Atavismo psíquico e paranoia (1902)* * Tradução de C. Lucia M. Valladares de Oliveira. Revisão técnica de Ana Maria G. R. Oda. Originalmente publicado como Atavisme psychique et paranoïa, nos Archives d'Anthropologie Criminelle, de Criminologie et de Psychologie Normale et Pathologique, de Lyon (ano 17, n. 102, p. 325-355, 1902). Na presente edição, as referências bibliográficas foram mantidas no formato do texto original, em notas de rodapé.
Raimundo Nina-Rodrigues
Se, como defendemos e cada vez mais buscamos estabelecê-lo, a personalidade é uma composição muito complexa, fica evidente que suas perturbações devem ser multiformes. A cada caso, ela se revela decomposta diferentemente. A doença torna-se um sutil instrumento de análise: realiza para nós experiências inabordáveis por qualquer outra via. A dificuldade está em bem interpretá-las; mas os próprios erros só podem ser passageiros, posto que os fatos a serem produzidos no futuro servirão para verificá-las ou retificá-las.1 1 . Ribot. Les maladies de la personalité. Paris, 1897, p. 40.
A convicção de que uma boa análise psicológica de certas anomalias mentais deve ajudar muito na resolução do problema psicológico do criminoso, nos levou a preceder os estudos sobre a criminalidade dos negros brasileiros, tema sobre o qual nos debruçamos há muito tempo, pelo estudo da paranoia na raça negra. Com efeito, as relações da paranoia com o crime foram objeto de curiosos estudos, em que as analogias entre as anomalias mentais destas duas formas de degenerescência foram postas em destaque, a tal ponto que uma escola psiquiátrica italiana procurou aplicar à interpretação do paranoico a mesma teoria atávica que o eminente professor Lombroso havia aplicado à explicação do criminoso. Nosso ensaio tem, portanto, sua utilidade.
Mas os delírios sistematizados e a acepção da palavra "paranoia" fizeram emergir profundas divergências entre os psiquiatras. É portanto útil, no momento em que me proponho a examinar se a paranoia existe na raça negra e sob quais formas se manifesta, precisar muito bem o sentido que atribuo a essa palavra e formular rigorosamente a teoria do atavismo psíquico desses alienados. É uma condição de rigor, para bem assinalar, se esse estudo confirma ou contradiz a teoria do retorno atávico do paranóico.
Daí surgiu a necessidade de começar por um estudo preliminar das relações existentes entre atavismo psíquico e paranoia, antes de abordar a memória sobre "A paranoia nos negros", trabalho que acabamos de escrever especialmente para os Archives d'Anthropologie Criminelle.** ** O ensaio La paranoïa chez les nègres: étude clinique et médico-légale seria publicado em 1903, nos Archives d'Anthropologie Criminelle (ano 18, n. 118, p. 609-651 e ano 18, n. 119, p. 689714); foi traduzido e publicado em português pela primeira vez em 2004, na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental (v. 7, n. 2, p. 161-178; v. 7, n. 3, p. 131-158 e v. 7, n. 4, p. 217-239). (N. da R.).
As principais ideias que encontraremos nestas páginas são rigorosamente as conclusões do estudo clínico sobre a paranoia nos negros. Se elas precedem a referida memória, é porque isso nos pareceu útil à clareza da exposição e à boa compreensão dos fatos lá estudados.
A doutrina antropológica da paranoia pertence à escola italiana; é, portanto, nos termos que ela emprega na sua compreensão da paranoia que tomaremos os elementos necessários ao exame desse vocábulo.
A paranoia compreende, segundo essa escola, todos os casos de delírio sistematizado crônico que se desenvolvem em um campo degenerativo. Assim compreendida, a paranoia contém psicoses consideradas na França espécies nosológicas distintas. As linhas que se seguem indicarão em que termos e sob que reservas aceitamos essa doutrina, do nosso ponto de vista feliz e verdadeira em diversos aspectos.
A paranoia designa, então, estados mórbidos tão diferentes entre eles que psiquiatras de renome os consideraram, e ainda os consideram, espécies nosológicas distintas.
Compreende-se facilmente que é pouco útil proceder à verificação em massa da existência dessa afecção na raça negra, como se tratássemos de uma psicose bem definida e limitada em suas manifestações e modalidades. Parece-nos que as distinções das formas da paranoia, tais como se procura estabelecer, ora fundamentando-se exclusivamente no conteúdo do delírio, ora em sua origem, ou ainda em sua marcha, são muito artificiais. Ao contrário, o traço clínico especial que o conjunto das circunstâncias por vezes imprime a certas formas dessa doença, a ponto de permitir acreditar que elas constituem verdadeiras psicoses autônomas, mostra claramente que é muito mais útil aceitar esses casos como formas diferentes da paranoia, e procurar simplesmente estabelecer as formas correspondentes na classificação das diferentes escolas psiquiátricas.
Este procedimento não se opõe em nada a que levemos em consideração as modalidades do conteúdo e da marcha do delírio, únicos elementos que interessam aos partidários da fusão ou unificação exagerada dos delírios sistematizados, no conceito especial da paranoia.
Acrescente-se ainda que, ao considerar essas espécies mórbidas simples manifestações ou formas clínicas de um estado constitucional particular que chamamos paranoia, não as tomaríamos como doenças autônomas, constituindo espécies nosológicas distintas, como fizeram e continuam fazendo os autores que criaram esses tipos clínicos. Somos, portanto, naturalmente levados a determinar o sentido em que tais manifestações são tomadas neste estudo, para evitar a confusão que resultaria da indeterminação dos termos que empregamos.
Aliás, seria fácil encontrar seus equivalentes nas diferentes classificações psiquiátricas.
Admitimos nos grupos de paranoias as formas clínicas abaixo:
1º Delírio crônico de evolução sistemática de Magnan;
2º Delírios sistematizados crônicos de degenerados (Magnan); sejam originários: (paranoia de Sander), sejam tardios: doença de Lasègue, doença de Foville, paranoia inventoria, religiosa etc.;
3º Perseguidos-perseguidores, querelantes etc.;
4ª Paranoia indiferente, sem delírio ou com delírio efêmero.
Não cabe aqui fazer o histórico nem a crítica dessas espécies de delírios sistematizados. Iremos, no entanto, examinar a existência de cada uma delas na raça negra e então diremos como as compreendemos.
Por enquanto, não temos a intenção de procurar o que caracteriza a paranoia do ponto de vista psicológico, ou seja, o campo degenerativo especial onde essas diferentes formas clínicas se desenvolvem. Tanzi e Riva, os psiquiatras italianos autores da teoria antropológica do paranoico, fizeram da paranoia um verdadeiro caso de atavismo psíquico hereditário. Veremos que se trata tão somente de uma verdadeira monstruosidade, de uma anomalia psíquica de fundo degenerativo.
A - Teoria atávica de Tanzi e Riva
Em uma memória extraordinária e que marca uma data brilhante na história da compreensão da paranoia, Tanzi e Riva estabeleceram com grande clareza de espírito que há nela dois elementos distintos: um constante, o fundo degenerativo particular; outro acidental, eventual, o delírio sistematizado. Rigorosamente, somente o primeiro constitui a paranoia, considerando que essa doença pode existir sem que haja delírio sistematizado, como no caso de paranoia sem delírio, como também pode revelar-se em estado de pureza, no período de incubação do delírio ou em momentos de trégua. Dizem eles:2 2 . Tanzi e Riva. La paranoia. Contributo alla teoria delle degenerazioni psichiche. Reggio-Emilia, 1886, p. 24.
Por consequência, consideramos o delírio sistematizado um grupo sintomático; a paranoia, ao contrário, uma forma mórbida constitucional. Ela não forma uma só e mesma coisa com tal sintoma, mas é constituída por uma complexidade de elementos dos quais dois (a origem degenerativa e a marcha) são muito mais essenciais e constantes que o próprio delírio sistematizado. Os argumentos que apresentaremos no próximo capítulo demonstrarão como o delírio sistematizado não é um elemento necessário à paranoia, no sentido em que a compreendemos, e ainda que ele pode se encontrar em muitas outras psicoses que não têm nada em comum com a afecção da qual nos ocupamos. De maneira que não se pode concluir o diagnóstico da existência da paranoia, no sentido que lhe atribuímos, unicamente pela presença do delírio sistematizado.
Entretanto, a interpretação patogênica que Tanzi e Riva procuraram dar do paranoico não corresponde a esta sua penetrante visão.
Evidentemente inspirados na teoria atávica do criminoso, imaginada pelo professor Lombroso no tempo em que esses autores escreviam sua memória, eles acreditavam que o paranoico, como o criminoso, representava um caso de retorno atávico ao homem primitivo.
Na verdade, neste ponto a teoria dos ilustres alienistas é pouco precisa, escorregadia e algo confusa. Mas tal qual formularam na Rivista sperimentale di freniatria e medicina legale (1884, 1885, 1886) e, como o professor Tanzi afirmou em diversos trabalhos posteriores, o paranoico de Tanzi e Riva deve ser compreendido como um caso de hereditariedade atávica ou por retorno, à maneira do criminoso de Lombroso, e capaz de fazer reviver repentinamente, nos dias de hoje e entre nós, o verdadeiro selvagem, o homem primitivo.
É relativamente ao tempo no qual se apresenta e não em si mesmo que se pode demonstrar o estado mórbido e delirante de um conceito qualquer. A patologia do conceito delirante consiste mais no anacronismo do que em qualquer outra coisa. Assim, poder-se-ia taxar de louco, ou mais particularmente de paranoico, o italiano que defendesse hoje o paganismo; mas não ocorreria a ninguém dizer que todo o povo romano que acreditava no paganismo estivesse sob o domínio da loucura.3 3 . Tanzi e Riva, loc.cit., p. 17.
É portanto, segundo eles, a continuidade ou a descontinuidade na transmissão hereditária das características psíquicas normais que permite distinguir a ideação normal da ideação mórbida ou delirante. No primeiro caso, a transmissão hereditária é contínua e, no segundo, é por meio de saltos ou atávica.
Ora, uma fé cega que não seja resultado da transmissão direta da parte daqueles que nos precederam historicamente, mas que se apresente isolada, constitui evidentemente um fato de atavismo equivalente às crenças ingênuas do animismo selvagem. No entanto, não é assim com toda a fé à qual falta o apoio de uma convicção lógica. Há convicções sem fundamento, sendo rigorosamente ilógicas e que, no entanto, nada têm de mórbidas. Tal é o caso da fé religiosa; tais são os casos de algumas pequenas superstições absurdas que se aninham em cérebros bem organizados e perfeitamente isentos de toda e qualquer influência nevropática. Mas as duas coisas nos chegam por transmissão direta de nossos ascendentes e sua reprodução contínua de geração a geração explica sua grande tenacidade; não há aqui, por consequência, nenhum caráter mórbido.4 4 . Tanzi e Riva, loc.cit., p. 16.
Encontramos essa mesma doutrina exposta por outros ilustres alienistas que adotaram a teoria de Tanzi e Riva. Escreve Júlio de Mattos:5 5 . Júlio de Mattos. A paranóia. Lisboa, 1898, p. 94.
Que um negro, que uma criança ou um camponês inculto tenham uma concepção antropomorfa grosseira do universo, nada de mais natural; mas que um branco de certa idade, instruído, educado nas ciências tenha uma concepção semelhante, é claro que isto anuncia um desvio paranoico da mente. Que um marujo rude e iletrado responsabilize o seu santo padroeiro por um naufrágio ou então que o agradeça com oferendas por ter feito uma viagem tranquila, não há nada de surpreendente, mas um almirante fazendo o mesmo, então revelará o estado paranoico de sua mente. As raças, as idades, as classes sociais (que são raças sociais) possuem cada uma a sua psicologia; é nela e por seus princípios que os conceitos devem ser controlados. Um homem que tem as crenças da sua raça, do seu país, da sua idade, da camada social à qual pertence, do seu grau de cultura intelectual e moral não é um paranoico, por mais falsas que sejam suas crenças: para que possamos falar de paranoia é necessário que se produza um retorno das ideias.
Os fatos desmentem formalmente essa teoria, absolutamente insustentável nos termos em que foi apresentada. Admitir que o homem primitivo, o selvagem, enfim, que todos nossos desviantes são loucos - ou demonstrar que o delírio, as ilusões, alucinações, enfim, todas as perversões mentais da loucura são fatos perfeitamente normais - tal são as alternativas que ela nos coloca. E é por esta última alternativa que Tanzi e Riva optaram; é desta teoria que eles procuraram demonstrar a verdade, aliás em vão. Eles precisaram, em nome da sua causa, erguer uma muralha sobre um ponto flutuante entre o passado e o presente da mentalidade humana, para atribuir um caráter mórbido ou delirante às ideias que a hereditariedade atávica creu que devera mostrar como anacronismo nesta parte da muralha.
A evidência e a eloquência dos fatos se revoltam, se insurgem contra essa teoria.
A primeira objeção que a teoria da doutrina atávica de Tanzi e Riva provoca é a de que ela não oferece absolutamente uma explicação sobre a paranoia, apenas sobre as perturbações psíquicas elementares da loucura, sobretudo do delírio. Eles reconhecem o valor da objeção, mas procuram afastá-la. Dizem:6 6 . Tanzi e Riva, loc.cit., p. 137.
Apesar disso, poderiam nos contrapor que muitas vezes os monodelírios que se apresentam em outras formas mórbidas, em que não se descobre nenhuma degenerescência paranoica, podem oferecer as mesmas características, ou seja, a mesma aparência de atavismo. De maneira que os fenômenos sendo os mesmos dentro como fora da paranoia seria necessário admitir sempre a degenerescência ou excluí-la em todos os casos; a originalidade da paranoia tornar-se-ia assim insustentável. Ora, não negamos o fato, ou seja, nós não negamos que os monodelírios não paranoicos também não possam ter a marca atávica, mas explicamos o atavismo de maneira diferente nos dois casos.
A demonstração que eles pretendem estabelecer não permite avançar a questão em um passo; ela não altera em nada o valor da objeção.
Limitam-se eles a mostrar que o processo provocador da mentalidade atávica na paranoia difere do processo provocador nas outras formas de loucura. Há nestas últimas, da mesma maneira que no sonho, na embriaguez, na cólera, na febre, a suspensão, a inibição transitória das funções mentais mais elevadas, o que deixa a descoberto a construção mental atávica, produtora do delírio. Na paranoia, ao contrário, esse processo é muito mais profundo, mais estável, de duração maior e mesmo permanente. Escrevem eles:7 7 . Tanzi e Riva, loc.cit., p. 139.
No lugar de um fato acidental, mórbido, devido a causas externas (álcool, impressões do mundo circundante, processos patológicos) temos (na paranoia) uma lei preestabelecida do desenvolvimento psíquico individual agindo por si mesma em virtude de uma necessidade biológica, ou seja, do desenvolvimento anormal, e que prevalece, dos germes mais antigos.
Toda essa parte do trabalho revela o quanto é indeterminada e imprecisa essa teoria do atavismo hereditário, que eles confundem inteiramente com a dissolução degenerativa da organização psíquica do homem. Seja qual for, compreende-se muito bem que se o delírio-atavismo é um elemento comum à loucura, à embriaguez, ao sonho, às paixões etc., ele não pode ser o elemento constitutivo essencial e característico do delírio da paranoia, que se torna realmente essa "necessidade biológica" da qual falam os autores e que eles bem pouco esclarecem ou precisam ao dizer que é "o desenvolvimento anormal, que prevalece, dos germes mais antigos". A necessidade de nos dizer o que é a anomalia desse desenvolvimento e quais são esses "germes mais antigos" subsiste; seria necessário também nos dizer no que se distinguem dos mais novos. A teoria de Tanzi e Riva nos deixa apenas uma impressão: a de que entre a paranoia e o simples delírio e mesmo o sonho normal há no máximo uma diferença de grau.
A partir daí, os autores se mostram satisfeitos pela explicação que deram e não se interessam mais em acumular provas para estabelecer que o delírio seja um fenômeno atávico. No que diz respeito ao caso de paranoia sem delírio, ou seja, de paranoia pura, em que a teoria dos autores, se verdadeira, deveria triunfar por eloquência e clareza da demonstração, não encontramos nada mais no seu trabalho, em que as provas de atavismo da paranoia são apenas um reflexo das provas acumuladas para demonstrar o atavismo de um simples sintoma, o delírio.
A segunda objeção capital tem relação com a existência e a frequência de alucinações. Aqui também Tanzi e Riva8 8 . Tanzi e Riva, loc.cit., p. 65. lhe reconhecem o valor.
Encontramos [nas estatísticas deles] as alucinações na proporção de 83 em 100. E isso dificilmente se explicaria como sendo uma simples manifestação de um tipo intelectual atávico: aqui, o afastamento das formas da atividade sensorial do homem normal é muito evidente para que esse fenômeno possa ser encerrado no domínio das funções fisiopatológicas de uma constituição mental regressiva.
Mas isso não os faz recuar. Eles procuram inicialmente atenuar o valor da exceção (p. 65) - depois procuram enfaticamente demonstrar o caráter normal das alucinações. Tanzi e Riva - sobretudo Tanzi9 9 . Tanzi. I nelogismi degli alienati in rapporto col delírio crônico. Rivista sperimentale di freniatria, etc. Reggio-Emilia, 1899-1900. Tanzi. Il folk-lore nela patologia mentale. Rivista di filosofia scientifica, v. IX, juglio 1890. Tanzi. The germs of delirium. In: The Alienist and Neurologist. Saint-Louis, January 1891. Tanzi. Sopravvivenze psichiche Ricerca cabalistica di un tesoro. Genova, 1891. - tentaram provar que as alucinações são fenômenos normais no selvagem e no homem primitivo. Para prová-lo, eles evocam a frequência das alucinações nos chefes e nos sacerdotes, assim como as alucinações coletivas dos povos inferiores e mesmo os diálogos solitários dos negros.
Não acreditamos que com tais exemplos os autores tenham conseguido provar a normalidade das alucinações. O conhecimento pessoal que tenho das manifestações sonambúlicas dos feiticeiros negros da África, estudadas no Brasil, me permitiu fazer a demonstração, que tenho por rigorosa e irrefutável, da natureza histérica desse fenômeno e da frequência da histeria ou de estados histeroides nos negros e nos selvagens americanos.10 10 . Nina-Rodrigues. L'animisme fetichiste des negres de Bahia. Bahia, 1900. A citação, por exemplo, que Tanzi e Riva emprestam de Véron em favor da sua teoria não justifica de maneira alguma a sua própria opinião. Emprestamos o trecho seguinte às páginas citadas por eles mesmos. É bem positivo e verdadeiro.
E, com efeito, entre os selvagens, a condição principal para se tornar feiticeiro é a de ter recebido da natureza, ou de ter adquirido pelo exercício, uma saúde ruim o bastante para estar nos confins da loucura. Entre os patagônios, não lhes é pedida outra prova de sua missão. A epilepsia e a coreia são suficientes para sagrá-los como feiticeiros. Os xamãs das tribos siberianas escolhem, para instruí-los na profissão, as crianças sujeitas a convulsões. Profissão, aliás, que tende a se tornar hereditária, nas mesmas famílias a que, ao mesmo tempo, acompanham sempre as predisposições à epilepsia. Não há exceção a essa regra. Quando o feiticeiro não é epiléptico, ele se esforça pelo menos para ter a aparência de um deles: ele se exalta com barulhos, gritos, berros, cambaleios, narcóticos, até se infligir, pelo menos, a aparência de loucura momentânea.11 11 . Eug. Véron. Histoire naturelle des religions. Paris, 1885. v. I, p. 109-116.
As alucinações dos sacerdotes e dos chefes dos povos selvagens possuem, portanto, sua fonte em um estado anormal e, por consequência, não podem ser evocadas como prova da normalidade daquelas nos homens primitivos.
Tanzi12 12 . Tanzi. Il folk-lore nella patologia mentale. Milano, 1890, p. 177. chama a atenção também para uma observação do Abade Dobrizhoffer, no Paraguai, relativa às alucinações coletivas nas raças inferiores. O caso seguinte mostrará o seu valor.
Há alguns anos, durante meus estudos sobre o fetichismo dos negros brasileiros, ouvi falar com insistência de aparições de fantasmas, vistas por muitas pessoas nos candomblés funerários de negros africanos vivendo na Bahia. Acreditando tratar-se de um fenômeno extraordinário, me impus o dever de observar a coisa pessoalmente. Os feiticeiros ou sacerdotes, pressionados pelas minhas insistências e questões, acabaram por me confessar que tudo não passava de simulação e que o papel de fantasmas era exercido por indivíduos coniventes, vestidos de longas túnicas brancas. Diante de afirmações categóricas de numerosos testemunhos dessas estranhas aparições, inicialmente acreditei que fosse uma alucinação coletiva; e é justamente e naturalmente a explicação que, na presença de fato semelhante, se apresenta aos observadores de ocasião, pouco ou nada familiarizados com os selvagens, dos quais muitas vezes não conhecem nem a língua nem os hábitos. É ainda mais natural duvidar da facilidade dessas alucinações coletivas nos selvagens, quando vemos seus sacerdotes obrigados a recorrer a verdadeiros artifícios para que acreditem no retorno dos espíritos. É o caso do orixá Orô, cujo culto os negros iorubanos introduziram no Brasil; culto que Ellis13 13 . A.-B. Ellis. The Joruba speaking peoples of the Slave Coast of West África. London, 1894, p. 110. descreve perfeitamente, de acordo com o que observou na África.
Os negros acreditam que Orô reside no seio da floresta, na vizinhança das cidades, e que ele anuncia sua chegada através de um barulho forte, vibrante, lamentoso. A partir do momento em que esse barulho é ouvido, todas as mulheres devem se trancar em suas casas e abster-se de olhar para fora, sob pena de morte. A voz de Orô é produzida por uma lâmina de madeira de doze polegadas de comprimento por duas de largura, terminada em pontas nas extremidades, ligada a um bastão por um longo cordão, no qual é impresso um movimento giratório. Isso não é outra coisa senão o brinquedinho que as crianças inglesas chamam bull-roarer e que segundo Andrew Lang foi utilizado nos mistérios da Grécia antiga, da Austrália, do Novo México, da Nova Zelândia e da África do Sul.
Trata-se, portanto, nas ditas alucinações coletivas dos selvagens, na maioria das vezes, de crenças e terrores populares provocados por artifícios mais ou menos grosseiros.
O que dizer dos outros casos citados por Tanzi e Riva, que eles veem como alucinações normais dos selvagens? Alguns deles são apenas resultados de fenômenos de óptica ou de audição, falsamente interpretados por indivíduos incultos ou de espírito infantil. Em outros, encontramos apenas a existência de crenças animistas, sem a menor manifestação de alucinação, como por exemplo a crença inveterada dos selvagens americanos, que afirmam que o contato com as escamas da serpente ocasiona herpes.14 14 . Tanzi. Il folk-lore etc., p. 77.
Vejamos a terceira objeção. Ela se funda no próprio conteúdo do delírio paranoico. Com efeito, o exame desse delírio testemunha que o anacronismo não é uma constante; e que, ao contráario, com frequência está ausente, o que é suficiente para demonstrar que ele não pode ser a característica do estado mórbido dos conceitos delirantes do paranoico.
Tanzi e Riva pretendem que é o anacronismo que marca o delírio paranoico. Basta opor a isso a observação feita por quase todos os alienistas que trataram de delírios sistematizados, e da qual resulta que as concepções delirantes desses doentes se inspiram, muitas vezes, nas ideias dominantes de cada época. Escreve Krafft-Ebing:15 15 . Krafft-Ebing. Traité clinique de psychiatrie. Trad. francesa. Paris, 1894, p. 93.
As opiniões políticas e sociais de diferentes povos e de diferentes épocas se refletem também nos delírios dos doentes. O delírio de perseguição pelo diabo da Idade Média é atualmente, em grande parte, substituído pelo delírio de perseguição pela polícia, pelos maçons, pelos jesuítas etc.
Magnan é ainda mais explícito, e escreve:16 16 . Magnan. Leçons cliniques sur les maladies mentales. Paris, 1893, p. 282.
Conhecemos agora as características gerais e a evolução do delírio crônico, mas os aspectos sob os quais ele se apresenta no doente variam com a sua religião, crenças, instrução, meio social do qual faz parte, suas preocupações habituais. Ele toma desses diversos elementos para edificar seu delírio e dar-lhe uma marca especial. Temos assim, de um lado, o delírio da Idade Média, com suas crenças supersticiosas, de outro, o delírio moderno utilizando os progressos das ciências e da indústria e em relação com as lutas políticas e a nova organização social. No final da Idade Média e no Renascimento, se falava em bruxaria, espírito do mal, obsessão e possessões diabólicas: o delírio era apenas o reflexo dessas crenças, desses preconceitos, que a ignorância tornava ainda mais profundos. No final do século XVIII, o mesmerismo e o fluido magnético, mais tarde o espiritismo, com os espíritos incorporados e as mesas giratórias, ofereciam aos perseguidos explicações às suas sensações doentias. Atualmente, as lutas políticas, as grandes forças naturais, as numerosas aplicações de agentes físicos e químicos, o magnetismo, o hipnotismo, a sugestão, os micróbios, as grandes sociedades políticas substituíram o maravilhoso, chamam a atenção e se tornam o ponto de partida das ideias delirantes. Os demonopatas, os licantropos são nada mais que perseguidos. Mas, enquanto os diabos, os bruxos, os espíritos maus atormentam os primeiros, os perseguidos dos nossos dias são atormentados pelos jesuítas, maçons e a política secreta, ou então pela eletricidade, pelo telefone, por micróbios etc. Os primeiros tornam-se Deus, anticristo, Joana D'Arc, profetas; os outros tornam-se imperadores, reis, presidentes da República, reformadores etc.
A citação acima estabelece claramente que a coloração do delírio é dada pelo meio social no qual se forma o espírito alienado. Podemos encontrar uma afirmação mais contrária à existência do anacronismo, da qual Tanzi e Riva fazem a característica do delírio paranoico?
Não seria fácil notar nas próprias observações desses autores, por exemplo, como e em que o delírio do engenheiro, que é o objeto da observação II, poderia vir do selvagem ou do homem primitivo. A perseguição, tal como poderia exercer uma pessoa muito rancorosa e influente ou uma associação como a máfia e a camorra etc. é perfeitamente do domínio do possível, esta seria equivalente àquela em que acreditava o infeliz engenheiro, cujo estado mórbido se revelava já na sua incapacidade de corrigir a alteração vesânica, que não lhe permitia ver a inexistência de suas concepções doentias.
Ora, uma única observação (e provaremos que elas são numerosas), estabelecendo que o delírio paranoico se desenvolve sobre ideias de plena atualidade e admitidas pelos contemporâneos do doente, basta para provar que a característica mórbida das ideias delirantes e do delírio não é encontrada no anacronismo real ou aparente que podem apresentar alguns delírios ou mesmo a maior parte deles.
As objeções à teoria atávica de Tanzi e Riva podem, finalmente, revestir uma forma diferente. Como vimos anteriormente, a teoria do atavismo do delírio nos coloca diante da alternativa de considerar o delírio um fenômeno normal no homem primitivo ou admitir que a loucura é generalizada no selvagem e o era no homem primitivo. Os autores aceitaram a primeira hipótese como verdadeira; mas estando a teoria deles indeterminada e sem precisão, não hesitaram em casar as duas explicações, apoiando-se ora em uma, ora em outra. Eles não se limitam a procurar demonstrar que as alucinações, a dupla personalidade etc., são frequentes nos selvagens; eles concluem que os episódios de psiconeuroses agudas da paranoia são os equivalentes dos acessos furiosos melancólicos ou contemplativos dos selvagens. E Tanzi17 17 . Tanzi. Il folk-lore, etc., p. 30. se esforça por determinar que é falsa a opinião dos alienistas em geral, que pretendem que a loucura aumenta com a civilização.
Segundo ele, a loucura seria tão frequente no selvagem como no homem civilizado, só que com o progresso da psiquiatria se reconheceu que estados de espírito vistos até então como normais eram estados de alienação mental.
Nessas condições, a teoria atávica tem apenas uma aparência enganosa de explicação. Com efeito, se o delírio do homem civilizado é uma reprodução atávica hereditária do delírio do homem selvagem primitivo, onde se encontraria a origem do delírio do homem primitivo?
Seria por acaso um retorno atávico ao delírio dos animais? Esse recuo ao atavismo nos conduziria diretamente a uma consequência absurda: não encontraríamos o termo inicial, a origem primeira do delírio e chegaríamos a falar do delírio da monera.
Opõe-se rigorosamente ao atavismo mórbido dos paranoicos de Tanzi a objeção colocada por Féré ao atavismo físico, e por Tarde ao atavismo moral ou criminal. Escreve Tarde:18 18 . G. Tarde. L'Atavisme moral. In: Études pénales et sociales. Paris, 1892, p. 128.
Uma objeção muito justa, que Féré opõe à hipótese do atavismo físico, me parece se aplicar tão bem ou ainda melhor ao atavismo moral: "é necessário notar, ele diz, que os traços de degenerescência, tais como as manifestações nevropáticas ou vesânicas, as escrófulas etc., que se encontram muitas vezes nos criminosos, não têm nada a ver com o atavismo, antes o parecem excluir, posto que estas manifestações são incompatíveis com a geração regular." Eu diria mesmo que a baixeza, a crueldade, o cinismo, a covardia, a preguiça, a má intenção que se observa nos criminosos não devem provir da maioria de nossos ancestrais comuns primitivos, posto que estas características são incompatíveis com a existência e a conservação secularmente longa de uma sociedade regular, e certamente tão incompatíveis com esta saúde e fecundidade sociais quanto as neuroses e as escrófulas o podem ser com a saúde e a fecundidade fisiológicas.
No entanto, não chegamos a concluir que as aproximações que Tanzi e Riva fazem entre o estado mental dos delirantes e o estado mental do homem primitivo ou selvagem sejam totalmente destituídas de fundamento: é a interpretação que é falsa.
Se a paranoia não é um caso de retorno atávico hereditário como eles ensinam, ela é evidentemente um caso de desorganização mental regressiva.
B - O retorno atávico dos paranoicos
A tentativa de distinção entre paranoia e atavismo do delírio demonstra claramente que Tanzi e Riva haviam pressentido a natureza verdadeira do retorno atávico do delírio; mas o mecanismo hereditário do atavismo os preocupava tanto que se afastaram da desagregação mental degenerativa.
Certo, o termo atavismo podia bem se prestar a essa confusão, posto que é empregado atualmente em dois sentidos distintos. Ora designa-se com a palavra atavismo uma forma de hereditariedade, a hereditariedade ancestral, ou seja, "o reaparecimento em um descendente de uma característica qualquer dos ascendentes, característica mantida latente durante uma ou mais gerações intermediárias" (Le Gendre).19 19 . P. Le Gendre. L'hérédité et la pathologie générale. In: Traité de pathologie générale de Bouchard, t. I, p. 306. Ao fazer do atavismo um caso de hereditariedade latente e ao dar como exemplo o aparecimento nos cavalos domésticos de faixas escuras da zebra, do couagga etc., Haeckel20 20 . Haeckel. Histoire de la création naturelle. Paris, 1877, p. 186. escreve: "O aparecimento súbito dessas listras se explica por efeito da hereditariedade latente; é o retorno atávico de uma característica que, tendo pertencido ao tipo ancestral, está há muito tempo extinta em todas as espécies equinas etc." É no sentido do retorno a um estado normal anterior que Lombroso empregou a palavra atavismo na sua teoria atávica do criminoso. Colajani não fez diferente em sua teoria do atavismo moral ou criminoso. É a significação que Tanzi e Riva atribuem à teoria atávica do seu paranoico. Era, finalmente, o sentido que Féré atribuía à palavra atavismo quando afirmava que "degenerescência e atavismo são dois fatos absolutamente distintos".21 21 . Ch. Féré. La famille névropathique. Paris, 1894, p. 47.
Às vezes, ao contrário, designa-se com a palavra atavismo um verdadeiro fenômeno degenerativo ou teratológico. Mathias Duval22 22 . Mathias Duval. Pathogénie générale de l'embryon. Traité de pathologie générale de Bouchard. t. I, p. 191. ensina:
Esse reaparecimento de características anatômicas que não apresentavam os parentes imediatos, mas que ofereciam os ancestrais mais ou menos distantes, pode ser teoricamente evocado em quase todas as paradas de desenvolvimento. A embriologia nos mostra que um ser colocado em determinado grau da escala animal apresenta sucessivamente, durante o seu desenvolvimento, estados semelhantes ou análogos àqueles que caracterizam os seres colocados mais abaixo; que o indivíduo passe assim sucessivamente por transformações que constituíram a evolução do seu tipo específico; é o que os transformistas expressaram ao dizer que a autogenia (desenvolvimento do indivíduo) é uma recapitulação resumida da filogenia (φιλο, tribo, espécie, desenvolvimento ou evolução da espécie). De maneira que um órgão qualquer alcança durante sua formação os estados que esse órgão apresenta nos ancestrais zoológicos do ser, em uma palavra, estados e formas atávicos. Se uma parada no desenvolvimento o mantém em um desses estados, o impede de continuar sua evolução definitiva, característica do grau da escala que ocupa o ser em questão, é evidente que o órgão permanecerá em um estado atávico, e que a monstruosidade assim produzida será uma manifestação atávica.
E Mathias Duval assinala judiciosamente que o atavismo não é uma teoria patogênica, mas somente uma interpretação anátomo-fisiológica. Pergunta ele:
Nisso tudo - é ainda necessário destacá-lo? - o atavismo não nos representa a causa que determinou a parada no desenvolvimento, mas antes a causa que deu tal forma definida à monstruosidade: ele nos fala da morfologia sistemática dos monstros; ele não nos explica a causa ocasional que determinou o acidente monstruoso.
Basta, no entanto, introduzir no conceito de paranoia esse elemento da regressão mental degenerativa para ter não apenas uma concepção clara da paranoia, mas também para compreender suas relações com o delírio sistematizado e explicar facilmente as analogias e as relações que existem entre os delírios e as ideias atávicas, tão justamente postas em destaque por Tanzi e Riva.
Devemos a eles a feliz demonstração de que a Verrücktheit ou delírio sistematizado não é senão uma síndrome psíquica, podendo ser colocada em atividade por um grande número de condições mórbidas.
Quaisquer que sejam as diferenças acessórias de duração, de intensidade, de configuração, com efeito, há na melancolia, na epilepsia, na paralisia geral, na embriaguez e em outras intoxicações, da mesma forma que na paranoia, uma Verrücktheit.
Eles o compreenderam bem: a manifestação dessa síndrome indica apenas que a desorganização do mecanismo psíquico, uma verdadeira desagregação mental, de origem variável, pôde desligar essa síndrome de suas conexões psíquicas normais, e ela doravante funcionará automaticamente e sem controle, na maioria das vezes colocando sob sua dependência todo o funcionamento mental do doente.
É evidente que essa síndrome, cuja ação é agora autônoma, se constituiu, se cristalizou durante o desenvolvimento mental da humanidade sob o império das leis de associação que governam e regem as faculdades intelectuais. Ela se compõe de duas partes distintas: a alteração da forma da inteligência e a perversão da concepção.
A alteração da forma consiste, sobretudo, no funcionamento regular das faculdades lógicas e silogísticas da inteligência, mas inteiramente livres da verificação e do controle que a razão, no estado normal, exerce sobre a conveniência e a justeza das ideias às quais se aplicam. É a paralógica dos psiquiatras alemães. Essa alteração da inteligência é bem expressa nessa feliz comparação de Roubinovitch:23 23 . J. Roubinovitch. Des variétés cliniques de la folie en France et en Alemagne. Paris, 1896, p. 192.
Apesar de todos esses procedimentos mórbidos, o delírio do paranoico é lógico; isso porque, apesar das falsas premissas, o trabalho intelectual se faz nele como em qualquer cérebro, de tal forma que seu aparelho intelectual pode ser comparado, até certo ponto, a um bom moinho de farinha que no lugar de moer o trigo moeria pedras.
No entanto, resta-nos ainda descobrir o fornecedor das pedras que, no lugar do trigo, devem ser moídas no moinho da lógica dos paranoicos. Essa explicação deve ser procurada no nível mental a que a desorganização psicoparanoica reduz o doente. Com efeito, o estado mórbido reproduz aqui um fato curioso da evolução mental da humanidade. Os etnólogos demonstraram que em povos separados por enormes distâncias as mesmas concepções místicas se manifestam em uma fase determinada de cultura. Naturalmente, pensou-se inicialmente em uma possível comunicação entre os povos que apresentavam esse fenômeno, ou em uma verdadeira importação de crenças ou do folclore. As diferenças e mesmo as impossibilidades materiais para essa explicação manifestaram-se de tal forma que se acabou por reconhecer que a origem do fenômeno a interpretar estava no espírito do homem, realmente e espontaneamente desenvolvido em cada povo. Concluiu-se que essas criações místicas deviam ser fruto da atividade psíquica correspondente ao mesmo grau de desenvolvimento mental; o que permitiria a povos tão diferentes e tão distanciados uns dos outros sentir e pensar espontaneamente da mesma maneira e com total independência. Esta é a teoria que, sob reservas e com algumas restrições necessárias, Andrew Lang24 24 . A. Lang. Mythes, cultes et religion. Traduzido por L. Marillier. Paris, 1896, p. 38. formula nos seguintes termos:
Procuramos a origem do "fator selvagem dos mitos" na condição intelectual do selvagem. A difusão de histórias praticamente idênticas em todas as partes do globo pode ser provisoriamente vista como o resultado do predomínio em todas as partes do mundo, em um momento ou em outro, de hábitos mentais ou de ideias análogas.
É difícil não ver a confirmação mórbida da mesma lei psicológica na uniformidade do delírio paranoico. Escreve Krafft-Ebing:25 25 . Krafft-Ebing. Traité clinique de psychiatrie, p. 91.
A natureza especial das ideias delirantes parece depender: 1º - da natureza do processo mórbido no córtex cerebral. É surpreendente, e é com razão que Griesinger insistiu particularmente no fato, que em doentes de povos e de épocas as mais diferentes, certas doenças produzem sempre as mesmas ideias delirantes típicas; chega-se a pensar que todos esses doentes leram o mesmo romance, ou que foram contagiados um pelo outro. Este fato é particularmente verdadeiro para os delírios primitivos e destituídos de toda base alucinatória ou emotiva, tais como, por exemplo, a paranoia (produzindo delírio de perseguição ou de grandeza), a demência paralítica (produzindo delírio de grandeza primitivo), a demência senil (manifestando-se como delírio niilista), o alcoolismo crônico (manifestando-se através do ciúme delirante). É, sem dúvida, na particularidade do processo mórbido que se deve procurar a razão pela qual os delírios possuem a mesma característica.
A justa comparação de Griesinger não é somente espirituosa. Escreve Krafft-Ebing:
Griesinger aplicou a esses delírios primitivos a designação muito justa de delírios primordiais e de maneira muito espirituosa as comparou aos delírios de cores que se produzem nos epiléticos como aura dos acessos; sabe-se que neste último caso a excitação central produz poucas cores (vermelho, sobretudo), que são sempre as mesmas em todos os doentes submetidos à aura, ao passo que poderia ser produzida grande quantidade dos mais variados tons.
Essa comparação é rigorosamente verdadeira.
O delírio paranoico é função da localização mental da mesma maneira que a aura epilética visual é função da localização cerebral. E se não digo igualmente localização cerebral para a primeira, como fez Krafft-Ebing, é porque, na ignorância na qual nos encontramos atualmente sobre a maneira como se localizam no cérebro as funções mentais, parece-me preferível que nos reportemos mais diretamente à organização psíquica do que nos ocupemos de seu substrato cerebral.
Ora, ao sintetizar os estudos modernos sobre a evolução e a dissolução regressiva das funções psíquicas, é necessário citar os escritos curiosos e extraordinários de Ribot.26 26 . Th. Ribot. Les maladies de la mémoire; Les maladies de la volonté; Les maladies de la personnalité; La psychologie de l'attention; La psychologie des sentiments. Paris, 1896. Sergi,27 27 . J.Sergi. La stratificazione del carattere e la delinquenza. In: Antropologia e scienze antropologiche. Messina, 1889, p. 311. de maneira feliz, comparou o processo de formação do caráter, e em geral o da constituição mental, a uma sucessão de deposições ou superposições em camadas das aquisições feitas pelos instintos e tendências que, ao se estratificarem, ao mesmo tempo adquiririam relações muito íntimas e complexas entre si. Esta concepção oferece, em uma comparação concreta, uma ideia clara da maneira pela qual as aquisições graduais se combinaram e graças à qual se desenvolveu e se cultivou na espécie a inteligência humana. Ela empresta da teoria evolutiva aplicada à psicologia todos os seus ensinamentos.
Portanto, compreende-se que se uma causa qualquer, permanente ou transitória, vem suprimir em todo ou em parte um número variável dessas camadas de aquisições psíquicas, o doente mutilado na sua mentalidade deverá agir e pensar em conformidade com os sentimentos e conhecimentos correspondentes ao nível psíquico ao qual foi reduzido. Porém, nesses termos, a teoria do delírio é ainda muito vaga, pouco precisa. E contra o reaparecimento do homem primitivo no delirante subsistem muitas das objeções que opusemos à teoria de Tanzi e Riva.
Principalmente, essa teoria não explica como o alienado pode pensar com as ideias e as concepções modernas e não exclusivamente com as ideias e as concepções atávicas.
Sergi, no entanto, mostrou que a formação do caráter é um fenômeno extremamente complexo e ainda pouco conhecido e, como judiciosamente notou Tarde,28 28 . Tarde. l'Atavisme moral. In: Études pénales etc., p. 129. não devemos admitir que "nossos hábitos e tendências, essas lembranças orgânicas de nossas antigas ações, estão aproximados tais como as folhas de um livro, não sendo nosso caráter apenas a coleção dessas lembranças".
Parece que a divisão mais essencial dos elementos que compõem o caráter é a que estabelece Sergi em elemento fundamental ou hereditário, dependente de todas as condições orgânicas, individuais, e em elemento adventício, isto é, o que no curso da vida individual se sobrepõe ao primeiro. Essa distinção entre as aquisições individuais e as qualidades inatas, legadas por hereditariedade, é bem colocada em destaque na construção do eu normal por certos psicólogos e psiquiatras.
Para mostrar o quanto o eu normal tem pouca coesão e unidade, Ribot escreveu:
Com exceção dos caracteres inteiriços (e isso não se encontra no sentido rigoroso da palavra), há em cada um de nós tendências de toda espécie, todos os seus contrários possíveis, e entre estas tendências todas as combinações. É que o eu não é apenas a memória, o acúmulo de lembranças ligadas ao presente, mas um conjunto de instintos, tendências e desejos que são a sua constituição inata e adquirida, entrando em ação.
Meynert, como assinalou del Greco, também distinguia duas espécies de eu:
Seria útil para nós distinguir artificialmente o eu no seu desenvolvimento em dois círculos: o eu primitivo, nosso eu da infância, e o eu segundo, que se desenvolve mais tarde, se acrescenta ao primeiro, e que certamente organiza seus membros através da associação.30 30 . F. Meynert. Lesioni cliniche di psichiatria. Trad. italiana do Dr. Pieracceni.
Essa distinção deve se aplicar à inteligência, posto que a lei de composição que Sergi aplica aos sentimentos e à volição - fatores essenciais do caráter para a escola psicológica à qual pertence Sergi - tem de fato alcance geral e se aplica necessariamente à evolução de todas as funções psíquicas.
Aliás, quer se atribua, com Fouillée,31 31 . A. Fouillée. Tempérament et caractère etc. Paris, 1895. ou se negue à inteligência uma influência igualmente primordial e direta na formação do caráter, deve-se presumir que a influência que exerce a capacidade de pensar é inseparável das ações do homem. Ora, na constituição da inteligência, essa distinção entre qualidades inatas ou herdadas e as aquisições pessoais corresponde em cada indivíduo à distinção entre a capacidade de pensar e a aquisição de conhecimentos. Percebe-se esta distinção nas pessoas dotadas de inteligência que, por falta de cultura, ficam na ignorância, como pode acontecer, por exemplo, nos surdos-mudos. Neste caso, podemos dizer que se as qualidades de forma e a capacidade potencial de inteligência são produto de lembranças orgânicas de antigas formas de pensar, as aquisições pessoais de conhecimentos que constituem o eu segundo são, sobretudo, obra da memória.
Nessas condições, não podemos concordar com Meynert e Tanzi, para quem as ideias delirantes existem previamente formadas no inconsciente de cada cérebro normal. Aliás, ao se referir a essa teoria de Meynert, Tanzi32 32 . Tanzi. Il folk-lore etc. p. 35. denota que ela não traz nenhuma prova; somente seus estudos comparativos do delírio com as ideias do homem primitivo e dos selvagens "lhe dariam um fundamento e uma lucidez inesperados".
Entretanto, se de um lado percebemos que as analogias assinaladas por Tanzi e Riva entre delírio e atavismo se relacionam menos às ideias do que aos sentimentos, tendências e instintos, como também às crenças que procedem desses sentimentos e tendências; e que, de outro lado, admitimos que a conservação das ideias é mais efeito da memória, elemento do eu segundo, que do domínio das modificações orgânicas mais profundas da transmissão hereditária constitutivas do eu primeiro ou fundamental, podemos concluir que as teorias de Meynert e as de Riva, ambas que admitem no inconsciente do homem normal a existência prévia de ideias delirantes, são supérfluas, ao menos. Ao contrário, essas ideias são o produto do funcionamento atual de uma inteligência insuficiente, defeituosa ou mutilada. As semelhanças que elas podem aparentar com ideias de outras épocas ou de nossos ancestrais distantes provêm apenas da correspondência que pode existir, de um lado, entre os sentimentos, as tendências e a capacidade intelectual do nível mental ao qual a dissolução de superposições psíquicas reduziu o doente e, de outro, a mentalidade de nossos pais à qual correspondeu esse nível na formação evolutiva da nossa mentalidade.
Com efeito, a experiência demonstra que o doente delira com as ideias que possui, adquiridas na sua evolução ontogênica, graças a elementos retirados de seu eu segundo. Podemos então compreender como o retorno atávico do caráter pode se revelar com a ajuda de ideias totalmente modernas. O retorno atávico só afeta, portanto, os elementos constitutivos do eu primitivo, nossas tendências, sentimentos e crenças que ele nos impõe; a manifestação exterior das ideias delirantes se faz, ao contrário, com a ajuda de nossos conhecimentos pessoais. É por isso que a natureza específica dos delírios e das ideias delirantes tem, em geral, pouca importância científica. Ensina Krafft-Ebing:33 33 . Krafft-Ebing, loc.cit., p. 93.
Este último modo de origem do delírio (pela reflexão e na tentativa de encontrar uma explicação, uma interpretação falsa, alegórica e imaginária para as sensações que o doente sente) é muito importante do ponto de vista prático, e ele nos leva a colocar a questão de saber que valor clínico poderia ter a natureza específica dos delírios e das ideias delirantes. Aqui também a opinião dos leigos difere totalmente da posição da ciência. O leigo se atém muito à natureza particular de uma ideia delirante, ao passo que do ponto de vista científico muitas vezes importa muito pouco ou nada que o doente se acredite Júlio César, Napoleão ou Bismarck, o Messias ou mesmo o Pai Eterno.
É que a doença, o retorno atávico, habita no sentimento exagerado do orgulho, da grandeza; a forma que a inteligência do doente lhe dá para expressar-se, de acordo com os recursos que dispõe, é uma forma totalmente secundária, variável com a capacidade e a cultura intelectual de cada indivíduo.
Em todo o precedente exposto, no que tange à memória, é evidente que nos referimos à distinção, bastante conhecida, entre memória psíquica e memória hereditária, orgânica ou específica.
Portanto, podemos compreender o delírio sistematizado da seguinte maneira: causas muito variadas rompem a harmonia, o sincronismo em que funciona normalmente nosso espírito, enfraquecendo ou fazendo desaparecer a unidade do julgamento, a síntese psíquica, que forma nossa personalidade consciente, colocando em liberdade fragmentos ou núcleos mentais secundários onde as leis de associação haviam reunido um conjunto de funções mentais. Um sentimento, uma crença ligada a uma época distante do desenvolvimento mental filogenético, e que lhe dá o aspecto de retorno atávico, domina muitas vezes essa síntese inferior da personalidade.
Entretanto, não concluiremos que a Verrucktheit ou delírio sistematizado seja uma síndrome banal ou indiferenciada de uma das causas quaisquer que podem produzi-la, seja a paranoia, a melancolia, a paralisia geral, o alcoolismo etc. Ao contrário, cada uma delas impõe à sua Verrucktheit caracteres particulares, o que a torna clinicamente característica de cada espécie mórbida, de maneira que do ponto de vista patogênico pode-se aceitar a equivalência que a clínica havia estabelecido entre cada uma das síndromes da Verrucktheit e a espécie nosológica que a produziu, e da qual ela é muitas vezes, senão o único, ao menos o sinal mais aparente e perceptível. As características próprias a cada espécie de Verrucktheit e que permitem distingui-las umas das outras procedem da forma particular pela qual cada uma das espécies nosológicas desvia ou desagrega nosso mecanismo psíquico, e da determinação da condição psicológica particular a cada espécie de doença ou anomalia psíquica.
Examinar a fundo a causa e o mecanismo da Verrucktheit paranoica equivale, portanto, a determinar a condição fundamental da anomalia psíquica da paranoia. Esta não é uma tentativa simples e nem mesmo suficientemente formulada.
Buscou-se colocar em axioma que a paranoia é essencialmente uma doença intelectual e não essencialmente emotiva. No seu absolutismo, essa doutrina só poderia ser falsa. Del Greco escreveu de maneira excelente:34 34 . F. Del Greco. Temperamento e carattere nelle indagini psichiatriche e l'antropologia criminale ( Il ManicômioModerno. Nocera, 1898, p. 204).
Durante muito tempo considerou-se, em psiquiatria, o paranoico um indivíduo tomado de delírio e nada mais; as alterações afetivas eram vistas como consequências de erros ideativos iniciais: fechavam-se os olhos à evidência clínica. Os preconceitos de escola tornam por vezes os observadores completamente cegos. O paranoico, por acaso, não é um apaixonado? Não é o medo, em sua maior ou menor extensão (sob a forma de preocupações e desconfianças) - o medo esse companheiro da cenestesia alterada - que invade todo o seu espírito e, diante da atenção tornada mais vigilante por ele, lhe suscita imagens, ideias, lembranças que o tornam mais forte?
Na sua essência, a paranoia é uma anomalia do caráter alterado nos seus próprios fundamentos; ela representa uma parada no desenvolvimento do caráter em suas fases iniciais.
Em nosso conhecimento, não há autor que vá mais longe do que Del Greco na análise dessa anomalia psíquica. Em uma sequência de escritos35 35 . F. Del Greco. Sulia evoluzione dels delírio paranóico ( Manicômio moderno, 1894); Il temperamento nei paranoici homicidi ( La Scuola positiva, 1897); Sulle varie forme di confuzione mentale ( ManicômioModerno, 1897-1898). interessantes, esse autor procurou substituir a noção um pouco banalizada da causa degenerativa da paranoia pela determinação clara e precisa da natureza da alteração degenerativa que a produziu e das relações que ligam essa alteração às outras anomalias degenerativas congêneres: anomalias epilética, criminal etc.
A falta de conhecimento exato das formas de degenerescência ameaça tornar totalmente improdutiva e estéril a noção fecunda da degenerescência nas aplicações psiquiátricas.
Dizer que a epilepsia, o crime, a paranoia, a idiotia, a imbecilidade, a loucura moral, etc., etc., são estados de degenerescência é apenas dar uma noção vaga das relações que ligam essas perturbações mentais, criando uma identificação evidentemente falsa e forçada entre os estados de espírito que continuam afirmando sua autonomia com eloquência triunfante.
Não considero perfeita a concepção da paranoia de Del Greco, sobretudo na sua relação com a confusão mental, mas como interpretação provisória, nenhuma outra que eu conheça a supera.
Para Del Greco, a paranoia nas suas formas completas, ou seja, com delírio sistematizado, "compreende um processo confusional-alucinatório que se desenvolve em um caráter particular, representado, entre outros, pela contínua e móvel emotividade medrosa e pela parada de toda emoção simpática".
O elemento atávico é aqui a alteração do temperamento e do caráter. O retorno do instinto de conservação à sua fase defensiva repercute sobre a inteligência, ao exagerar o sentimento de medo e de orgulho e parando a simpatia e a imitação; decorre daí que o paranoico e, sobretudo, de acordo com os dizeres de Del Greco,36 36 . Del Greco. Temperamento e carattere, loc.cit., p. 208. um intelectual,
(...) um indivíduo que se esgota em protestos teóricos; fechado em si mesmo, raramente consegue superar a barreira do menor e, no entanto, mais inflexível medo. Seus protestos são normalmente textos, longas perorações, descrições monótonas. Os próprios processomaníacos são libelistas, maldizentes que se aliviam completamente através de frases ferozes, mais do que na ação. Eles carregam consigo a tendência fácil a dar proporções gigantescas à sua vaidade e se perdem em delírios estranhos e grandiosos. A sua imaginação os transporta facilmente para o mundo dos sonhos, no lugar de curvá-los sob os duros e pesados trabalhos da vida exterior e real.
É sobre tal terreno regressivo que se desenvolve o delírio que seria, segundo Del Greco, de natureza alucinatória-confusional. Assim, enquanto este, o delírio, é uma doença, o outro, o temperamento paranóico, é uma monstruosidade, uma parada no desenvolvimento.
Nessa concepção da paranoia, não há lugar para ideias atávicas. O que é considerado atávico é a forma segundo a qual um cérebro, cujas funções psíquicas foram altamente ofendidas pela desorganização degenerativa, é obrigado a pensar. Escreve Del Greco: "No paranoico, ao mesmo tempo que o medo e o orgulho, igualmente reaparece a antiga forma antropomórfica de conhecer, a disposição a pressentir por detrás de toda impressão a existência de uma inteligência distinta e inimiga."
Ora, a desagregação mental que essa teoria propõe dá uma explicação fácil do desdobramento da personalidade do paranoico, da mesma maneira que a coexistência, no mesmo doente, do antigo eu e do eu novo, que Schule,37 37 . Schule. Traité clinique des maladies mentales. Trad. francesa. Paris, 1883. Seglas,38 38 . Seglas. Les hallucinations et le dédoublement de la personnalité dans la folie systématique ( Annales médico-psychologiques, 1894, t. XX, p. 5). etc., tão bem descreveram. Esse fato permanece muito difícil de ser explicado pelo reaparecimento no paranoico do eu atávico normal que admitem Tanzi e Riva.
Vemos-nos, portanto, habilitados a compreender as relações que existem entre os dois, delírio e paranoia. A manifestação clínica da deformidade hereditária pode ser precoce (paranoia originária de Sander) ou tardia. E esta revelação tardia, como o provam Tanzi e Riva, é efeito da própria evolução mental e corresponde ao momento da vida individual em que a brecha mental acaba de revelar a insuficiência do indivíduo para o trabalho psíquico exigido dele nesse momento, seja um excesso de trabalho representado por exigências da vida viril para as paranoias da juventude, seja pelo enfraquecimento das forças que acompanha o declínio da vida nas psicoses em idade avançada.
Nas formas precoces ou originárias, pode haver ou não o delírio; neste último caso, é a paranoia indiferente ou sem delírio de Tanzi e Riva. Mas não acreditamos que a paranoia com delírio seja uma simples exageração, um caso mais grave de paranoia sem delírio; acreditamos mais que a diferença é o resultado da falta de condições particulares de resistência mental, que favorece em um caso a eclosão do delírio e, em outro, se lhe opõe. Com efeito, como notam Tanzi e Riva39 39 . Tanzi e Riva. La paranoia, p. 105. na importante observação III da sua memória, no caso as influências potentes capazes de provocar o delírio não faltaram e, entretanto, ele não se manifestou. Eles dizem: "A cada ponto acentuado da história desse infeliz, aguardamos, como em um epílogo imposto pela lógica, a manifestação de um delírio determinado e ficamos quase surpresos em não o ver aparecer."
Ao contrário, nas formas tardias, pode acontecer que o fundo degenerativo esteja tão intimamente unido às condições mentais provocadoras do delírio, que seja impossível separá-los; o fundo paranoico se revela apenas no delírio sistematizado sendo, aliás, suficiente para caracterizá-lo, porque tomou da alteração degenerativa as características suficientes para ser diferenciado dos delírios sistematizados de outra proveniência, como de paralisia geral, álcool, melancolia etc. Mas aqui se apresenta uma questão importante. A degenerescência paranoica, que nas paranoias tardias pode permanecer em estado latente durante grande parte da vida mental, não poderia ser por vezes tão bem compensada que, quando o delírio desaparecesse, ela também desapareceria igualmente? Em outras palavras, as paranoias chamadas agudas não seriam, por acaso, manifestações periódicas, sob forma de delírio sistematizado agudo, do terreno paranoico que retornara ao estado latente, disfarçado ou compensado por um novo equilíbrio das funções mentais, normais quando termina a fase delirante? Muitos dos episódios agudos das paranoias delirantes são simples exageros de fases agudas da Verrucktheit crônica. Se a paranoia é sempre um estado constitucional e, por consequência, crônica, a Verrucktheit ou delírio sistematizado paranoico pode ser agudo ou crônico e isso que chamamos paranoia aguda seriam apenas formas ou manifestações frustras do terreno paranoico, reveladas em certo período agudo.
É inútil dizer que, assim compreendida, a paranoia aguda não é exatamente conforme ao estado a que foi dado esse nome. Todavia, essas condições, todas incidentes no que se refere à paranoia aguda, não prejudicam de forma alguma a concepção de Del Greco naquilo que ela tem de aplicável à paranoia clássica.
Em resumo, o paranoico é um degenerado superior cuja lesão característica é a anomalia mental constituída pela parada no desenvolvimento do caráter e que se revela clinicamente por uma simples desordem da conduta ou por um delírio sistematizado em forma especial. O vício de organização psíquica do paranoico pode ser mais ou menos completo, mais ou menos compensado. Quando ele se manifesta e se revela desde a infância, é a paranoia originária de Sander.
Quando o desequilíbrio mental pode se manter em estado latente durante um período variável da existência, permanecendo mais ou menos compensado, e só se revela sob a influência de abalo ou perturbação cerebral, ele dá lugar às paranoias tardias. Esse violento abalo pode resultar de períodos críticos da evolução orgânica individual: da puberdade, da virilidade, da menopausa etc., etc. Pode também ter sua origem em emoções profundas. Em certos casos, é a manifestação acidental de uma psiconeurose que vem colocar em evidência o vício mental paranoico; é então a paranoia secundária no sentido atribuído por Tanini. Se tal psicose reveladora é a confusão mental, cuja manifestação se confunde com as da paranoia, encontramo-nos na presença da confusão mental paranoide de Del Greco, que reclama como sendo dela os numerosos casos de paranoia aguda descritos por Schule, Cramer etc. Finalmente, o delírio paranoico, desde que é provocado, torna-se permanente ou pelo menos crônico, mas em certos casos tem apenas duração efêmera, ainda que acompanhada de grande intensidade, e o paranoico retorna em seguida ao seu equilíbrio mental anterior: é a paranoia aguda, tal qual a entende Júlio de Mattos, com quem concordamos plenamente.
É nesse sentido e com essa ideia de paranoia que tentaremos verificar sua existência na raça negra. Entretanto, e visando que as especulações teóricas sobre a natureza dessa doença não prejudiquem a questão prática e positiva da verificação de sua existência nos negros, adotaremos nesse nosso próximo trabalho os termos utilizados atualmente pela psiquiatria francesa para designar as formas clínicas bem conhecidas do delírio sistematizado.
RAIMUNDO NINA-RODRIGUES (1862-1906)
Médico maranhense, foi professor da Faculdade de Medicina da Bahia. Seus trabalhos científicos se associam à constituição de três campos no Brasil: a medicina legal, a psiquiatria e a antropologia. Parte relevante de sua extensa obra refere-se ao estudo da psicopatologia dos negros e dos mestiços brasileiros, desde uma perspectiva racialista.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Jan 2010 -
Data do Fascículo
Dez 2009