Resumo
Em 2020, o mundo enfrentou uma grave emergência de saúde pública devido à pandemia de COVID-19, que impactou significativamente a mobilidade humana e a vida cotidiana de milhares de imigrantes ao redor do mundo. Este artigo fez uso de entrevistas online e por telefone com imigrantes que chegaram ao Brasil a partir de 2016, para identificar as estratégias de enfrentamento adotadas durante a pandemia. Foi realizada uma análise transversal das entrevistas com o auxílio do software Atlas.ti 9, usando a técnica sistemática de categorização iterativa. Com base em uma perspectiva sociocultural em psicologia, o artigo introduz os impactos iniciais da pandemia em diferentes esferas da vida cotidiana desses imigrantes e apresenta as estratégias mobilizadas para restaurar continuidades funcionais e relacionais em um momento no qual as rupturas provocadas pela migração e pela pandemia se sobrepõem. Entre outros, podese identificar como os entrevistados ativaram rapidamente as redes sociais locais e transnacionais virtualmente, mobilizando competências e habilidades aprendidas durante a migração.
Palavras-chave: Migração Internacional; COVID-19; Estratégias de Enfrentamento; Psicologia Sociocultural
Abstract
In 2020, the world faced a serious public health emergency due to the COVID-19 pandemic, which has significantly impacted human mobility and the daily lives of thousands of immigrants around the world. This article uses online and telephone interviews conducted with migrants who arrived in Brazil in 2016, to identify coping strategies employed during the pandemic. A transversal analysis of all interviews was conducted with the aid of the software Atlas.ti 9, using a systematic approach of iterative categorization. From a sociocultural perspective in psychology, the article introduces the initial impacts of the pandemic in different spheres of everyday life of these immigrants. With this everyday context, we present the strategies mobilized by immigrants to restore functional and relational continuities at a moment in which the ruptures caused by migration and the pandemic overlap. In particular, we identify how interviewees rapidly activated local and transnational social networks virtually, mobilizing skills learnt during migration.
Keywords: International Migration; COVID-19; Coping Strategies; Sociocultural Psychology
Resumen
En 2020, el mundo se enfrentó a un grave estado de emergencia en salud pública debido a la pandemia del COVID-19, que impactó significativamente la movilidad humana y la vida cotidiana de miles de inmigrantes en todo el mundo. Este artículo realizó entrevistas en línea y por teléfono con inmigrantes quienes llegaron a Brasil a partir de 2016, con el fin de identificar sus estrategias de afrontamiento adoptadas durante la pandemia. Se realizó un análisis transversal de las entrevistas con la ayuda del software Atlas.ti 9, utilizando la técnica sistemática de categorización iterativa. Desde una perspectiva sociocultural en Psicología, este artículo expone los impactos iniciales de la pandemia en diferentes ámbitos de la vida cotidiana de estos inmigrantes y presenta las estrategias movilizadas para restaurar las continuidades funcionales y relacionales en un momento en que se superponen las rupturas causadas por la migración y la pandemia. Entre otros aspectos, se puede identificar cómo los entrevistados activaron virtualmente las redes sociales locales y transnacionales movilizando habilidades y destrezas aprendidas durante la migración.
Palabras clave: Migración Internacional; COVID-19; Estrategias de Afrontamiento; Psicología sociocultural
Introdução
A circulação de pessoas, mercadorias e informações nunca foi tão intensa como no século XXI. Os processos migratórios sofreram transformações significativas nas últimas décadas. Tradicionalmente, quando as pessoas migravam, elas tendiam a se estabelecer de forma permanente no país de destino. Os novos padrões de migração, no entanto, são cada vez mais caracterizados pelo fenômeno da mobilidade temporária, em que projetos migratórios são mais fluidos e mutáveis, tornando o estudo das migrações mais complexo.
Uma ampla gama de fatores políticos, econômicos, socioculturais e ambientais intensificou o movimento das pessoas ao redor do mundo. Se, por um lado, o crescimento populacional, o acesso desigual a recursos, os desastres socioambientais, as intervenções políticas, o terrorismo e a insegurança dos mercados de trabalho globais levaram a um aumento das instabilidades migratórias; por outro lado, as rápidas mudanças tecnológicas permitiram que as pessoas vivessem em diversos países e imaginassem futuros em lugares distantes daqueles em que nasceram (Appadurai, 1996; Levitan, 2019). Com o surgimento das sociedades baseadas no conhecimento, a mobilidade passou novamente a ser uma prerrogativa importante, mas agora convertida em parte integrante do capital humano (Livi-Bacci, 2012).
É precisamente nesse mundo extremamente móvel que o vírus SARS-CoV-2 se espalhou rapidamente desde sua origem em Wuhan, na China, para o resto do globo. Em 2020, o mundo enfrentou uma grave emergência de saúde pública devido à pandemia de COVID-19, que provocou um efeito paradoxal sobre o movimento humano: para podermos circular novamente, tivemos que reduzir a mobilidade humana e assim retardar a propagação do vírus e quebrar a cadeia de contágio (Kraemer et al., 2020). Dessa forma, a COVID-19 alterou profundamente a relação do ser humano com a mobilidade, produzindo uma repentina “falência” do capital associado à mobilidade, e transformando-a em uma ameaça à saúde coletiva.
Com o intuito de restringir significativamente a mobilidade das pessoas dentro e entre países, a maioria dos governos ao redor do mundo adotou medidas rigorosas de bloqueio da circulação e confinamento (lockdown), fechamento de fronteiras ou limitação de viagens internacionais. A recomendação da Organização Mundial de Saúde foi a de praticar o maior número possível de medidas de separação física, como isolamento, quarentena e distanciamento social, para diminuir a disseminação do vírus. No Brasil, a adesão ao isolamento social prevaleceu no início da pandemia, e períodos de medidas de restrição da mobilidade se intercalaram com períodos de reabertura. Essa situação se prolongou pelo ano de 2020 em razão da dificuldade do poder público de gerir a pandemia, haja vista as divergentes diretrizes iniciais do Ministério da Saúde e do Governo Federal e o descrédito promovido pelo último sobre as medidas de proteção recomendadas pelos cientistas (Justo, Bousfield, Giacomozzi, & Camargo, 2020).
Com o fechamento abrupto e total das fronteiras internacionais, muitos imigrantes recém-chegados ao Brasil não puderam retornar aos seus países de origem, enfrentando o duplo desafio de ajustar-se a um novo contexto sociocultural em meio a uma situação adversa de pandemia. Este artigo analisa, com base em uma perspectiva sociocultural em Psicologia, os impactos iniciais da pandemia de COVID-19 na vida destes imigrantes e as estratégias de enfrentamento mobilizadas por essa população. Destaca-se a relevância de estudos empíricos com imigrantes recém-chegados, posto que esta população geralmente encontra-se em situação de maior vulnerabilidade, seja pela dificuldade inicial de inserção social; pelas barreiras linguísticas e culturais; pelo caráter temporário dos vistos de residência concedidos, que regulam o acesso a direitos e geram incertezas quanto ao futuro no país (Cangià, 2017); pela alta incidência de distúrbios de saúde mental, como o transtorno do luto prolongado (Fazel, Wheeler, & Danesh, 2005; Killikelly, Bauer, & Maercker, 2018); ou pelo agravamento da xenofobia no atual contexto da pandemia de COVID-19.
Migração, rupturas e continuidades
Com base na Psicologia Sociocultural, podemos compreender a migração como uma experiência dinâmica e ambivalente de ruptura da realidade sociocultural tida como “certa e evidente”, provocando tanto o deslocamento geográfico como semântico e desencadeando mudanças em diferentes níveis (Gillespie, Kadianaki, & O’Sullivan-Lago, 2012; Valsiner, 2014). Quando uma pessoa migra de um país para outro, ela pode assim experimentar uma interrupção no seu regular “fluxo de ser”, uma vez que os padrões que sustentavam a vida anterior não são mais funcionais e os significados antes compartilhados e aparentemente inquestionáveis são colocados em questão (Märtsin & Mahmoud, 2012; Schuetz, 1944). A ininteligibilidade da vida cotidiana impede a pessoa de realizar suas ações habituais, ao mesmo tempo que gera incerteza e ansiedade.
De acordo com Zittoun (2006), toda ruptura experienciada será seguida por um período de transição, caracterizado por processos de mudança por meio dos quais a pessoa pode restaurar parte da natureza tida como “dada e certa” da vida cotidiana. O trabalho da autora sobre transições ao longo do curso da vida forneceu um quadro teórico para examinar de maneira mais detalhada esses processos, a fim de compreender como uma nova conduta é estabelecida. A autora propõe distinguir três processos de mudança interdependentes que estão em jogo nessa situação: processos de aprendizagem (e.g. mobilização de competências e habilidades, construção de conhecimento); processos identitários (e.g. redefinição de si, reposicionamento social e reconhecimento social); e processos de produção de sentido (e.g. interpretação da situação, seu significado dentro da trajetória de vida da pessoa, elaboração das emoções provocadas por essas transformações).
Com base neste referencial teórico, diversos estudos no campo da psicologia da migração passaram a considerar as rupturas e as transições experienciadas
pelos migrantes ao mudarem de país, e os recursos que podem encontrar no novo local ou ligados a experiências anteriores (Hale, & Abreu, 2010; Kadianaki, & Zittoun, 2014). Essa proposta aborda a migração como uma transição do desenvolvimento humano e, consequentemente, acaba por dar ênfase às transformações experienciadas durante o processo migratório e no ajustamento ao novo país.
No entanto, migrar não é apenas mudar, como também permanecer e manter. Levitan (2018, 2019) propõe considerar, ainda, as formas pelas quais as pessoas são capazes de se manter relativamente estáveis sob instabilidades migratórias. Em sua pesquisa, a autora investigou como as famílias migrantes vivenciavam transições múltiplas entre diversos países, demonstrando a importância de se preservar um senso de continuidade de si para além das mudanças frequentes e das rupturas. Normalmente, a pessoa precisa conferir alguma permanência às propriedades do eu e do mundo para conservar o senso de continuidade ao longo do tempo. No nível subjetivo, essa sensação de continuidade do migrante será dada por meio de processos de criação de sentido e pela manutenção de padrões ou atividades semelhantes desenvolvidas no país de origem e nos demais países em que viveu.
Omer e Alon (1994) também consideram a continuidade de si como um elemento primordial para o enfrentamento de situações disruptivas como os desastres, as guerras e eventos semelhantes à pandemia que vivemos hoje. Os autores elaboram a continuidade como um princípio unificador que deve ser promovido durante todo o processo de gestão do evento. O objetivo é preservar e restaurar as continuidades funcionais, históricas e interpessoais, nos níveis individual, familiar, organizacional e comunitário. O princípio da continuidade visa, portanto, facilitar a tomada de decisão e não sobrepor as ações entre os agentes, agregando ao máximo os recursos existentes, especialmente aqueles que estão baseados nas próprias comunidades, contendo os efeitos disruptivos que esses eventos provocam. Dessa forma, Omer e Alon (1994) conferem ao princípio da continuidade uma aplicabilidade mais ampla, que vai além do desenvolvimento individual, ou seja, compreendendo-o como uma necessidade coletiva.
Tal princípio não pressupõe a preeminência de qualquer lócus especial de ruptura; seu emprego pode ter relevância em situações em que, inclusive, ocorrem múltiplas rupturas. De acordo com os autores, dificuldades na manutenção das relações interpessoais, no acesso a informações, entre outros fatores, favorecem a percepção de hiatos na vida que aprofundam a sensação de ruptura. Assim, o princípio da continuidade tem por objetivo proteger as ligações das pessoas com os lugares e redes onde vivem e funcionam. Como pensar a proteção dessas ligações tendo em vista as diferentes trajetórias de mobilidade, as relações sociais transnacionais e os ajustamentos aos novos contextos socioculturais? Que rupturas a pandemia de COVID-19 provocou na vida das pessoas e no tecido social? No caso dos imigrantes recém-chegados, é pertinente pensar como tais rupturas se sobrepõem, uma vez que o tecido social já havia sido rompido com a migração e eles têm de enfrentar a pandemia longe da familiaridade de casa. Nesse contexto, propõe-se, como sugerido pelos autores em situações disruptivas, que o princípio da continuidade seja uma estratégia central de enfrentamento à pandemia tanto individual quanto coletiva.
O termo “estratégia de enfrentamento” destaca os esforços por meio dos quais as pessoas se ajustam às diferentes demandas trazidas por situações adversas. As estratégias devem ser vistas como reguladoras da relação entre a pessoa e o ambiente sociocultural, uma vez que alteram o resultado dos ajustamentos à situação e têm o potencial de trazer à tona os processos psicossociais em jogo (Levitan, 2019). Tais ajustamentos precisam ser compreendidos para além de uma resposta individual a um ambiente estático e imutável. As abordagens clássicas dentro da psicologia da migração contribuíram significativamente para a noção de respostas adaptativas, desconsiderando as transformações que ocorrem no meio. Neste artigo, conceptualiza-se os ajustamentos como movimentos vindos dos dois lados, tanto do imigrante como do ambiente sociocultural em que ele se insere. Um cenário complexo de pandemia nos impõe a refletir para além de modelos unidirecionais de ajustamento e a considerar que as condições de previsibilidade do meio são ainda mais precárias, influenciando na capacidade desses imigrantes de enfrentar e se recuperar dos impactos gerados por um evento inesperado.
Método
Trata-se de um estudo empírico, de natureza exploratória e descritiva, que buscou compreender as experiências de imigrantes durante a pandemia de COVID-19, por meio de entrevistas semiestruturadas. Foram entrevistados 12 imigrantes residindo em Santa Catarina entre maio e outubro de 2020. Os critérios de seleção dos participantes foram os seguintes: ser maior de 18 anos; ser estrangeiro; ter imigrado para o Brasil a partir de 2016 na condição de refugiado e/ou com autorização de residência temporária (seja para fins de estudo, acolhida humanitária, trabalho ou reunião familiar); e estar residindo em Santa Catarina no momento da pesquisa.
Participantes
Participaram desta pesquisa 12 imigrantes, distribuídos igualmente entre homens e mulheres, com variação etária de 22 a 51 anos. A amostra incluiu migrantes de diferentes nacionalidades (6 venezuelanos/as, 5 haitianos/as, 1 cubano/a) que imigraram para o Brasil depois de 2016, sendo que três deles chegaram no ano de 2020, logo antes da pandemia. O ano de 2016 foi delimitado como recorte temporal a fim de garantir a participação do maior número possível de imigrantes recém-chegados. A literatura não determina um número de anos para caracterizar a imigração recente. No Brasil, existem diversas modalidades por meio das quais os imigrantes podem solicitar residência permanente e, assim, acessar os mesmos direitos reconhecidos aos brasileiros. Considerando que o tempo de estadia para a concessão de visto permanente varia conforme a modalidade, nem sempre sendo determinado por um período fixo, delimitou-se quatro anos de estadia no país para distinguir os imigrantes na condição de residência temporária.
Todos os participantes migraram para o Brasil na condição de refugiado e/ou com autorização de residência temporária. O principal motivo para a mudança foram as condições de vida no país de origem. Ainda que a situação social e econômica e as políticas migratórias de Venezuela, Haiti e Cuba sejam diversas, a busca fundamental desses imigrantes é por melhores oportunidades de trabalho e renda, de modo que possam adquirir proteção e bem-estar e auxiliar os familiares que permaneceram nos países de origem. Por esse motivo, os imigrantes que fizeram parte desta pesquisa decidiram ficar no Brasil durante a pandemia de COVID-19, pois o retorno implicaria a perda da principal fonte de renda da família ou ainda a impossibilidade de reingressar no Brasil.
A maior parte dos participantes trabalha em empregos de baixa qualificação e remuneração, como serviços gerais, pedreiro, cozinheiro e cuidador, ainda que dentro deste grupo haja médico, contador e administrador de formação. Outros são autônomos informais, estudantes, e um trabalhava na área de tecnologia. Todos residiam na Grande Florianópolis e cumpriram as medidas de isolamento social assim que o governo do estado de Santa Catarina decretou situação de emergência, em 17 de março de 2020, obedecendo à recomendação de máxima permanência em casa nas primeiras semanas após o decreto. Dos 12 participantes, 7 moravam com a família, 3, com o/a namorado/a e 2 pessoas moravam sozinhas.
Procedimentos
Os participantes foram recrutados de diversas maneiras: primeiro, através de uma chamada de pesquisa que circulou entre associações, organizações e redes sociais que auxiliam imigrantes recém-chegados em Santa Catarina; segundo, mediante convite em grupos online de imigrantes. A técnica de snowballing (Patton, 2002) foi também empregada para acessar mais participantes e mapear as redes relacionais desses imigrantes.
As entrevistas foram conduzidas online e/ou por telefone para que se respeitasse o distanciamento social e a recomendação de máxima permanência em casa indicada durante a realização da pesquisa. Se por um lado, a condução de entrevistas online no contexto da pandemia permitiu a maior segurança da pesquisadora e dos participantes e a investigação de uma realidade ainda em curso; por outro, essa modalidade de entrevista mostrou-se seletiva e limitante em contextos de vulnerabilidade socioeconômica. Duas entrevistas foram conduzidas por telefone, pois os participantes não tinham acesso à internet em suas casas.
As entrevistas foram realizadas individualmente, com exceção de duas que foram mediadas por uma intérprete comunitária do Haiti. Os participantes foram informados sobre a natureza do estudo antes de consentirem com a participação na pesquisa através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Consentimento verbal também foi solicitado no início da entrevista através de uma gravação em áudio. A pesquisa obteve parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. Para manter o sigilo das respostas, os participantes foram convidados, dentro de suas possibilidades, a encontrar um local em sua casa onde pudessem estar sozinhos e utilizar fones de ouvido.
A maior parte das entrevistas foi conduzida em português, porém em diversos momentos alternava-se entre inglês, francês, crioulo haitiano e espanhol, conforme a necessidade dos participantes. Todas as entrevistas foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas para análise. Nomes de pessoas, lugares, organizações e outras informações que possivelmente revelassem a identidade do entrevistado foram alterados a fim de garantir o anonimato.
Cada entrevista durou aproximadamente uma hora e seguiu um roteiro prévio, baseado em entrevistas biográficas semiestruturadas (Rosenthal, 2004), com uma questão narrativa inicial sobre a trajetória de migração internacional e questões narrativas internas e externas sobre as experiências vividas durante a pandemia no Brasil. As entrevistas foram iterativamente refinadas por meio de entrevista-piloto e com base em pesquisas sobre transições (Zittoun, 2006), que apontam para a identificação dos recursos que as pessoas mobilizam para lidar com uma situação desconhecida. As perguntas focaram as principais dificuldades encontradas durante a pandemia, o processo de tomada de decisão e negociação dentro da família no período de isolamento social, os ajustamentos da vida cotidiana à nova situação, os recursos mobilizados para facilitar esses ajustamentos, as transformações vividas em razão da restrição de mobilidade e seus planos futuros. Ao final de cada entrevista, foi oferecida aos participantes a oportunidade de adicionar informações e fazer perguntas de esclarecimento.
Análise de dados
Para identificar as principais estratégias de enfrentamento mobilizadas pelos participantes, foi conduzida uma análise transversal das entrevistas com o auxílio do software Atlas.ti 9, usando a técnica sistemática de categorização iterativa (Neale, 2016). Na categorização iterativa, começa-se codificando sistematicamente todo o banco de dados e identificando as principais questões ou temas-chave abordados nas entrevistas, como, por exemplo, as principais dificuldades vivenciadas durante a pandemia. Depois, classifica-se indutivamente esses códigos em categorias mais amplas com base nas relações entre os códigos, seguido pelo movimento interativo entre os dados e o quadro de codificação de forma a refinar definições em categorias discretas e consistentes, que nos permitiram identificar as estratégias de enfrentamento. A unidade de análise incluiu qualquer extrato significativo de um enunciado e seu contexto, de modo a preservar suas condições de produção. O caminho para a generalização seguiu modo “abdutivo” (Valsiner, 2014), apropriado para áreas da ciência em que o objeto está em constante mudança.
Resultados e discussão
A análise dos dados permitiu identificar as principais estratégias de enfrentamento adotadas pelos participantes da pesquisa. Para tanto, em se tratando de um fenômeno novo e ainda pouco conhecido, foi necessário descrever primeiramente os impactos da pandemia neste grupo, de modo a caracterizar as rupturas desencadeadas pelo evento. Assim, os resultados serão apresentados em três eixos. No primeiro, serão abordados os impactos iniciais da pandemia, sistematizados em quatro áreas principais. O segundo discorre sobre as estratégias mobilizadas para restaurar a continuidade funcional, entendida como a capacidade de seguir em frente apesar das disrupções. Já o terceiro eixo destaca as estratégias mobilizadas para recuperar a continuidade relacional, dando ênfase à manutenção das relações interpessoais no enfrentamento à pandemia.
Impactos iniciais da pandemia: Vivenciando uma dupla ruptura
A pandemia de COVID-19 impactou de forma significativa a vida dos imigrantes entrevistados, provocando rupturas nas mais diferentes esferas da vida cotidiana. As fronteiras entre a esfera do trabalho e a esfera doméstica, em alguns casos, se apagaram. A convivência entre as pessoas coabitando a mesma casa se intensificou e as demais interações sociais foram rompidas. Houve perda de emprego e diminuição da renda. As notícias sobre o vírus se tornaram a principal pauta em todas as mídias. As escolas fecharam e os pais tiveram que adotar novos papéis e tarefas. Com a mobilidade interrompida, o acesso a serviços básicos e ao trabalho ficou restrito. A análise dos dados permitiu identificar quatro principais esferas impactadas inicialmente pela pandemia: a) Trabalho e renda; b) Rotina doméstica; c) Saúde mental; e d) Relações sociais.
No que tange ao impacto nas condições de trabalho e renda, metade dos participantes manteve a mesma atividade profissional, dois perderam o emprego durante a pandemia e um terço indicou não estar trabalhando antes do início da pandemia. Os participantes que não trabalhavam ou que perderam o emprego solicitaram o auxílio emergencial oferecido pelo governo. Somente uma pessoa não teve acesso ao benefício, relatando dificuldades em acessá-lo por falta de documentação. Em alguns casos, os familiares perderam o emprego, reduzindo o orçamento doméstico e dificultando a ajuda financeira enviada à família que permaneceu no país de origem. Um terço dos participantes dependeu de ajuda externa, como oferta de cesta básica, apoio financeiro ou suporte com moradia no início da pandemia. É importante ressaltar o agravamento da situação de vulnerabilidade econômica dessa parcela de entrevistados com a pandemia. Uma participante pede ajuda durante a entrevista e diz estar passando fome, pois não consegue trabalho. Outra entrega o currículo à pesquisadora e solicita ajuda para encontrar um emprego. Os relatos revelam como a pandemia pode arraigar cada vez mais as desigualdades sociais já existentes.
Comuns foram as situações em que o local de trabalho fechou temporariamente e o participante ou familiar parou de trabalhar, ficando mais tempo em casa ou assumindo outras atividades laborais. Com o home office e a maior permanência em casa, observou-se dificuldades no restabelecimento de uma rotina de trabalho em consonância com o reajuste de outros aspectos da vida, como lazer e descanso. Alguns participantes apontaram dificuldades no acesso ao local de trabalho decorrentes da suspensão do transporte público e na alteração brusca da rotina de trabalho: “Agora estou fazendo trabalho de pulverizador da loja, estamos fazendo higienização. Eu comecei a trabalhar de manhã, agora estou trabalhando de madrugada” (Henrique, Venezuela).
Desse modo, a pandemia provocou mudanças na rotina laboral, e o isolamento social impactou a rotina doméstica pessoal e/ou familiar. Os papéis se mesclaram, se alternaram e se modificaram com as crianças sem aulas e a maior convivência entre os familiares. Alguns pais se sentiram mais exigidos com o ensino a distância, que os fez ocupar a posição de professores, e com a sobrecarga nas atividades domésticas devido à permanência dos filhos em casa. Um entrevistado relatou ter mais conflitos na vida conjugal por causa da convivência do casal com os dois filhos em espaço pequeno. Há de se considerar ainda o impacto nas atividades de lazer da família, que antes eram vivenciadas em espaços públicos, como idas ao shopping e praias, e na prática de exercícios físicos, que igualmente ficou restrita ao lar.
Na análise das entrevistas, ficou evidente o impacto da pandemia na saúde mental dos participantes, que relataram aumento de ansiedade, medo e preocupação consigo e com a família. O excesso e a inconsistência das informações advindas da mídia apareceram como principais gatilhos para crises de ansiedade, aumento do estresse e alterações na qualidade do sono. Como destacado por Brooks et al. (2020), o medo da contaminação é um fator de estresse para as pessoas em quarentena. Com a pandemia como pano de fundo, os participantes expressaram também medo da morte, devido à letalidade da doença e da incerteza acerca do seu manejo e tratamento. A distância geográfica em relação à família teve relevância na intensificação desses efeitos, uma vez que os participantes não podiam contar com a disponibilidade dessa rede caso alguém viesse a adoecer ou falecer no Brasil, e, inversamente, receavam a perda ou o adoecimento de algum familiar que se manteve no país de origem, onde se encontrava com menos condições econômicas para enfrentar a situação.
No que se refere ao impacto nas relações sociais, a restrição da mobilidade internacional interrompeu as conexões ativas que estes imigrantes tinham com seus países, afetando seus laços sociais transnacionais e impedindo-os de trazer parentes e retornar ao país de origem. Além disso, o contato com os familiares no exterior foi temporariamente interrompido. Participantes reportaram dificuldades de comunicação com familiares em Cuba e na Venezuela no começo da pandemia. Com o distanciamento social no nível local, o contato físico e direto foi impossibilitado, impondo a adesão à comunicação e a interações quase que exclusivamente virtuais. As medidas de distanciamento social também restringiram o acesso às redes sociais locais e aos recursos materiais que nelas circulam.
Como pudemos observar, a pandemia de COVID-19 impactou diferentes esferas da vida desses migrantes, tanto em seu entorno mais imediato como a nível global, nas relações com seus países de origem, produzindo uma ruptura nos modos de viver o cotidiano. Podemos conceptualizar, portanto, a experiência de atravessar uma pandemia como imigrante em um novo país como uma “dupla ruptura” - a primeira referindo-se às rupturas relacionadas ao processo migratório e a segunda, às rupturas desencadeadas pela pandemia. Sobretudo para os imigrantes que chegaram ao Brasil em 2020, essa dupla ruptura dificultou o ajustamento ao novo contexto sociocultural. Isto posto, as estratégias de enfrentamento desses imigrantes devem ser compreendidas de uma perspectiva multidimensional, levando em consideração as interações entre as diferentes esferas impactadas pela pandemia e a travessia de dois processos transformadores do sujeito, migração e pandemia.
Estratégias para restaurar a continuidade funcional: ajustando espaços, rotinas e funções
Frente aos impactos provocados pela COVID-19, os participantes tiveram que criar, de uma forma repentina, estratégias para restabelecer um grau mínimo de funcionalidade para continuar trabalhando, cuidando da família e da saúde, e socializando por meio de telas de computadores e celulares. A análise dos dados permitiu identificar quatro maneiras distintas pelas quais a continuidade funcional foi mantida e reparada, a saber: a) ajustamento geral das rotinas; b) criação de um espaço transicional entre rua e casa; c) ajustamento de papéis e funções; e d) mobilização de competências e habilidades para resolver problemas específicos gerados pela pandemia.
Os participantes desta pesquisa, em consonância com as recomendações dos profissionais da saúde (Brasil, 2020), enfatizaram a importância de estabelecer uma rotina durante o período de isolamento social: “A gente precisa ficar em casa, então a gente tem que montar uma rotina, não dá para você acordar todo dia e: ‘agora, o que vou fazer?’” (Carla, Cuba). Rotinas ajudam a criar previsibilidade e ordem, permitindo antecipar o que acontecerá em seguida e favorecendo a tomada de decisão. A rotina cria um ritmo de base por meio da sequência de ações concretas e repetitivas, gerando um efeito estabilizador. Pesquisas com famílias migrantes mostram que, sob condições de alta mobilidade, as pessoas reforçam suas rotinas para estruturar um ambiente novo e desconhecido e facilitar assim o enfrentamento às mudanças (Levitan, 2019).
No entanto, o isolamento social criou um desafio adicional para o estabelecimento de rotinas: as rotinas de trabalho e de lazer tiveram que ser adaptadas e circunscritas ao espaço doméstico. Carla conta como tentou demarcar diferentes atividades em um único espaço: “Eu brinco com minha família: ‘agora vou para o trabalho’, o trabalho é lá na janela, perto do meu computador. ‘E agora eu vou para o cinema’ - o cinema aqui é o sofá”.
Os participantes também destacaram a importância de se introduzir novas rotinas de cuidado de si e de prevenção à infecção pelo vírus: “minha esposa fica em casa, sou eu quem vai na rua fazer compras, e faço higienização com álcool-gel antes de entrar com toda mercadoria” (Henrique, Venezuela). Tiago, por sua vez, relembra como é importante para o imigrante cuidar da saúde: “a saúde é cara e para o estrangeiro é difícil pagar o custo das coisas. Algo simples, como escovar o dente, é importante”. Além disso, assim como a rotina organiza a continuidade de si, o corpo para o imigrante é a própria estrutura de continuidade, sendo seu principal recurso para a mobilidade. O corpo também acomoda o sentido e o sentir, e os cuidados com o corpo trazem a sensação de dignidade, reparando a interrupção do “fluxo de ser”.
Para proteger o espaço doméstico contra o vírus, os participantes criaram um espaço transicional entre a rua e a casa, geralmente através de um corredor ou uma área delimitada na entrada da casa, servido de objetos que passaram a fazer parte desta nova rotina de cuidado. Oscar, da Venezuela, descreve as alterações realizadas:
Eu coloquei uns sortidores de álcool grandes para a gente puxar e lavar as mãos. Aí nisso eu tenho a parte onde a gente está deixando a roupa, e o calçado fica fora da casa numas sapateiras. Aí a gente sai do corredor, entra no banheiro, desinfeta o corpo e entra em casa.
Adequar a casa à pandemia por meio da criação desse espaço transicional foi uma estratégia de enfrentamento amplamente empregada no começo da pandemia. Esse espaço transicional serviu como um marcador físico da profunda mudança que a pandemia engendrou nas esferas doméstica e pública, ajudando as pessoas a simultaneamente separar e conectar essas duas esferas. Faz-se interessante observar que a manutenção de espaços e objetos transicionais é uma forma de criar uma experiência de transição, em resposta a uma situação de mudança abrupta. Nesse sentido, demarcar a transição é uma importante estratégia para recordar que a transformação continua em curso.
Outra estratégia relativa à continuidade funcional se refere ao ajustamento de papéis e funções durante a pandemia. Os papéis sociais da vida adulta, no trabalho e na constituição da família são fundamentais para a continuidade funcional, pois organizam a rotina, as atribuições e a identidade do migrante numa dada realidade social. Pablo, por exemplo, conservou ativo o seu papel como missionário, pregando online o evangelho, uma vez que as igrejas estavam fechadas. Ajustar esse papel à modalidade online foi importante para introduzir uma novidade durante o confinamento, preservando a sensação de autodeterminação e a mesma atividade que desenvolvia de forma presencial. Mesmo sua mãe, que, com as escolas fechadas, ficou afastada do trabalho naquele período, buscou formas alternativas de se manter ativa, cuidando de uma idosa na vizinhança.
Em outros casos, o pai assumiu o cuidado das crianças pela primeira vez, garantindo a continuidade funcional da família. A manutenção dos papéis funcionais possibilitou a alguns entrevistados, ainda, continuarem mandando remessas de dinheiro para a família no país de origem, assegurando outra função que é muito comum aos imigrantes, geralmente provedores da família no exterior. Cabe ressaltar a relevância do auxílio emergencial, que pode ser compreendido como uma estratégia a nível federal visando promover a continuidade funcional das pessoas afetadas. Destaca-se ainda que o ajustamento de papéis e funções já era uma realidade entre os imigrantes entrevistados antes da pandemia, haja vista a alocação em empregos não relacionados a suas formações de base, por não conseguirem validar seus documentos. Sendo assim, as experiências anteriores possibilitaram mobilizar mais rapidamente os recursos disponíveis.
Zittoun (2006) já havia considerado a mobilização de competências e habilidades, incluindo os processos identitários e a produção de sentidos como fatores relevantes no processo de aprendizagem dessa população a partir da migração. Observou-se que alguns entrevistados usaram seus pontos fortes para endereçar os problemas específicos durante a crise. Como médica, Nayara passou a produzir máscaras para a família, amigos e vizinhança antes mesmo de se popularizar o uso de máscaras como estratégia de enfrentamento a COVID-19:
A primeira coisa que eu fiz quando eu escutei dos primeiros casos, que eu vi o problema na Itália, eu já falei para o meu marido: “a máscara”, porque sempre usava máscara de pano para cirurgia. Eu comprei um tecido quando saiu o primeiro caso do COVID aqui no Brasil e comecei a costurar à mão minha máscara. Eu tentava recomendar para os amigos da igreja.
Colocar em prática habilidades para resolver problemas e agir lhe permitiu entender o que estava acontecendo e gerir a ansiedade e o medo produzidos com o excesso de informação da mídia. Trata-se de uma estratégia para restaurar o controle sobre aquilo que é imprevisível, com base em suas experiências anteriores e seus saberes particulares.
Estratégias para preservar a continuidade relacional: Mobilizando redes sociais transnacionais e locais
A análise dos dados revelou que as redes sociais foram fundamentais para facilitar a trajetória de migração internacional desses imigrantes, o processo de estabelecimento no Brasil e os ajustamentos às mudanças provocadas pela pandemia.
A maior parte dos entrevistados chegou ao Brasil por intermédio de parentes e amigos que já estavam instalados no país. Dos 12 casos analisados, somente quatro vieram para o Brasil por iniciativa própria, mas beneficiaram-se da entreajuda de outros imigrantes quando aqui chegaram. Vale destacar que os participantes trouxeram outras pessoas, promovendo uma rede de solidariedade e reciprocidade. Depois de solicitar refúgio no Brasil e trazer o filho, a ex-esposa e a irmã, Oscar revela: “eu sempre estive ajudando aquelas pessoas que tivessem vontade de sair da Venezuela para melhorar sua condição de vida. Até agora, eu já consegui tirar 11 pessoas de lá”. Da mesma forma, e apesar da longa travessia que realizou desde o Haiti, Gerard se prontifica a ajudar um amigo na mudança para Santa Catarina: “Eu tinha um amigo que não tem nada de dinheiro, aí eu resolvi bancar o ônibus para ele, para a gente vir junto”.
Além das redes de parentesco e de amizade, os participantes recorreram às redes sociais estabelecidas por intermédio da igreja. Essas redes prestaram relevante suporte econômico e social durante o processo de estabelecimento desses imigrantes no Brasil. Oscar conta que foi recebido em Florianópolis por uma pessoa da igreja que ele conheceu pela internet e que lhe disponibilizou a própria igreja como morada até que sua família achasse um emprego na cidade. Essas redes permitiram o acesso dos participantes a recursos locais e a ampliação de suas redes sociais para incluir relações com brasileiros.
As redes sociais estabelecidas durante a trajetória de migração e no processo de estabelecimento em Santa Catarina ganharam relevância na pandemia. Pablo, da Venezuela, conta que mobilizou novamente a rede da igreja quando a quarentena começou, em março de 2020: “Nós ainda não tínhamos a chave do apartamento; ficamos dois meses na casa do nosso pastor, passamos a quarentena total dentro de casa. Eles nos ajudavam muito”.
Além disso, as medidas de distanciamento social aceleraram o processo já em curso da virtualização das redes sociais, processo bastante familiar para os imigrantes, que em todo caso mantinham suas conexões transnacionais de forma virtual. Durante a quarentena, os participantes criaram comunidades virtuais, compartilhando informações relevantes sobre a situação da COVID-19 no Brasil, e formando novas redes de cuidado e suporte mútuo.
Apesar da interrupção inicial na comunicação com Cuba e Venezuela, os participantes mantiveram contato constante com os familiares nos países de origem e amigos espalhados pelo mundo inteiro, por meio de aplicativos de mensagens. Pais, primos, sobrinhas, amigos de infância e padrinhos de casamento foram as primeiras pessoas com quem os participantes falaram quando da deflagração da pandemia. Nesse momento crítico, as redes socioafetivas foram restabelecidas e os laços transnacionais foram fortalecidos. Tiago, por exemplo, se reconectou com um amigo com quem não falava havia anos e com seus pais, revelando que a reaproximação “foi uma coisa boa da pandemia, que agora a gente tem que se ajudar, pelo menos sentimental e emocionalmente”.
As redes transnacionais serviram como principal fonte de apoio emocional durante a pandemia. Quando perdeu o emprego, Tiago mobilizou rapidamente essa rede:
Eu tenho quatro amigos que são de coração - um que mora aqui e uns que moram no Chile,Venezuela e Equador. Então, essas pessoas te ajudam, te conhecem muito bem. Eles dão opiniões, que você naquele sentimento de preocupação, de estar ficando bem no fundo do mar sem conseguir respirar, eles dizem: “fica tranquilo, você já tem experiência”.
As redes transnacionais são a conexão entre a vida pré e pós migração, e funcionam como lembretes relacionais que visam preservar continuidades funcionais, históricas e culturais. Quando indagado se esses amigos eram também venezuelanos, Tiago respondeu:
Também. Então eles conseguem compreender melhor o contexto, o Tiago de lá, para poder lembrar um pouco daqui, das tuas capacidades, uma certa continuidade do que você vem fazendo. E outra coisa, quando você fala com alguém da tua cultura, você consegue expressar em menos palavras muito mais coisas.
Nesse sentido, as redes transnacionais ajudaram Tiago a restaurar um senso de continuidade de si para poder enfrentar positivamente a ruptura causada pelo desemprego. Portanto, é pertinente afirmar que a manutenção da conexão social, mesmo que virtual, é chave para a promoção de saúde e bem-estar psicológico durante a pandemia.
As redes sociais locais, por sua vez, exerceram um papel importante frente às demandas adicionais relacionadas aos processos de luto. Para além das mortes em decorrência da COVID19, a pandemia provocou uma série de perdas coletivas: de proteção e segurança em nível global, de rotina, de contato humano físico, das fronteiras entre casa e trabalho, de planos e perspectivas futuras. Essas múltiplas perdas, associadas a um novo cotidiano que inclui constantes notícias de mortes em um curto espaço de tempo, podem ocasionar, conforme Crepaldi, Schmidt, Noal, Bolze e Gabarra (2020), uma forma coletiva de luto antecipatório, no qual experimenta-se de maneira intensa a proximidade da morte e o medo de perder entes queridos. Essa preocupação constante com a morte se agrava no caso dos imigrantes, que não contam por perto com a rede da família estendida. Nayara conta que sentiu muito medo no começo da pandemia:
Foi bastante difícil, porque a gente está aqui. E isso foi uma coisa que eu falava com o meu marido: “se a gente pega a doença, passa mal, e o pior, morre; com quem vai ficar nossos filhos?”. É uma coisa que, até agora, eu paro para pensar, não com tanta agonia como no início, mas ainda penso que tem uma doença que a gente não pode decidir o sepultamento do jeito que a gente está acostumado. Longe da família. Aí eu disse: “bom, ninguém vai saber onde eu vou ficar se eu morrer, se meu marido morrer”. E pior ainda: “com quem vão ficar meus filhos?”. Eu já parei para pensar “eu vou dar meu número para alguma pessoa da igreja que fale espanhol”. Uma coisa que dói. Um pensamento ruim.
Como Nayara só pode contar com a família nuclear no Brasil, ela recorre à nova rede de amigos da igreja para proteger sua família e se precaver de uma situação indesejada, mas possível. Ela conversa com uma amiga da Igreja sobre essa “dor”, esse “pensamento ruim”, que a tranquiliza dizendo: “seus filhos podem ficar na minha casa, pode deixar”. Conversar com a amiga pode ser visto como uma forma de preparação emocional para uma possível perda, na medida em que a amiga assegura que Nayara não está tão sozinha quanto esta pensava. Dessa forma, a ampliação das redes sociais locais mostrou-se fundamental para imigrantes obterem o suporte necessário para enfrentar a pandemia e seus desdobramentos.
Considerações finais
A atual pandemia de COVID-19 alterou repentinamente a dinâmica da mobilidade humana ao redor do mundo, afetando os imigrantes recém-chegados no Brasil. O presente artigo partiu da compreensão de que pandemias e mobilidade estão intrinsecamente ligadas, e mostrou, por meio da descrição das experiências desses imigrantes, como esses fenômenos se complexificam à medida que se sobrepõem, configurando a vivência de uma dupla ruptura. A pandemia revelou que a capacidade de enfrentar situações adversas e seus impactos é desigual nas diferentes parcelas da população, ainda que se tenha identificado impactos semelhantes com relação à diminuição da renda, convívio doméstico mais intenso e saúde afetada com o aumento do estresse nos diversos grupos sociais (Bezerra et al., 2020).
A análise evidenciou o agravamento da situação de vulnerabilidade social dos imigrantes entrevistados, visto que a maior parte enfrentou com poucos recursos a pandemia e a imobilidade imposta, ansiosa por trabalho e renda, contando com o apoio de familiares, compatriotas ou instituições religiosas que pudessem ampará-los nesses momentos. Vieram ao Brasil buscando proteção e segurança, e aqui encontraram novas condições globais de insegurança impostas pela pandemia, o que dificultou o ajustamento ao novo contexto sociocultural. Por consequência, no contexto específico da pandemia, a população migrante torna-se particularmente vulnerável às restrições de mobilidade e suas consequências econômicas, além de perder seu principal capital social e simbólico.
Adaptar-se a cenários pouco previsíveis, reajustar rotinas, papéis e funções em novos contextos socioculturais não é novidade para a pessoa migrante (Levitan, 2019). Pode-se identificar como os entrevistados ativaram rapidamente as redes sociais locais e transnacionais virtualmente, mobilizando competências e habilidades aprendidas durante a migração. Além disso, as dificuldades e as conquistas vivenciadas na trajetória de mobilidade e os sentidos dados à migração serviram como recursos simbólicos para lidar com o atual contexto, ou por meio de uma significação positiva acerca do futuro ou da pandemia como mais um obstáculo a ser superado. Portanto, a experiência com rupturas anteriores decorrente do processo migratório teve influência no enfrentamento e nos ajustamentos necessários durante a pandemia. Ao mobilizar os recursos aprendidos durante a migração para enfrentar uma situação inesperada, os imigrantes constroem um continuum em sua trajetória, favorecendo a integração e o senso de continuidade de si ao longo do tempo.
A continuidade funcional mostrou-se fundamental tanto para endereçar as rupturas provocadas pela pandemia como para favorecer a restauração das demais continuidades que foram ameaçadas. Já a continuidade relacional foi imprescindível em um contexto de isolamento social, que serviu apenas para alimentar sentimentos de desconexão e não pertencimento e reconhecimento social já vivenciados por esses imigrantes. Conclui-se que um bom funcionamento da continuidade funcional e relacional tem o potencial de minimizar os impactos emocionais da pandemia, tendo em vista que experiências de rupturas podem comprometer a capacidade de criar laços saudáveis, confiar nos outros e de sentir-se seguro. O princípio da continuidade adverte, dessa forma, que a melhor maneira de cuidar das pessoas neste momento é manter continuidades que permanecem e restaurar as que foram interrompidas.
Com base nos resultados obtidos, sugere-se a organização de diretrizes e políticas, nos diferentes níveis de atuação pública, que busquem preservar e estimular as continuidades funcionais e relacionais das pessoas e comunidades durante a pandemia, com maior ênfase aos grupos mais vulneráveis. Esses grupos precisam inicialmente de informações concretas, específicas e claras, que fomentem comportamentos que permitam uma transição contínua entre a rotina e o funcionamento durante emergências (Omer, & Alon, 1994). Posteriormente, enfatiza-se a permanência de suporte social, papéis sociais e competências e habilidades de enfrentamento ao longo do tempo e sua coerência dentro de um contexto local e transnacional.
Ainda que a situação de vulnerabilidade social dos imigrantes no Brasil tenda a se agravar com o prolongamento da pandemia de COVID-19, a pesquisa apresentou as dificuldades adicionais impostas a essa população. Informação adequada, políticas para manutenção do emprego e renda, ampliação da capacidade de resposta dos órgãos voltados à assistência humanitária, cadastro e acompanhamento da migração no país, agilidade nos processos de legalização de documentos, investimento para ampliar o acesso aos serviços de saúde e saúde mental são estratégias que, se adotadas pelos órgãos públicos como políticas de Estado, podem minimizar os impactos das situações adversas como a pandemia na população migrante.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
23 Set 2021 -
Aceito
09 Jun 2022