Open-access (In)tolerância como Política: Os discursos de Direita e de Esquerda no Facebook

(In)tolerance as Policy: The Rightist and Leftist Discourses on Facebook

(In)tolerancia como Política: Los Discursos de la Derecha y la Izquierda en Facebook

Resumo

Este estudo tem como objetivo analisar traços da mentalidade potencialmente autoritária a partir do discurso de usuários do Facebook vinculados a páginas de cunho político autodeclarado de direita e de esquerda no Brasil. A Netnografia é utilizada como aporte metodológico para imersão on-line nas páginas “Eu era Direita e não sabia” e “Jovens de Esquerda”, selecionadas por meio do Facebook Audience Insights, ferramenta disponibilizada pelo Facebook. Delas, foram extraídas oito postagens com maior engajamento (número de comentários, curtidas e compartilhamentos), identificadas pelo Netvizz. Foram coletados 3.489 comentários, os quais foram organizados em um corpus textual submetido ao software IRAMUTEQ e analisados sob a perspectiva da análise crítica imanente da teoria crítica. Como resultado, apresenta-se a forma como o pensamento autoritário se manifesta na racionalização da sociedade contemporânea e nas práticas discursivas em redes sociais on-line, enraizada no âmbito sociopolítico brasileiro, ameaçando o processo democrático e a construção de uma sociedade plural e liberta.

Palavras-chave: Autoritarismo; Facebook; Polarização; Política

Abstract

This study aims to analyze traits of the potentially authoritarian mentality from the speech of Facebook users linked to political pages self-declared as rightist and leftist in Brazil. Netnography is used as a methodological contribution for online immersion in the pages “Eu era Direita e não sabia” and “Jovens de Esquerda” selected via Facebook Audience Insights, a tool provided by Facebook. From these, eight posts with greater engagement (number of comments, likes and shares), identified by Netvizz, were extracted. We collected 3,489 comments, which were organized in a textual corpus submitted to IRAMUTEQ software and analyzed from the perspective of immanent critical analysis of Critical Theory. As a result, we present the way in which authoritarian thinking manifests itself in the rationalization of contemporary society and in discursive practices in online social networks, rooted in the Brazilian socio-political sphere, threatening the democratic process and the construction of a plural and free society.

Keywords: Authoritarianism; Facebook; Polarization; Politics

Resumen

Este estudio tiene como objetivo analizar las huellas de la mentalidad potencialmente autoritaria a partir de los discursos de usuarios en Facebook vinculados a páginas políticas autodeclaradas de derecha y de izquierda en Brasil. La netnografía se utiliza como marco metodológico para la inmersión en línea en las páginas “Eu era Direita e não sabia” y “Jovens de Esquerda”, seleccionadas por Facebook Audience Insights, herramienta proporcionada por Facebook. Se extrajeron las ocho publicaciones con mayor compromiso (número de comentarios, gustos y compartidas), identificadas por Netvizz. Se recogieron 3.489 comentarios, los cuales fueron organizados en un corpus textual sometido al software IRAMUTEQ y analizado bajo la perspectiva del análisis crítico inmanente de la teoría crítica. Los resultados presentan la forma en que el pensamiento autoritario se manifiesta en la racionalización de la sociedad contemporánea y en prácticas discursivas en redes sociales en línea, arraigada en el ámbito sociopolítico brasileño, que amenazan el proceso democrático y la construcción de una sociedad plural y liberada.

Palabras clave: Autoritarismo; Facebook; Polarización; Política

Introdução

A expansão da internet e das redes sociais on-line gerou mudanças significativas na sociedade ao inserir novas formas de comunicação interpessoal. As Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDICs) são parte do cotidiano, medeiam relações e constroem subjetividades (Abreu, 2009). Por meio das TDICs é possível processar qualquer informação, incidindo de forma exponencialmente maior nos campos comunicacional e subjetivo. Elas se integram em bases tecnológicas que possibilitam, a partir de softwares, mídias sociais e plataformas digitais, a associação entre diversos ambientes e indivíduos em rede, ampliando a comunicação e as possibilidades já garantidas pelos meios tecnológicos (Kenski, 2012).

Segundo dados disponibilizados pelo relatório Digital in 2020 (Kemp, 2020), 4,5 bilhões de pessoas têm acesso à internet. O documento aponta também o exponencial aumento do uso de mídias sociais e reafirma a liderança do Facebook nesse cenário, atingindo cerca de 2,5 bilhões de usuários em janeiro de 2020. Em seguida, estão YouTube (2 bilhões) e WhatsApp (1,6 bilhão). O Brasil aparece em terceiro lugar no ranking de perfis ativos no Facebook, com ao menos 130 milhões de usuários.

De acordo com Recuero (2014), o Facebook foi apropriado simbolicamente na reconstrução do espaço social no cotidiano dos usuários, ressignificando seu uso, como o que acontece com a conversação. Essa prática, geralmente focada nas trocas entre falantes, passou a ocorrer nessa rede social por meio de ferramentas textuais e por vezes assíncronas, e da criação de novas convenções e sentidos entre os usuários. Para Miguel (2002), o desenvolvimento e a ampla utilização dos meios de comunicação ao longo do século XX modificaram também o ambiente político, seja por mudanças no manejo de questões públicas, seja pelo impacto da evolução tecnológica da mídia.

Redes sociais e meio on-line em geral são também onde os usuários se sentem protegidos pelo suposto anonimato que existe na rede. Silva, Nichel, Martins e Borchardt (2011) afirmam que a internet revolucionou os meios de comunicação da humanidade, permitindo aos sujeitos externalizar a si próprios das mais variadas formas, projetando-se no ciberespaço. Assim, coexistem múltiplas possibilidades em um único espaço: ao mesmo tempo em que são oferecidos subsídios à reconstrução política e social, existem aspectos de outra realidade na qual, sob anonimato, o indivíduo comete crimes, propaga discursos de ódio e viola direitos dos demais usuários, quase sempre alegando defender sua própria liberdade de expressão.

A Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos recebe cerca de 2.500 denúncias diárias envolvendo páginas com evidência dos crimes de pedofilia, racismo, neonazismo, intolerância religiosa, apologia e incitação de crimes contra a vida e homofobia (https://www.safernet.org.br/site/institucional/projetos/cnd). No ranking mundial que contabiliza o número de hosts de páginas denunciadas, o Brasil aparece em terceiro lugar. Na Central, o Facebook aparece em primeiro lugar na classificação de hosts com maior número de denúncias (17,3%), mais que o dobro dos sites pornográficos que também aparecem na lista (https://indicadores.safernet.org.br/).

Números como esses são alarmantes e remetem à problemática em torno da disseminação de ideais e valores semelhantes aos que promoveram a conjuntura sócio-histórica do fascismo. Nas pesquisas realizadas por teóricos críticos da Escola de Frankfurt, a preocupação com o fascismo já emergia como algo além do que se refere ao regime de Estado caracterizado como ideologia política totalitária, antissemita, nacionalista e militarista de extrema direita, mas enquanto traços/mentalidades fascistas presentes nas sociedades modernas democráticas (Carone, 2012).

Ao passo que a internet surgiu como possibilidade de novos arranjos sociais e formas de organização coletiva, também se constituiu como um novo espaço para disseminação de discursos de ódio e para cometer crimes no meio digital (Castells, 2017). Incitações ao ódio e à violência tomaram o meio on-line e adentraram no regime democrático brasileiro, mas não sozinhos; e a motivação frequente para justificar esse discurso é de cunho político. Desde 2018, na disputa eleitoral brasileira, assistimos à ascensão messiânica de um candidato, que foi eleito presidente, que tem como força um discurso de ódio e preconceito às minorias. Tal expressão fomenta em seus eleitores mais que a esperança por um novo governo, a insatisfação com os anteriores e a raiva do que supostamente é diferente. Esse tipo de discurso, outrora velado nas amarras ideológicas dos últimos governos, vai às ruas para reivindicar direitos e cercear o direito dos que não são seus semelhantes. Gritos a favor de uma intervenção militar e pedidos de retorno da ditadura se tornam jargões corriqueiros no Brasil.

A respeito da discussão sobre o pensamento autoritário e a crítica ao uso de aparatos tecnológicos na contemporaneidade, buscamos - por meio do viés da Teoria Crítica da Sociedade - aportes para que as contribuições de autores como Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse fomentem novas reflexões sobre a sociedade hodierna. Considerando tais aspectos, este trabalho se delineou a partir da seguinte questão: em que medida o autoritarismo se manifesta no discurso de usuários do Facebook identificados com as políticas de direita e esquerda no Brasil? Partindo desse questionamento e levando em conta o cenário sociopolítico brasileiro, este trabalho teve como objetivo analisar traços de uma mentalidade potencialmente autoritária (Adorno, Frenkel-Brunswik, & Sanford, 1969; Adorno, Horkheimer, 1985) a partir do discurso de usuários do Facebook vinculados a páginas de posicionamento político autodeclarado de esquerda e direita no Brasil.

Metodologia

Metodologicamente, temos como fio condutor a perspectiva de primado do objeto na Teoria Crítica sob a perspectiva da análise imanente, utilizando a Netnografia como procedimento para imersão no meio on-line. Para isdo, escolhemos o Facebook como microcosmo onde se encontra o modo de funcionamento dos novos aparatos tecnológicos presentes na contemporaneidade.

Kozinets (2014) define a Netnografia como uma pesquisa de trabalho de campo on-line e comunicações mediadas por computador como fonte de dados para compreender e representar determinado fenômeno cultural ou comunal. Embora a netnografia trate de uma adequação metodológica da etnografia para o meio on-line, é necessário considerar suas limitações e caráter adaptativo. É, pois, necessário incluir procedimentos conforme o objeto estudado (Amaral, Natal, & Viana, 2008), como estratégias, ferramentas e aplicativos de pesquisa aqui aplicados. Para delimitar as páginas utilizadas, recorremos ao Facebook Audience Insights (FAI)1. Por meio dessa ferramenta, selecionamos o Brasil como localização e os descritores Direita e Esquerda, referentes à política, para eleger as páginas a serem estudadas. A partir dessas informações, a FAI forneceu dados referentes às páginas com maior engajamento de usuários no período pesquisado.

A seleção ocorreu em 15 de junho de 2018, e as páginas com maior relevância no quesito posicionamento político de esquerda e de direita, respectivamente, eram “Jovens de Esquerda” (864.765 usuários vinculados) e “Eu era Direita e não sabia” (460.064 perfis vinculados). O período escolhido foi entre o mês de agosto, quando iniciou a propaganda eleitoral, e novembro, um mês depois do resultado eleitoral (Tribunal Superior Eleitoral, 2017). A escolha por esse período permitiu que os recortes nas duas páginas fossem atravessados por uma mesma temática, possibilitando melhor análise diante da atual polarização política no Brasil.

A cada mês, uma publicação em cada página foi escolhida mediante relevância do engajamento de comentários e curtidas, somando oito publicações. Também coletamos comentários dos usuários e reações aos posts. Os critérios adotados pelo Facebook para nivelar maior ou menor engajamento de uma publicação não são apenas os números de reações ou comentários. A empresa usa algoritmos para avaliar quantas e quais postagens aparecem no feed de cada usuário (Ribeiro, 2016). Desse modo, criamos um perfil exclusivo para a pesquisa e buscamos aplicativos de extração de dados na Interface de Programação (API) do Facebook que pudessem se adequar ao objetivo da pesquisa e permitissem que a seleção de publicações ocorresse sem a interferência do histórico e demais dados aos quais a rede social tem acesso. Utilizamos a Netvizz, com a qual foi possível extrair o conteúdo de forma retroativa (Rieder, 2013).

De cada publicação, foram extraídos os 100 comentários de maior relevância, visto que estes são os mais visualizados quando o usuário acessa o post e as suas respostas. Ao fim do trabalho, foram coletados 3.489 comentários. Após essa seleção, partiu-se para o uso do IRAMUTEQ (Interface de R pour analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionneires, versão 0.7). O software permite análises textuais de material verbal transcrito por meio de lexicografia. Por se tratar de dados verbais transcritos, eles são relevantes para discutir conteúdos simbólicos relacionados a um fenômeno (Camargo & Justo, 2013).

O tratamento e a separação dos comentários resultaram na produção de um corpus textual que consiste no agrupamento dos comentários das oito publicações, após revisão gramatical e exclusão de links e imagens. Ao fim da construção do corpus, o programa analisa a coocorrência de vocábulos no texto, categorizando relações de aproximação entre verbetes e construções verbais mais frequentes. O uso do software neste trabalho possibilitou construir classes comparativas de palavras nos discursos dos usuários, observando os temas mais presentes em ambas as páginas.

O uso de programas que auxiliam a pesquisa em Teoria Crítica no contexto das novas TDICs deve ser suporte, e não determinante em nosso trabalho. Desse modo, as análises se pautam a na crítica imanente do objeto e na elaboração e uso desse aparato de forma crítica.

Quanto aos aspectos éticos, conforme a Resolução nº 510 do Conselho Nacional de Saúde, que dispõe sobre a pesquisa em Ciências Humanas e Sociais, pesquisas que utilizem informações de domínio público não serão registradas/avaliadas pelo sistema CEP/CONEP. Considerando os termos de uso do Facebook2, os dados utilizados podem ser considerados de domínio público, visto que são imagens e comentários publicados em páginas abertas e sem filtro de privacidade, diferentemente de grupos fechados existentes na mesma rede.

Material de análise

“Eu era Direita e não sabia”

Em 2017, voluntários de um “movimento bolsonarista” que se organizavam em grupos do WhatsApp e Facebook cresceram exponencialmente no Brasil via redes sociais. Em reportagem à BBC Brasil, um dos apoiadores disse que conheceu Jair Bolsonaro em meados de 2014 por meio da internet e que havia se aproximado por suas opiniões. O apoiador afirmou que “Bolsonaro é um dos poucos políticos que têm uma militância voluntária. Eu fazia uma lista de apoiadores e pedia a ele que mandasse um recado para cada um. As pessoas gostavam e criavam outros grupos em suas cidades” (Fagundez, 2017). Entre esses apoiadores, estava o administrador da página “Eu era Direita e não sabia”. Criada em 2016, a página detinha 452.189 curtidas no Facebook até o fim das análises aqui apresentadas. Acrescenta ainda em sua descrição:

Declaração de autoria: “Eles” foram espertos, nos enganaram na sala de aula e transformaram nossa cultura em um comunismo disfarçado. #Seja bem-vindo a realidade#. Chegou a hora, ou levantamos e vamos para cima dessa minoria barulhenta e nojenta, ou estaremos condenados a viver em um país que o errado virou certo e o certo virou errado. Somos maioria, a direita conservadora é maioria no Brasil, infelizmente um pouco adormecida, mas nesses últimos dias tem acordado para enfrentar esse MONSTRO que se encontra na esquerda marxista.3

Em declaração na mesma página, em 2019, o administrador afirma que:

foi uma satisfação termos conhecido o nosso capitão quando ele ainda só era um sonho, agora continuamos a luta pois essa esquerda medíocre juntamente com mídias jornalística tipo rede Globo e Folha de São Paulo, tentam a todo custo nos trazer desordem e caos. Vencemos a batalha, mas a guerra ainda está longe de acabar.

Além de sua página no Facebook, a “Eu era Direita e não sabia” conta com site (atualmente desativado), um perfil no Instagram (atualmente desativado) e um canal no YouTube4.

“Jovens de Esquerda”

Até o momento final das análises, a página “Jovens de Esquerda” tinha 965.282 curtidas no Facebook. Em sua pequena descrição, a página afirma: “Estamos na luta por justiça social, contra o racismo, machismo, homofobia e contra qualquer tipo de opressão”5. Criada em 5 de junho de 2017, não foram encontradas outras redes sociais vinculadas a ela.

Caracterização do público

Por meio da FAI, encontramos informações sobre páginas a respeito de: faixa etária, gênero, relacionamento, escolaridade, localização geográfica, tipo de engajamento (curtidas, comentários, compartilhamentos) e em que dispositivos se conectam seus usuários. A explicitação dessas informações é apresentada aqui conforme consta no Facebook; como exemplo, o binarismo de gênero entre homens e mulheres que aparece na segmentação dos dados da empresa.

Tabela 1
Dados sociodemográficos do Facebook de acordo com gênero e faixa etária.
Tabela 2
Dados sociodemográficos do Facebook de acordo com relacionamento e nível educacional.

Tais informações subsidiam uma perspectiva sobre qual é o público das páginas analisadas neste trabalho. Elas indicam também quais dados são relevantes estatisticamente para que o Facebook tenha cada vez mais eficácia em produzir e direcionar conteúdos com base em informações deliberadas pela empresa e voltadas à venda para interessados em estimar e predizer o comportamento dos usuários na rede social. Conforme a descrição dos dados disponibilizados sobre ambas as páginas e o público geral do Facebook, o número de homens nas páginas escolhidas para análise era maior que o número de mulheres, embora no Facebook em geral o número de mulheres fosse maior. Pode-se inferir ainda que a faixa etária na página “Eu era Direita e não sabia”, no público masculino, era de pessoas mais velhas, ao passo que na página “Jovens de Esquerda”, em ambos os gêneros, o público era mais jovem. Quanto à escolaridade, nas duas páginas o número de perfis que declara estar na faculdade era maior do que os que estão na pós-graduação e no ensino médio.

Procedimentos de análise dos dados

Os dados apresentados subsidiaram a construção de um corpus textual que serviu para as análises. Diante do desafio de que cada vez mais tem sido produzido um volume massivo de dados (Big Data) em pesquisas qualitativas e quantitativas, softwares como o IRAMUTEQ têm sido alternativas para elaborar análises em diversas áreas, como no âmbito da saúde e das ciências humanas. Entretanto, realçamos a necessidade de compreender que essas ferramentas, quando incorporadas às pesquisas, devem servir como auxílio e suporte ao tratamento dos dados, e não suprimir o papel central da relação entre sujeito e objeto no delinear do trabalho.

Ao todo, foram analisados três corpora textuais diferentes no IRAMUTEQ: o corpus da página “Eu era Direita e não sabia”; o da página “Jovens de Esquerda”; e o resultado do agrupamento dos 3.489 comentários coletados em ambas as páginas, intitulado corpus Misto, apresentado neste trabalho. Para construir o corpus textual desta análise, foram selecionados os primeiros 100 comentários mais relevantes e suas respostas nas oito publicações.

Resultados e discussão dos dados

Dado o número vasto de comentários para análise, trabalhamos com cálculo amostral das páginas. Para criar uma amostragem, calculamos uma porcentagem com nível de confiança de 95%, que corresponde à probabilidade de sua amostra representar com precisão as posturas da população em questão e margem de erro de 5%, correspondendo à variação das respostas da população com relação a sua amostra. Tal cálculo de amostragem foi aplicado separadamente ao conjunto de comentários coletados de cada página e, assim, chegamos ao número de 222 comentários para a página “Eu era Direita e não sabia” e de 340 comentários para a página “Jovens de Esquerda”. A seleção de quais comentários fariam parte de cada amostra ocorreu por meio de sorteio. Ao fim das análises dos corpora das páginas em separado, algumas inquietações permaneceram e optamos por constituir um terceiro corpus, composto pelos comentários constituintes dos dois primeiros, somando-se 562 comentários como resultado dos dois primeiros corpora6.

A CHD realizou apenas uma divisão no corpus, que não produziu subcorpus e deu origem a duas classes. Essa configuração se torna ainda mais interessante quando leva-se em conta que, nas duas análises anteriores, os corpora “Eu era Direita e não sabia” e “Jovens de Esquerda” se dividiram em quatro classes cada um. O fato de corpora que se apresentam tão diversos quando analisados separadamente gerarem uma única divisão quando em análise conjunta nos traz indícios de que há muito mais em comum entre os comentários colhidos em cada página do que poderíamos supor de início.

Conforme a representação do Gráfico 1, a classe 1, que denominamos “Brasil acima de tudo”, reteve maior parte do número de segmentos de texto (ST) (61,41%) que a classe 2, “Deus acima de todos”, com 38,59% dos ST. A escolha por essas denominações visa caracterizar a polarização ideológica que se apresenta nas análises, seja por questões de gênero, como na temática da educação sexual na escola ou legalização do aborto no Brasil; seja por questões ligadas a problemáticas imigratórias, que desvelam o teor xenofóbico sobre a vinda de refugiados venezuelanos ao Brasil; seja ainda pela ascensão do discurso cristão enquanto braço forte de discussões democráticas importantes. O slogan midiático usado nas eleições pelo então presidente, “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, condensa de modo rasteiro temas que têm ocupado o debate público brasileiro nos últimos anos.

Gráfico 1
Dendrograma da CHD do corpus Misto.

Classe 1: “Brasil acima de tudo”

A primeira classe do corpus Misto reteve a maior parte dos segmentos de texto (61,41%). Entre as palavras com maior associação significativa (x2) na classe estão as formas “país” e “Brasil”, que introduzem a problemática do nacionalismo nos comentários. A associação dos verbetes é representada em segmentos característicos da classe, como pode ser observado no Gráfico 1.

Conforme o Gráfico 2, que corresponde à Análise de Similitude da primeira classe analisada no corpus Misto, o verbete mais significativo na comunidade central é “Brasil”, e engloba ramificações com formas internas e comunidades periféricas. Ainda na comunidade central, ligados a “Brasil”, aparecem os vocábulos “morrer”, “entrar”, “recurso”, “Venezuela”, “Cuba”, “governo”, “expulsar”, “brasileiro”, “crime”, “imigrante”, etc. Conectado por um grafo mais consistente a “Brasil”, o vocábulo “país” forma uma comunidade no quadrante direito da análise, constituído por vocábulos como “abrigo”, “comunista”, “emprego”, “saúde”, “bem”, “ditadura”, “capitalista”, “socialismo”, e assim por diante.

Gráfico 2
Análise de Similitude da Classe 1.

A partir da interpretação da análise de similitude da classe 1 e dos seus textos típicos, pode-se dizer que a principal diferença na temática de ambos é que a primeira comunidade trata de modo mais particular a discussão sobre os refugiados/imigrantes venezuelanos e menciona países como Cuba e Venezuela como destino àqueles que discordam de questões atreladas à ideologia conservadora no Brasil. Ou seja, tudo aquilo que não é Brasil deve ser eliminado/ expulso. Eis alguns exemplos de trechos de comentários são os segmentos de texto a seguir, selecionados com IRAMUTEQ: “o mimimi é teu homem não vês o povo já disse e em voz alta não queremos essas pessoas aqui saiam do brasil fim da mensagem kkkkkkkkk”; “não podia ter deixado nem entrar no país eles que se resolvam com presidente eleito democraticamente”; “lei dos Estados Unidos refugiado ou visitante não pode de maneira alguma ter um emprego no país pois estará roubando o lugar de um cidadão americano no Brasil já é um lixo em emprego, saúde”.

Na segunda comunidade descrita, representada em maior medida pelo verbete “país”, as formas coocorrentes denotam parte da ideologia que utiliza a perspectiva nacionalista no embate entre socialismo/comunismo (aparecem como sinônimos da suposta ameaça à democracia nos comentários, por vezes acrescidos de menções a Lula e ao Partido dos Trabalhadores) e o capitalismo. Aqui, os comentários, em sua maioria, atribuem ao comunismo a existência de regimes ditatoriais, em oposição à ideia do capitalismo enquanto aporte à democracia e à liberdade, citando diversas vezes o exemplo dos Estados Unidos como modelo socioeconômico e político. Outra dicotomia aparece nessa análise, no quadrante superior, a comunidade ramificada a partir da forma “esquerdo” reúne os verbetes “direito”, “Marx”, “extremo” e “vontade”. Em número significativo de comentários, as expressões “esquerda” e “direita” condensam ideologias imediatamente antagônicas, relembrando a perspectiva de uma discussão sobre polarização política no Brasil. Seguem alguns exemplos de segmentos de texto selecionados com IRAMUTEQ: “o governo não dá conta nem dos daqui imagina o brasileiro dar conta dos de fora não que sejamos indiferentes esquerda direita insensíveis mas cada pessoa que se sentir sensibilizada pode acolher um em casa”; e “não existe essa de ver o lado não existe lado bom em ditadura nem no brasil nem na venezuela ditadura comunista nem na puta que pariu extremismo não é salutar e é por isso que não voto no PT nem no salnorabo”.

No quadrante esquerdo da Análise de Similitude, localizam-se três comunidades, a mais central nesse polo se constitui a partir do verbete “querer”, apresentando ramificação com as formas “segurança”, “ajuda”, “morar”, “próprio”, entre outros. Aqui, integram-se diversas demandas relacionadas aos comentários nos quais os perfis discutem o porquê de o Brasil poder ou não receber imigrantes, pautando seu discurso na ideia de que não há infraestrutura de saúde, segurança e moradia para todos, como sugerem os textos típicos selecionados com IRAMUTEQ apresentados a seguir: “sim podem ser os brasileiros pedindo abrigo em outro país só que os outros países ajudam sua própria nação e ainda ajudam os imigrantes, mas o Brasil não tá dando conta e nem ajuda sua própria nação imagina a população e outro país”; e “o que vocês não querem entender é isso que os recursos são ínfimos até para os brasileiros que dirá se vier metade da Venezuela pra cá”.

Na comunidade do quadrante superior esquerdo, com maior destaque para o vocábulo “ver”, aparecem formas como “fácil”, “porta”, “casa”, “invadir”, “acontecer”, “pegar”, “arma”, “pessoal”, “solução”, “legalizar”, “inocente”. Relembra-se, nesse ponto, a discussão recorrente com o uso do jargão “Então leva pra casa”, mencionado como sugestão àqueles que defendiam a entrada dos venezuelanos no país. A coocorrência das palavras “invadir” e “legalizar” relembra a ideia de ilegalidade remetida aos refugiados, tratados como abjetos em quantidade considerável de textos selecionados com IRAMUTEQ e analisados, como os apresentados a seguir: “não eles foram atacados porque assaltam inclusive jogando ácido no rosto de brasileiros invadem e tomam casas assediam mulheres”; e “queria ver se você tivesse lá no pampeiro sendo assaltado e tendo sua casa invadida eu também fico com dó dos venezuelanos, mas também não dá pra dizer que os brasileiros não tem razão de estarem zangados”.

A última comunidade analisada na classe é localizada no quadrante esquerdo inferior e figura a problemática discussão sobre o aborto. Aqui as formas “mulher”, “lei”, “homem”, “estupro”, “público”, “aborto”, “pagar”, “tomar”, “assunto”, “estudar”, “esquerdista” e “precisar” constituem as ramificações na comunidade. O discurso de perfis que se identificam como homens prevalece nos comentários, principalmente em contrapartida aos comentários nos quais perfis que se identificam como mulheres rebatem declarações preconceituosas proferidas a fim de legitimar suas crenças que defendem a ilegalidade do aborto:

se porque a mulher quer trabalhar e não tem como cuidar do filho oferecem creches públicas para cada caso eles oferecem uma solução e acontece que desde que o aborto foi legalizado a quantidade de abortos realizados por ano vem decrescendo consideravelmente (Segmento de texto selecionado com IRAMUTEQ).

As análises dessa classe abarcam diferentes temas que compõem a cena pública brasileira no período eleitoral em 2018. Retomando pautas como a entrada de refugiados no Brasil, as díades Comunismo/Capitalismo e Esquerda/Direita constituem parte do terreno fértil à construção ideológica da polarização política no Brasil.

Classe 2: “Deus acima de todos”

A segunda classe apresentada na CHD do corpus Misto reteve 38,59% dos segmentos de texto do corpus Misto. Dentre as formas com maior associação significativa estão, em ordem crescente, os termos “Jesus”, “Deus”, “Cristo”, “votar”, “bíblia”, “amor”, “Ciro”, “respeito”, “candidato”, “voto”, “opinião”, “paz”, “Bolsonaro” e “Haddad”. Entre os segmentos de texto típicos da classe, estão: “o amor de deus é ágape ama o pecador capaz de dar a vida pelo seu inimigo e assim Jesus cristo fez você daria a vida pelo o assassino de sua mãe esposa filha ou algo parecido” (Segmento de texto selecionado com IRAMUTEQ); e

eles gostam de usar o nome de jesus cristo em vão ao meu ver ninguém é verdadeiro cristão então porque todos os candidatos estão errados de algum modo vocês têm que parar de ver erro nos candidatos dos outros e falar mais a respeito do de vocês (Segmento de texto selecionado com IRAMUTEQ).

No Gráfico 3, a coocorrência entre os verbetes e sua similaridade dentro do corpus apresentam as formas “Jesus” e “Cristo” como centro da comunidade que as envolve. Destaca-se ainda no grafo interno à comunidade a presença das formas “pecado”, “conhecer”, “mau”, “vítima”, “amar”, “próximo”, “bandido”, “ele não” e “violência”. Ainda por meio do verbete “Jesus”, comentários como o inserido abaixo, que correlacionam Jesus Cristo com amor também são representativos da classe: “Jesus cristo manda a gente perdoar e amar para que possamos ter paz com todos mas sua palavra tbm diz que nos últimos dias o amor de muitos esfriaria por aumentar a iniquidade” (Segmento de texto selecionado com IRAMUTEQ).

Gráfico 3
Análise de Similitude Classe 2.

Interseccionadas à comunidade central, aparecem duas outras. A primeira, localizada no quadrante inferior e conectada por meio da forma “próximo”, segue em uma única ramificação pelas palavras “respeitar”, “ensinar”, “contraditório”, “parecer”, “imagem” e “texto”. No quadrante direito, situam-se duas comunidades: a primeira é conectada pela palavra “erro”, seguida de “candidato”, “responder”, “respeito”, “voto”, “evidência”, “gostar” e “mudar”. O verbete “mudar” é a conexão com “opinião”, forma envolta pelos vocábulos “pesquisar”, “forma”, “esperar”, “adiantar”, “vista”, “ponto” e, “pensar”.

Finalmente, no quadrante superior, posicionam-se as últimas comunidades. Por um grafo menor, a forma “bíblia” conecta-se a “Jesus” e, ao seu redor, situam-se as ramificações “cristão”, “gente”, “usar”, “boca”, “Haddad”, “parte”, “escrever” e “hipócrita”. Cabe mencionar que essas conexões provavelmente se dão porque, durante a campanha eleitoral de 2018, Fernando Haddad (PT) ganhou uma Bíblia durante um comício e o livro foi encontrado jogado no lixo (Weterman, 2018).

Ainda no quadrante superior, aparecem mais duas comunidades a serem analisadas na classe. A primeira tem como forma mais significativa “Deus”, seguida das formas “coração”, “cara”, “perdão”, “liberar”, “palavra”, “reino”, “cumprir”, “apocalipse” e “besta”. A última comunidade é a que se forma pela conexão entre “bíblia”, “deus” e “amor”. Nela, o vocábulo “amor” a representa em maior medida e constam ainda palavras como “pecador”, “voltar”, “paz”, “ódio”, “votar”, “certo”, “Bolsonaro”, “lembrar”, “fato” e “Ciro”. Elementos presentes nas duas comunidades aparecem de modo concomitante, algo que pode ser notado nos segmentos típicos a seguir: “contraditório falar que bolsonaro é machista e votar em ciro vota no daciolo pelo menos” (Segmento de texto selecionado com IRAMUTEQ).

Porque deus tem posto em seus corações que cumpram o seu intento e tenham uma mesma idéia e que dêem à besta o seu reino até que se cumpram as palavras de deus apocalipse cap. 17 vers. 17 e essa daqui faz muitos tremerem (Segmento de texto selecionado com IRAMUTEQ).

A menção de Jair Bolsonaro junto ao espectro ideológico composto por menções à religião cristã chama atenção principalmente pelo último segmento típico da classe apresentado. Embora o debate religioso englobe formas como amor e paz dentro da mesma comunidade na qual “Bolsonaro” está inserido, pelo referido segmento de texto, alguns usuários correlacionaram o candidato com a “besta”. Essa relação se dá pela menção a um trecho do livro bíblico do Apocalipse, que diz: “17:17 Porque Deus tem posto em seus corações, que cumpram o seu intento e tenham uma mesma ideia, e que deem à besta o seu reino, até que se cumpram as palavras de Deus” (Segmento de texto selecionado com IRAMUTEQ). Para além disso, tal correlação foi utilizada enquanto argumento para o voto em Bolsonaro.

Discussão dos dados: o uso da polarização política a serviço da ideologia conservadora no Brasil

Com o agrupamento apresentado, evidencia-se que a polarização não gira em torno do espectro político de fato, mas, sim, da apropriação de pautas ideológicas sob os tickets polarizados atribuídos à “esquerda” e à “direita” no Brasil. O corpus se dividiu em apenas duas classes, que englobam as ideias apresentadas anteriormente, mas denotam que a variabilidade dos temas se organiza em dois eixos principais, sob a alcunha “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”. O slogan político articulado na campanha de Jair Bolsonaro em 2018, em nossa análise, condensa de modo oportuno os temas que alçaram a ideologia reacionária à presidência do país. Entretanto, pode-se questionar se o próprio slogan não foi o mote responsável por incitar que os polos aderissem a tais tickets ideológicos. Assim, talvez não seja o caso de pensar em uma relação de causa e consequência, mas da percepção de que nas eleições na Idade Mídia (Rubim, 2000) há uma simultaneidade entre assumir determinado ticket como uma bandeira política e reforçar uma personalidade política a partir de discussões inflamadas a respeito do tema.

Acerca desse aspecto, as análises sobre as tendências regressivas da sociedade mediante o esclarecimento da razão são uma das maiores contribuições da Teoria Crítica. A discussão da sociedade que tende ao autoritarismo, mesmo com o avanço civilizatório, interessa para a compreensão de por que a democracia, historicamente, desembocou em barbárie. Adorno e Horkheimer (1985) explicam a falsa projeção paranoica como comportamento regressivo que expulsa tudo aquilo que possa ameaçar a autopreservação, ou seja, o que lhe pertence é projetado para o “outro”, transformando-o em alvo da sua agressão. Tudo é convertido em delírio, na tentativa de dar conta do que sua experiência não alcança; o pensamento do indivíduo envolto na semicultura é limitado ao pensamento ideologicamente programado.

A perspectiva analítica proposta aqui inicialmente buscou evidenciar as práticas discursivas de usuários identificados em dois extremos de uma suposta polarização política. Contudo, o decorrer do trabalho mostrou que existem estruturas que propõem não apenas uma reconfiguração democrática em torno do digital, mas uma organização social no qual o digital não seja aparato para mediação entre sujeitos, mas protagonista das tendências sociais. A construção ideológica do pensamento polarizado se apresentou na adesão a um dos tickets que opõem os indivíduos simultaneamente àquilo que supostamente é “outro”. Entre as dicotomias que se exibem, são recorrentes argumentações insípidas fomentadas por postagens que promovem a radicalização de discursos extremos, que orbitam na disputa por maior engajamento em cada uma das páginas.

No livro Minima Moralia, Adorno (1951) afirma que “o gosto é o mais fiel sismógrafo da experiência histórica” (p. 137). Assim, o autor se refere à correlação entre os elementos que correspondem às condições objetivas de produção e reprodução da vida em determinado momento histórico. A contemporaneidade demarcada pelo desenvolvimento tecnológico que cada vez mais busca formas de algoritmizar a vida, intentando calcular, predizer e controlar aquilo que é inacessível, subsidia a mediatização da vida. Assim, a perda da experiência condicionada à expansão dos mecanismos de escolha nas cada vez mais complexas, globais e informatizadas sociedades demarca que a atualidade da discussão do pensamento do ticket é necessária (Cohn, 1998). Assim, “continua-se a escolher, mas apenas entre totalidades” (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 164). Tal proposição não é novidade à compreensão da infraestrutura e da superestrutura constitutivas do capitalismo tardio, mas incita reflexões sobre as mudanças na reinvenção que o capital propõe para manutenção da sua própria existência. Sob o véu da (falsa) liberdade, a ubiquidade da internet tem reconfigurado a própria existência humana.

O modo positivista de conhecimento da realidade que interpela a assimilação do pensamento em ideias/blocos tende ao ódio narcísico. O objeto da construção do amor narcísico é o semelhante, dada a escolha baseada em si mesmo. Já o ódio narcísico diz daquilo que é “outro”, o “diferente” de nós (Bento, 2002). A acepção de narcisismo das pequenas diferenças elaborada por Freud (2010) é apresentada como construção antitética. Entretanto, não se trata de uma oposição entre clichês (Reino & Endo, 2011), como anteriormente citado sobre as discussões recorrentes na análise lexical aqui apontada.

A reação conservadora no Brasil é lucrativa ao ponto de eleger à Presidência do país um candidato que pauta seu discurso em ameaças às minorias e aos direitos humanos. Entretanto, tal lógica atravessa práticas discursivas no meio on-line e a cena democrática. Elementos como a religião, o machismo, a homofobia, o racismo e a própria moral agem como disparadores de cliques, comentários e compartilhamentos, os quais visibilizam cada vez mais a ascensão de discursos que se constroem contra pautas progressistas por meio de “pânicos morais” (Romancini, 2018).

Para Adorno (1995), a existência efetiva da democracia demanda que exista uma sociedade verdadeiramente emancipada. Para alcançar a emancipação em seu caráter libertário, é preciso sua concepção idealista e individualista. Assim, diante dessa reflexão, a discussão do pensamento antidemocrático no meio on-line subverte o fato de que vivemos em uma sociedade democrática. Desse modo, entre as discussões fundamentais que delineiam este trabalho, está a crítica do suposto caráter democrático e neutro da tecnologia, visto que a forma do aparato tecnológico perpetua a dominação humana sobre si própria e sobre a natureza.

Considerações finais

A inquietação que orientou este trabalho foi questionar em que medida o autoritarismo se manifestava no discurso de usuários do Facebook identificados com a direita e com a esquerda no Brasil. Com esse mote, foi construído um caminho no qual essa pergunta pudesse ser respondida, buscando atender ao objetivo de analisar traços de uma mentalidade potencialmente autoritária (Adorno et al., 1969; Adorno & Horkheimer, 1985) a partir das práticas discursivas de usuários do Facebook vinculados às páginas brasileiras de cunho político “Jovens de Esquerda” e “Eu era Direita e não sabia”.

Inicialmente, esperava-se que o objeto apresentasse o retrato de uma acirrada polarização política que, no entanto, se mostrou como arranjo ideológico a serviço de uma premissa maior de agremiações políticas e dentro da continuidade de um sistema político-econômico que subverteu a própria democracia. Desse modo, o objeto trata dos novos moldes que fomentam a produção de subjetividades na “Idade Mídia” (Rubim, 2000). E, além disso, trata da conservação de elementos ideológicos que contribuem para a manutenção do status quo, embotando qualquer tentativa de superação da realidade.

O discurso característico à esquerda brasileira, embora se apresente como progressista, ainda tem sérios problemas quanto a uma crítica contundente da realidade na qual se insere. A variabilidade de pautas elencadas pelas publicações e pelos comentários na página “Jovens de Esquerda” provoca um engajamento de perfis vinculados à direita maior que na página “Eu era Direita e não sabia”. Isso orienta a reflexão de que existe menor possibilidade de debate social dentro do discurso atrelado à direita ou, posto de outra forma, um enrijecimento progressivo do que se pode ou não discutir no âmbito conservador. Deve ser considerado ainda que, objetivando engajamento, as páginas publicam conteúdos que, como gatilhos, acionam um grande número de curtidas, comentários e compartilhamentos sem que necessariamente haja compromisso político com o que é debatido.

Contudo, o objetivo dessa discussão não é invalidar o discurso daqueles que intentam combater o preconceito, mas, sim, evidenciar que a problemática não é apenas o posicionamento polarizado ideologicamente, é também a forma de organização do pensamento em blocos estagnados que incitam a “raiva feroz pela diferença”. Em sua análise do antissemitismo, Adorno e Horkheimer (1985) afirmam que a mentalidade do ticket é, em geral, antissemita, mesmo quando os sujeitos aderem ao ticket progressista, porque o cerne infesto do problema é a perda progressiva da experiência.

A caracterização desse pensamento de ticket é pertinente à maioria das classes apresentadas, todavia, nesta análise, o discurso religioso aparece como elemento que justifica, em ambos os polos, a argumentação inimiga da diferença. Assim, fundamentados na superficialidade de trechos apocalípticos da Bíblia, são pautados os discursos de ódio preconceituosos contra mulheres, negros, povos originários, pessoas LGBTQIA+ e, ao mesmo tempo, a crítica ao conservadorismo político em ascensão no Brasil. O pensamento polarizado, alocado em blocos de ideias que respondem automaticamente com embate odioso, serve de modo oportuno às estratégias de quantificação de dados massivos.

Não se pode dissociar o âmbito social e político do uso cada vez maior das tecnologias digitais da informação e comunicação (TDICs) e, do mesmo modo, não é possível criticar a constituição do capitalismo tardio na contemporaneidade sem analisar as transformações objetivas que condicionam a formação subjetiva a novas formas de dominação da humanidade. “Uma não-liberdade confortável, muito agradável, racional e democrática prevalece na civilização industrial avançada, um sinal do progresso técnico” (Marcuse, 2015, p. 41) - é assim que Marcuse inicia o primeiro capítulo da obra O homem unidimensional para analisar as tendências regressivas que se transmutam há muito em novas formas de controle. A crítica marcuseana vai de encontro ao cerceamento de direitos e liberdades, que anteriormente fez parte do ideário da sociedade burguesa.

O empobrecimento da experiência acrescido da racionalização algorítmica crescente no cotidiano na sociedade contemporânea age em consonância com o paradoxo no qual cada vez mais nossos direitos e liberdades estão à mercê das Big Tech. O Estado de bem-estar social é transmutado em Estado de bem-estar digital, cooptando serviços adquiridos como direitos em mercadorias controladas por grandes empresas digitais (Morozov, 2018). Assim, evidencia-se a crise da democracia burguesa, calcada em uma representatividade manipulada e pré-moldada, relembrando a proposição na qual se estabelece a Indústria Cultural, na qual Adorno e Horkheimer (1985) analisam que o consumidor “não é rei” ou sequer o sujeito, mas o objeto da própria produção na indústria cultural.

Desse modo, pode-se entender que a identificação com um dos lados na polarização política é mais um componente desse sistema, que não é particular, mas padronizado conforme o que é objetivo do capitalismo tardio. Por meio da obtenção de informações sobre o que gostamos, pensamos e desejamos, torna-se cada vez mais fácil delinear perfis supostamente representativos daqueles que gerenciam o poder público. Assim, retomando a crítica de Marcuse (2015), a racionalidade tecnológica protege a legitimidade da dominação, fundamentando a constituição de uma sociedade totalitária, na qual o progresso técnico é transformado na instrumentalização da humanidade, dos seus direitos e de sua liberdade.

A discussão da produção do pensamento na sociedade hodierna inclui novas perspectivas aos temas que movem a reflexibilidade social, enquanto proposta diagnóstica do contemporâneo. Analisar as tendências objetivas e subjetivas de uma sociabilidade mediada por computadores confere perspectivas críticas ao crescimento exponencial dos limites de uma racionalização que, por meio da atualização cada vez mais extensiva em formas de dominação, intenta transformar os sujeitos e a vida em objetos calculáveis.

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  • 1
    Ferramenta criada pelo Facebook, que disponibiliza informações sobre páginas com número significativo de adesões e os usuários vinculados a estas, possibilitando o uso de tais dados por empresas a fim de delimitar seu público e assim direcionar sua publicidade. Facebook para empresas. https://www.facebook.com/business/news/audience-insights
  • 2
    Facebook - Termos de serviço. https://www.facebook.com/terms/.
  • 3
  • 4
  • 5
  • 6
    Os 562 comentários foram analisados em 681 segmentos de texto (ST), com 13.602 ocorrências, 2.246 formas e 1.250 hapax (as palavras que aparecem só uma vez no corpus todo), gerando uma média de 25,96 ocorrências por texto. Após análise mais básica quanto à frequência de palavras e número de segmentos de texto, o corpus Misto foi submetido à Classificação Hierárquica Descendente (CHD), que identifica “mundos léxicos” no corpus, resultando na construção de sentidos. Por meio dessa análise, é possível analisar o sentido das palavras representadas em seu contexto, interpretando e classificando as classes nas quais se localizam com base na análise dos dados (Camargo & Justo, 2013). Para tanto, o corpus foi dividido em 681 segmentos de texto com 2.246 palavras lematizadas, 1.191 formas ativas e 27 formas suplementares, com média de 19,87 formas por segmento de texto e considerando 70,78% (482) dos segmentos de texto, satisfazendo o critério mínimo apontado por Camargo e Justo (2018).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2021
  • Aceito
    21 Set 2021
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