibilidade de conversar sobre suas fragilidades, propondo ações colaborativas para superá-las, assim como identificar potencialidades que impactam positivamente nos setores de atendimento. Os discursos evidenciaram que, em alguns momentos, as profissionais também precisam de atenção e cuidado para que estejam fortalecidas para oferecer suporte às mulheres em situação de violência.

Considera-se que os resultados do estudo revelaram a potencialidade da IE com uso do jogo Violetas para a qualificação das profissionais que atuam no enfrentamento da violência de gênero e para a transformação da realidade na qual estão inseridas. A participação na IE de forma crítica e emancipatória favoreceu a produção de conhecimentos sobre o tema, incluindo ações que poderão ser implementadas nos cenários de estudo.

Os resultados também evidenciaram que a IE é inovadora, pois envolve o uso de tecnologia lúdica e de metodologia participativa, na qual as profissionais são consideradas sujeitos do processo de aprendizagem e protagonistas da construção coletiva de ações para transformar a realidade. Além disso, destaca-se que a análise qualitativa combinada de discursos e imagens possibilitou ampliar a captação dos sentidos e o aprofundamento da compreensão da IE.

CONCLUSÃO E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA

Os resultados do estudo evidenciaram a potencialidade da IE para a qualificação das profissionais que atuam na rede de atendimento às mulheres em situação de violência. A IE foi percebida como um importante espaço para a reflexão sobre a violência de gênero e a problematização da prática profissional, no sentido de estimular a implementação de ações na realidade concreta que visam à superação de barreiras nos atendimentos das mulheres que buscam os serviços de apoio. Além disso, evidenciou-se a relevância da metodologia crítica e participativa para a compreensão e transformação dos cenários de estudo em conjunto com as profissionais.

Acredita-se que a IE poderá ser utilizada para a formação dos estudantes dos cursos de graduação e pós-graduação das áreas do conhecimento envolvidas no atendimento das mulheres em situação de violência, bem como para a qualificação dos profissionais que participam da rede intersetorial por meio da educação continuada. Além disso, considera-se que a IE é correspondente à heterogeneidade dos diferentes cenários geopolíticos brasileiros, na medida em que as ações desenvolvidas pelos participantes se reportam a realidade concreta na qual estão inseridos.

O estudo apresentou como limitação o número reduzido de participantes inicialmente previsto. A pandemia de COVID-19 e as medidas de distanciamento social vigentes em cada cenário contribuíram para isso. Apesar de o estudo ter sido desenvolvido com diferentes setores de atendimento das CMB e em três capitais brasileiras, faz-se necessário ampliar o uso da IE junto a participantes do sexo masculino para explorar as diferentes perspectivas de gênero e a profissionais de saúde, uma vez que não se encontram inseridos na CMB e são importantes membros da rede de enfrentamento da violência contra as mulheres.

  • FINANCIAMENTO

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, bolsa de pós-doutorado concedida a Lucimara Fabiana Fornari. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), Processo n° 2017/11960-6, projeto de pesquisa “Potencialidades e limites do jogo Violetas para o enfrentamento da violência de gênero”, coordenado por Rosa Maria Godoy Serpa da Fonseca, em 2018-2022.
  • a
    Artigo extraído do projeto de pesquisa de pós-doutorado “Sistematização e validação qualitativa de uma proposta de intervenção por meio do jogo Violetas para o enfrentamento da violência de gênero”, apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022, de autoria de Lucimara Fabiana Fornari, sob a supervisão de Rosa Maria Godoy Serpa da Fonseca.

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EDITOR ASSOCIADO

EDITOR CIENTÍFICO

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2022
  • Aceito
    09 Mar 2023
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